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VIII Mostra de Pesquisa<br />

Produzindo<br />

História<br />

a partir de<br />

fontes primárias<br />

Porto Alegre / RS<br />

CORAG - 2010


Governo do Estado do Rio Grande do Sul<br />

Governadora Yeda Rorato Crusius<br />

Secretaria da Administração e dos Recursos Humanos<br />

Secretário Elói Guimarães<br />

Departamento de Arquivo Público<br />

Diretora Rosani Gorete Feron<br />

Corag - Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas:<br />

Responsável pelos dados técnicos<br />

Maria Helena Bueno Gargioni<br />

Editoração<br />

Ingrid Schuck<br />

Capa<br />

Sid Monza<br />

Ficha Técnica:<br />

Seleção e organização de textos: Comissão de Avaliação e Seleção da VIII MOSTRA DE PESQUISA<br />

- Associação Nacional de História – ANPUH/RS: Elisabete Leal<br />

- Associação dos Arquivistas do Estado do Rio Grande do Sul – AARS: Karine Georg Dressler<br />

- Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul – APERS: Maria Cristina Kneipp Fernandes, Clarissa<br />

de Lourdes Sommer Alves, Gerson Saldanha Costa.<br />

Organização e formatação dos textos:<br />

Clarissa de Lourdes Sommer Alves<br />

M915a Mostra de pesquisa do Arquivo Público do Estado do Rio<br />

Grande do Sul (8. : 2010 : Porto Alegre, RS).<br />

Anais : produzindo história a partir de fontes primárias / 8.<br />

Mostra de Pesquisa do Arquivo Público do Estado do Rio<br />

Grande do Sul, Porto Alegre 14, 21, 28 de agosto e 04 de<br />

setembro de 2010. – Porto Alegre : Companhia Rio-grandense<br />

de Artes Gráficas - CORAG, 2010.<br />

p.428<br />

ISBN: 978-95-7770-115-5<br />

978-85-7770-077-6<br />

1. Pesquisa histórica 2.Fontes primárias 3.História – Brasil 4.<br />

Documentação histórica 5. Fontes históricas<br />

I. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul II. Alves,<br />

Clarissa de Lourdes Sommer III. Título<br />

CDU – 930”2010”(81)<br />

Catalogação elaborada pela Biblioteca da Secretaria da Administração e dos Recursos Humanos<br />

– Bibliotecária responsável: Adriana Arruda Flores, CRB10-1285.


S U M Á R I O<br />

Apresentação ________________________________________________ 5<br />

Introdução __________________________________________________ 11<br />

Apresentação de Pôster<br />

A Revolução Farroupilha e a Igreja de Santa Maria (1838-1840)<br />

Alessandro de Almeida Pereira ___________________________________ 17<br />

Através da voz viva dos seus sócios, para edcidir dos seus próprios destinos. Disputas (políticas?)<br />

no Aero Clube de Pelotas durante o Estado Novo.<br />

Natasha Dias Castelli __________________________________________ 19<br />

1<br />

Valores Sociais e Moralidade no Brasil Moderno<br />

Modernidade e Cidadania em Porto Alegre: o combate à vadiagem e a questão habitacional.<br />

Carlos Eduardo Martins Torcato _________________________________ 23<br />

O Juizado de Órfãos de Porto Alegre: um reflexo da Sociedade<br />

José Carlos da Silva Cardozo ____________________________________ 39<br />

2<br />

Repressão e Protesto na História do Tempro Presente<br />

Coração de Luto: Teixeirinha e o protesto dos esquecidos<br />

Francisco Alcides Cougo Junior __________________________________ 59


A Atuação repressiva da ditadura civil-militar brasileira durante a construção da Anistia<br />

Julio Mangini Fernandes ________________________________________ 73<br />

3<br />

Escravidão: Trabalho, Resistência e Liberdade<br />

A organização do trabalho escravo nas charqueadas pelotenses na segunda metade do século XIX<br />

Bruno Stelmach Pessi __________________________________________ 97<br />

Uma economia escravista? Apontamentos sobre a população e a estrutura de posse de escravos em<br />

Porto Alegre (1779-1792)<br />

Luciano Costa Gomes _________________________________________ 115<br />

Por ter ido ao Estado Oriental: Guerra e Fronteira nas Cartas de Alforria de Alegrete (1832-<br />

1871)<br />

Marcelo Santos Matheus _______________________________________ 139<br />

Firmando (e afrouxando) os laços: compadrio, alforria e expectativas em torno da liberdade – Rio<br />

Pardo/RS, últimas décadas da escravidão.<br />

Melina Kleinert Perussatto ______________________________________ 161<br />

Escravos em Bagé: fugas, quilombos e insurreições<br />

Vinicius Pereira de Oliveira _____________________________________ 177<br />

4<br />

Elites e Redes de Sociabilidade<br />

Valsas, Contradanças e Bailados: espaços de sociabilidade enre agentes da elite no Rio Grande de<br />

São Pedro no século XIX.<br />

Adriano Comissoli ___________________________________________ 201<br />

Pai monarquista, filho republicano: propaganda republicana, eleições e relações familiares a partir<br />

da trajetória de Joaquim Francisco de Assis Brasil (1877-1889)<br />

Jonas Moreira Vargas e Tassiana Maria Parcianello Saccol ______________ 225


Poder e Parentesco nos Confins da América Portuguesa: uma análise sobre a rede de compadrios do<br />

governador Veiga Cabral da Câmara (Porto Alegre, 1774-1798)<br />

Márcio Munhoz Blanco ________________________________________ 251<br />

Em nome de “nossos amigos políticos”: vinculos pessoais, poder e influência ao tempo do Império<br />

do Brasil<br />

Miguel Ângelo Silva da Costa ____________________________________ 275<br />

Do Provedor à Rede de Sociabilidade<br />

Paula Andrea Dombkowitsch Arpini ______________________________ 303<br />

5<br />

História e Economia no Século XiX<br />

Fortunas, Bens e Investimentos: a caracterização econômica de uma elite política municipal a partir<br />

dos inventários post-mortem (final do Século XIX)<br />

Carina Martiny _______________________________________________ 319<br />

A Atividade Econômica Rio-grandense em Tempos de Guerra (Vila de Rio Grande, 1811-1850)<br />

Gabriel Santos Berute _________________________________________ 343<br />

Contratos Conflituosos: arrendamentos, arrendatários e litígios judiciais em Uruguaiana, Segunda<br />

Metade do Século XIX<br />

Guinter Tlaija Leipnitz _________________________________________ 365<br />

6<br />

A Atuação do Santo Ofício e dos Jesuítas no Brasil Colonial<br />

As Crônicas Jesuíticas como Fonte de Pesquisa: o Início das Missões de Maynas<br />

Fernanda Girotto e Fernanda Wisniewski ___________________________ 389<br />

A Inquisição no extremo sul da América Portuguesa: o perfil dos Familiares do Santo Ofício em<br />

Colônia de Sacramento (século XVIII)<br />

Lucas Maximiliano Monteiro ____________________________________ 407<br />

Errata ______________________________________________________ 428


APRESENTAçãO<br />

A PesquisA nos Confins do APERS<br />

Elói Guimarães<br />

Secretário de Estado<br />

O<br />

Projeto levado a cabo anualmente, pelo Arquivo Público, através<br />

da pesquisa a partir de fontes primárias, vem se tornando exitoso<br />

e ganhando qualificação, dado que reúne nesta VIII Mostra um<br />

verdadeiro acervo de valor histórico inestimável, sob qualquer ângulo que se possa<br />

examinar.<br />

Temática relevante é trazida, em diferentes e diversificadas áreas, abrangendo<br />

períodos de tempo, distantes e próximos, com análises que iluminam e destacam<br />

aspectos históricos vivenciados em momentos importantes da historia gaúcha.<br />

Os trabalhos produzidos, com detalhes e riquezas de dados, conferem pela<br />

“pena“ de seus pesquisadores um brilho especial a VIII Mostra de Pesquisa - Produzindo<br />

História a Partir de Fontes Primárias, o que contribui para o desenvolvimento<br />

cultural e para a memória rio-grandense e brasileira.<br />

Só a historia imortalizará o tempo! Bem-aventurados os que pesquisam!


INTRODUçãO<br />

Quantos de nós fomos crianças daquelas que se empolgavam ao assistir<br />

os filmes de Indiana Jones? Quantas vezes associamos alguma<br />

pesquisa realizada nas aulas de História com as atividades do famoso<br />

Sherlock Holmes? E antes que digam que as novas gerações já não se interessam<br />

pela ideia de “desvendar o passado”, não custa lembrar do sucesso que fazem jogos<br />

e filmes como Thomb Rider, em que a personagem principal, Lara Croft, é uma<br />

arqueóloga que vive muitas aventuras em seu ofício. Não é a toa que escritores e cineastas<br />

buscam inspiração na História e no trabalho do historiador para criar, afinal,<br />

o passado é estimulante, capaz de despertar muita curiosidade e interesse.<br />

Sabemos que entre os filmes e realidade existem diferenças. Em geral, o trabalho<br />

dos pesquisadores que se dedicam a conhecer o passado não possui tanto<br />

“glamour”, além de não contar com remunerações tão “espetaculares”. Mas os que<br />

vivem em contato com fontes históricas sabem o quão empolgante pode ser reunir<br />

as peças do enigma da História. Cada nova caixa de documentos, cada entrevista,<br />

imagem ou música, de acordo com as perspectivas de análise empregadas, pode ser<br />

um portal de contato com o passado, que a cada nova informação traz ao pesquisador<br />

mais e mais estímulos para continuar sua busca. Se nosso trabalho não é tão glamouroso,<br />

com certeza não ficamos para trás quando o quesito é emoção. Mergulhar<br />

no ofício da pesquisa histórica também é se aventurar!<br />

Mas, sendo assim, algo parece pouco lógico: se nos interessamos por filmes<br />

de temática histórica, se por muitos anos nos empolgamos com aventuras em busca<br />

do passado, em que momento esta magia se perde? Quando a grande maioria dos<br />

indivíduos passa a ser de adultos que encaram a História com receio e que não conhece<br />

os espaços de memória que os circunda ou as possibilidades reais de escrita da<br />

História? A resposta para estas questões não é simples ou unilateral, mas creio que<br />

uma importante “pista” surge justamente quando analisamos o tratamento e a visibilidade<br />

que nossa sociedade dá aos diversos tipos de documentos que são capazes<br />

de conectar os homens de nosso tempo com o passado.<br />

Quando falo em “tratamento e visibilidade”, quero dizer que de nada adianta<br />

que o ofício do historiador seja “mágico”, ou que as fontes históricas se prestem ainda<br />

a garantir inúmeros direitos dos cidadãos, se tais documentos, que são a matériaprima<br />

do trabalho do historiador e o meio garantidor de direitos, não forem geridos


e preservados por instituições de memória, como o Arquivo Público do Estado do<br />

Rio Grande do Sul, ou se nessas instituições não houver políticas de difusão do<br />

acervo e do conhecimento produzido a partir dele. Quero dizer que quebraremos as<br />

barreiras que separam a História dos filmes e das brincadeiras infantis da História<br />

palpável e real, que é construída por cada um de nós e que serve como instrumento<br />

de transformação social, somente quando a população em geral souber da existência<br />

destes locais e puder apropriar-se deles enquanto espaços públicos de conhecimento<br />

e saber.<br />

Nessa perspectiva é que o APERS vem desenvolvendo o Projeto Cultural<br />

Descobrindo o Arquivo Público. Buscando afastar-se de uma concepção ultrapassada<br />

que percebe os arquivos enquanto espaços destinados apenas ao público técnico,<br />

atualmente procura-se desenvolver ações que, além de facilitar a garantia do<br />

direito constitucional de acesso à informação, promovam a compreensão de que<br />

os arquivos devem ser espaços abertos e democráticos, despertando a sensibilidade<br />

dos cidadãos para com as questões referentes à preservação do patrimônio cultural,<br />

histórico e social.<br />

Entre as ações do Projeto podemos citar as visitas guiadas, que abrem as portas<br />

da instituição para grupos da comunidade que desejem conhecer as dependências<br />

do Arquivo, sua estrutura e organização; as oficinas de Educação Patrimonial voltadas<br />

ao público escolar, em que as turmas conhecem o APERS, lidam de maneira<br />

lúdica e dinâmica com fontes primárias e com as problemáticas que envolvem a<br />

preservação do patrimônio; e a Mostra de Pesquisa, que neste ano de 2010 está em<br />

sua oitava edição e tem como principais objetivos dar visibilidade aos trabalhos de<br />

pesquisa desenvolvidos a partir de fontes primárias arquivísticas, e proporcionar um<br />

espaço rico de debates e trocas de informações entre o público acadêmico e não<br />

acadêmico que se dedica à pesquisa histórica.<br />

A Mostra de Pesquisa vem desenvolvendo-se desde 2003 em um crescente.<br />

Iniciou como um evento destinado a pesquisadores que trabalhassem com fontes<br />

que estivessem sob guarda do APERS, e logo foi ampliada para que pudesse acolher<br />

debates suscitados por pesquisas em fontes primárias arquivadas em diversos locais.<br />

Em 2006 o evento passou a oportunizar a publicação dos trabalhos – que anteriormente<br />

eram apenas apresentados nas mesas de discussão – além de iniciar uma profícua<br />

parceria com a ANPUH-RS e a Associação dos Arquivistas do Estado do Rio<br />

Grande do Sul para a seleção dos trabalhos recebidos. A partir de 2007 o Arquivo<br />

Público passou a disponibilizar a publicação também no formato eletrônico, oportunizando<br />

um acesso ainda maior aos debates e ao conhecimento produzido pelos<br />

pesquisadores participantes. Em 2009 acrescentou-se a modalidade de apresentação<br />

de pôsteres com a publicação de resumos, que segue nesta edição a caminho da consolidação<br />

de mais uma ação.


Nesta edição recebemos trinta inscrições para apresentação de trabalhos com<br />

publicação de artigo e três para apresentação de pôster, sendo escolhidos dezenove<br />

artigos e dois pôsteres. A qualidade das produções, a relevância das problemáticas<br />

levantadas pelos pesquisadores, e a diversidade de suas fontes e metodologias de<br />

análise certificam a importância e a relevância da Mostra de Pesquisa. Todos os trabalhos<br />

que compuseram as mesas de debate, nos dias 14, 21, 28 de Agosto e 04 de<br />

Setembro de 2010, e que hoje compõem esta publicação, contribuem para enriquecer<br />

a historiografia e para que o APERS cumpra seu papel como instituição pública<br />

de memória na contemporaneidade, ampliando os laços que ligam o Arquivo às universidades,<br />

divulgando não apenas o conhecimento, mas as inúmeras possibilidades<br />

de produzi-lo a partir de fontes primárias, e demonstrando para cada cidadão que a<br />

instituição existe em função de suas necessidades e dos seus diretos. Assim, damos<br />

um passo à diante na importante tarefa de instigar em cada indivíduo o gosto pela<br />

História, o interesse pelo saber, o conhecimento de seus direitos e a certeza de que<br />

cada um de nós pode e deve fazer parte da construção de uma nova concepção de<br />

arquivo, de patrimônio, de ensino e aprendizado.<br />

Nas próximas páginas encontramos trabalhos que são o resultado de muita<br />

dedicação à pesquisa, de reflexões variadas que nos transportam a tempos e espaços<br />

diversos, e que são exemplos concretos do quanto pode ser gratificante e emocionante<br />

o trabalho do historiador, que enfim é viabilizado pela existência de espaços<br />

como o APERS e pelo trabalho sério de arquivistas e outros profissionais que se<br />

dedicam a manter o acervo organizado, preservado e disponibilizado ao público. A<br />

todos e todas, uma boa leitura!<br />

Clarissa de Lourdes Sommer Alves<br />

Historiadora, membro da equipe Ação Educativa do APERS


APresentAção de Pôster


A revolução fArrouPilhA e A igrejA de<br />

sAntA MAriA (1838-1840)<br />

Alessandro de Almeida Pereira¹<br />

Acadêmico de História da Universidade Federal de Santa Maria<br />

Bolsista PiBiC/CNPq/UFSM<br />

Contato: alessandro.hist@gmail.com<br />

Resumo: A Revolução Farroupilha e a cidade de Santa Maria integram os resultados das atividades<br />

desenvolvidas como Bolsista PIBIC/CNPq/UFSM vinculado ao projeto de pesquisa O federalismo na<br />

história da América: os processos de construção e de consolidação dos estados nacionais no século XIX e no início do<br />

século XX, que integra o Grupo de Pesquisa CNPq/UFSM e o Comitê História, Fronteira e Região do<br />

Grupo Montevidéu. A partir da concepção de História Política objetivou-se desenvolver a investigação<br />

sobre o período da Revolução Farroupilha (1835-1845), entendida como uma variável dos processos de<br />

construção e de consolidação dos Estados nacionais no século XIX, protagonizada no espaço fronteiriço<br />

platino por personagens de diversos setores da sociedade - entre eles os sacerdotes. Partindo desse<br />

ponto, buscou-se uma bibliografia que abordasse a atuação do clero católico na cidade de Santa Maria<br />

durante a Revolução Farroupilha. Assim, especificamente nesse trabalho, apresentamos os resultados<br />

obtidos da pesquisa em fontes primárias (livros Tombos Paroquiais: Registros de batismos, óbitos e<br />

casamentos), visando à identificação e a comprovação da atuação dos sacerdotes na Capela de Santa<br />

Maria (1838-1840). Através das informações contidas nesses e documentos foi possível contestar a informação<br />

contida no livro História do município de Santa Maria 1797/1933, de João Belém, de que a igreja<br />

matriz de Santa Maria esteve fechada durante o período entre 1837 e 1839, uma vez que foi encontrada<br />

documentação que comprova a atuação eclesiástica nesse povoado durante o determinado período. Ou<br />

seja, tanto a história de Santa Maria como da própria Revolução Farroupilha ainda merecem revisão e<br />

preocupação por parte dos historiadores.<br />

Palavras-chaves: Federalismo - Revolução Farroupilha – Sacerdotes – Santa Maria<br />

¹ Trabalho orientado por Maria Medianeira Padoin, Doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande<br />

do Sul (1999) e professora adjunta da Universidade Federal de Santa Maria. Contatos: mepadoin@terra.com.br e<br />

(55)9166-9307.


AtrAvés dA voz vivA dos seus sóCios, PArA edCidir dos<br />

seus PróPrios destinos. disPutAs (PolítiCAs?)<br />

no Aero Clube de PelotAs durAnte o estAdo novo.<br />

Natasha Dias Castelli<br />

Acadêmica do Curso de Licenciatura em História – UFPel, Pelotas, RS<br />

Contato: natasha.dias.castelli@hotmail.com<br />

Resumo: A presente pesquisa analisa as disputas de poder sobre a administração do Aero<br />

Clube de Pelotas num recorte de 1940-1945, com o objetivo de observar características peculiares dessa<br />

associação voluntária em meio à ditadura do Estado Novo. O tema despertou interesse ao analisar o<br />

material manuscrito e impresso do Aero Clube e observar um relatório, sobre uma assembléia realizada<br />

no ano de 1943 que previa enfaticamente “dar voz aos sócios”, bem como as disputas internas entre<br />

as chapas, que podem possuir caráter partidário e que renderam diversas matérias nos jornais locais.<br />

Para tanto, será feita a analise do relatório em questão comparado a um relatório de outra associação<br />

da mesma época. Posteriormente, serão analisados os nomes correspondentes as duas formações de<br />

chapas à direção do clube buscando vínculos partidários. Ainda serão utilizadas matérias de jornais<br />

locais sobre a disputa e, por fim, anotações pessoais dos membros das chapas. A principal fonte será o<br />

“arquivo” do Aero Clube de Pelotas disponível no Arquivo da Biblioteca Pública de Pelotas e também<br />

os periódicos pelotenses; Diário Popular e Jornal da Manhã de 1943. Não é possível falar ainda em<br />

resultados finais devido à abrangência da pesquisa que está vinculada ao projeto; O Associativismo<br />

no Rio Grande do Sul (1920-1950). Parcialmente, é passível concluir que os nomes indicados para<br />

as chapas que disputavam a administração desta associação têm um “peso” significativo nos âmbitos<br />

social e político do município de Pelotas e região, demonstrados em nomes de escola estadual, avenida,<br />

fundação, entre outros exemplos.<br />

Palavras-chave: Aero Clube – Associativismo – Participação política – Estado Novo.


1<br />

vAlores soCiAis<br />

e MorAlidAde no<br />

brAsil Moderno


ModernidAde e CidAdAniA eM Porto Alegre:<br />

o CoMbAte à vAdiAgeM e A questão hAbitACionAl.<br />

Carlos Eduardo Martins Torcato<br />

Resumo: Este artigo aborda a universalização das concepções de Estado e de cidadania derivadas<br />

do desenvolvimento do capitalismo e da sociedade moderna que foram mundialmente dominantes<br />

a partir do século XIX. No Brasil, as tentativas de implementar tais concepções esbarraram em inúmeras<br />

dificuldades. Em Porto Alegre, a partir da bibliografia e das fontes arquivísticas estudadas, pode-se<br />

perceber que as políticas públicas de combate à vadiagem e à política habitacional eram pensadas de<br />

acordo com o paradigma proibicionista, pois criminalizavam práticas sociais amplamente disseminadas,<br />

especialmente pelas camadas sociais mais vulneráveis, e não promoviam a cidadania. Tais políticas reforçavam<br />

e reproduziam uma estrutura hierarquizada, autoritária e elitista de Estado.<br />

Palavras-chave: modernidade – cidadania – políticas públicas – cultura popular – sociabilidade<br />

moderna.<br />

INTRODUçãO<br />

O<br />

final do século XIX e o início do século XX foram caracterizados<br />

pelo poderio das potências europeias e pela universalização das<br />

concepções de Estado e de cidadania moderna. Fora da Europa,<br />

entretanto, a implementação dessas concepções encontrou enorme resistência nas<br />

populações locais, sendo acolhidas somente por segmentos das elites e de alguns<br />

setores citadinos identificados com ideais de progresso e modernidade.¹<br />

No Brasil, a tentativa de implementação de tais concepções, no sentido de<br />

adequar o país aos parâmetros internacionais de progresso, encontrou também dificuldades.<br />

Esses empecilhos eram, sobretudo, de ordem antropológica, visto que a vivência<br />

moderna envolve uma exigência de ordem cultural/moral. Para que o Estado<br />

moderno se estabeleça, é preciso que as pessoas que fazem parte da sua coletividade<br />

(nação) ajam de forma propícia ao seu funcionamento.²<br />

Este artigo pretende abordar as tensões nascidas a partir da tentativa de implementação<br />

de noções universalistas de humanidade e cidadania e a existência de<br />

1 HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios (1875-1914). São Paulo: Paz e Terra, 2002. p.52-53.<br />

² COOPER, Frederick; HOLT, Thomas C.; SCOTT, Rebecca. Introdução. In: Além da escravidão: Investigação<br />

sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p.62-63.<br />

23


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

concepções sobre as virtudes e as falhas de grupos específicos, assim como seus<br />

modos de agir e de ser. No caso de Porto Alegre, o período entre o final do século<br />

XIX e início do século XX foi caracterizado pelo confronto entre as elites, imbuído<br />

de um ideal modernizador, e os grupos populares da cidade.<br />

As políticas públicas elaboradas pelas elites Porto-Alegrenses, no âmbito de ordenar<br />

o espaço urbano de acordo com os preceitos dominantes de Estado e de cidadania<br />

moderna, encontravam resistências diversas que se manifestavam de várias formas, desde<br />

a resolução privada e violenta de conflitos circunscritos – ligados aos valores androcêntricos<br />

– até o desejo das pessoas, atingidas por elas, em preservar a autonomia do uso do<br />

tempo – ligado à maneira como as pessoas vivem e organizam sua cotidianidade.<br />

Procurar-se-á compreender os efeitos das políticas públicas de combate à vadiagem<br />

e as consequências da política habitacional para os diferentes estratos sociais,<br />

principalmente para aqueles mais pobres, tradicionalmente identificados como<br />

“classes populares”, a partir da análise dos confrontos nascidos de tais políticas na<br />

cidade de Porto Alegre.<br />

24<br />

ESPAçOS DE SOCIABILIDADE, CULTURA POPULAR E<br />

ORDEM ANDROCêNTRICA<br />

A divisão entre um mundo “civilizado” e “atrasado” não pode ser reduzida à<br />

mera divisão da sociedade industrializada e agrícola, embora pareça bastante correto<br />

associar a modernidade à industrialização e à urbanização.³ A modernização e o “ser<br />

civilizado”, por isso, não podem ser reduzidos somente aos aspectos econômicos,<br />

em razão da ampliação das relações assalariadas ou da atividade industrial. Ela precisa<br />

ser percebida também em seus aspectos cotidianos, no contato com as tecnologias,<br />

nos serviços públicos essenciais para a vida moderna e na burocratização.<br />

O que significou para a população de Porto Alegre a possibilidade de desfrutar<br />

de um serviço público de iluminação? Esse serviço propiciou o desfrute do<br />

tempo noturno como espaço de sociabilidade legítimo, fato diretamente relacionado<br />

com a urbanização das sociedades modernas. Em poucos anos, após a inauguração<br />

da luz a gás (1874), os habitantes de Porto Alegre, assim como os habitantes das<br />

principais cidades europeias, também passaram a desfrutar de espaços de sociabilidade<br />

legítimos durante a noite. 4 Até esta data, o que existiam eram alguns poucos<br />

“bordeis” que “ofendiam a moral pública” apesar do toque de recolher 5 .<br />

³ HOBSBAWM, Eric, op. cit, p.38-41.Valores Sociais e Moralidade no Brasil moderno<br />

4 CONSTANTINO, Núncia Santoro. Modernidade, noite e poder: Porto Alegre na virada do século XX. Tempo.<br />

Rio de Janeiro, vol.4, 1997, p.49-50.<br />

5 Ibidem, p.51-52.


Para Constantino (1997), a proliferação dos espaços de sociabilidade, em Porto<br />

Alegre, esteve ligada a diversas práticas sociais inauguradas pelos alemães que<br />

teriam sido responsáveis pela introdução de restaurantes, cafés, livrarias, boliches,<br />

bilhares e diversas agremiações. Era de costume os homens alemães se reunirem ao<br />

entardecer. Tais estabelecimentos se multiplicaram, nas últimas décadas do século<br />

XIX, a ponto de existirem centenas, no início do XX, tanto para setores da elite<br />

quanto para setores pobres. 6<br />

A multiplicação dos espaços de sociabilidade, em Porto Alegre, foi percebida<br />

como uma ameaça à ideologia do trabalho defendida por alguns setores da burocracia.<br />

A valorização do trabalho e a condenação à vadiagem justificaram a implementação<br />

de medidas de controle social durante todo o século XIX. Os negros e os europeus<br />

podiam ser enquadrados como vadios e compelidos ao trabalho. 7 O encontro<br />

de homens, com intuito de beber, jogar cartas e conversar é uma afronta ao esforço<br />

das autoridades no sentido de imposição do hábito do trabalho.<br />

Numa sociedade escravista, a possibilidade de poder usufruir do ócio ou de<br />

usar o tempo em atividades lúdicas é uma forma de dignidade enquanto ser-livre.<br />

Então, é bem provável que, antes da chegada dos alemães, já existissem locais especializados<br />

na sociabilidade daqueles que podiam gozar do seu próprio tempo. As<br />

casas de tavolagem, por exemplo, são locais específicos para esse fim. A proibição<br />

desse tipo de estabelecimento remonta ao Código Filipino do século XVII. 8<br />

A inauguração da iluminação pode ter contribuído para a ineficácia das políticas<br />

de imposição do hábito do trabalho e para a legitimação de espaços de sociabilidades<br />

noturnos, pois tais encontros poderiam ser promotores de vícios sociais<br />

– opostos à ideologia do trabalho e à moralidade das boas famílias. Segundo as elites,<br />

os jogos de azar que ocorriam, especialmente, à noite, estavam associados a diversas<br />

práticas sociais como o alcoolismo, a prostituição, o ócio e a tendência à itinerância,<br />

consideradas devassidões sociais que impediam a incorporação das pessoas à ordem<br />

moderna que se pretendia constituir.<br />

Os limites eram tênues entre o permitido e o não-permitido. Os encontros<br />

entre pessoas, em um café, eram legítimos, no entanto o mesmo não se poderia<br />

afirmar acerca de uma reunião para um jogo de cartas. Portanto, não importava o<br />

6 CONSTANTINO, Nuncia Santoro, op. cit.<br />

7 NEGRO, Antônio Luigi; GOMES, Flávio. Além de senzalas e fábricas: Uma história social do trabalho. Tempo<br />

Social, revista de sociologia da USP. v.18, n.1, 2006, p.288.<br />

8 Era determinado que “em nossos Reinos e Senhorios não se jogue cartas” [...] “dados” [...] nem se mantenha<br />

“tabolagem” (sic). As penas variavam desde o açoite público para os peões, até multa e degradação “para o Brazil<br />

(sic)” durante dez anos para os de “maior condição”. As normas gerais do Código Filipino (como era chamado)<br />

perduraram, no Brasil, até 1824 (ano em que foi outorgada a primeira Carta Imperial), estendendo-se outras normas,<br />

penais e processuais, até 1830 (quando passou a vigorar o Código Criminal do Império). CASTRO, Estefânia Freitas.<br />

et. al. Ordenações filipinas on-line. Disponível em: <br />

Acesso em: 21 abr. 2010.<br />

25


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

espaço em que aconteciam tais devassidões, mas sim se essas práticas eram moralmente<br />

compatíveis com a ideologia do trabalho e a moralidade dominante. No dia<br />

4 de abril de 1897, o Delegado Pereira da Cunha foi informado que estava reunidos<br />

“um avultado numero (sic) de jogadores”, em um estabelecimento “denominado<br />

Café 17 de junho”, localizado na Rua dos Andradas, tradicional rua do centro da<br />

cidade. Acompanhado dos agentes municipais, ele deu batida no referido café, às<br />

dez horas da noite. Foram encontrados diversos indivíduos entregues “ao jogo de<br />

azar denominado ‘primeira’ com cartas de baralho espanhoes (sic)”. Todos foram<br />

multados e liberados. 9<br />

Outro episódio ocorrido em 1901 mostra que as ações policiais podiam desembocar<br />

para a violência física, principalmente se o evento de sociabilidade fosse<br />

praticado por indivíduos em situação de vulnerabilidade civil. Os agentes municipais<br />

foram avisados por menores de idade sobre a existência de um baile, ou maxixe, no<br />

“cortiço conhecido por curral das éguas”. Por isso, eles foram a tal baile “providenciar<br />

a respeital (sic) de tal desordem” e “fazer algumas prisões”. Chegando ao local,<br />

verificaram que se tratava de “um grande ajuntamento de indivíduos e mulheres das<br />

quais a maior parte negros”. Quando a proprietária do local foi falar com os policiais,<br />

ao coro de vaias e assovios dos participantes do baile, acabou esbordoada com<br />

um chicote. 10<br />

O desenvolvimento urbano de Porto Alegre foi acompanhado pela multiplicação<br />

dos espaços de sociabilidades, sejam eles ligados ou não-ligados diretamente<br />

à comunidade alemã. Independente desse possível recorte étnico, este desenvolvimento<br />

permitiu às pessoas, de forma geral, um acesso maior às inúmeras atividades<br />

ligadas aos vícios sociais (jogo, prostituição, ociosidade, itinerância) que eram percebidos<br />

na época como os grandes promotores da vadiagem. Como os exemplos que<br />

se acaba de trazer, a amplitude da ideologia do trabalho e do combate aos vadios não<br />

deixava as autoridades policiais indiferentes a tal cenário, gerando, como resposta,<br />

ações repressivas por parte da Polícia. Entretanto, qual era o alcance efetivo dessa<br />

ação repressiva contra a vadiagem? Em Salvador, por exemplo, as elites alcançaram<br />

muitos êxitos na política de combate à vadiagem, porém a pobreza das ruas era<br />

maior do que a capacidade de o Estado isolar e reprimir. Por isso, a questão da vadiagem<br />

atravessa o período colonial, imperial e republicano como algo não resolvido. 11<br />

9 Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRGS), Códice de Polícia nº2, 04/04/1896. p.9-10v.<br />

10 Apud MAUCH, Cláudia. Vigiando a vizinhança: Policiais, classes populares e violência no sul do Brasil (1896-<br />

1929). IN: PESAVENTO, Sandra; GAYOL, Sandra. Sociabilidades, justiças e violências: Práticas e representações<br />

culturais no Cone Sul (séculos XIX e XX). Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008, p.100-101.<br />

11 FRAGA FILHO, Walter. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do Século XiX. Campinas-Salvador: Hucitec-EdUFBA,<br />

1995, p.180-181.<br />

26


Pode-se avaliar que em Porto Alegre, as políticas públicas elaboradas acerca<br />

da sexualidade e da infância abandonada também não alcançaram a eficácia desejada,<br />

porque os fenômenos de ordem estrutural, como a pobreza generalizada, eram<br />

maiores do que a capacidade do Estado de tutelar as crianças. 12 Analisando-se os<br />

modos de vida e os valores próprios dos trabalhadores ligados ao policiamento da<br />

cidade, percebe-se que os agentes policiais gozavam de um estilo de vida próximo<br />

ao dos trabalhadores pobres. 13 No dia 4 de maio de 1907, por exemplo, durante batida<br />

em casa de tavolagem onde se reuniam indivíduos para jogar “primeira”, foram<br />

presos 14 pessoas e um guarda. 14<br />

O jornalista carioca Vivaldo Coaracy, em visita a Porto Alegre, no ano de<br />

1905, destacou nas suas memórias, a intensa vida dos porto-alegrenses: as ruas eram<br />

movimentadas, existiam inúmeros cafés, confeitarias e casas de jogos. Por outro<br />

lado, espantou-se com a sujeira e imundice da cidade. Como a cidade ainda não<br />

contava com serviços de esgotos, os dejetos corriam em canaletas para grandes caixas<br />

de madeira (revestidas de piche) que eram recolhidas, uma ou duas vezes por<br />

semana, por funcionários da prefeitura. Os jornalistas do jornal Gazeta da Tarde e<br />

Gazetinha, recorrentemente, reclamavam das imundices jogadas nas ruas e nas águas<br />

do Guaíba. 15<br />

Existia, no imaginário político brasileiro de fins do século XIX, a imagem do<br />

perigo social representado pelos “pobres” através da metáfora da doença contagiosa.<br />

A solução defendida para essa “doença social” seria a repressão aos hábitos viciosos<br />

dos pais e a educação das crianças. 16 Em Porto Alegre, os jornalistas da Gazeta<br />

da Tarde e da Gazetinha também se utilizavam de uma linguagem pretensamente<br />

científica baseada em pretextos higienistas. Estes serviam para reativar temores e<br />

preconceitos arraigados contra negros e pobres em geral, associando cortiços, becos<br />

e botequins a focos de irradiação de epidemias. 17<br />

Os discursos jornalísticos apresentavam Porto Alegre como uma cidade tomada<br />

pelo desregramento e pela constante ameaça da “horda” de vagabundos que<br />

existiam nas ruas. 18 Os jornalistas, as elites empresariais, os socialistas vanguardistas,<br />

os políticos, os respeitosos cidadãos e todos aqueles identificados com os ideais de<br />

progresso queriam a expulsão dessas pessoas e de seus hábitos dantescos do centro<br />

12 FLECK, Eliane Cristina Deckmann. Crimes contra a moral: Infância e sexualidade (Porto Alegre, RS - 1880-<br />

1920). Métis: história & cultura. v.6, n.11, 2007, p.208-209.<br />

13 MAUCH, Cláudia. Ordem pública e moralidade: Imprensa e policiamento urbano em Porto Alegre na década<br />

de 1890. Santa Cruz do Sul: EDUNISC/ANPUH-RS, 2004, p.89-90.<br />

14 AHRGS, Códice de Polícia nº 14, 04/05/1908. p.32.<br />

15 Apud MAUCH, Cláudia, op. cit, 2004, p.75-76.<br />

16 CHALHOUB, Sidney. Trabalho lar e botequim: O cotidiano dos trabalhadores no rio de janeiro da belle epoque.<br />

Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001, p.29.<br />

17 MAUCH, Cláudia, op. cit, 2004, p.90-92.<br />

18 Ibidem, p.106-107.<br />

27


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

comercial e político da cidade. Vargas (1993), analisando o jornal O Independente,<br />

destaca que os discursos moralistas eram acompanhados de idéias de decadência civilizacional.<br />

19 Elmir (2004), analisando os discursos jornalísticos, literários, políticos<br />

e policiais, destaca a existência de uma ideia pessimista e da projeção de um tempo<br />

passado idealizado onde o “outro” carente de moral não existia. 20<br />

Portanto, apesar dos esforços empenhados pelo poder público, fica a impressão<br />

que a manutenção do problema significa a incapacidade da elite de impor aos<br />

setores populares a ética do trabalho. Problemas de ordem econômica – pobreza<br />

generalizada – seriam um dos maiores obstáculos. Alguns autores também destacam<br />

fatores de ordem cultural.<br />

Kowarick (1994) acredita que não bastaram mudanças nas relações de produção<br />

e no aumento da coerção econômica para o correto desenvolvimento do capitalismo.<br />

Segundo ele, era necessária uma mudança cultural, capaz de alterar o estigma que o<br />

trabalho carrega. 21 Para Fraga Filho (1995), na perspectiva dos homens livres, existia<br />

clareza sobre sua dignidade enquanto livres e uma cultura do trabalho e noções de tempo<br />

próprias. O que transparece nos discursos das elites é que essa cultura do trabalho<br />

popular, identificada como vadiagem, era o principal obstáculo à incorporação do livre<br />

ao trabalho regular. 22 Esta-se diante, enfim, também de uma disputa cultural.<br />

Para alguns autores da historiografia de Porto Alegre, a intenção disciplinadora<br />

e normatizadora das instituições políticas foram vistas como uma arma da elite<br />

contra a “detestável” cultura popular. Segundo Vargas (1993), para os jornalistas do<br />

jornal O Independente, a coexistência de duas culturas antagônicas dentro da sociedade<br />

do período era considerado um fator de desagregação na cidade. Para reverter<br />

tal quadro, eram necessárias medidas autoritárias, principalmente contra determinadas<br />

áreas da cidade (subterrâneos). 23<br />

Para Arend (2001), as ações normatizadoras recaíram sobre os populares, visando<br />

a alterar também as formas de relacionamento afetivo próprias de sua cultura.<br />

Assim, a partir da “descrição densa” de alguns processos-crimes selecionados, seria<br />

possível perceber que os grupos populares de Porto Alegre desenvolveram uma forma<br />

particular de união, similar ao casamento, conhecido pelo nome de amasiamento,<br />

que era moralmente condenado. 24 Segundo essa autora, tal relacionamento ocorria<br />

19 VARGAS, Anderson Zalewski. “Os subterrâneos de Porto Alegre”: Imprensa, ideologia autoritária e reforma<br />

social (1900-1919). Dissertação. (PPGHIS/UFRGS), 1993, p.101-103.<br />

20 ELMIR, C. P. Porto Alegre: A perdida cidade una (Fragmentos de modernidade e exclusão social no sul do Brasil).<br />

Estudos ibero-americanos. PUCRS, v. XXX, n. 2, 2004, p. 107.<br />

21 KOWARICK, Lúcio. Trabalho e vadiagem: A origem do trabalho livre no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 1994,<br />

p. 11-12.<br />

22 FRAGA FILHO, Walter, op. cit, p.175-176.<br />

23 VARGAS, Anderson Zalewski, op. cit, p.308-312.<br />

24 AREND, Silvia Maria Fávero. Amasiar ou casar? A família popular no final do século XIX. Porto Alegre: Editora<br />

da UFRGS, 2001, p.61.<br />

28


quando: o casal se encontrava com certa regularidade, existia responsabilidade mútua<br />

entre o homem e a mulher, além do reconhecimento por parentes, vizinhos e<br />

amigos. O namoro, considerado a etapa anterior ao amasiamento, também possuía<br />

algumas características distintas daquelas da classe dominante: as escolhas dos namorados<br />

eram feitas pelas partes envolvidas, “diferente da família patriarcal e/ou<br />

aristocrática, onde havia uma preocupação com a perpetuação da linhagem para<br />

manutenção do poder político e econômico”. 25 As carícias entre os casais populares<br />

não eram restritas ao espaço privado, sendo sutil a vigilância de pais, de parentes e de<br />

vizinhos. Os populares mantinham relações sexuais durante o período de namoro, o<br />

que era considerado imoral pela moralidade dominante. 26<br />

Dessa forma, “para os populares, estar amasiado era considerado um estado<br />

próprio da sua cultura, equivalente a um estado civil na ordem jurídica”. 27 O Judiciário,<br />

além de não reconhecer essa forma de relacionamento, classificando os pares<br />

desse tipo de relação como solteiros, tentava impor aos envolvidos que se portassem<br />

de acordo com um padrão de comportamento próprio da elite, simbolizado na<br />

instituição do casamento, o que poderia garantir um controle maior do Estado em<br />

relação ao cidadão. Portanto, os grupos populares estavam inseridos num combate<br />

cultural com as elites. 28 É possível pensar os populares como um grupo distinto da<br />

elite devido o compartilhamento de experiências comuns, tais como a pobreza, as<br />

relações violentas no cotidiano e a construção de laços de solidariedade. As instituições<br />

públicas tentavam introduzir a norma familiar burguesa que era contrária<br />

às práticas da família popular como o amasiamento, as relações sexuais durante o<br />

namoro, a circulação de crianças e a construção de parentesco a partir de laços consanguíneos.<br />

29<br />

As conclusões de Arend (2001) influenciaram outros trabalhos sobre as mulheres,<br />

como os de Careli (1997) e, posteriormente, o de Santos (2008) sobre a prostituição.<br />

Talvez nenhum estudo tenha antagonizado mais as diferenças entre cultura<br />

popular e de elite como o de Grosso (2007). Segundo este autor, o final do século<br />

XIX foi caracterizado pelo desenvolvimento de um novo modo de vida das elites<br />

da cidade de acordo com o ideal modernizante. Já os grupos populares e moradores<br />

do centro se destacavam pelo seu comportamento desviante, apresentando-se como<br />

grande obstáculo ao projeto idealizado por uma elite “já desgarrada dos valores e<br />

códigos sociais nativos”. 30<br />

25 AREND, Silvia Maria Fávero, op. cit., p.54.<br />

26 Ibidem, p.54-56.<br />

27 Ibidem, p.61.<br />

28 Ibidem, p.76-78.<br />

29 Ibidem, p.85-86.<br />

30 GROSSO, Carlos Eduardo Millen. Poderiam viver juntos? Identidade e visão de mundo em grupos populares na<br />

Porto Alegre da virada do século XIX (1890-1909). DISSERTAçãO. (PPGHIS-PUCRS), 2007, p.30.<br />

29


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Mais do que negar a existência de uma cultura popular agredida pelo projeto<br />

modernizador, acredita-se que a ênfase demasiada ao antagonismo entre popular e<br />

erudito pode esconder formas generalizadas de dominação calcadas na ordem patriarcal<br />

e masculina. Formas não apenas presentes em todas as classes sociais, como<br />

diversas vezes respeitada pelos agentes burocráticos.<br />

Em todas as esferas, são constituídas formas de inculcação que visam constituir,<br />

por um lado, a virilidade masculina e, por outro, a feminilidade. Ser homem<br />

implica um dever-ser, uma forma de honra/virtude que se impõe por si mesma, sem<br />

discussão. 31 A mulher, por sua vez, é definida “como uma entidade negativa, definida<br />

apenas por falta, suas virtudes mesmas só podem se afirmar em uma dupla negação,<br />

como vício negado e superado, ou como mal menor”. 32 A dominação masculina<br />

e patriarcal precisa ser compreendida a partir de uma perspectiva que relacione o<br />

feminino e o masculino.<br />

No que se refere ao contexto histórico específico da cidade de Porto Alegre<br />

na virada do século XIX para o século XX, a mulher (pobre, principalmente) possuía<br />

uma conjuntura que diminuía traços da dominação. Primeiramente, trata-se de uma<br />

sociedade de enorme desigualdade econômica e de disseminada pobreza, fato que<br />

proporcionava à mulher a possibilidade de acesso ao mercado de trabalho. Não se<br />

criando as condições materiais necessárias para confinar a mulher e, por ventura,<br />

as filhas, no espaço privado, os homens pobres viam-se em posição precária para<br />

controlar a castidade das mulheres sobre sua posse. Isso não significa, entretanto,<br />

que eles não utilizavam suas filhas como objeto de trocas simbólicas, características<br />

do mercado matrimonial. 33 Consoante a isso, Arend (2001) concorda sobre a importância<br />

da construção de parentescos a partir de laços consanguíneos como uma<br />

estratégia de sobrevivência das famílias populares. 34<br />

Outro quesito que influenciava no sentido de diminuir os traços da dominação<br />

era a disparidade no número entre homens e mulheres. Apesar de não existirem<br />

dados demográficos confiáveis para o período, é possível atribuir tal disparidade ao<br />

forte fluxo de imigrantes que chegavam à capital, em geral homens solteiros. O desequilíbrio<br />

entre os sexos, aliado ao fato de as mulheres terem inserção no mercado<br />

de trabalho, ampliava, consideravelmente, a possibilidade de escolha seletiva de seus<br />

companheiros. No entanto, mesmo com todas essas possibilidades, a mulher continuava<br />

reproduzindo a lógica androcêntrica que convinha ao seu gênero, operando<br />

uma escolha seletiva entre homens em troca da exclusividade sexual. 35 A oportunida-<br />

31 BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p.63-64.<br />

32 Ibidem, p.37.<br />

33 Ibidem, p.55.<br />

34 AREND, Silvia Maria Fávero, op. cit, p.61.<br />

35 BOURDIEU, Pierre, op. cit, p.40-41.<br />

30


de representada pelo casamento de sair da tutela paterna não significava, necessariamente,<br />

uma menor sujeição ao poder masculino, vista as inúmeras obrigações morais<br />

e sexuais que as mulheres assumiam, seja com os maridos, seja com os amásios.<br />

Careli (1997), contrapondo os discursos jornalísticos ao das autoridades policiais,<br />

percebe a grande “similaridade que o conjunto de falas apresentam”. 36 Ao lado<br />

do modelo feminino ligado a valorização do matrimônio, da maternidade, da redução<br />

social da mulher ao espaço privado, coexistia um modelo masculino ligado ao<br />

trabalho, à honestidade, à capacidade de zelo e de tutela sobre membros da família. 37<br />

A análise de Careli (1997) se limita, todavia, a destacar os papéis atribuídos<br />

a cada sexo pelos discursos jornalísticos, policiais e judiciais. Neles, existe um “desprezo<br />

ao mundo das jovens populares” 38 , pois os valores eram preconizados em<br />

“preceitos baseadas nos parâmetros associados às classes abastadas”. 39 Os ideais dominantes,<br />

entretanto, não ficavam restritos àquele grupo social, “sendo de diversas<br />

formas incorporados por indivíduos alheios a ele” 40 , apesar dos poucos recursos<br />

materiais existentes. A autora sugere também que os inúmeros artigos veiculados<br />

nos jornais, solicitando que as famílias “decentes” casem suas filhas com jovens<br />

que, apesar de serem pobres, eram honestos e trabalhadores, seria fruto de um fator<br />

demográfico - menor número de homens que mulheres. 41 Mais do que um fator<br />

demográfico, acredita-se que a seletividade dos pretendentes, igualmente, era fruto<br />

de uma estratégia de ascensão social do grupo familiar como um todo, independentemente<br />

de serem populares ou de elite. Por fim, a justiça criminalizava os comportamentos<br />

sociais provenientes dos grupos populares, associando os amasiamentos a<br />

várias imoralidades próprias da cultura popular. 42 Contrariamente, percebe-se que os<br />

valores provenientes da ordem patriarcal e androcêntrica como amplamente disseminados<br />

em toda a sociedade, ultrapassando as divisões raciais, sociais e culturais. A<br />

troca de mulheres entre famílias pode ser considerada um elemento importante nas<br />

estratégias de ascensão social do grupo familiar. Como o valor simbólico construído<br />

sobre as mulheres dependia da sua reputação, ou seja, da sua castidade e da sua<br />

submissão, os homens do grupo familiar (pai e irmãos) despendiam grande preocupação<br />

e controle sobre as mulheres do mesmo núcleo. 43<br />

36 CARELI, Sandra da Silva. Texto e contexto: Virtude e comportamento sexual adequado às mulheres na visão<br />

da imprensa porto-alegrense da segunda metade do século XIX. (Dissertação. (PPGHIS/UFRGS), 1997, p.280.<br />

37 Ibidem, p.76-78.<br />

38 P.277.<br />

39 Ibidem.<br />

40 Ibidem, p.278.<br />

41 Ibidem.<br />

42 Ibidem, p.281-283.<br />

43 BOURDIEU, Pierre, op. cit, p.58-59.<br />

31


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Ao destacar a enorme assimetria instaurada entre homens e mulheres no<br />

terreno das trocas simbólicas existentes no mercado matrimonial, não se pretende<br />

diminuir o papel das mulheres como agente. O acesso ao mercado de trabalho, o<br />

envolvimento com homens fora do círculo familiar e mesmo uma denúncia de defloramento<br />

à Justiça poderia ser parte da estratégia feminina de se desvincular da tutela<br />

masculina do grupo familiar. Ao contrário do que defende Arend (2001), justiça não<br />

é a alternativa preferencial dos pobres para solução de seus conflitos, mas apenas<br />

uma das formas possíveis deles alcançarem seus objetivos. Talvez fosse uma alternativa<br />

dificilmente acionada pelos grupos pobres, pois<br />

o aparelho policial e judicial representa uma perigosa máquina, movimentada<br />

segundo regras que lhe são estranhas. É bastante inibidor<br />

falar diante dela; falar o menos possível parece a tática mais adequada<br />

para fugir às suas garras. 44<br />

Um aspecto dificilmente considerado, quando se analisa o comportamento<br />

popular nas relações entre os sexos, é a representação dominante da masculinidade.<br />

O privilégio masculino também é uma cilada, na medida em que “impõe a todo o<br />

homem o dever de afirmar, em toda e qualquer circunstância, sua virilidade”. 45 É<br />

possível que o controle da sexualidade feminina por parte dos homens populares<br />

também seja uma forma deles afirmarem sua virilidade.<br />

A violência, amplamente difundida nas classes populares, mais do que uma<br />

experiência comum capaz de definir os populares como grupo social distinto, é recurso<br />

exigido pela ordem simbólica ligada a valores patriarcais e androcêntricos.<br />

Mais do que um modelo cultural imposto pelas elites, essa lógica era amplamente<br />

disseminada em diferentes estratos sociais, variando apenas os recursos que os homens<br />

dispunham para sujeitar as mulheres ligadas ao seu grupo familiar.<br />

Os contatos com as tecnologias modernas e a proliferação de espaços de<br />

sociabilidades ampliaram as possibilidades da população em geral de acessar novos<br />

e diferentes tipos de entretenimento. Na visão das autoridades responsáveis pela<br />

organização do espaço urbano, tal contexto era visto como uma ameaça à moralidade<br />

pública, fato que gerou inúmeras ações policiais. Dentro desses espaços, a<br />

lógica androcêntrica, baseada no ideal de virilidade, era amplamente disseminado,<br />

fato que gerava conflitos violentos que fugiam da capacidade dos agentes municipais<br />

de controlá-los efetivamente.<br />

44 FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano. A criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo: Brasilense, 1984,<br />

p.22.<br />

45 BOURDIEU, Pierre, op. cit, p.65.<br />

32


URBANIZAçãO, QUESTãO HABITACIONAL<br />

E CASA PRóPRIA<br />

A partir das observações feitas sobre a amplitude das relações patriarcais no<br />

ordenamento social, é possível perceber, além do desejo das elites de expulsar os<br />

populares do centro, outras dinâmicas e motivações que influenciavam no crescimento<br />

urbano da cidade. O problema da moradia que atingiu diversas cidades do<br />

país e ficou conhecido como “questão habitacional” 46 , possuiu significados diversos,<br />

dependendo da classe e da etnia. Essa questão foi uma das principais demandas enfrentadas<br />

pelos quadros administrativos da prefeitura. A centralidade do problema<br />

pode ser percebida tanto pelo fato de o assunto ter sido posto como uma das principais<br />

reivindicações do Partido Socialista, fundado em 1897, quanto pelas inúmeras<br />

críticas publicadas nos jornais, sobre a ineficiência e a incapacidade dos gestores<br />

públicos de resolverem esse problema. 47<br />

O modo como a elite política encaminhou a questão habitacional parece ser<br />

revelador da própria capacidade da mesma em encaminhar políticas públicas capazes<br />

de promover as mudanças modernizantes tão alardeadas como necessárias no período<br />

em questão. No Rio de Janeiro, durante o início do XX, por exemplo, os tecnocratas<br />

conseguiram impor projetos higienistas e expulsar os populares do centro - foi o famoso<br />

“bota abaixo” da administração Pereira Passos. Durante o Império, as investidas<br />

desses segmentos, mesmo quando contavam com claro apoio governamental, ainda tinham<br />

que enfrentar resistências no Judiciário, graças às atuações dos liberais na defesa<br />

da propriedade. Tal obstáculo foi superado com o advento da República. 48<br />

No Rio Grande do Sul, a saída autoritária para o problema habitacional certamente<br />

encontraria justificativa na influência positivista e na tradição militarizada<br />

e autoritária da sociedade. O grande obstáculo para a higienização do centro foi,<br />

sobretudo, financeiro. Apenas dois anos após a guerra civil, o governo já enfrentava<br />

crise econômica. Sinal emblemático dessa situação foi a aceitação, por parte do Banco<br />

da Província do Rio Grande do Sul, de imóveis para liquidar os débitos de seus<br />

clientes. Essa situação perdura até pelo menos 1907, quando as dificuldades começam<br />

a diminuir. O tempo de crescimento econômico durou pouco, pois, em 1914,<br />

iniciou-se outro período de recessão devido à Guerra Mundial. O governo municipal<br />

só conseguiu articular empréstimo externo depois de 1924. 49<br />

46 BAKOS, M. M. A habitação em Porto Alegre: Problemas e projetos administrativos. (1897-1937). Dissertação.<br />

(PPGHIS/UFRGS), 1988, p.04.<br />

47 Ibidem, p.07.<br />

48 CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: Cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras,<br />

1996, p.44-46.<br />

49 BAKOS, M. M, op. cit, p.07-09.<br />

33


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

A política habitacional promovida pelos agentes políticos se direcionou, sobretudo,<br />

ao aumento progressivo da tributação das áreas do centro e na promulgação<br />

de leis que exigia o cumprimento de medidas higiênicas. Em 1897, o imposto se<br />

estendeu a todas as áreas que contavam com serviço de bonde. No começo dos anos<br />

1900, inúmeras tentativas foram tentadas no intuito de conter a corrupção generalizada<br />

existente entre os funcionários que cobravam impostos, sem muito sucesso.<br />

Em 1914, ocorre a promulgação do “Regulamento Geral de Construções”, estabelecendo<br />

diretrizes básicas com a ampliação das obrigações higiênicas. A tributação incidiu,<br />

do mesmo modo, sobre os terrenos não construídos. Os jornais da época noticiam,<br />

fartamente, a elitização do solo. 50 Ao aumentar as obrigações higiênicas para<br />

regulamentar a propriedade, o governo criava um enorme campo de marginalidade,<br />

visto que a maioria das pessoas não tinha condições financeiras de cumprir a lei.<br />

A consequência mais óbvia da falta de moradias é a superlotação de prédios<br />

habitacionais e a formação de cortiços. No centro, bem próximo aos locais de<br />

moradia dos setores tradicionais da elite, encontram-se inúmeras propriedades que<br />

pagavam impostos como cortiços. Foi essa convivência incômoda que levou alguns<br />

segmentos emergentes da elite a ocupar a região em torno da Av. Independência,<br />

um pouco mais afastado do centro da cidade. 51 A vontade de se isolar dos populares<br />

também levou a elite a buscar alternativas habitacionais fora do centro.<br />

A região da Cidade Baixa, tradicional local de habitação das populações mais<br />

pobres, nas áreas de colonização portuguesa, passou a receber, nas primeiras décadas<br />

do XX, a população italiana que chegava à cidade. Os novos proprietários foram,<br />

gradativamente, melhorando a qualidade das moradias, operando qualificações higiênicas<br />

e arquitetônicas, fatores fundamentais na definição do status social de um local<br />

respeitável, mesmo se inserido em territorialidades marcadamente pobres. Entretanto,<br />

até 1920, ainda era possível detectar a presença de cortiços nessa área. 52<br />

A região do Bom Fim, provavelmente, devido à sua proximidade com a Colônia<br />

Africana, era uma área bastante desprestigiada até o final do século XIX. Em<br />

1910, todavia, já é possível detectar tanto a presença de italianos quanto a proliferações<br />

dos cortiços. Somente em um segundo momento o bairro passou a receber os<br />

imigrantes judeus, que acabaram criando uma nova dinâmica de ocupação para esse<br />

espaço. 53<br />

Em termos de densidade populacional, as áreas em torno da Cidade Baixa e<br />

da Colônia Africana eram as mais importantes depois do centro. A ocupação des-<br />

50 Ibidem, p.07-09.<br />

51 CONSTANTINO, Núncia Santoro de. Espaço urbano e imigrantes: Porto Alegre na virada do século. Estudos<br />

ibero-americanos. PUCRS, v.XXIV, n.1, 1998, p. 156-158.<br />

52 Ibidem, p.160-161.<br />

53 Ibidem, p.161-162.<br />

34


tas áreas ocorreu ao longo do século XIX e estava ligada à dinâmica da sociedade<br />

escravista, na medida em que as primeiras populações dessas áreas eram de etnias<br />

africanas. 54<br />

A principal aposta para o escoamento da população trabalhadora do centro<br />

foi a urbanização do terceiro e quarto distritos, na zona norte da capital. As primeiras<br />

ruas foram traçadas em 1896, porém o serviço de bonde só chegou à região<br />

em 1907. As indústrias se instalavam naquela região tanto pela proximidade com o<br />

centro quanto pela facilidade no escoamento da produção. A relevância econômica,<br />

política e social desse espaço da capital cresceu bastante. Meios de sociabilidade próprios<br />

e diferentes daqueles da “cidade velha” também se desenvolveram nessa área. 55<br />

Em associação com esse processo de expansão, percebe-se o estabelecimento<br />

de comércio ao longo da Av. Voluntários da Pátria56 e de algumas famílias de italianos<br />

e alemães ao longo eixo da Av. Cristovão Colombo. Em 1900, registram-se<br />

inúmeras propriedades para alugar nessas áreas. Fortemente marcada pela presença<br />

estrangeira, a ocupação desses espaços trazia consigo o desejo das pessoas de alcançar<br />

a segurança econômica e o respeito, cujo signo maior era o acesso à casa própria.<br />

Gradativamente, graças às dinâmicas próprias dessa região, alguns espaços foram se<br />

destacando pela ocupação de uma classe média ascendente, como é o caso do bairro<br />

Higienópolis. 57<br />

Em suma, a ida para a periferia, mais do que um plano da elite desejosa por<br />

expulsar os populares do centro, podia fazer parte das estratégias de grupos sociais<br />

para a obtenção da casa própria. Esta, além da segurança econômica, podia representar<br />

o acesso à dignidade civil, que uma unidade familiar estruturada, segundo a<br />

lógica patriarcal, representava. Também podia representar maior qualidade de vida,<br />

pois tais residências eram, sobre o ponto de vista higiênico, mais adequadas que<br />

os cortiços. Portanto, qual o significado dessa política habitacional para as pessoas<br />

que não possuíam as condições materiais para se adequar à legislação? Assim como<br />

em outras regulamentações, entre elas a que combatia os jogos de azar, tal política<br />

criava um enorme campo de criminalidade, ampliando as prerrogativas de atuação<br />

do poder público e vulnerabilizando grande parcela da população. A busca pela casa<br />

própria com condições higiênicas, nestes termos, representava o acesso à dignidade<br />

civil e à segurança econômica.<br />

54 FORTES, Alexandre. Nós do quarto distrito: A classe trabalhadora porto-alegrense e a era Vargas. Caxias do<br />

Sul: Editora da EDUSC, 2004, p.35.<br />

55 Ibidem, p.35-38.<br />

56 Tal avenida começa no centro e dirigi-se a Av. Farrapos, principal via de acesso do 4º e 3º Distrito.<br />

57 CONSTANTINO, Núncia Santoro de, op. cit, 1998, p.158-163.<br />

35


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

36<br />

CONCLUSãO<br />

Durante todo o século XIX e em grande parte do século XX, vários grupos<br />

sociais (mulheres, negros, indígenas, pobres em geral) eram alijados de participação<br />

da vida política por serem considerados pelas elites incapazes de agirem de forma<br />

autônoma. As concepções de Estado e de cidadania, na sua forma universal, implicam<br />

uma condição moral, baseada na agência, não condizente com aquilo que a<br />

alta burocracia porto-alegrense, responsável pelas políticas públicas, pensava sobre a<br />

população de maneira geral, principalmente os pobres.<br />

As políticas públicas de combate à vadiagem e as legislações promulgadas<br />

resultantes da política habitacional implementada eram importantes para reproduzir<br />

as hierarquias sociais ligadas aos valores patriarcais e elitistas. Isso ocorria porque a<br />

criminalização de práticas sociais amplamente disseminadas, como o desemprego,<br />

no caso da vadiagem, ou as obrigações higiênicas, no caso das habitações, vulnerabiliza<br />

civilmente parte da população. Assim, a diminuta parcela da população que<br />

consegue se adequar às normas promulgadas é a única capaz de gozar, plenamente,<br />

de dignidade civil e de segurança econômica, condições fundamentais para o funcionamento<br />

de uma sociedade moderna.<br />

Políticas públicas centradas em uma concepção que a ordenação social deve<br />

ser alcançada, a partir da possibilidade ou ameaça de punição, são tipicamente autoritárias,<br />

pois não estão preocupadas com a promoção da capacidade de agência.<br />

Portanto, políticas públicas baseadas numa perspectiva meramente proibicionista<br />

impedem a burocratização dos conflitos sociais e o estabelecimento de direitos e<br />

princípios válidos universalmente ao conjunto da população.


REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

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37


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

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ideologia autoritária e reforma social (1900-1919). Dissertação. (PPGHIS/UFRGS),<br />

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38<br />

FONTES PRIMÁRIAS<br />

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Códice de Polícia nº2, 04/04/1896. p.9-10v.<br />

Códice de Polícia nº 14, 04/05/1908. p.32.<br />

Ordenações Filipinas. CASTRO, Estefânia Freitas. et. al. Ordenações filipinas online.<br />

Disponível em: <br />

Acesso em: 21 abr. 2010.


o juizAdo de órfãos de Porto Alegre:<br />

uM reflexo dA soCiedAde<br />

José Carlos da Silva Cardozo*<br />

Resumo: O Juizado de órfãos de Porto Alegre foi uma importante instituição pública, ele<br />

contribuiu para a regularização social das famílias porto-alegrenses que passavam por alguma situação<br />

de desagregação familiar envolvendo menores nos anos iniciais do século XX. A partir dos processos<br />

de Tutela, iniciados no 3º Cartório de Porto Alegre, entre os anos de 1902 a 1925, será apresentado que<br />

os valores sociais e morais possuíam importância nas decisões e desfechos para se tutelar um menor.<br />

Palavras-chave: Porto Alegre – Juízo dos órfãos – Tutela.<br />

O FARMACêUTICO, A MENINA E O JUIZ<br />

José Antônio de Figueiredo Filho, farmacêutico, residente à Rua Garibaldi<br />

número 22, em Porto Alegre, no dia 18 de agosto de 1916, deu entrada<br />

no 3º Cartório do Juizado Distrital da Vara de órfãos de Porto Alegre a<br />

um pedido para tutelar uma menina. Afirmando que a menor Virginia Cardozo de<br />

Lima¹, de 13 anos de idade incompletos, órfã de pai e mãe, trabalhando de aluguel<br />

em sua casa há quase um mês, o procurou declarando, “categoricamente”, que não<br />

desejava mais voltar para a casa onde mora por lá ser maltratada por seus patrões<br />

que a cuidam. A menor possui como parentes apenas um irmão de 11 anos de idade<br />

e duas tias de “vida má” que lhe aconselharam a procurar “uma casa de boa família<br />

para nela servir”.<br />

O Juiz do caso, Sinval Saldanha, com base nas informações prestadas por uma<br />

pessoa íntegra, como um farmacêutico, em apenas 6 dias defere a solicitação de tutela<br />

a favor de José Figueiredo Filho, que, em 24 de agosto de 1916, assina o Termo<br />

de Tutela e Compromisso da menor Virginia Cardozo de Lima.<br />

* Professor do Município de Esteio. Mestrando em História Latino-Americana pela Universidade do Vale do Rio<br />

dos Sinos (UNISINOS). Bolsista CAPES/MEC.<br />

¹ Processo número 623 de 1916 do APERS.<br />

39


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Essa rapidez deve-se ao não esclarecimento dos fatos apresentado pelo suplicante,<br />

por meio da intimação dos envolvidos no caso, os patrões da menina, que não<br />

são identificados no processo, ou das tias de “vida má”, ou mesmo da menor, para<br />

ratificar ou não as afirmações de José. Isso ocorreu pelo suplicante a tutor ter uma<br />

profissão declarada, reconhecida e possuir moradia fixa, pois nem mesmo o Curador<br />

Geral², quando solicitada sua vista³ sobre o caso, pediu maiores detalhes a respeito<br />

das alegações, escrevendo, de forma rápida, as iniciais F.J. (Faça Justiça).<br />

Que sociedade era essa? Em que o simples fato de um suplicante a tutor, ter<br />

uma profissão íntegra, ser pretexto marcante de confiança para receber a tutela de<br />

uma criança e essa ser aceita sem maiores explicações das partes envolvidas?<br />

40<br />

O CENÁRIO<br />

Os anos iniciais do século XX para o Brasil marcaram um período em que se<br />

consolidou o novo regime político-administrativo no país e se incorporou os ideais<br />

europeus de modernização pelo Estado e pela sociedade. Contudo, este não foi um<br />

período de esperança e felicidade para a grande maioria da população que, devido<br />

às políticas de moralização e higienização, promovidas pelo Estado e pela burguesia,<br />

sofreu bruscamente a força estatal na sua ambição de tornar o país, o mais rápido<br />

possível, moderno como os do hemisfério norte.<br />

O fim da escravidão, juntamente com migrações e imigrações, ocasionou o<br />

aumento populacional nas cidades trazendo dificuldades ao novo regime. Esses novos<br />

moradores, saídos das antigas senzalas e das choupanas do interior, juntamente<br />

com os imigrantes vindos de outras nações, chegavam às cidades, em busca de melhores<br />

condições de trabalho e moradia. Desses, muitos não conseguiram alcançar<br />

seus anseios nos centros urbanos, sendo considerados pelo Estado como figuras<br />

ameaçadoras da ordem social. Assim, a “massa de ‘cidadãos’ pobre e perigosa, viciosa,<br />

a qual emergia da multidão de casas térreas, de estalagens e cortiços, de casas<br />

de cômodo, de palafitas e mocambos que eram a vastidão da paisagem das cidades<br />

herdadas do Império” 4 .<br />

Esses pobres começaram a receber especial atenção do Estado, mas não visando<br />

promover a solução para os problemas desses desvalidos e sim os afastando<br />

progressivamente dos centros urbanos. Cobrando altos valores pelos aluguéis, exigências<br />

sanitárias de alto custo e altos impostos, a sociedade burguesa e o Estado<br />

2 Promotor Público do Juízo dos órfãos.<br />

3 Ato de falar ou tomar ciência do conteúdo de um processo.<br />

4 MARINS, Paulo César Garcez. Habitação e Vizinhança: Limites da Privacidade no surgimento da metrópole. In:<br />

NOVAIS, Fernando A. História da Vida Privada no Brasil, 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.133.


dificultaram o habitar dessa população nessas localidades, levando-os a se inserirem<br />

em locais periféricos a estes centros.<br />

Os estudos de Margareth Bakos5 para Porto Alegre mostram esse processo,<br />

indicando que o morar muito custoso foi uma das soluções encontradas pelo Estado<br />

para afastar os pobres para longe do perímetro urbano, levando-os a residir nas periferias<br />

da cidade, onde não eram cobrados impostos ou estes eram mais acessíveis.<br />

Clarice Nunes, para o Rio de Janeiro, refere em relação aos pobres que<br />

a presença incômoda de pobres e miseráveis acentuou-se no centro da<br />

cidade com o crescimento populacional e forçou, ainda nas décadas<br />

anteriores, o seu progressivo deslocamento para as zonas suburbana<br />

e rural. Este deslocamento, fruto de uma política de higienização do<br />

espaço urbano com suas obras de saneamento básico e demolição dos<br />

cortiços, não foi suficiente para ‘limpar’ a pobreza da cidade. Permitiu,<br />

no entanto, redimensioná-la6 .<br />

O Estado aplicava as mesmas estratégias empregadas pelo exemplo maior de<br />

cidade moderna a ser seguida, a cidade de Paris, aonde os pobres foram aos poucos<br />

tendo que se mudar para locais que não eram privilegiados, pela elite, habitando em<br />

bairros que aos poucos foram se tornando bairros operários ou mesmo favelas. Marcando<br />

uma política de modificação centrada não somente na reorganização espacial<br />

do urbano, mas também nas posições dentro do status social.<br />

A elite preocupava-se em influenciar a consciência popular, até mesmo daqueles<br />

que habitavam lugares afastados dos centros urbanos, todos deveriam ter<br />

comportamentos dignos de cidadãos urbanos; tentando evitar que a população se<br />

direcionasse para os locais de jogos de azar e prostituição, pois os jogos de azar eram<br />

mal vistos e, conforme os dirigentes sociais, ameaçavam a formação dos cidadãos<br />

disciplinados e a prostituição ameaçava a integridade da família e da sociedade.<br />

A família nesse período foi então, como na Europa, o centro das atenções<br />

do Estado. Ela era referida pelos setores privilegiados da sociedade como sendo a<br />

protetora dos valores da moral e dos bons costumes.<br />

A família que se desejava nesses anos iniciais do século XX pela República<br />

brasileira era a família burguesa. Quando referimos esse tipo de arranjo familiar<br />

como modelo social, compartilhamos da interpretação de Maria Ângela D’Incao ao<br />

afirmar que a família burguesa é<br />

aquela que nasceu com a burguesia e vai em seguida, com o tempo,<br />

caracterizando-se por um certo conjunto de valores, que são o amor<br />

5 BAKOS, Margaret Marchiori. A habitação em Porto Alegre: Problemas e projetos administrativos (1897-1937). Cadernos<br />

de Estudo: Programa de Pós-Graduação em História, UFRGS. Porto Alegre: UFRGS, n.1, p.1-85. Nov.<br />

1988. BAKOS, Margaret Marchiori. Porto Alegre e seus eternos intendentes. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.<br />

6 NUNES, Clarice. A escola reinventa a cidade. In: HERSCHMANN, Micael; PEREIRA, Carlos A. M. (Org.). A invenção<br />

do Brasil Moderno: medicina, educação e engenharia nos anos 20-30. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p.183.<br />

41


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

entre os cônjuges, a maternidade, o cultivo da mãe como um ser especial<br />

e do pai como um ser responsável pelo bem-estar e educação dos<br />

filhos, presença do amor pelas crianças e a compreensão delas como<br />

seres em formação e necessitados, nas suas dificuldades de crescimento,<br />

de amor e compreensão dos pais. Seria ainda próprio dessa situação<br />

o distanciamento cada vez maior da família em relação à sociedade<br />

circundante, circunscrevendo-se, dessa maneira, uma área doméstica<br />

privada em oposição a área pública; esta última é sentida pela família<br />

como sendo cada vez mais hostil e estranha, não digna de confiança7 .<br />

Ao longo desse período os grupos populares e médios iam tentando se moldar<br />

de acordo com os parâmetros dessa família padronizada e elitizada para poder<br />

usufruir do respeito e da valorização atribuídos a ela.<br />

O Juizado de órfãos de Porto Alegre é um exemplo de como o Poder Judiciário<br />

estava a intervir na uniformização da conduta familiar e, principalmente, preocupado<br />

com a formação do futuro cidadão – o menor. O Juízo dos órfãos foi, desde<br />

o período colonial até o início da República, umas das instituições mais importantes<br />

para a regularização da família e da criança, desempenhando ao longo do tempo<br />

atividades de proteção ao menor. Cuidou, num primeiro momento, dos menores<br />

da elite nas questões envolvendo suas heranças, da relação entre os menores e seus<br />

familiares ou tutores, como também de sua renda e de seus bens para depois, com<br />

a elaboração de políticas reguladoras para a nova sociedade, essa instituição passou<br />

a direcionar uma vigilância distinta para com o cuidado (abandono, saúde, educação<br />

etc.) da criança pobre. O Estado tornou esses indivíduos figuras centrais no espaço<br />

familiar, pois as crianças seriam os futuros cidadãos e cidadãs da República brasileira.<br />

O Juizado de órfãos, dessa forma, era um órgão essencial para se encaminhar e<br />

solucionar questões quanto ao abandono de crianças e a marginalização destas.<br />

Preocupado com o universo infantil, o Juízo dos órfãos mediou as ações<br />

praticadas pela família, pois essa era considerada como espaço gestor dos padrões e<br />

regras de comportamento social.<br />

Assim, a assistência à vida infantil incluía uma constante vigilância<br />

sobre os atos de seus pais. Um deslize, uma ‘falta de moral’ ou um desemprego<br />

eram suficientes para a ‘mão protetora do Estado’ interferir<br />

na vida privada e entregar a posse do menor a outra pessoa. Quando o<br />

juiz ‘comprovava’ as denúncias feitas por terceiros, ele poderia retirar<br />

dos pais a posse da criança, nomeando-lhe um tutor, ou até mesmo<br />

destituir, definitivamente os pais do pátrio poder8 .<br />

7 D’INCAO, Maria Ângela. Introdução. In:______. (Org.). Amor e família no Brasil. São Paulo: Editora Contexto,<br />

1989, p.10-1.<br />

8 AZEVEDO, Gislane Campos. De Sebastianas e Geovannis: o universo do menor nos processos dos juízes<br />

de órfãos da cidade de São Paulo (1871-1917). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1995,<br />

p.107.<br />

42


Dessa forma, a instituição da Tutela foi um dos instrumentos empregados<br />

por este órgão jurídico para regulamentar a família.<br />

Nesta sociedade que desejava ser moderna como as europeias<br />

há toda uma ideia de adestramento dos instintos naturais e de moldagem<br />

de corpos e mentes a uma nova ordem que se impõe. Este princípio<br />

converte, sob certo aspecto, todo ‘homem novo’ a uma situação de<br />

criança: ele é alguém que se intenta conformar as habilidades, inculcar<br />

valores, coibir comportamentos e treinar segundo um parâmetro desejado.<br />

Nesse raciocínio, quanto mais cedo este processo se iniciasse,<br />

maior a probabilidade de êxito teria na obtenção de um ‘tipo ideal’.<br />

Não é de espantar, pois, que esta estratégia formativa se voltasse para<br />

a infância9 .<br />

Assim, a família recebeu atenção, principalmente seus membros mais jovens,<br />

os quais possuíam um Juizado específico para tratar das questões relacionadas a<br />

estes.<br />

OS PROCESSOS DO JUíZO DOS óRFãOS<br />

A primeira pesquisa, que temos conhecimento, que se direcionou sobre este<br />

órgão jurídico foi a da antropóloga Cláudia Fonseca 10 , que buscou apresentar a circulação<br />

das crianças, no início do século XX, por várias casas/famílias, demonstrando<br />

que a prática, hoje tão comum nas famílias populares, de um terceiro (parente<br />

consanguíneo ou não) cuidar de um menor, já era recorrente no início deste século.<br />

Neste estudo, Cláudia Fonseca investigou 149 processos de “Apreensão de<br />

Menores” no município de Porto Alegre. Embora o livro de Cláudia Fonseca, em<br />

que estava incluso este trabalho, tenha sido publicado somente em 1995, a primeira<br />

edição; este estudo já havia sido publicado, com poucas alterações, em 1989. Dessa<br />

forma, faz mais de 20 anos que foi publicado um estudo que utilizou o Juizado dos<br />

órfãos de Porto Alegre como fonte para pesquisar a situação das crianças nesse<br />

município 11 .<br />

Estudos posteriores, realizados em outras localidades, direcionaram sua visão<br />

para os processos de Tutela que igualmente eram produzidos pelo Juizado de<br />

9 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Os trabalhadores do futuro. O emprego do trabalho infantil no Rio Grande do Sul<br />

da República Velha. História. São Paulo, 14, 1995, p.191.<br />

10 FONSECA, Cláudia. Uma Tradição de Gerações. In:______. Caminhos da Adoção. 3ª edição. São Paulo: Cortez,<br />

2006.<br />

11 Cláudia Fonseca publicou em vários períodos os avanços de suas pesquisas baseadas nessa fonte documental; em<br />

1989 o artigo - Pais e Filhos na família popular; em 1995 o livro – Caminhos da Adoção, que teve sua terceira edição em<br />

2006 e, por fim, em 2000 o artigo – Ser mulher, mãe e pobre.<br />

43


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

órfãos. A Tutela era um encargo conferido pelo Juiz de órfãos a uma pessoa (tutor)<br />

para que esta gerenciasse os bens e cuidasse da integridade física do menor 12 ,<br />

representando-o tanto em Juízo como fora deste. Isso ocorria quando uma criança<br />

era órfã de pai, ou quando este era ausente; o Juiz de órfãos nomeava um tutor para<br />

cuidar da criança, exceto quando não houvesse algum nome indicado em testamento.<br />

Acontecendo mesmo que o menor tivesse ou vivesse com a mãe, pois a esta era,<br />

geralmente, dificultada de assumir a responsabilidade jurídica de seus filhos. Esse<br />

fato ocorria por a mulher, nessa época, ser vista com desconfiança pela elite, em<br />

virtude dela possuir a capacidade de desvirtuar a sociedade com seus atos.<br />

A grande maioria dos estudos que utilizaram essa fonte judicial (os processos<br />

de tutela) se deteve mais nas mudanças promovidas pela Lei do Ventre Livre de 1871<br />

até a Abolição em 1888 13 . Esses trabalhos apresentaram as estratégias empregadas<br />

pelos senhores de escravos na manutenção dos serviços, tanto os praticados no<br />

âmbito do público, quanto àqueles realizados no âmbito do doméstico, por meio da<br />

tutela dos filhos das escravas.<br />

Essas pesquisas têm uma problemática muito clara, a qual facilita o trabalho<br />

para pesquisas em outras localidades brasileiras que tiveram esse Juizado no período<br />

de 1871 a 1888. Mas nossa pretensão é justamente avançar no tempo na busca por<br />

novos fragmentos da História. Acreditamos que nosso estudo possa apresentar uma<br />

nova possibilidade de utilização desta fonte para outras questões decorrentes dos<br />

anos iniciais do século XX, buscando compreender como esta instituição judiciária<br />

estava a influenciar a organização das famílias e suas práticas sociais e como esta<br />

zelava pela educação e saúde dos menores dentro do período republicano, período<br />

este de grandes mudanças na sociedade brasileira.<br />

Sabemos em relação aos processos de tutelas que esses “são uma excelente<br />

fonte qualitativa porque permitem recuperar histórias de famílias pobres” 14 , assim,<br />

por meio dessa fonte, considerando o período de análise, verificamos várias modi-<br />

12 No período compreendido nesse texto, o início do século XX, o termo menor referia-se aos indivíduos com até<br />

21 anos de idade, além de, “na passagem do século, menor deixou de ser uma palavra associada [somente] à idade,<br />

quando se queria definir a responsabilidade de um indivíduo perante a lei, para designar principalmente as crianças<br />

pobres abandonadas ou que incorriam em delitos” (LONDOÑO, 1998, p. 142), assim, além de representar indivíduos<br />

com até 21 anos de idade, a maioridade penal, esse termo ganhou um sentido pejorativo como confirmado<br />

nos estudos de Adriana Vianna (1999).<br />

13 Alguns pesquisadores já utilizaram esse tipo de processo como fonte primária em seus estudos acadêmicos como<br />

Gislane Campos Azevedo (1995), que embora afirme na introdução de seu trabalho e nas datas limites da pesquisa,<br />

1871 e 1917, não se deter nessa problemática, não consegue se desvencilhar dela fazendo apenas pequenas incursões<br />

pelo século XX; Anna Gicelle Allaniz (1997); Luciana Araújo Pinheiro (2003); Maria Aparecida Papali (2003);<br />

Arethuza Helena Zero (2004) e Heloísa Maria Teixeira (2006).<br />

14 SAMARA, Eni de Mesquita; TUPY, Ismênia S. Silveira T.. O Trabalho com o documento. In:______. História &<br />

Documento e metodologia de pesquisa. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p.113.<br />

44


ficações na sociedade brasileira, que foram incorporadas pelas instituições públicas<br />

como o Judiciário com o foco de regular a sociedade frente aos novos padrões<br />

sociais.<br />

O 3º CARTóRIO DO JUIZADO DISTRITAL DA VARA DE<br />

óRFãOS DE PORTO ALEGRE<br />

O Juizado de órfãos de Porto Alegre, no período de 1900 a 1927, era dividido<br />

em três Cartórios que, posteriormente, receberam o nome de Varas de Família<br />

e Sucessão do Município de Porto Alegre. Neste texto analisamos as informações<br />

contidas nos processos abertos no 3º Cartório ou 3ª Vara do Município de Porto<br />

Alegre, correspondendo a 167 processos de tutela, do total de 823 processos 15 , para<br />

os anos de 1900 a 1927, ou seja, 20% do total que está depositados no Arquivo Público<br />

do Estado do Rio Grande do Sul (APERS), como aponta o gráfico 1 abaixo.<br />

Gráfico 1: Processos por Vara baseado nos processos de tutela de 1900 a 1927<br />

depositados no APERS.<br />

Os dados analisados nessa fonte referem-se ao período de 1902 a 1925 16 e nos<br />

revelam uma preferência pelos menores do sexo feminino (gráfico 2), pois no total<br />

de 267 menores tutelados nesse período, 59% eram meninas. Este grande número de<br />

15 É importante salientar que há a grande possibilidade de inúmeros outros casos em condições semelhantes a da<br />

instituição da Tutela, atribuída pelo Juízo dos órfãos, não ter chegado ao conhecimento das autoridades; fato que<br />

nos apresenta uma pequena amostra da situação das crianças que passavam por alguma desestruturação familiar.<br />

16 1902 é o ano de início dos processos que estão depositados no APERS e 1925 marca o fim destes já que não há<br />

registros da abertura de processos posterior a essa data.<br />

45


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

meninas acredita-se que tenha ocorrido pela necessidade da proteção da integridade<br />

moral das menores, perpetuada pela virgindade dessas, ou também por elas ajudarem<br />

no trabalho doméstico. Pois a moral vigente na época ditava que as mulheres, ou<br />

meninas, deviam ficar “... resguardadas em casa, se ocupando dos afazeres domésticos,<br />

enquanto os homens asseguravam o sustento da família trabalhando no espaço<br />

da rua” 17 . Embora essa não fosse a prática fiel, tendo em vista que muitas mulheres<br />

trabalhavam fora do espaço privado, a casa, os suplicantes a tutor valorizavam essa<br />

moralidade em suas petições.<br />

46<br />

Gráfico 2: Sexo dos Menores baseado nos processos de tutela de 1902 a 1925<br />

depositados no APERS.<br />

A família dentro desse novo ideal se tornou um dos alvos da regularização<br />

social, ela deveria ser: nuclear, conjugal, monogâmica, buscando a disciplinaridade<br />

sexual18 , e um dos membros desta união era a mulher que deveria receber atenção<br />

redobrada, pois, como Sandra Pesavento afirma, as mulheres são vistas pela sociedade<br />

no início do século XX sendo<br />

basicamente, perigosas. Elas são uma alteridade inquietante, a marcar,<br />

pela sua natureza mutável um risco permanente para a sociedade<br />

da qual deveriam ser o esteio. A ameaça reside, basicamente, no seu<br />

poder de ação, sedução, autodeterminação, o que mostrava que, não<br />

sendo postas sobre controle, as mulheres ameaçavam toda a ordem<br />

social19 .<br />

17 FONSECA, Cláudia. Ser mulher, mãe e pobre. In: PRIORE, Mary Del (Org.); BASSANEZI, Carla (Coord. De<br />

Textos). História das Mulheres no Brasil. 3ª edição. São Paulo: Editora Contexto, 2000, p.517.<br />

18 COSTA, Jurandir Freira. Ordem médica e norma familiar. 5ª edição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004.<br />

19 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Os sete pecados de uma capital. In:______. Os sete pecados da capital. São<br />

Paulo: Editora Hucitec, 2008, p.12.


O gráfico 3 apresenta que essas concepções sociais sobre as mulheres se refletiam<br />

no Juizado de órfãos, pois apenas 17% dos tutores eram do sexo feminino, ou<br />

seja, dos 171 tutores que foram investidos por este Juízo no período, apenas 29 eram<br />

mulheres, das quais a grande maioria eram avós, mulheres já de idade que corriam<br />

menos riscos de caírem ou conduzirem um menor para o lado da imoralidade, do<br />

desapego ao trabalho ou do descaso com a educação.<br />

Gráfico 3: Sexo dos Tutores baseado nos processos de tutela de 1902 a 1925<br />

depositados no APERS.<br />

Ainda neste gráfico 3 pode-se perceber que havia certa difusão da importância<br />

da figura masculina no cuidado para com o menor, principalmente se este fosse<br />

uma menina, para protegê-la. Dessa forma, os homens teriam um respaldo maior<br />

para conseguir a tutela de um menor, pois a grande maioria dos processos foi iniciada<br />

por indivíduos do sexo masculino, os quais tiveram a maioria de seus pedidos<br />

deferidos pelo Judiciário.<br />

Esses dados nos permitem ver que a regulamentação do inciso 10º do Novo<br />

Roteiro dos órphãos de 1903, que diz: “Perdem o direito a Tutela as mães e avós,<br />

deixando de viver honestamente, ou casando-se; e não podem reavê-la ainda que<br />

viúvem outra vez (Ord. liv. 4º, tite. 102 § 4º) 20 ” ou mesmo o Código Civil Brasileiro,<br />

que começa a vigorar em 1917 substituindo as Ordenações Filipinas como código<br />

jurídico, que no artigo 395, inciso 3º, também coloca em linha tênue o comportamento<br />

dos pais ao apresentar que se perde o direito ao pátrio poder aquele “que<br />

praticar atos contrários a moral e aos bons costumes”.<br />

20 As citações foram transcritas respeitando-se a pontuação e a gramática original, mas atualizou-se a ortografia.<br />

47


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Dessa forma, podemos perceber que as mulheres, dentro da legislação que<br />

regulamentava a tutela dos menores, estavam em constante vigilância, pois se estas<br />

apresentassem um comportamento desviante segundo concepções de moralidade<br />

vigente na época ou mesmo se contraíssem novo casamento perderiam a tutela do<br />

menor, mesmo que este fosse seu filho.<br />

Um caso que podemos tomar como exemplo de atitude por parte do Juizado<br />

de órfãos é o processo da menor Alice 21 de 14 anos de idade, filha natural de Marcolina<br />

da Silva.<br />

Este processo foi encaminhado ao Juizado de órfãos por Balbina Brühl de<br />

Albuquerque, viúva, que denunciou que a mãe da menor Alice não tem condições<br />

“nenhuma” para cuidar da referida menor. A senhora Balbina pediu que a mãe da<br />

menor fosse ouvida, pois ela poderia confirmar suas declarações; quando esta foi<br />

intimada afirmou não se opor em sua filha ser tutelada por aquela senhora. Entretanto,<br />

o Juiz João Soares não deu o cargo de tutor à Balbina Brühl e indicou o senhor<br />

Alfredo Melo para exercer o cargo, sujeito o qual a mãe não concordou que fosse<br />

tutor de sua filha, apresentando no processo a reclamação contra esse homem, sem<br />

explicitar os motivos para a não investidura de Alfredo Melo. No mesmo dia o Juiz<br />

respondeu afirmando que “independente da carta acima (pedido de destituição do<br />

tutor feito pela mãe), intime o tutor nomeado para prestar o compromisso”.<br />

Podemos perceber que por causa da mãe não ter condições “nenhuma”, sejam<br />

elas quais fossem, pois o processo não as apresenta, o Juiz não considerou sua<br />

vontade no momento de deferir a tutela de sua filha a um terceiro, mesmo que este<br />

não pertencesse ao circulo familiar da referida menor.<br />

O gráfico 4 nos apresenta justamente que casos como da menor Alice, em que<br />

um terceiro que não tinha qualquer relação com a menor recebesse a tutela dessa,<br />

não eram a exceção, pois em 51% dos casos os tutores não possuíam qualquer vínculo<br />

seja consanguíneo (pai, mãe, avós, tios, irmãos etc.), de ofício (patrão) ou mesmo<br />

espiritual (padrinho ou madrinha) para com o seu tutelado.<br />

21 Processo número 630 de 1916 do APERS.<br />

48


Gráfico 4: Relação com o Menor baseado nos processos de tutela de 1902 a 1925<br />

depositados no APERS.<br />

Outros tantos processos foram iniciados porque a mãe contraiu segundas<br />

núpcias, assim o processo da menor Ernestina de Azambuja Moré 22 é um desses<br />

que exemplificam muitos outros casos que transcorreram pelo Juizado de órfãos<br />

de Porto Alegre neste período. Nesse processo sua mãe Arabella Bittencourt de<br />

Azambuja, viúva do Alferes Ernesto Emmanuel Moré, pede ao Juiz Hugo Teixeira<br />

que este dê um tutor para sua filha, pois ela, a mãe, contraiu segundas núpcias e dessa<br />

forma perdeu o pátrio poder sobre a referida filha. Como em outros casos, a senhora<br />

Arabella indica um familiar para, dessa forma, não perder contato com a menor e<br />

nem esta a referência familiar; indicando seu irmão, casado, Octavio Bittencourt de<br />

Azambuja. Uma estratégia legal encontrada pela mãe para esta não perder sua filha<br />

para outra pessoa.<br />

Mas o caso da menor Ernestina, em que há a indicação do tutor e este recebe<br />

a tutoria não era a regra, pois os gráfico 5 indica que justamente isso era a exceção,<br />

pois, por meio dele, evidencia-se que apenas 1% dos tutores que receberam a guarda<br />

de um menor foram indicados pelos suplicantes e a grande maioria destes, 94%<br />

não possuíam indicação, ou seja, a maioria dos aspirantes ao cargo de tutor entrou<br />

pessoalmente com a solicitação da tutela para si, ou mesmo o Juiz, com a autoridade<br />

que o revestia, indicava o tutor, de toda a forma, o Juiz tinha total autonomia para<br />

investir uma pessoa com o cargo de tutor, mesmo que isso viesse a romper com os<br />

laços familiares do menor, como o caso da menor Alice, visto anteriormente, em que<br />

um terceiro recebeu sua guarda.<br />

22 Processo número 611 de 1915 do APERS.<br />

49


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Gráfico 5: Tutor indicado baseado nos processos de tutela de 1902 a 1925 depositados no APERS.<br />

O gráfico 6 nos apresenta a idade dos menores tutelados e essa informação<br />

evidencia o que Silvia Arend já constatou para as famílias dos populares portoalegrenses<br />

do início do século XX, pois “para os populares, os filhos [ou os menores<br />

tutelados], após certa idade (em torno de 7 anos), deixavam de ser ‘uma boca a mais’<br />

para se tornar mão-de-obra” 23 , podendo contribuir na renda familiar, assim, explicando,<br />

um pouco, os motivo das maiores incidências de tutelas estavam atribuídas<br />

aos menores com 13 e 15 anos de idade.<br />

23 AREND, Silvia Maria Fávero. Dramas: A Família Popular. In:______. Amasiar ou Casar? A Família Popular<br />

no Final do Século XiX. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2001, p.67.<br />

50<br />

Gráfico 6: idade dos Menores baseado nos processos de tutela de 1902 a 1925<br />

depositados no APERS.


A maior parte dos processos foi iniciado devido ao falecimento do pai ou da<br />

mãe ou mesmo pelo menor não ter qualquer um de seus progenitores vivos (gráfico<br />

7), fazendo-se necessário um adulto legalmente constituído para ser responsável legal<br />

por esse menor, “em juízo ou fora dele”, até esse completar a maior idade, quando<br />

cessa-se a autoridade e a responsabilidade legal sobre um menor, consanguíneo<br />

ou não.<br />

Gráfico 7: Motivos do pedido de tutela baseado nos processos de tutela de 1902 a 1925<br />

depositados no APERS.<br />

Isso também se reflete na abertura dos processos estarem concentrados nos<br />

anos de 1923 a 1925, ou seja, 42% dos processos abertos nesse Cartório se centralizam<br />

nesses anos que, não por acaso, foram os anos posteriores a Gripe Espanhola<br />

que assolou o Estado do Rio Grande do Sul em finais do ano 1918 provocando um<br />

grande número de órfãos.<br />

CONCLUINDO, MAS NãO EM ABSOLUTO<br />

Temos muito que aprofundar nesta temática, mas a partir dos dados apresentados<br />

podemos observar que ocorreu, sim, um reflexo dos valores cultivados pela<br />

sociedade nos processos de tutela, bem como, uma forte influência masculina na<br />

legislação que regulava as questões dos menores. Este último fato foi somente rompido<br />

em 1962, com o artigo 380 do Código Civil o qual colocou marido e mulher<br />

em termos iguais quanto ao pátrio poder e que a viúva recasada não perderia mais o<br />

pátrio poder de seus filhos de casamentos anteriores.<br />

51


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Além disso, verificamos que as menores do sexo feminino possivelmente<br />

eram tuteladas em maior quantidade dos que os do sexo masculino por causa da<br />

necessidade moral de proteção da mulher e por ela poder contribuir nos afazeres<br />

domésticos. Os homens por não receberem tanta vigilância legal quanto às mulheres<br />

sobre os seus procedimentos acabavam com maior frequência revestidos do cargo<br />

de tutor de um menor. Os homens tanto quanto as mulheres eram vigiados em relação<br />

a sua conduta moral, mas as segundas sofriam mais, pois a vigilância sobre seus<br />

atos eram mais intensos que sobre os primeiros.<br />

O Juizado Distrital da Vara de órfãos de Porto Alegre, dessa forma, foi de<br />

grande valor para o Estado organizar as famílias que passavam por alguma situação<br />

de desagregação familiar ou mesmo nas composições de novas estruturas familiares<br />

já que mais da metade dos tutores não possuía vínculo com os menores e que esse<br />

Juízo, nas épocas de epidemia ou não, cuidou para que os menores tivessem um<br />

responsável legal sobre suas vidas e seus atos.<br />

52


REFERêNCIAS DOCUMENTAIS<br />

impressa<br />

Novo roteiro dos orphãos: ou guia pratica do processo orphanologico no<br />

Brazil : fundamentado na legislação respectiva, e illustrado pela lição dos<br />

praxistas, contendo muitas disposições novas a aréstos dos tribunaes, até ao<br />

presente, com o formulario de todos os processos. 3ª edição. Rio de Janeiro:<br />

Laemmert, 1903. 1 p.l., [v]-vi, 276p. Biblioteca da Faculdade de Direito da UFRGS.<br />

On Line<br />

ALMEIDA, Cândido Mendes de. Código Filipino ou Ordenações e leis do Reino<br />

de Portugal, recompiladas por mandado do rei D. Philippe i. 14ª edição.<br />

Rio de Janeiro: Tipografia do Instituto Philomathico, 1870. Disponível em: . Acesso em 25/04/2010.<br />

Manuscrita<br />

3ª Vara de Família e Sucessão<br />

APERS - Fundo Poder Judiciário, 3ª Vara de Família e Sucessão, Tutelas, Estante<br />

91, maço 24, [Caixa 004.1837, Estante 121G], autos 595-665 [autos 595-649]. Anos<br />

1913-1919 [Data limite: 01/01/1913-31/12/1918].<br />

APERS - Fundo Poder Judiciário, 3ª Vara de Família e Sucessão, Tutelas, Estante<br />

91, maço 23, [Caixa 004.1836 estante 121G], autos 536-594. [autos 543-594]. Anos<br />

1895-1946.<br />

APERS - Fundo Poder Judiciário, 3ª Vara de Família e Sucessão, Tutelas, Estante<br />

31, maço 26, autos 752-832. Anos 1923-1932.<br />

APERS - Fundo Poder Judiciário, 3ª Vara de Família e Sucessão, Tutelas, Estante<br />

121G, autos 650-976. Caixa 004.1838. Data limite: 01/01/1878-31/12/1919.<br />

REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ALANIZ, Anna Gicelle García. ingênuos e libertos: estratégias de sobrevivência<br />

53


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

familiar em épocas de transição (1871-1895). Campinas/São Paulo: CMU/UNI-<br />

CAMP, 1997. 107p.<br />

AREND, Silvia Maria Fávero. Dramas: A Família Popular. In:______. Amasiar ou<br />

Casar? A Família Popular no Final do Século XIX. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS,<br />

2001. p. 49-69. 98p.<br />

AZEVEDO, Gislane Campos. De Sebastianas e Geovannis: o universo do menor<br />

nos processos dos juízes de órfãos da cidade de São Paulo (1871-1917). São Paulo:<br />

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1995. (Dissertação de Mestrado em<br />

História).<br />

BAKOS, Margaret Marchiori. A habitação em Porto Alegre: Problemas e projetos<br />

administrativos (1897-1937). Cadernos de Estudo: Programa de Pós-Graduação<br />

em História, UFRGS. Porto Alegre: UFRGS, n.1, p. 1-85. Nov. 1988.<br />

BAKOS, Margaret Marchiori. Porto Alegre e seus eternos intendentes. Porto<br />

Alegre: EDIPUCRS, 1996. 218p.<br />

COSTA, Jurandir Freira. Ordem médica e norma familiar. 5ª edição. Rio de Janeiro:<br />

Edições Graal, 2004. 282p.<br />

FONSECA, Cláudia. Pais e filhos na família popular. In: D’INCAO, Maria Ângela<br />

(Org.). Amor e família no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 1989. p. 95-128p. 160p.<br />

FONSECA, Cláudia. Ser mulher, mãe e pobre. In: PRIORE, Mary Del (Org.); BAS-<br />

SANEZI, Carla (Coord. de Textos). História das Mulheres no Brasil. 3ª edição.<br />

São Paulo: Editora Contexto, 2000. p. 510-553. 678p.<br />

FONSECA, Cláudia. Uma Tradição de Gerações. In:______. Caminhos da Adoção.<br />

3ª edição. São Paulo: Cortez, 2006. p. 43-74. 152p.<br />

LONDOÑO, Fernando Torres. A origem do conceito menor. In: DEL PRIORE,<br />

Mary (Org.). História da Criança no Brasil. 5ª edição. São Paulo: Contexto, 1998.<br />

p. 129-145. 176p.<br />

MARINS, Paulo César Garcez. Habitação e Vizinhança: Limites da Privacidade no<br />

surgimento da metrópole. In: NOVAIS, Fernando A. História da Vida Privada no<br />

Brasil, 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 131-214. 724p.<br />

NUNES, Clarice. A escola reinventa a cidade. In: HERSCHMANN, Micael; PE-<br />

REIRA, Carlos A. M. (Org.). A invenção do Brasil Moderno: medicina, educação<br />

e engenharia nos anos 20-30. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 180-201. 226p.<br />

PAPALI, Maria Aparecida C. R. Escravos, libertos e órfãos: A construção da liberdade<br />

em Taubaté (1871-1895). São Paulo: Annablume; FAPESP, 2003. 220p.<br />

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Os sete pecados de uma capital. In:______. Os sete<br />

pecados da capital. São Paulo: Editora Hucitec, 2008. p. 9-21. 455p.<br />

54


PESAVENTO, Sandra Jatahy. Os trabalhadores do futuro. O emprego do trabalho<br />

infantil no Rio Grande do Sul da República Velha. História. São Paulo, 14, p. 189-<br />

201, 1995.<br />

PINHEIRO, Luciana de Araújo. A civilização do Brasil através da infância: propostas<br />

e ações voltadas à criança pobre nos finais do Império (1879-1889). Rio de<br />

Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2003. (Dissertação de Mestrado em História).<br />

SAMARA, Eni de Mesquita; TUPY, Ismênia S. Silveira T.. O Trabalho com o documento.<br />

In:______. História & Documento e metodologia de pesquisa. Belo<br />

Horizonte: Autêntica, 2007. p. 67-116. 168p.<br />

TEIXEIRA, Heloísa Maria. A Labuta sem Ciranda: crianças pobres e trabalho em<br />

Mariana (1850-1900). Revista Diálogos. UEM - Maringá/PR, v. 10, n. 3, p. 185-<br />

214, 2006.<br />

VIANNA, Adriana de Resende Barreto. O Mal que se adivinha: Polícia e Menoridade<br />

no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999. 198p.<br />

ZERO, Arethuza Helena. O preço da liberdade: caminhos da infância tutelada –<br />

Rio Clara (1871-1888). Campinas/São Paulo: Universidade Estadual de Campinas,<br />

2004. (Dissertação de Mestrado em Economia).<br />

55


2<br />

rePressão e<br />

Protesto<br />

nA históriA do<br />

teMPo Presente


CorAção de luto: teixeirinhA e o<br />

Protesto dos esqueCidos<br />

Francisco Alcides Cougo Junior*<br />

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar parte da produção musical do cantor e compositor<br />

Vitor Mateus Teixeira, o Teixeirinha, autor de canções que permanecem como grandes sucessos<br />

de público. No trabalho, enfoco alguns porquês deste sucesso e, especialmente, de sua perenidade,<br />

dando destaque ao que a historiadora e jornalista Mirian de Souza Rossini chamou de “laço empático”,<br />

isto é, o elo que ligava o público à música de Teixeirinha. Ao abordar parte do cancioneiro de Teixeira,<br />

aponto para algumas gravações que enfatizaram valores, sentimentos e até protestos de determinado<br />

segmento social, especificamente aquele descrito pela filósofa Marilena Chauí como a “população popular”.<br />

Palavras-chave: Teixeirinha – música popular – canção de protesto.<br />

INTRODUçãO<br />

Teixeirinha (Vitor Mateus Teixeira, 1927-1985) faleceu há 25 anos,<br />

mas, mesmo assim, inúmeros programas de rádio dedicam espaço a<br />

seu cancioneiro. Em Porto Alegre, as emissoras Liberdade FM e Rural<br />

AM possuem horários específicos em que só tocam o repertório do astro gaúcho.<br />

No interior do Rio Grande do Sul, rádios como a Planalto FM (de Passo Fundo)<br />

e a Santa-Mariense AM, também mantêm produções regulares em homenagem ao<br />

cantor. Até no Rio de Janeiro e no Sergipe, Teixeirinha segue sendo ouvido.¹<br />

Estes programas, quase todos campeões de audiência em seus horários, representam<br />

apenas uma parte do “fenômeno social” que é a produção musical de<br />

Teixeirinha, um sucesso que segue rompendo paradigmas e recordes, fronteiras e<br />

* Licenciado em História pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e Mestre em História pela Universidade<br />

Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).<br />

¹ Em Porto Alegre, a Rádio Rural AM 1220 leva ao ar, de segunda à sexta, às 20h, o programa Querência Amada e,<br />

aos domingos, às 12h, o Estúdio Betha, ambos apresentados por Elizabeth Teixeira, filha de Teixeirinha. Em Passo<br />

Fundo, o Programa Teixeirinha é transmitido pela Rádio Planalto FM aos domingos, entre 8 e 10h, sob a apresentação<br />

de João do Prado. Em Santa Maria, a Rádio Santa-Mariense produz o programa Abre a porteira, Rio Grande, sob o<br />

comando de João Caetano Brum. Já em Nova Friburgo (RJ), Joel de Sá Martins apresenta Relembrando Teixeirinha, de<br />

segunda à sexta, entre 4 e 6 da manhã. Na cidade de Lagarto (SE), a Rádio Jenipapo FM homenageia o cantor com<br />

um programa exclusivo veiculado aos sábados, às 6 da manhã.<br />

59


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

gerações. O cantor, que teria vendido cerca de 80 milhões de discos (segundo as<br />

sempre controversas cifras da indústria fonográfica), é um dos mais populares artistas<br />

brasileiros, conhecido do Oiapoque ao Chuí e ouvido à exaustão por fãs de<br />

diferentes regiões, idades e classes sociais. Seus 573 fonogramas revelam uma infinidade<br />

de temas, ritmos, gêneros e construções criativas, elementos que sobrevivem<br />

ao tempo, cativando cada vez mais ouvintes.<br />

A perenidade do sucesso musical de Teixeirinha intriga. Os porquês de tamanho<br />

êxito mesmo passados tantos anos de seu “estouro”, podem encontrar respostas<br />

na própria atualidade do repertório que o artista criou. A historiadora e jornalista<br />

Mirian de Souza Rossini revela que o sucesso de Teixeirinha só foi possível porque<br />

a vida do artista, contada continuamente em sua obra, fez com que “vasta gama da<br />

população, que normalmente não tem voz na mídia, se visse representada pela sua<br />

própria ótica”.² A este fenômeno, a pesquisadora dá o nome de “laço empático”.<br />

É curioso perceber que este “laço” segue presente na relação entre a produção<br />

musical do artista e seus ouvintes. Enquanto canções emblemáticas dos anos<br />

1960 e 1970 parecem ter perdido popularidade, a maior parte do cancioneiro de<br />

Teixeirinha segue vigorando como de grande sucesso. Neste artigo, irei redimensionar<br />

este fenômeno a partir de uma parcela do repertório de Vitor Mateus Teixeira,<br />

mais especificamente aquela que discorre sobre as agruras da chamada “população<br />

popular” 3 , segmentos compostos pelos baixos extratos da sociedade, para os quais,<br />

em geral, as composições de Teixeirinha eram direcionadas. Se algumas canções que<br />

marcaram época, como Alegria, alegria 4 e Cálice 5 – reverenciadas pela historiografia<br />

como referências da oposição da MPB à ditadura civil-militar instaurada no Brasil,<br />

em 1964 – perderam o fôlego de sua popularidade (estando muito mais consolidadas<br />

como registros históricos pela academia/crítica do que pela memória coletiva popular<br />

em si), a música de Teixeirinha atravessa a via contrária: é pouco lembrada pelas<br />

esferas da formação de pensamento e memória “oficial”, mas muito recordada pela<br />

memória coletiva (e afetiva) popular. Este trabalho discorre sobre os porquês de tal<br />

fenômeno e enfoca a atualidade do discurso cancionista de Teixeirinha, elemento<br />

fundamental, responsável direto por sua perenidade, tendo em vista sua validade.<br />

Como fontes deste trabalho, utilizo, primordialmente, algumas peças musicais<br />

do acervo fonográfico de Teixeirinha (composto por 573 fonogramas gravados em<br />

quatro empresas fonográficas diferentes) e alguns depoimentos do artista, colhidos<br />

² ROSSINI, Mirian de Souza. O popular cinema de Teixeirinha. BECKER, Tuio. Cinema no Rio Grande do Sul. Porto<br />

Alegre: UE/Porto Alegre, 1995, p. 73.<br />

³ CHAUí, Marilena. Conformismo e resistência. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 10.<br />

4 Alegria, alegria (Caetano Veloso) Gravação de Caetano Veloso. LP “Caetano Veloso” – Philips P.1967.<br />

5 Cálice (Chico Buarque – Gilberto Gil) Gravação de Chico Buarque. LP “Chico Buarque” – Philips P.1978.<br />

60


em pesquisas no arquivo da Rede Brasil Sul de Televisão (RBSTV) e no acervo da<br />

Fundação Vitor Mateus Teixeira - Teixeirinha. Com esta análise, pretendo também<br />

enfatizar a importância do objeto documental fonograma (em seus mais diferentes<br />

dispositivos: discos, fitas, mídia digital), produzido à exaustão durante todo o século<br />

XX, mas ainda tão parcamente utilizado como registro histórico.<br />

PAULADA NO PAPAI NOEL, TAPA NA GRANFINA<br />

Vitor Mateus Teixeira nasceu em 3 de março de 1927, no município gaúcho<br />

de Rolante, na época distrito da cidade de Santo Antônio da Patrulha, 95km<br />

distante da capital do Rio Grande do Sul. Aos seis anos, o futuro cantor perdeu<br />

o pai, o carreteiro Saturnino Francisco Teixeira, que faleceu vitimado por um<br />

ataque cardíaco. Três anos depois, foi a lavradora Ledurina Mateus, mãe de Teixeirinha,<br />

que morreu. Ela caiu sobre uma pequena fogueira, logo após sofrer um<br />

ataque epilético, e não resistiu às queimaduras. Em 1936, “sozinho no mundo”,<br />

o menino Vitor começava uma verdadeira peregrinação, que só teve fim às portas<br />

da década de 1960, quando ele casou-se e fixou residência no município de<br />

Passo Fundo. Dali, o cantor que já fazia sucesso excursionando pelo interior do<br />

Estado, saiu para São Paulo, onde – em 1959 – gravou suas primeiras canções.<br />

Em 1960, o disco de 78 rotações contendo o xote Gaúcho de Passo Fundo e a toada-milonga<br />

Coração de luto chamou a atenção do público brasileiro e alcançou o<br />

topo da parada de sucessos. Teixeirinha ficou rico, mudou-se para Porto Alegre<br />

e lançou 49 LPs inéditos e uma infinidade de discos compactos, numa carreira<br />

de sucesso que perdurou por 26 anos. Em 1961, o cantor firmou parceria com<br />

a jovem acordeonista Mary Terezinha, dando início a uma das mais populares<br />

duplas da música no Brasil. A partir de 1967, Teixeirinha também passou a atuar<br />

no cinema, onde contracenou em 12 longas-metragens – dez deles produzidos<br />

pela Teixeirinha Produções Artísticas.<br />

Dos 58 anos que viveu, Teixeirinha passou quase metade deles em sérias dificuldades.<br />

Quando criança, habitou as ruas, “fazendo bicos” e convivendo, de perto,<br />

com a incerteza da sobrevivência:<br />

Esse foi o momento mais triste da minha vida. Porque ele não só doeu<br />

na hora. Ele doeu por muitos anos, porque os nove anos perdidos<br />

pelo mundo, passando fome, passando frio, dormindo em viadutos,<br />

dormindo dentro de canos, dormindo dentro de matos, comendo folha<br />

de araçá ou de pitangueiras para matar a fome... Então, eu tive dias<br />

que eu sentava na calçada ou na beira da estrada e dizia: ‘Mãe, vem me<br />

buscar que eu não agüento mais a fome. Não agüento mais o sofrimento’.<br />

Ela não veio, Deus quis que fosse assim e depois de dezoito<br />

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VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

anos – que eu tive documentos, fui trabalhar e tudo – me acompanha<br />

só a grande saudade e o grande amor, porque amor de mãe não existe<br />

nenhum igual. 6<br />

Ainda jovem, Vitor Mateus Teixeira trabalhou em granjas, pensões e foi tratorista<br />

do DAER (Departamento Autárquico de Estradas e Rodagens), seu último<br />

emprego antes de decidir tornar-se cantor profissional. A meu ver, esta vida de extremas<br />

incertezas e dificuldades forjou a personalidade do compositor Teixeirinha,<br />

um artista de grande fluidez criativa, que, se por um lado herdou explícitos traços<br />

artísticos dos nomes da “Era do Rádio” (décadas de 30-40), por outro, criou um ambiente<br />

musical completamente próprio, especialmente no que tange às temáticas de<br />

suas gravações. É dentro deste contexto que enxergo o “laço empático” citado por<br />

Mirian Rossini. Tendo vivenciado na carne as agruras da maior parte da população<br />

brasileira, em geral pobre e esquecida pelo poder econômico subjugador, Teixeirinha<br />

conseguiu transportar uma espécie de “sentimento de classe” para seu cancioneiro, o<br />

que lhe facilitou a comunicação com seus ouvintes. Acrescente-se a isso a explosão<br />

do mercado de bens de consumo culturais no Brasil dos anos 60 e 70 e o caráter<br />

eminentemente popular de sua carreira (gestada no rádio e alimentada por apresentações<br />

simplíssimas em carrocerias de caminhões e circos de chão batido, Brasil<br />

afora), e temos o perfil de sucesso do cantor.<br />

Um sucesso que, aliás, fica ainda mais claro quando abordamos as minúcias da<br />

produção musical de Teixeirinha, ainda hoje parcamente analisada em sua totalidade<br />

(até porque, a historiografia da música no Brasil continua sendo bastante preconceituosa<br />

em relação à “canção popular”). 7 Variada, mas focada, a música de Teixeirinha<br />

possui um mote temático muito comum: o enfoque na tristeza, no sentimento de<br />

abandono, na orfandade, na pobreza e nas desigualdades sociais. Dirigida a um público<br />

eminentemente pobre, o cancioneiro do artista é autobiográfico e, ao mesmo<br />

tempo, reflexivo de um contexto que, infelizmente, pouco se alterou. Ele discorre<br />

sobre a fuga do campo para as cidades, a pobreza dos menores abandonados e as<br />

disparidades sociais. Das 573 canções gravadas por Teixeirinha e que compõem o suporte<br />

documental deste trabalho, 171 trazem as palavras “triste”, “tristeza” ou “tristonho”<br />

no corpo do texto, o que representa cerca de 30% de toda a produção do artista.<br />

Mais do que uma estatística, este dado nos leva a concluir que – ao contrário de<br />

Pedro Raymundo ou José Mendes, por exemplo, artistas gaúchos reconhecidos por<br />

repertório baseado em “causos” humorísticos cantados – Teixeirinha primou por<br />

uma temática essencialmente melancólica, boa parte dela evocativa de seu próprio<br />

6 Depoimento de Teixeirinha ao programa J. Silvestre. Disponível no documentário Teixeirinha – O Gaúcho Coração do<br />

Rio Grande. RBSTV, 2005.<br />

7 Para maiores informações, consultar: NAPOLITANO, Marcos. A historiografia da música popular brasileira (1970-<br />

1990): síntese bibliográfica e desafios atuais da pesquisa histórica. ArtCultura. Uberlândia, v.8, n.13, jul.-dez. 2006.<br />

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passado de pobreza e abandono, o mesmo vivido por alguns de seus milhares de fãs.<br />

Além disso, esta produção musical com enfoque na “tristeza brasileira” é quase<br />

toda cantada em primeira pessoa, um fato de fundamental importância. O autor<br />

que substitui o “nós” pelo “eu” dá voz às suas vivências, traumas e emoções. O<br />

emprego desta modalidade verbal, tanto nas letras quanto nos títulos das canções,<br />

recupera um sentir presente num espaço-tempo determinado. A historiadora Maria<br />

Izilda Matos afirma que “a construção na primeira pessoa dá à canção e a todos<br />

que cantam a possibilidade da subjetivação da mensagem, uma identificação com o<br />

compositor, um sentimento que passa a ser também coletivo, ou seja, uma interpretação<br />

individual de uma sensação geral”. 8 Tal interpretação só é possível na medida<br />

em que o público-ouvinte assimila a mensagem que lhe é transmitida. Para isso, é<br />

necessário que este mesmo público tenha vivenciado o que é cantado, ainda que<br />

subjetivamente.<br />

A experiência afetiva só tem sentido para quem viveu. A relação do<br />

público com a canção efetiva-se na forma de relatar as experiências e<br />

provocar uma empatia por aproximação com elas. O desafio do compositor<br />

é fazer com que a experiência relatada pareça ter sido realmente<br />

vivida, recuperando o sentimento e dando credibilidade à canção. 9<br />

Esta identificação parece ter acompanhado a carreira de Vitor Mateus Teixeira<br />

durante toda sua vida. Como é comum, por exemplo, na música caipira (uma<br />

das inegáveis referências de Teixeirinha), suas canções – mesmo as autobiográficas<br />

– “denunciam a transferência de pobreza de áreas rurais para áreas urbanas” 10 e<br />

apontam para as péssimas condições criadas pelo desenvolvimento da sociedade capitalista<br />

brasileira entre as décadas de 1960 e 1970, principalmente. Em certa medida,<br />

elas representam a forma de vida imposta a milhares de brasileiros e, por isso, uma<br />

considerável parcela da população sentia-se como se sua própria história de dificuldades<br />

estivesse sendo contada, formando-se, pois, o “laço empático” que deu tanta<br />

popularidade a Teixeirinha. Entrevistado em 1985 sobre o assunto, o cantor revelou<br />

crer nesta identificação tácita entre o público e suas canções: “Num caso como Coração<br />

de luto, que fez tanta gente chorar, a gente vê muita gente chorando, puxando<br />

lenço, relembrando um caso que passou, porque já não tem mais mãe, ou com pena<br />

de tantas crianças que não tem” – afirmou. 11<br />

A propósito, Coração de luto, a canção citada por Teixeirinha, é um grande<br />

exemplo do quanto seu repertório buscou e conseguiu identificação com a “po-<br />

8 MATOS, Maria Izilda Santos de. Dolores Duran: Experiências boêmias em Copacabana nos anos 50. Rio de Janeiro: Bertrand<br />

Brasil, 1997, p. 88.<br />

9 TATIT, Luiz. O cancionista: composições de canções no Brasil. São Paulo: Edusp, 1996, s/p.<br />

10 ULHÔA, Martha Tupinambá de. Música sertaneja em Uberlândia na década de 1990. ArtCultura, Uberlândia-MG,<br />

nº9, jul.-dez./2004, p.61.<br />

11 Depoimento de Teixeirinha em Teixeirinha Especial. RBSTV, 5-12-1985.<br />

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VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

pulação popular”. Lançada em julho de 1960, a toada-milonga conta a história da<br />

infância de Teixeirinha, mais especificamente a morte de sua mãe, ocorrida quando<br />

ele contava apenas nove anos. Na letra, o cantor explora a temática da perda e, principalmente,<br />

da orfandade. Só que o resultado de sua canção-autobiográfica vai mais<br />

além: em versos bastante diretos, o cantor enfatiza sua condição de pobre abandonado<br />

– “passei fome, passei frio / por este mundo, perdido”. 12 Coração de luto tornou-se<br />

um grande sucesso no exato momento em que o Brasil vivia um período de otimismo<br />

extremo, embalado pela série de inaugurações do governo Juscelino Kubitscheck<br />

(dentre elas a moderna capital Brasília) e seu programa de desenvolvimento capitalista<br />

“50 anos em 5”. A propaganda institucional do governo investia na idéia de que<br />

o país transpirava progresso, que entrara de vez na era das grandes potências e no<br />

“Primeiro Mundo”. Acontece que, por detrás daquele cenário de modernidade, nem<br />

tudo ia bem: a inflação, de quase 25%, consumia as finanças do Estado 13 ; mais de<br />

40% dos brasileiros vivia abaixo da linha da pobreza 14 e a expectativa média de vida<br />

chegava a apenas 41 anos em alguns Estados do Nordeste brasileiro. 15 Inúmeros menores<br />

abandonados, iguais aos cantados por Teixeirinha em Coração de luto, vagavam<br />

pelas ruas das grandes cidades, levando uma vida subumana e de poucas perspectivas.<br />

Não é descabido imaginar o quanto eles se identificassem com a canção.<br />

Em Conformismo e resistência, Marilena Chauí afirma que a sociedade civil brasileira<br />

é tradicionalmente autoritária, independentemente do regime governamental<br />

responsável pelo controle do Estado. É claro que em determinados momentos este<br />

autoritarismo se investe de outras roupagens e mesmo se redimensiona, muitas vezes<br />

ampliando-se. No entanto, para determinado segmento da população, ele é sempre<br />

forte. No Brasil, a história da música popular brasileira tem – não sem razões – atribuído<br />

grande importância à “canção engajada” ou “canção de protesto”, gestada a<br />

partir dos anos 1960, quando os movimentos musicais “pós-bossa nova” passaram a<br />

buscar formas de firmar uma arte engajada no combate ao regime antidemocrático<br />

e violento da ditadura civil-militar instaurada no país através do golpe de Estado,<br />

ocorrido em 1964. Esta idéia de protesto, que se firmou através de passeatas, peças<br />

teatrais e, principalmente, da música popular, enfrentou ampla perseguição por parte<br />

do Estado brasileiro, uma verdadeira caça que, através de um eficaz sistema de<br />

censura, tentou de todas as formas calar a voz de compositores politicamente ativos,<br />

como Geraldo Vandré ou Chico Buarque de Holanda.<br />

No entanto, fora da esfera universitária (onde o prostest song brasileiro foi ges-<br />

12 Versos de Coração de luto (Teixeirinha) Gravação de Teixeirinha. 78rpm PTJ 10.104 – Chantecler P.1960.<br />

13 SOARES, Gláucio Ary Dillon; D’ARAÚJO, Maria Celina (orgs.). 21 anos de regime militar: balanços e perspectivas. Rio<br />

de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1994, p. 16.<br />

14 Id., p. 300.<br />

15 BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. O Governo Kubitscheck. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 286.<br />

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tado), outro tipo de canção de protesto circulava, mostrando uma realidade que<br />

perpassa a própria ditadura civil-militar do período, sendo um composto tradicional<br />

da história brasileira. Paulo Cesar de Araújo afirma que “é tênue a linha que separa<br />

uma simples e triste canção de amor de uma elogiada canção de protesto. Ambos<br />

os estilos podem conter o grito de milhões de brasileiros excluídos do sistema social,<br />

sem acesso à informação, educação e saúde pública”. 16 O historiador Marcos<br />

Napolitano também endossa essa idéia a partir de referências do chileno Juan Pablo<br />

Gonzalez. Analisando o texto performativo gravado em seus mais diversos níveis de<br />

significação, ele chega à conclusão de que<br />

(...) mesmo a canção estandardizada, catalogada como ‘comercial, impura,<br />

simplória e corporal’, tem algo a dizer sobre a sociedade e sobre<br />

os sujeitos que a consomem, nem sempre apenas pelo viés da ‘alienação’,<br />

como quer a tradição adorniana, ainda muito presente no meio<br />

acadêmico brasileiro. 17<br />

É este tipo de protesto sem “refutação” ou “combate aberto”, que “opera no<br />

interior da mitologia sem destruí-la, mas revelando suas ilusões” 18 que aparece em<br />

boa parte do cancioneiro de Teixeirinha. Se Coração de luto traz um relato autobiográfico<br />

de agruras e sofrimentos, outras canções vão mais além e escancaram relações<br />

diretas de desigualdade e pobreza, muitas vezes protestando contra a ordem vigente.<br />

Papai Noel, toada gravada em 1968, é um destes exemplos. Na canção, Teixeirinha interpreta<br />

(mais uma vez em primeira pessoa) a história de um menino magoado com<br />

a reconhecida figura natalina que, como em outras ocasiões, não lhe trouxe o tão<br />

desejado presente. O cantor lembra o grande número de pobres no país, revelandose<br />

condolente com os mesmos. Um verso é peculiar em relação a isso:<br />

Papai Noel,<br />

lhe esperei o ano inteiro.<br />

Só por falta do dinheiro,<br />

você esqueceu de mim! 19<br />

Note-se que esta canção é lançada exatamente às portas do Governo Médici,<br />

o mesmo que ficou reconhecido pela explosão do “Milagre Econômico” brasileiro,<br />

um momento de otimismo e de mensagens ufanistas que apregoavam o progresso<br />

do “país que vai pra frente”. Anos depois, mais ríspido e muito provavelmente levado<br />

pelo aumento das dificuldades de vida no país (fruto, justamente, da crise “pós-<br />

Milagre”), Teixeirinha volta a dirigir-se ao “bom velhinho”, desta vez cobrando-o<br />

16 ARAÚJO, Paulo Cesar de. Eu não sou cachorro, não. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 263.<br />

17 NAPOLITANO, Marcos. História e música popular: um mapa de leituras e questões. Revista de História 157. (2º<br />

semestre de 2007), p. 166.<br />

18 CHAUí, op. cit., p. 100.<br />

19 Versos de Papai Noel (Teixeirinha) Gravação de Teixeirinha. LP “Última tropeada” – Copacabana P.1968.<br />

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VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

diretamente por não tê-lo atendido quando criança e por, invariavelmente, esquecerse<br />

dos órfãos e pobres. Em Infância frustrada, de 1982, logo depois das primeiras<br />

estrofes, o cantor pergunta: “Porque, Papai Noel? Porque você não me visitava?”.<br />

Em seguida, ele volta à carga: “Papai Noel... / Velhinho esnobe, é comercial. / Papai<br />

Noel... / Por isso os pobres não ganham o Natal...”. Na seqüência a canção é encerrada<br />

com “Papai Noel, hoje em entendo quem é você. / É um comerciante que<br />

só propaga na televisão...”. 20 Neste caso, é importante notar que Teixeirinha buscou<br />

realmente criar um cenário de crítica social ao consumismo e à frustração que os pobres<br />

sentem por não poderem compartilhar das benesses do mundo capitalista. Isso<br />

fica claro quando ouvimos o ensaio de Infância frustrada, registrado em fita cassete e<br />

esquecido no acervo pessoal do cantor. Dirigindo-se ao produtor do disco, Leonir,<br />

Teixeirinha pede a ele que o arranjo do rasqueado faça alguma referência ao Natal<br />

(“um sininho, uma coisinha qualquer assim...”), mas, entretanto, revela estar rebatendo<br />

à figura do Papai Noel, “que me traiu muito quando eu era criança”. Teixeirinha<br />

prossegue: “Isso é frustração. Mas quem é que não se frustra quando, na infância,<br />

não tem as coisas, não é? E eu estou dando uma paulada no Papai Noel!”. 21<br />

Tão emblemática quanto a briga de Teixeirinha contra a falta de condições<br />

dos pobres e explorados é sua rusga com um fato que o cantor vivenciou na pele, e<br />

que transportou para seu cancioneiro com vigor, certamente por saber que o público<br />

ouvinte se identificaria. Trata-se da disparidade social entre classes, tão comum no<br />

Brasil desde longa data. Diversas canções de Vitor Mateus Teixeira deram conta do<br />

problema da desigual distribuição de renda e dos conflitos sociais provocados por<br />

ela, algo muito dissimulado pelos governantes, mas crônico na sociedade brasileira.<br />

Em 1960, quando Coração de luto tornou-se campeã de vendas em todo o país, “os<br />

10% mais pobres da população receberam 1,9% da renda total, enquanto os 10%<br />

e os 1% mais ricos receberam, respectivamente, 39,6% e 11,9% de toda a riqueza<br />

produzida no país”. 22 Graças à inércia governamental dos períodos posteriores, este<br />

quadro só piorou: em 1999, a título de exemplo, os 10% mais ricos da população<br />

receberam 45,7% de toda a riqueza gerada no país, enquanto os 10% mais pobres,<br />

apenas 1%, recebendo pouco mais de 100 reais por mês.<br />

A desigualdade econômica brasileira gerou uma clivagem social acentuada<br />

que se reflete até hoje nas mais variadas instâncias. Uma conseqüência real dela diz<br />

20 Versos de Infância frustrada (Teixeirinha) Gravação de Teixeirinha. LP “Que droga de vida” – Chantecler P.1982.<br />

21 A fita contendo a gravação encontra-se, sem identificação, no acervo pessoal de Teixeirinha, na casa do cantor, em<br />

Porto Alegre. Para maiores informações, consultar: COUGO JUNIOR, Francisco; REIS, Nicole Isabel dos. Nos<br />

porões da Glória: uma reflexão sobre arquivos pessoais, Teixeirinha e alguns cruzamentos entre História e Antropologia.<br />

Aedos. Porto Alegre, v.1, n.1, 2008. (Disponível em http://www.seer.ufrgs.br/index.php/aedos/article/<br />

view/9819/5620).<br />

22 TEIXEIRA, Ricardo Augusto Grecco. Breves retratos do Brasil: a distribuição de renda. Estudos. Londrina: CLAI<br />

/ Fé, Economia e Sociedade, julho/2002, p.2.<br />

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espeito às impossibilidades de bom relacionamento entre classes distintas, sem que<br />

haja sobreposição de uma por outra. Em termos reais, pobres e ricos vivem em<br />

realidades diferentes e estão o mais afastados possível. Neste processo, chamam<br />

atenção as formas pelas quais a camada mais pobre da sociedade acaba manifestando<br />

seu descontentamento com tal situação. Em relação a isso, a música tem sido um<br />

importante veículo de protesto – consciente ou inconscientemente. Neste ínterim,<br />

Teixeirinha foi pródigo, pois muitas de suas composições trazem histórias nas quais<br />

ele é ora narrador, ora personagem principal. Estas narrativas tratam de questões extremamente<br />

interessantes, em especial relativas às divergências sociais entre pobres e<br />

ricos (ou empregados e patrões), ao sonho da ascensão social – seja na zona urbana,<br />

seja no cotidiano rural (geralmente ligada a golpes de sorte, casamentos ou proezas<br />

conquistadas graças à humildade e confiança no destino que um dia atende a quem<br />

nele acredita) – e também ao sofrimento de quem trabalha duro, mas ganha pouco.<br />

Estas composições, a meu ver, mostram o que Araújo chama de “luta de classes na<br />

sociedade – e na perspectiva dos oprimidos”. 23<br />

Canções de temática aparentemente amorosa são peculiares neste sentido. O<br />

tango Vida fantasia, de 1969, é um bom exemplo. Nele, o personagem principal – interpretado<br />

pelo próprio Teixeirinha – está apaixonado por uma mulher rica, mas não<br />

é correspondido justamente por ter se atrevido a “lhe querer bem, sem pensar que<br />

não devia”, já que ela “ao ver que eu não era rico / voltou com sua nobreza”. A mulher<br />

amada não suporta a vida de misérias, pois, nas palavras do autor, “quem nasceu<br />

para ser nobre / não acostuma à pobreza”. Um dos versos da composição mostra,<br />

além disso, que não basta apenas uma posição financeira favorável para que o amor<br />

seja possível. Um elevado grau de educação e um status social adequado também<br />

são imprescindíveis. É por isso que, em meio a toda sua melancolia (ressaltada pela<br />

tristonha melodia do tango e de um plangente violino realizando o complemento<br />

harmônico), o personagem principal diz:<br />

Nunca foi o seu dinheiro<br />

que pra mim teve valor.<br />

Apenas lhe amo tanto,<br />

só queria o seu amor.<br />

Não reconheci que sou<br />

simplesmente um trovador.<br />

Você está com a razão,<br />

merece um nobre doutor. 24<br />

23 ARAÚJO, op. cit., p. 85.<br />

24 Versos de Vida fantasia (Teixeirinha) Gravação de Teixeirinha. LP “Volume de prata” – Copacabana P.1969.<br />

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VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

No elenco dos velados protestos contra as disparidades entre os brasileiros,<br />

algumas canções de Teixeirinha foram ainda mais longe. E digo isso, justamente<br />

porque elas não evocaram histórias fictícias ou relatos autobiográficos na transmissão<br />

das mensagens objetivadas, mas sim desenharam protestos explícitos, dirigidos a<br />

qualquer rico que, porventura, possa ter ultrajado aos pobres. Nesta linha, algumas<br />

das composições mais significativas dão conta da figura do “granfino”, indivíduo<br />

“metido a rico, elegante, aristocrata” 25 , “que vive com luxo” 26 , uma figura comum<br />

nos anos 1960-1970, rotulada como um abastado ou ainda o “bacana”. Em algumas<br />

canções evocativas ao “granfino”, Teixeirinha dirige-se diretamente ao personagem.<br />

Sintomaticamente, a principal peça artística relativa ao tema data do início dos anos<br />

1980, quando o país vivia um dos piores momentos de sua economia, após o colapso<br />

pós-Milagre. O tango Granfina, de 1979, opõe a rica – “esnobe da cabeça aos pés”<br />

– àquela que “lava o chão”, numa nítida defesa à emprega doméstica, muitas vezes<br />

obrigada a morar em seu quarto de fundos, pequeno e escuro, uma espécie de anexo<br />

à residência, renegado ao isolamento e remontando à própria tradição da casa grande<br />

e da senzala do Brasil-colônia – na qual criados e senhores não podiam misturar-se.<br />

No tango, Teixeirinha iguala as duas mulheres: “Tu não pensa que o teu sangue / só<br />

por ser de gente nobre, / é diferente da pobre / que lava o chão e a vidraça. / Granfina,<br />

a tua arrogância / provocou os versos meus. / Neste mundo de um só Deus /<br />

preconceito é uma desgraça!”. No desfecho da canção, ele as equipara novamente,<br />

chegando a citar o grande abismo social entre ambas:<br />

Granfina, já foste minha<br />

sem roupa e sem maquiagem.<br />

Vi em ti a mesma imagem<br />

da mulher que lava o chão.<br />

Só o orgulho e o esnobismo<br />

e a diferença social.<br />

Este é o teu grande mal<br />

granfina sem coração! 27<br />

Paulo Cesar de Araújo afirma que canções como estas, cantadas em primeira<br />

pessoa, sobre temas que demarcam tacitamente o lugar-social de determinado segmento<br />

da população, podem ser absorvidas por seus ouvintes como um discurso<br />

que fala sobre eles próprios. Ao analisar o bolero Eu não sou cachorro, não, de Waldik<br />

Soriano, o historiador afirma:<br />

25 LUFT, Celso Pedro. Minidicionário Luft. São Paulo: Editora Ática, 1996, p. 324.<br />

26 HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro Salles. Minidicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva,<br />

2004, p. 375.<br />

27 Versos de Granfina (Teixeirinha) Gravação de Teixeirinha. LP “20 anos de glória” – Chantecler P.1979.<br />

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(...) a canção reflete a condição social e os embates contra o autoritarismo<br />

vivenciados pelo próprio autor. E tudo isto serve de ‘indícios’,<br />

‘sinais’, de que a opressão relatada na letra de Eu não sou cachorro,<br />

não, não se refere somente a uma relação amorosa e nem que o público<br />

a interpretasse apenas desta maneira. 28<br />

Ao conversar com sua parceira Mary Terezinha e com a amiga e cantora Berenice<br />

Azambuja (em uma descontraída conversa registrada em fitas cassete), Teixeirinha<br />

sinaliza saber disso. Após mostrar Granfina à Berenice (cantando, acompanhado<br />

por Mary), o cantor revela com ar de vingança: “Isso sim que é sucesso! As mulherzinha<br />

[sic] de morro e a empregadinha doméstica vão enlouquecer tudo! Dá um tapa<br />

na granfina, não é?”. 29 Ou seja, nesta gravação vemos a explícita intencionalidade de<br />

Teixeirinha em produzir uma canção que remontasse a realidade de um determinado<br />

segmento da população e seu lugar-social.<br />

CONSIDERAçõES FINAIS<br />

Mais do que composta por canções “comerciais” ou “popularescas” – como<br />

pretendem críticos e mesmo historiadores da música popular brasileira –, a produção<br />

musical de Teixeirinha traz elementos que podem ser tomados como protestos contra as<br />

condições subumanas de uma parte considerável da população brasileira, ora explorada<br />

pelo patrão “granfino”, ora carente de um amor que acaba por ser impossível em virtude<br />

de diferenças sociais, mas – irremediavelmente – triste e marcada pelo desafio da sobrevivência<br />

em meio à calamidade das clivagens sociais. Canções como Coração de luto, Vida<br />

fantasia ou Granfina apresentam em seus versos uma forma de desabafo contra a opressão<br />

e o tratamento humano degradante, um clamor por melhorias, o “desejo único pelo qual<br />

o oprimido se diferencia radicalmente do opressor: o desejo da não-agressão”. 30 Com<br />

isso, vemos que – mesmo em uma produção musical comumente encarada como alienada<br />

aos problemas sociais e criticada por um não-envolvimento político direto – uma<br />

linguagem diferente de protesto está presente. Como corrobora o professor Eduardo<br />

Granja Coutinho, “uma canção política não significa necessariamente canção revolucionária<br />

ou de agitação. Sem se colocar frontalmente contra o regime, uma canção pode ser<br />

política por expressar críticas sociais e de costumes, como um samba de Noel Rosa ou<br />

uma marchinha de Lamartine Babo”. 31 Ou um tango de Teixeirinha que, pela atualidade<br />

das denúncias que faz, continua válido. E fazendo sucesso.<br />

28 ARAÚJO, op. cit., p. 238.<br />

29 Fita cassete encontrada no arquivo pessoal do cantor, sem identificação.<br />

30 CHAUí, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez, 1997, p.54.<br />

31 COUTINHO, Eduardo Granja. Velhas histórias, memórias futuras: o sentido da tradição na obra de Paulinho da Viola.<br />

Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ. Rio de Janeiro: Eco, 1999, p.60.<br />

69


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

70<br />

REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ARAÚJO, Paulo Cesar de. Eu não sou cachorro, não. Rio de Janeiro: Record, 2002.<br />

BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. O Governo Kubitscheck. Rio de Janeiro:<br />

Paz e Terra, 1979.<br />

CHAUí, Marilena. Conformismo e resistência. São Paulo: Brasiliense, 1994.<br />

_____________. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez,<br />

1997.<br />

COUGO JUNIOR, Francisco; REIS, Nicole Isabel dos. Nos porões da Glória: uma<br />

reflexão sobre arquivos pessoais, Teixeirinha e alguns cruzamentos entre História e<br />

Antropologia. Aedos. Porto Alegre, v.1, n.1, 2008.<br />

COUTINHO, Eduardo Granja. Velhas histórias, memórias futuras: o sentido da tradição na<br />

obra de Paulinho da Viola. Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da<br />

UFRJ. Rio de Janeiro: Eco, 1999.<br />

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Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.<br />

LUFT, Celso Pedro. Minidicionário Luft. São Paulo: Editora Ática, 1996.<br />

MATOS, Maria Izilda Santos de. Dolores Duran: Experiências boêmias em Copacabana nos<br />

anos 50. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.<br />

NAPOLITANO, Marcos. A historiografia da música popular brasileira (1970-1990):<br />

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v.8, n.13, jul.-dez. 2006.<br />

____________________. História e música popular: um mapa de leituras e questões.<br />

Revista de História 157. (2º semestre de 2007).<br />

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no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UE/Porto Alegre, 1995.<br />

SOARES, Gláucio Ary Dillon; D’ARAÚJO, Maria Celina (orgs.). 21 anos de regime militar:<br />

balanços e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1994.<br />

TATIT, Luiz. O cancionista: composições de canções no Brasil. São Paulo: Edusp, 1996.<br />

TEIXEIRA, Ricardo Augusto Grecco. Breves retratos do Brasil: a distribuição de<br />

renda. Estudos. Londrina: CLAI / Fé, Economia e Sociedade, julho/2002.


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– Philips P.1967.<br />

Cálice (Chico Buarque – Gilberto Gil) Gravação de Chico Buarque. LP “Chico Buarque”<br />

– Philips P.1978.<br />

ACERVO DA REDE BRASIL SUL DE<br />

TELEVISãO (RBSTV, PORTO ALEGRE)<br />

Depoimento de Teixeirinha ao programa J. Silvestre. Disponível no documentário<br />

Teixeirinha – O Gaúcho Coração do Rio Grande. RBSTV, 2005.<br />

Depoimento de Teixeirinha em Teixeirinha Especial. RBSTV, 5-12-1985.<br />

ACERVO DA FUNDAçãO VITOR MATEUS TEIXEIRA –<br />

TEIXEIRINHA (PORTO ALEGRE)<br />

Coração de luto (Teixeirinha) Gravação de Teixeirinha. 78rpm PTJ 10.104 – Chantecler<br />

P.1960.<br />

Diálogo gravado entre Teixeirinha, Mary Terezinha e Berenice Azambuja, fita cassete<br />

encontrada no arquivo pessoal do cantor, sem identificação.<br />

Granfina (Teixeirinha) Gravação de Teixeirinha. LP “20 anos de glória” – Chantecler<br />

P.1979.<br />

Ensaio de Teixeirinha para o disco “Que droga de vida”, 1982, fita cassete encontrada<br />

no arquivo pessoal do cantor.<br />

Infância frustrada (Teixeirinha) Gravação de Teixeirinha. LP “Que droga de vida” –<br />

Chantecler P.1982.<br />

Papai Noel (Teixeirinha) Gravação de Teixeirinha. LP “Última tropeada” – Copacabana<br />

P.1968.<br />

Vida fantasia (Teixeirinha) Gravação de Teixeirinha. LP “Volume de prata” – Copacabana<br />

P.1969.<br />

71


A AtuAção rePressivA dA ditAdurA Civil-MilitAr<br />

brAsileirA durAnte A Construção dA AnistiA<br />

Julio Mangini Fernandes<br />

Resumo: O artigo apresentado discute as práticas repressivas da Ditadura Civil-Militar do Brasil<br />

no contexto da luta pela Anistia, institucionalizada em 1979. Esta incursão atuou de forma autoritária<br />

nas organizações e movimentos sociais que questionavam as diretrizes arregimentadas pelo Estado.<br />

Esta foi exercida através de perseguições, sequestros e desaparecimentos de militantes, políticos e pessoas<br />

“comuns” (sem vinculação direta político-partidária). O intercâmbio da repressão e a criação de<br />

redes de informação entre os países do Cone Sul foi uma das maneiras para aniquilar a oposição externa<br />

ao governo, que se utilizou do terror para propagar o medo generalizado na sociedade, supostamente<br />

ameaçada por um inimigo da Nação. Portanto, perceber quais foram essas ações e discuti-las no âmbito<br />

acadêmico, visando analisar as relações de poder inseridas nesse momento histórico, daqueles que lutavam<br />

pela Anistia, as práticas sociais e as maneiras pelos quais se representou o “inimigo” externo que<br />

assolava intermitentemente os países sul-americanos.<br />

Palavras-chave: Ditadura Militar – repressão – Anistia.<br />

O<br />

presente trabalho¹ tem como intuito pensar e discutir os meios pelos<br />

quais a Ditadura Civil-Militar brasileira na década de 1970 podou<br />

quase todas as possibilidades de ação de organizações e movimentos<br />

sociais de exilados brasileiros que questionavam as diretrizes autoritárias<br />

arregimentadas pelo Estado. Essas se constituíam em perseguições, sequestros e<br />

desaparecimentos de militantes, políticos e pessoas “comuns” (sem vinculação direta<br />

político-partidária) que questionavam e criticavam, de alguma forma, o modelo<br />

imposto vigente na época. O intercâmbio dos métodos repressivos e a criação de<br />

redes de informação e repressão com outros países da região, tais como Uruguai,<br />

Chile e, sobretudo, com a Argentina, foi uma das maneiras para executar esse projeto<br />

de aniquilar as oposições interna e externa ao governo autoritário. Isso foi realizado<br />

através de Terrorismo de Estado propagando o medo na sociedade, supostamente<br />

ameaçada por um inimigo interno e externo da Nação, apressadamente rotulado<br />

¹ Esse trabalho consiste em um recorte da dissertação intitulada “As práticas repressivas da ditadura civil-militar<br />

brasileira aos exilados brasileiros na Argentina (1964-1979)” defendida em setembro de 2009, pelo programa de<br />

pós-graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso, sob os auspícios do CNPq.<br />

73


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

de “comunista”. Portanto, perceber quais foram essas ações e discuti-las no âmbito<br />

acadêmico, trazem à tona a repressão aos exilados brasileiros no exterior e seus usos<br />

na propagação do Terror de Estado.<br />

Procuro refletir sobre o Brasil no contexto da guerra fria, durante o golpe<br />

civil militar brasileiro e a atuação brasileira de cooperação e intercâmbio antes e<br />

depois da criação da chamada “Operação Condor”. As práticas exercidas antecedem<br />

tal operação e a investigação dos exilados brasileiros datam desde pelo menos<br />

quando foi criado o CIEX – Centro de Informações do Exterior, em 1966, uma<br />

das ramificações do SNI – Serviço Nacional de Informações – criado em 1964 e<br />

vinculado ao Ministério das Relações Exteriores. O CIEX tinha como função agir<br />

de forma especializada, buscando e analisando conjunturas de países vizinhos, fazer<br />

encaminhamento e responder, através de dados, informações e processos anteriores<br />

e pedido de antecedentes, monitorando os brasileiros que buscavam exílio em países<br />

democráticos.<br />

O CIEX fazia parte de um eficiente mecanismo repressivo usado pelo regime<br />

ditatorial civil-militar e consistia na vigilância e controle cotidiano sobre a sociedade,<br />

conhecido como “comunidade de informações”. Em nome da Segurança Nacional,<br />

montou-se um complexo sistema repressivo para combater a subversão e reprimir<br />

preventivamente qualquer atividade considerada “suspeita”, por se afigurar como<br />

potencialmente perturbadora da ordem.²<br />

Os aparatos repressivos das forças armadas e policiais, os quais detinham<br />

certa autonomia de ação entre si, eram ordenadas a partir de um núcleo central, o<br />

SNI. Esse subordinava outros órgãos repressivos, como os centros de informações<br />

das três armas (CIE – Centro de Informação do Exército, CENIMAR – Centro de<br />

Informação da Marinha e CISA – Centro de Informação da Aeronáutica), a Polícia<br />

Federal e as polícias Estaduais (como por exemplos os DOPS – Departamento de<br />

Ordem Política e Social), além do próprio CIEX. Para integrá-los, criou-se o DOI-<br />

CODI – Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de<br />

Defesa Interna, oficializado em 1970, que congregava representantes de todas as<br />

forças policiais. Dotados de recursos financeiros e tecnológicos, as atividades eram<br />

planejadas e orientadas pela lógica da disciplina militar, com propósitos de combater<br />

inimigos em uma guerra.<br />

Além disso, a composição dos aparatos repressivos obedecia uma rígida hierarquia,<br />

onde o topo era composto pelo Presidente da República, tendo o Conselho<br />

de Segurança Nacional e a equipe executiva para garantir sua segurança. A esses<br />

eram subordinados os órgãos de repressão em todas as regiões do país, coordenados<br />

² ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). 2ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 1984.<br />

74


por militares. Eram assessorados por analistas de informações, vistos como a elite do<br />

sistema. Esses, por sua vez, recomendavam planos de ação e frequentavam a Escola<br />

Nacional de Informações.<br />

A Ditadura Civil-Militar no Brasil usou vários métodos repressivos com intuito<br />

de aniquilar a oposição brasileira dentro e fora do país. Enquanto esteve sob a<br />

égide dos militares, o governo brasileiro montou um sistema repressivo que ia além<br />

de suas fronteiras. O Ministério das Relações Exteriores, vinculado ao SNI, destinou<br />

ao CIEX o monitoramento de brasileiros com intuito de informar às autoridades<br />

brasileiras responsáveis pela repressão, para desarticular atividades contrárias ao regime<br />

brasileiro e de outros países da região no exterior. Os países mais procurados<br />

pelos exilados foram os do Cone Sul da América do Sul – Chile, Uruguai e Argentina<br />

– que até aquele momento não tinham deflagrado golpe militar.<br />

Com o advento, no Brasil, do golpe em 1964, muitos brasileiros migraram,<br />

forçosamente ou não, para países vizinhos, como o Uruguai e o Chile³. Em 1973,<br />

ambos os países sofreram golpes militares e se alinharam aos outros países dominados<br />

pelas ditaduras, as quais perseguiam exilados da América Latina. A Argentina,<br />

que possuía um governo democrático, tornou-se, inevitavelmente um reduto mais<br />

seguro para aqueles que sofriam com a repressão militar em seus países de origem.<br />

Tal percepção de segurança foi ruindo ainda durante o governo civil, pois suas instâncias<br />

democráticas foram perdendo legitimidade com o avanço da crise econômica<br />

e política, dando espaço para atos clandestinos repressivos de grupos paramilitares<br />

com propósito de combater os movimentos sociais. Com a morte de Juan Perón,<br />

em 1974, as ações governamentais passaram a expor cada vez mais a fragilidade das<br />

democracias latino-americanas, em especial da Argentina.<br />

Nesse contexto, é importante salientar as práticas repressivas da ditadura civil-militar<br />

brasileira aos exilados brasileiros, que propagou através dos seus sistemas<br />

de informação e mecanismo de repressão a cultura do medo e terror, intimidando,<br />

cerceando a liberdade alheia em nome de uma pretensa guerra. Ou seja, um inimigo<br />

foi escolhido, uma guerra foi travada e os parentes, amigos, filhos, e a sociedade<br />

como um todo foram vítimas dessas ações, sobretudo com a lógica da suspeição<br />

que, entre outras coisas, ceifou vidas, tanto de forma física como psicológica, ética e<br />

moralmente.<br />

Ao analisar a documentação utilizada no trabalho, sobretudo a do CIEX,<br />

aliado ao estudo referente à repressão, terrorismo de Estado, memórias e exílio com-<br />

³ Vale ressaltar que o Chile, vizinho do Brasil em termos regionais, possuía uma tradição democrática no século XX<br />

e se tornou foco de migração de perseguidos e exilados, principalmente após a eleição direta do presidente socialista<br />

Salvador Allende.<br />

75


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

preendeu-se quanto a ditadura brasileira se preocupava com os sistemas políticos de<br />

países vizinhos, tais como a Argentina. Através desta rede de informações secreta,<br />

altamente organizada, padrão unânime e referência para outros órgãos repressivos<br />

do Cone Sul, órgãos brasileiros trocavam entre si, e com outros Departamentos de<br />

Informação de países que já tinha implantado o regime autoritário, informes e encaminhamentos<br />

com intuito de organizar a repressão e evitar oposição e resistência,<br />

dentro e fora do país. O maior receio era, pois, a ação daquilo que foi rotulado de<br />

“inimigo interno” e que, ao mesmo tempo, agia também no exterior, ideia essa seguida,<br />

sustentada, alimentada e teorizada a partir da Doutrina de Segurança Nacional,<br />

contra a “ameaça” comunista ao mundo.<br />

As práticas empregadas com o golpe no Brasil se baseavam na tortura física e<br />

psicológica, morte, desaparição e ocultação de cadáver como política de intimidação<br />

e extermínio, além da atuação conjunta com outros países, antes, durante e depois<br />

de instaurada a “Operação Condor”. Tais ações, sustentadas e amparadas ideologicamente<br />

pela Doutrina de Segurança Nacional, visavam a criação de uma sociedade<br />

baseada apenas em valores “ocidentais”, cristãos e capitalistas, capitaneado e liderado<br />

pelas Forças Armadas.<br />

Todas essas ações representavam o temor das elites brasileiras de uma configuração<br />

de movimentos sociais combativos que lutavam por melhorias na sociedade,<br />

que lutavam para ampliar o sentido de democracia, através da participação popular<br />

nas decisões políticas e econômicas no Brasil. Essas posturas adotadas por homens<br />

e mulheres trabalhadoras, estudantes, religiosos, autônomos que, de alguma forma<br />

acreditavam na transformação da sociedade brasileira foram consideradas ações de<br />

inimigos da Nação, ou seja, inimigos de uma elite conservadora que controlava, e<br />

ainda controla os meios de produção e comunicação. Essas pessoas se tornaram<br />

criminosas por discordarem da situação de desigualdade social brasileira e por se<br />

organizarem em sindicatos e partidos políticos, ou seja, atuar em pleno gozo da democracia<br />

era um incômodo aos golpistas.<br />

Esse processo se perpetuou por 20 anos por conta de alguns fatores. Em<br />

primeiro lugar, é necessário destacar a atuação da ditadura brasileira em canalizar<br />

a participação política nos partidos autorizados a existirem e eleições fraudadas,<br />

controladas a base de opressão, repressão e terror de Estado. Além disso, foi<br />

feita a propagação de alguns benefícios, durante o auge da repressão brasileira, de<br />

1968 a 1974, rotulado como “milagre brasileiro”. Essa iniciativa foi uma maneira de<br />

fazer propaganda do regime como sendo benéfico à sociedade, todavia condicionava<br />

o crescimento econômico em detrimento das liberdades individuais e coletivas. O<br />

crescimento ocorreu aliado também com um endividamento maior das contas públicas,<br />

aumentando consideravelmente a dívida interna e externa do Brasil, além de<br />

agravar ainda mais o quadro de desigualdade social do país, haja vista que durante<br />

76


esse período aumentou o abismo que separa os mais ricos dos mais pobres, ou seja,<br />

houve crescimento, mas sem a preocupação da distribuição de renda.<br />

Há, portanto, a necessidade de se rever a política de documentos no Brasil.<br />

Segundo Eliana Resende Furtado de Mendonça (1998) não existe no país uma legislação<br />

específica sobre prazos e acessos aos documentos relativos à privacidade,<br />

de períodos conturbados, tais como de Ditadura civil-militar. Nos países europeus,<br />

assim como os EUA e o Canadá, não se adotaram soluções extremas (de abrir ou<br />

fechar tudo), pois, segundo Mendonça,<br />

isso não é política; uma política de acesso reconhece interesses conflitantes<br />

e propõe alternativas que harmonizem esses interesses com um<br />

objetivo comum: o direito à informação para o exercício da cidadania.<br />

Todos esses países garantem o direito à informação, e as limitações<br />

são feitas através de sistemas de prazo que variam de país para país4 .<br />

Mendonça (1998) faz uma importante contribuição a respeito dos usos e das<br />

consequências dos documentos da repressão criados a partir do golpe de 1964. Muitas<br />

vezes pesquisas tratam de pessoas vivas, essas informações contidas em algum<br />

trabalho acadêmico se esbarram na questão da privacidade dos citados:<br />

A partir da década de 1960, as informações contidas nos documentos<br />

da polícia passaram a priorizar, além das práticas políticas públicas e<br />

clandestinas, dados sobre a intimidade dos investigados e perseguidos<br />

políticos [...] Há dois tipos de informação que afetam a vida privada:<br />

aquelas produzidas pela própria polícia, na maioria das vezes por informantes<br />

encarregados da vigilância e infiltração, que contêm apreciações<br />

e comentários sobre comportamento pessoal e privacidade; e<br />

aquelas que constam de depoimentos assinados pelo preso político,<br />

nos quais ele presta informações sobre si mesmo e outras pessoas envolvidas<br />

em organizações e ações políticas clandestinas. São registros<br />

acerca da atuação política e também sobre a vida pessoal que ferem a<br />

reputação de si mesmo e de terceiros. 5<br />

Analisando os documentos do CIEX é possível perceber tais incursões apontadas<br />

por Mendonça (1998). Os repressores se infiltravam em movimentos sociais,<br />

sindicatos e grupos que lutavam pela anistia. Era uma tática que facilitava o controle<br />

e perseguição daqueles que lutavam por dias melhores.<br />

A luta dos movimentos de direitos humanos, além dos políticos, trabalhadores<br />

e estudantes exilados buscava combater as práticas de repressão, buscando<br />

alguma alternativa pelo retorno da democracia. Nesse sentido, a vigência dos direitos<br />

4 MENDONçA, Eliana Rezende Furtado de. Documentação da Polícia Política do Rio de Janeiro. In Estudos Históricos.<br />

Rio de Janeiro: FG V vol. 12, n. 22, 1998. Disponível em: http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/253.pdf<br />

Acesso em 18.11.2005.<br />

5 Ibidem.<br />

77


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

humanos é algo relevante na legitimação os regimes políticos, sobretudo os democráticos<br />

do século XX e, em sentido contrário sua violação deslegitima e coloca em<br />

crise o discurso das democracias formais.<br />

Segundo Duhalde,<br />

La caída de la Dictadura fue el resultado de su fracaso absoluto en<br />

crear condiciones para perpetuar su permanencia, pero também de<br />

haber cumplido su objetivo fundamental; hacer tabla rasa con la contestatación<br />

social al plan del capital monopólico y de la aristocracia<br />

financiera. 6<br />

Os grupos de contestação que atuavam no exterior, sobretudo na Argentina,<br />

sofriam dois vieses: de um lado a repressão que ocorria antes mesmo do golpe militar<br />

argentino, articulado pelos grupos paramilitares, se destacando a chamada Triple<br />

A, Alianza Anti-comunista Argentina – AAA, criada no final do ano de 1973. De outro,<br />

houve a perseguição da ditadura brasileira, com auxílio dos sistemas de informação<br />

muito bem organizados e articulados (reconhecidos inclusive pelos países vizinhos<br />

e europeus) entre si e com de outros países. Segundo o documento número 360, do<br />

ano de 1975 do CIEX:<br />

Em 03 de setembro de 1975, em Lisboa, um oficial da marinha portuguesa<br />

[...] declarou que, em Portugal, mais que a “CIA”, é o SNI que<br />

atua. Disse calcular que, entre agentes, turistas-informantes, funcionários<br />

do Banco do Brasil e da Embaixada, o SNI conta com uma rede<br />

de uns 500 elementos. 7<br />

Flávio Koutzii, exilado brasileiro, perseguido pelas ditaduras militares brasileira<br />

e argentina, fora preso com mais duas outras pessoas gaúchas. Ele foi detido na<br />

Argentina em 1975 e libertado anos mais tarde. Flávio Tavares e Flávia Schilling foram<br />

presos pela ditadura uruguaia. Somente com a ampla mobilização da sociedade<br />

brasileira pela redemocratização do país, através da luta sindical das greves do ABC,<br />

das atividades dos intelectuais, da agitação estudantil e, especificamente, o trabalho<br />

dos comitês brasileiros pela anistia, os CBA’s, enfim, resistindo, foi possível a anistia<br />

a partir de 1979, na qual Koutzii foi liberado dos cárceres argentinos após 4 anos de<br />

prisão. Segundo o próprio Flávio Koutzii,<br />

Saí do Brasil em 1970, quando a atividade dos grupos políticos de<br />

esquerda se tornou cada vez mais precária pelo recrudescimento da<br />

repressão desde a edição do AI-5. Passei pelo Chile, onde acompanhei<br />

a primeira fase do Governo de Allende, e me transferi para a<br />

6 DUHALDE, Eduardo Luis. El Estado Terrorista Argentino. Quince años después, uma mirada crítica. Buenos Aires: Ed.<br />

Universitaria de Buenos Aires, 1999<br />

7 Centro de Informações do Exterior (CIEX). Informes nº 001 a 336. v.23. Ano: 1975. Arquivo do Ministério das<br />

Relações Exteriores (AMRE), nº 360, vol. 23, 23/09/75.<br />

78


Argentina, onde retomei minha militância. Fui seqüestrado e, depois,<br />

formalmente processado e preso por atividades políticas um pouco<br />

antes do Golpe Militar do general Videla. 8<br />

Existe também o caso de uma pessoa de nacionalidade brasileira, a qual<br />

iremos chama-la pelas iniciais LM9 , que saiu do Brasil em um período no qual a perseguição<br />

estava no seu auge de sua rigidez, isto é, no início da década de 70, e que<br />

para ela estava praticamente impossível continuar no país. Quando militantes nordestinos<br />

do partido no qual militava, o PC do B, começaram a “cair”, por conta da<br />

repressão, “feito jogo de dominó” (LM), chegando até o Rio de Janeiro e São Paulo,<br />

ela resolveu sair, junto com outros companheiros, migrando para um país vizinho.<br />

Nós saímos basicamente porque se nós ficássemos aqui estávamos<br />

mortos, mas também para entrar, voltar a ter contato com o partido...<br />

porque (...) todo esse período, acho que de 71 a 72 primeiro tinha<br />

umas 700 pessoas do partido no Brasil. As quedas começaram<br />

no Nordeste, foi assim tipo um jogo de dominó, foi caindo, caindo,<br />

caindo...até chegar no Rio de Janeiro, São Paulo (...) do movimento<br />

estudantil10 Para “LM” foi muito ruim, teve gente que morreu e também porque ela e<br />

outros militantes perderam o contato com a direção do PC do B. Nesse momento,<br />

resolve ir a Argentina: “Nessa ocasião nós fomos pra Argentina para retomar o contato.<br />

A gente queria ir para o Chile, mas não deu né, por causa do Golpe”. 11<br />

A Argentina se tornou atrativa a todos que estavam fugindo da repressão,<br />

buscando o auto-exílio para continuar lutando contra não só a ditadura brasileira,<br />

mas como todas aquelas existentes no chamado Cone Sul, em especial ao golpe<br />

militar no governo socialista de Salvador Allende. Este caminho foi o mais viável segundo<br />

ela, pois lá existia liberdade democrática e existiam pessoas de todos os países,<br />

a fim de encontrar parceiros para fortalecer a militância (LM, 2006).<br />

Quando LM chegou na Argentina, achou o país um “paraíso terrestre. Nunca<br />

tinha visto tanta manifestação na minha vida” 12 , o que demonstrava que, inicialmente,<br />

sua impressão sobre este país era de um reduto seguro para a militância. Lá, muitos<br />

comitês de solidariedade e de luta anti-imperialista estavam sendo formados por<br />

militantes, intelectuais e políticos argentinos e estrangeiros. Ela se ligou ao COSOL-<br />

PLA – Comité de Solidariedad a los Pueblos Latino-Americanos. Esse comitê era<br />

observado pelos repressores brasileiros, como é possível perceber na citação abaixo:<br />

8 KOUTZII, Flávio. A luta contra a ditadura. Porto Alegre, RS. Entrevista da TVE. (DVD) Setembro/ 2003 – Acervo<br />

de luta contra a ditadura.<br />

9 A pedido da própria personagem, que deseja manter sua identidade no anonimato.<br />

10 LM, 2006. Entrevista concedida ao autor no dia 07 de abril de 2006. Gravação digital.<br />

11 Ibidem.<br />

12 Ibidem<br />

79


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

O “comitê” de Solidariedade latinoamericano”, do qual fez parte<br />

Francisco Julião, em representação do Brasil, omitiu uma declaração<br />

através da qual formula as razões que sustentam suas atividades, bem<br />

como seus propósitos. 13<br />

Francisco Julião era advogado e ajudou a fundar as Ligas Camponesas, que<br />

seria um embrião do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Ele era militante<br />

do PSB – Partido Socialista Brasileiro e foi eleito deputado. Com o golpe militar de<br />

1964, Francisco Julião teve seus direitos políticos cassados. Partiu para o exílio em<br />

dezembro de 1965, indo viver no México. Com a anistia, em 1979, voltou ao Brasil e<br />

se filiou ao partido que também pertencia seu amigo Leonel Brizola, o PDT – Partido<br />

Democrático Trabalhista. Brizola foi uma das personalidades políticas que atuou,<br />

de alguma forma, pela anistia no Brasil.<br />

Além do COSOLPLA, havia outros, tais como o Movimento Argentino Antiimperialista<br />

de Solidariedade Latino-Americano – MAASLA (CIEX nº 05, vol. 23,<br />

1975), que, assim como outros grupos e comitês, participava de manifestações semanais<br />

com 200 mil pessoas nas ruas contra o recente golpe no Chile e “selvagerias”<br />

(LM, 2006) que estavam sendo cometidas pelo golpe militar chileno. Por algum tempo,<br />

os argentinos e latino-americanos acreditavam que seria revertido esse quadro, o<br />

que não se confirmou.<br />

Muitos também achavam que jamais ocorreria algo parecido na Argentina,<br />

mesmo sabendo do recente histórico argentino, repleto de golpes e intervenções<br />

militares. Por esse motivo a Argentina se tornou destino certo de muitos brasileiros<br />

que sofriam a dupla repressão em outros países (a do país onde se encontrava o<br />

exilado e do Brasil), pois acreditavam que lá teria segurança para militar, sobretudo<br />

com o retorno de Juan Perón ao poder. Havia um otimismo muito grande e, para<br />

“LM”, o que ela viu na Argentina não se via no Brasil: pessoas discutindo política<br />

abertamente, sem medo, na maior liberdade. Eram bem progressistas e todos tinham<br />

posicionamento político, e não eram apenas estudantes, como no Brasil (LM, 2006).<br />

Havia também na Argentina, no Uruguai e no Cone Sul algo que para “LM”<br />

era interessante: a idéia de “Pátria Grande” do povo da América Latina, de solidariedade<br />

contra a exploração e contra o domínio dos Estados Unidos.<br />

Toda essa união e percepção de uma Argentina razoavelmente boa para se<br />

morar foi mudando com a criação da chamada Triple A, (criada por Lopez Rega,<br />

braço direito de Juan e Isabelita Perón, conhecido também como “El Brujo”) e<br />

principalmente após a morte de Juan Perón, aquela passava a agir clandestinamente,<br />

13 Centro de Informações do Exterior (CIEX). Informes nº 001 a 336. v.23. Ano: 1975. Arquivo do Ministério das<br />

Relações Exteriores (AMRE), nº 363, vol. 23, 23/09/75.<br />

80


porém, com apoio da Policia Federal da Argentina e simpatia dos militares. Começou<br />

a matar os simpatizantes das lideranças de oposição aos regimes militares de<br />

forma acintosa, cruel e violenta: “Eles não pegavam as lideranças, eles pegavam os<br />

apoios das lideranças (...) e deixavam as lideranças isoladas”, de forma que “jogava<br />

uma bomba e matava a família inteira” (LM, 2006). LM começou a ver a situação<br />

que ela vivia no Brasil, “de você não saber se vai acordar no mesmo dia, na mesma<br />

cama, no mesmo lugar, não sabe se vai ser preso... as coisas começam a ficar complicadas,<br />

começo a ser perseguida” (LM, 2006). Enfim, chegou um momento em que<br />

se perseguiu e reprimiu “a tudo a que se cheirasse esquerda”, isto é, atrizes e atores,<br />

intelectuais e políticos que apenas apoiassem algum grupo de exilados combativos,<br />

ou que tivessem posicionamento mais progressista tiveram que se exilar da Argentina,<br />

como é o caso do ex-presidente Héctor Cámpora.<br />

Leonel Brizola, que se instalou no Uruguai após o golpe de 1964, era visto<br />

como um grande líder capaz de organizar os primeiros comitês pró-anistia, no ano<br />

de 1975.<br />

O grupo de políticos informou BRIZOLA de que a ala dos “autênticos”<br />

do MDB deseja promover em todo o Brasil a formação de comitês<br />

pró-anistia, como uma forma de mobilizar o povo logo nos primeiros<br />

meses de 1975. Segundo essas fontes é necessário aproveitar o<br />

resultado eleitoral, utilizando-o como ponto de apoio para lançar um<br />

movimento de “frente anti-imperialista” de natureza democrática dirigida<br />

tanto a militares e estudantes quanto a camponeses e elementos<br />

da pequena burguesia, como fato determinante da luta pelo estabelecimento<br />

das liberdades democráticas.<br />

Esse grupo lembrou ainda a BRIZOLA que ele tinha responsabilidade<br />

no processo político brasileiro e que não podia omitir-se quanto<br />

a assumir eventualmente uma atitude, principalmente agora com o<br />

respaldo dos resultados eleitorais.<br />

Segundo o ponto de vista de determinadas áreas do MDB do sul, BRI-<br />

ZOLA poderia desempenhar agora uma importante tarefa: empreender<br />

uma pregação cívica pelos países do terceiro Mundo para sensibilizar<br />

essas áreas quanto ao problema da anistia no Brasil. Isto seria<br />

particularmente válido em relação aos países árabes e africanos, onde<br />

o Brasil deseja desenvolver grandes interesses de natureza econômica.<br />

A viagem de Brizola caso fosse efetivada seria uma iniciativa a ser<br />

desenvolvida em coordenação com a fundação do Comitê Pró-Anistia<br />

dentro do Brasil, enquanto que nos países visitados por BRIZOLA<br />

seriam fundados grupos de pessoas que se comprometeriam a lutar<br />

pelo restabelecimento dos direitos democráticos no Brasil.<br />

Esses setores do MDB acreditam que a campanha em favor da anistia<br />

política, no Brasil, deve ser implantada com uma cobertura internacional,<br />

inclusive nos Estados Unidos, uma vez que a medida conteria<br />

81


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

o governo quanto a assumir uma atitude de repressão pela própria necessidade<br />

de preservar sua imagem no exterior. O primeiro país a ser<br />

visitado por BRIZOLA nessa campanha seria Portugal onde, acredita<br />

o MDB, existiriam as melhores condições para sensibilizar a opinião<br />

pública tanto brasileira quanto portuguesa. 14<br />

As investidas de políticos brasileiros15 , na busca de lideranças, sobretudo a de<br />

Leonel Brizola, que se encontrava exilado, persistiram, pois acreditavam na luta por<br />

dias melhores, e alguns exilados serviam de exemplo:<br />

Esses políticos disseram a Barlesi que a liderança de LEONEL BRI-<br />

ZOLA no rio Grande do Sul continuava intacta e que se ele se candidatasse<br />

agora teria mais votos ainda do que quando se lançou a<br />

deputado pela Guanabara. Afirmaram ainda que decidiram viajar a<br />

Montevidéu após consultas com seu setor do MDB, presidido por<br />

Aldo Fagundes, pois acreditavam que ante a carência de lideranças de<br />

massa no Brasil Brizola era um dos poucos homens de 1964 que ainda<br />

retinha intacta sua imagem política como “anti-imperialista”. Vinham<br />

assim exigir da parte de Brizola uma postura política frente aos resultados<br />

das eleições no Brasil. 16<br />

Além de políticos, intelectuais sofreram algum tipo de perseguição por parte<br />

dos sistemas de informação. Foi o caso, por exemplo, de Luiz Alberto Moniz Bandeira,<br />

renomado professor e intelectual brasileiro crítico da atuação norte-americana<br />

na América Latina. Sua trajetória, inclusive sua ida ao Uruguai e para Buenos Aires<br />

foram relatadas em documentos do CIEX17 , sobretudo por ele ter tido relações de<br />

amizade e afinidade política com Leonel Brizola.<br />

Segundo Luiz Alberto Moniz Bandeira (2009), os Estados Unidos tiveram<br />

forte influência sobre os golpes ocorridos na América do Sul, inclusive no Brasil.<br />

Suas ideias refletem, portanto, um posicionamento político oposto aos golpistas:<br />

O Brasil está situado na área de influência direta dos Estados Unidos,<br />

que patrocinaram o golpe-militar em 1964, a fim de desvirtuar o sentido<br />

do seu desenvolvimento nacional. Mediante esses golpes militares<br />

na América Latina, nos anos 60 e 70, os Estados Unidos trataram<br />

de promover praticamente as mesmas diretrizes neoliberais, aplicadas<br />

nos anos 90 pelos governos democráticos. No Brasil, o general Caste-<br />

14 Centro de Informações do Exterior (CIEX). Informes nº 001 a 336. v.23. Ano: 1975. Arquivo do Ministério das<br />

Relações Exteriores (AMRE) nº 50, vol. 23, 14/02/75.<br />

15 Jairo Brum, Darci Coberlini, Calixto Letti, Fossati [...] estiveram também com o brasileiro Barlesi que se encontra<br />

semi-asilado no Uruguai. (CIEX nº 52, vol. 23, 14/02/75)<br />

16 Centro de Informações do Exterior (CIEX). Informes nº 001 a 336. v.23. Ano: 1975. Arquivo do Ministério das<br />

Relações Exteriores (AMRE), nº 52, vol. 23, 14/02/75.<br />

17 Centro de Informações do Exterior (CIEX). Informes nº 001 a 336. v.23. Ano: 1975. Arquivo do Ministério das<br />

Relações Exteriores (AMRE), nº 281, vol. 23, 03/07/75.<br />

82


lo Branco começou a adotar tais medidas. Houve reação do Exército<br />

ele, embora condenasse o estatismo por criar atritos com os Estados<br />

Unidos, teve de fazer maciços investimentos públicos, a fim de tirar<br />

o País da recessão. E só quando o Brasil voltou a desenvolver-se em<br />

ritmo acelerado, a partir de 1968-1969, os capitais estrangeiros recomeçaram<br />

a afluir para a sua economia. 18<br />

No dia 03 de julho de 1975 foi emitido um documento do CIEX, número<br />

281 que relatava as viagens feitas por Luiz Alberto Moniz Bandeira (tratado como<br />

“elemento” no documento), sua aproximação com João Goulart e Leonel Brizola<br />

e também seu pertencimento ao partido socialista brasileiro. Para os militares que<br />

investigavam os passos de Moniz Bandeira, era importante saber a respeito de suas<br />

conversas com militantes de esquerda, entre eles os peronistas, para estabelecer e<br />

manter contatos:<br />

Durante cinco dias, a partir de 22 de maio de 1975, esteve em Montevidéu<br />

o elemento BANDEIRA MONIZ que esteve asilado no Uruguai<br />

em princípios da revolução de 1964.<br />

Ao que se sabe, BANDEIRA MONIZ era jornalista do “Correio da<br />

Manhã” e pertencia ao PC do Brasil. Em Montevidéu manteve contatos<br />

com Carlos Olavo da Cunha, IVO MAGALHAES, EDMUNDO<br />

MONIZ e o ex-coronel DAGOBERTO RODRIGUES.<br />

BANDEIRA MONIZ dia 30 de maio de 1975 seguiu viagem para<br />

Buenos Aires onde esperava estabelecer outros contatos com brasileiros<br />

e peronistas de esquerda. Segundo informações do próprio<br />

BANDEIRA MONIZ, ele saiu do Brasil, onde diz não ter problemas<br />

na atualidade. 19<br />

O jornalista gaúcho Flávio Tavares foi também uma pessoa muito visada pelos<br />

repressores. Sua atuação era vinculada a guerrilha e, portanto, era considerado<br />

um “subversivo” perigoso.<br />

FLAVIO TAVARES está temporariamente Na Argentina, com a cobertura<br />

de jornalista do jornal “Excelsior”, do México, e viajando com<br />

passaporte mexicano.<br />

FLAVIO mantém ligações com setores de superfície dos Montoneros<br />

e das FAP (forças armadas peronistas), hoje integradas ao ERP.<br />

FLAVIO TAVARES vive, normalmente, no México, mas tem estado<br />

viajando pela América Latina e desenvolvendo contatos no Equador,<br />

Peru e Venezuela com setores da Esquerda pró-luta armada. Mantém<br />

também contatos com os cubanos de Buenos Aires e quadros da ALN<br />

que viajam a Buenos Aires.<br />

18 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz (entrevista). A Alca é um projeto político. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br.<br />

Acesso em: 08 de agosto de 2009.<br />

19 Centro de Informações do Exterior (CIEX). Informes nº 001 a 336. v.23. Ano: 1975. Arquivo do Ministério das<br />

Relações Exteriores (AMRE), nº 281, vol. 23, 03/07/75.<br />

83


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

TAVARES se encontrou posteriormente com o economista e teórico<br />

trotskista brasileiro RUI MAURO MARINI que também se encontra<br />

asilado no México, mas estava em Buenos Aires por uma semana, devendo<br />

seguir posteriormente para Paris, onde manteria contatos com<br />

dirigentes europeus da IV Internacional trotskista. 20<br />

Rui Mauro Marini (citado no documento anterior) foi um importante cientista<br />

social e jornalista, com ampla produção acadêmica. Ele teve que se asilar no México,<br />

mas antes foi forçado a sair do Brasil devido a circunstâncias genuinamente brasileiras,<br />

ou seja, a repressão no Brasil o perseguiu, prendeu e fez pressão sobre ele,<br />

amigos e a própria família. Em suas memórias, Marini diz:<br />

Minha estada em Brasília foi cortada bruscamente pelo golpe de 1964.<br />

Naquele momento, eu me encontrava no Rio, onde -sabedor de que<br />

era procurado em Brasília- permaneci, o que não impediu que eu fosse<br />

sumariamente demitido, com outros doze professores, na primeira<br />

medida tomada pela ditadura contra a universidade. Depois de escapar<br />

de ser preso, em maio, caí finalmente, em julho, em mãos do CENI-<br />

MAR. Em setembro, beneficiado por habeas corpus do STF (que a<br />

Justiça militar negara, anteriormente), fui sequestrado pela Marinha e<br />

entregue ao Exército, em Brasília, por conta de outro processo que se<br />

me movia por lá. Repeti o itinerário Justiça militar-STF e obtive, em<br />

dezembro, novo habeas corpus, que desta vez foi acatado. Embora<br />

por pouco tempo: não houvesse eu deixado a cidade, discretamente,<br />

horas depois da minha libertação, e teria sido preso novamente. Após<br />

um período de clandestinidade de quase três meses, quando a pressão<br />

policial-militar sobre meus companheiros e minha família tornou-se<br />

pesada, a ponto de forçar um dos meus irmãos a passar também à<br />

clandestinidade, asilei-me na Embaixada do México, no Rio, e viajei<br />

para esse país, um mês depois. 21<br />

Essa repressão clandestina, porém atuante e violenta, continuou e ainda mais<br />

forte com o golpe militar na Argentina em 1976. Era a consequência da insatisfação<br />

da direita conservadora representada pelas elites burguesas da Argentina, as quais<br />

não estavam mais aturando esse processo democrático e de crescimento de atividades<br />

e manifestações políticas populares.<br />

Há vários exilados, segundo os documentos do CIEX, que sofreram algum<br />

tipo de perseguição e que buscavam, de alguma forma, organizar os comitês de<br />

anistia contra as ditaduras de segurança nacional, sobretudo a brasileira. O asilado<br />

Dagoberto Rodrigues esteve na Argentina com intuito de encontrar outros brasilei-<br />

20 Centro de Informações do Exterior (CIEX). Informes nº 001 a 336. v.23. Ano: 1975. Arquivo do Ministério das<br />

Relações Exteriores (AMRE), nº 283, vol. 23, 03/07/75.<br />

21 MARINI, Ruy Mauro. Memória (auto biografia). Disponível em: http://www.marini-escritos.unam.mx. Acesso<br />

em: 08 de Agosto de 2009.<br />

84


os e também membros da embaixada cubana, para articular supostas ações “conspirativas”<br />

contra o regime brasileiro. Vale ressaltar que nesse caso, a data de obtenção<br />

do informe foi emitido no dia 17 de março de 1976, poucos dias antes do Golpe da<br />

Junta Militar na Argentina:<br />

O asilado brasileiro DAGOBERTO RODRIGUES esteve em Buenos<br />

Aires durante mais de vinte dias, ocasião em que manteve contato<br />

com setores conspirativos brasileiros (grifo meu) e com representante<br />

da Embaixada Cubana naquela capital. 22<br />

Para o CIEX, Dagoberto Rodrigues já tencionava radicar-se na Argentina<br />

para participar de um esquema internacional de trabalho conspiratório. 23<br />

Havia ainda o monitoramento daqueles brasileiros que estavam também sob<br />

mira do governo argentino, agora já sob égide da Junta Militar liderada por Jorge<br />

Rafael Videla. Em um informe do dia 30 de Junho de 1976, o CIEX relata nome de<br />

15 brasileiros expulsos que se encontravam detidos e a disposição do Poder Executivo<br />

acusados de desenvolver atividades atentatórias contra a segurança do Estado. 24<br />

O CIEX publicou um extenso artigo de 11 páginas veiculado pela agência<br />

de noticias “Prensa Argentina (PA)”, chamado “Os instrumentos da conspiração<br />

comunista” no qual relata a preocupação de que havia uma grande conspiração internacional,<br />

cuja intenção era a penetração comunista no ocidente e na Argentina.<br />

Eram organizações de fachada tais como aquelas que defendem os direitos humanos,<br />

a democracia, as liberdades públicas pós-45. Na verdade, tinham como intuito<br />

aniquilar os “Estados democráticos”, com delegações em quase todo o mundo livre,<br />

inclusive na Argentina. 25 Vale ressaltar que Flavio Tavares, Ruy Marini e Dagoberto<br />

Rodrigues tiveram a participação nesse jornal.<br />

Essa preocupação fez o governo ditatorial argentino publicar a lei, através<br />

do Boletim Oficial da Argentina, no qual modificava o Código Penal, acrescentando<br />

pena de morte, por fuzilamento, para atos subversivos. Essa foi uma das decisões no<br />

âmbito institucional da Argentina mais radical e violenta, criticando que no Brasil o<br />

“combate a subversivos” era feito de forma desordenada e sem organização. 26<br />

Diante desse impasse, no qual o governo militar da Argentina não controla<br />

oficialmente as mortes e a violência aos opositores do regime de ditadura militar, até<br />

22 Centro de Informações do Exterior (CIEX). Informes nº 001 a 522. v.24. Ano: 1976. Arquivo do Ministério das<br />

Relações Exteriores (AMRE), nº 125, vol. 24, 30/04/76;<br />

23 Idem.<br />

24 Idem.<br />

25 Centro de Informações do Exterior (CIEX). Informes nº 001 a 522. v.24. Ano: 1976. Arquivo do Ministério das<br />

Relações Exteriores (AMRE), nº 172, vol. 24, 11/06/76<br />

26 Ver CIEX nº 232, nº234 e nº 235, vol 23, 1975.<br />

85


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

os Estados Unidos, através do Congresso norte-americano começou a ficar descontente<br />

com as violações dos direitos humanos. De fato, o embaixador dos EUA na<br />

Argentina, Robert Hill, alertou o presidente Videla sobre as conseqüências extremamente<br />

negativas no caso do Congresso norte-americano condenar a Argentina, com<br />

forte impacto interno, haja visto que caso ocorresse a medida haveria suspensão<br />

no apoio financeiro que os Estados Unidos ofereciam aos argentinos. Segundo os<br />

arquivos desclassificados da CIA, o centro de inteligência estadunidense,<br />

As predicted by the State Department, the military Junta instituted<br />

widespread and vicious repression following the coup. Not only Argentines<br />

were targeted, but also citizens from Chile, Paraguay, Bolivia<br />

and Uruguay who had taken up political exile in Argentina to escape<br />

repression in their home nations. As part of Operation Condor-a network<br />

of Southern Cone secret police services collaborating to eliminate<br />

opponents of their regimes--the Argentine military carried out<br />

numerous operations against foreigners trapped in Buenos Aires after<br />

the coup. 27<br />

É possível perceber, portanto, que a repressão argentina violou de forma<br />

abrupta, sistemática e descontrolada os direitos humanos. O Brasil, em contrapartida,<br />

foi mais coeso em suas ações coercitivas e repressivas, ao ponto que soube<br />

propagandear suas ações como sendo algo benéfico a Nação e ainda mantendo uma<br />

imagem no Exterior mais preservada.<br />

Na Argentina houve uma preocupação maior em rever a memória nacional, e<br />

buscar algum tipo de punição aos que cometeram crimes durante o Estado terrorista.<br />

No Brasil, a lei da Anistia igualou os que resistiam aos que usaram o Estado para<br />

cometer crimes e atos ilícitos da repressão, em nome de uma sociedade cristã e capitalista,<br />

colocando-os no mesmo patamar de “crime político”. Como pode alguém<br />

ser anistiado de um crime sem nunca ser acusado deste? Tal medida tinha um único<br />

efeito, que corrobora com os pactos entre as elites, (prática decorrente e constante<br />

na história da República brasileira), em evitar qualquer julgamento e punição aos<br />

envolvidos.<br />

O fato de reconhecer a morte de pessoas durante a ditadura civil-militar no<br />

Brasil28 , não promoveu uma averiguação em relação aos culpados desses crimes,<br />

sobretudo na transferência de responsabilidade para provar as mortes e desaparecimentos<br />

aos familiares.<br />

27 NATIONAL SECURITY ARCHIVE. New declassified details on repression and U.S. support for military dictatorship.<br />

Disponivel em: http://www.gwu.edu/~nsarchiv/NSAEBB/NSAEBB185/index.htm Acesso em: 07 de<br />

Agosto de 2009.<br />

28 Em 1995 o governo brasileiro editou a lei da indenização, reconhecendo a morte de 136 pessoas.<br />

86


Hoje o Brasil tem uma lei sancionada através da Medida provisória, criada em<br />

2001 pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, e ratificada por Luiz Inácio<br />

Lula da Silva que impõe prazos para o sigilo de documentos. Aqueles considerados<br />

ultra-secretos terão 50 anos de sigilo, podendo ser revogados para sempre; 30 anos,<br />

para os arquivos secretos; 20 anos para os documentos confidenciais e 10 anos para<br />

os documentos reservados. Todas essas ações demonstram que as dificuldades tanto<br />

para o julgamento quanto para investigação historiográfica desse período recente<br />

da história brasileira continuam a ser grandes, mas cabem aos movimentos pelos<br />

direitos humanos e grupos dos familiares e desaparecidos, professores e acadêmicos,<br />

militantes e sindicalistas, trabalhadores e estudantes, lutarem por melhores dias no<br />

que tange os estudos sobre a repressão durante a ditadura civil-militar no Brasil.<br />

MEMóRIAS E A HISTóRIA DO TEMPO PRESENTE<br />

A discussão sobre o uso das fontes orais e as memórias subterrâneas, as quais<br />

são pertencentes de culturas minoritárias e dominadas e que se opõem ao oficialismo, a<br />

memória nacional. Exponho as disputas pela memória entre a memória oficial (uniformizadora,<br />

opressora, reducionista) e as memórias subterrâneas, marginais e periféricas.<br />

As grandes convulsões e cataclismos, as guerras e dramas coletivos não são<br />

lembrados constantemente na consciência social. Para Duhalde (1999), essas situações<br />

afloram em momentos mais inesperados, porque recorrem internamente o<br />

corpo da nação. Segundo o autor, não há reconciliação, pois não há conciliação possível<br />

enquanto seguir vigentes os antagonismos. Nesse sentido, é vital perceber que<br />

não se trata apenas de uma simples autopsia de um tempo passado, ao se recorrer às<br />

memórias sufocadas mas, assumir todas as suas implicações, desde o presente, com<br />

intuito de que a dignidade deve ser recuperada e reparada, para se tornar legado às<br />

próximas gerações.<br />

Este é o grande desafio da memória. Alguns autores tais como Eduardo<br />

Duhalde (1999), e Josefina Cuesta (1993) são categóricos ao dizer que, ao assumir<br />

coletivamente a “culpa” e reparação, podemos resgatar o sentido ético de pertencimento<br />

a espécie humana.<br />

Há ainda de se questionar, para alguns autores, tais como Beatriz Sarlo (2007),<br />

porque existe hoje tanta vontade para a desmemória. O aprofundamento das análises<br />

dos crimes militares estaria indo de encontro com os interesses econômicos<br />

e financeiros, daqueles que se beneficiaram com o golpe de Estado nos países do<br />

Cone-Sul da América do Sul. Entre esses, se destacam, sobretudo, o Brasil e a Argentina,<br />

os quais são os mesmos que controlaram e se beneficiaram do processo de<br />

redemocratização.<br />

87


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Muito se avançou, a começar com o discurso anti-ditatorial, como uma linha<br />

de saída, uma tentativa de ruptura desde o início dos crimes praticados pela Junta<br />

Militar na Argentina e o terror psicológico da ditadura brasileira. As vozes de contestação<br />

ocorreram nestes países inicialmente, porém de forma minoritária, mas com<br />

o tempo tomou conta do tecido das relações sociais, o que pode ser chamado de<br />

“um espaço onde se constituiu um novo sujeito social de direito” 29 , que continuou<br />

crescendo, se expressando espontânea e massivamente no cenário de construção da<br />

democracia.<br />

Esse sujeito social gira em torno do núcleo de legitimidade do sistema democrático,<br />

os direitos humanos. A partir do reconhecimento institucional de tais<br />

direitos que é possível perceber as atitudes proporcionais dos poderes constituídos.<br />

Todavia, a privação do caráter reparatório simbólico que implica em justiça<br />

e condenação dos culpados tem provocado rupturas, rachaduras na credibilidade<br />

do sistema democrático e o ceticismo manifestado cada vez mais sobre o papel do<br />

Estado como aplicador da lei. O Estado, portanto, não pode produzir um discurso<br />

que gere legitimidade sobre si mesmo.<br />

Essa impunidade é o silêncio negador da memória coletiva. Segundo Duhalde<br />

(1999), na história da humanidade quase sempre e de forma trágica percebe-se que<br />

não é fácil cancelar o passado, quando seu cancelamento, ou esquecimento não vem<br />

acompanhado de justiça social.<br />

Segundo Maurice Halbwachs (2004), existe o caráter destruidor, uniformizador<br />

e opressor da memória coletiva nacional. Tais memórias que emergem do subterrâneo<br />

promovem subversão no silêncio e que pouco são percebidas, aflorando-se<br />

em momentos de crise. Há uma disputa pela memória, o conflito e competição entre<br />

memórias concorrentes é latente.<br />

Os dominantes não podem, e não conseguem controlar até onde pode levar<br />

as reivindicações das memórias subalternas, as quais se formam e ganham espaço no<br />

mesmo tempo em que tabus criados pela memória oficial são negados. As lembranças<br />

dos períodos traumáticos, lembranças que esperam o momento propício para<br />

serem expressas veem a tona, no momento presente circunstanciado. Amargadas<br />

e reprimidas diante da doutrinação ideológica, essas lembranças ficam confinadas<br />

ao silêncio e muitas vezes são transmitidas de forma oral, de geração em geração,<br />

permanecendo-as vivas. A resistência, através dos silêncios sobre o passado e não<br />

esquecimento é a forma pelo qual uma sociedade civil que se sente amordaçada se<br />

opõe aos discursos oficiais (POLLAK, 1989).<br />

29 DUHALDE, Eduardo Luis. El Estado Terrorista Argentino. Quince años después, uma mirada crítica. Buenos Aires: Ed.<br />

Universitaria de Buenos Aires, 1999, p.10.<br />

88


Há 30 anos, havia um processo em andamento que se constituiu o princípio<br />

da abertura política no Brasil, com a anistia geral do Governo do General João<br />

Baptista de Figueiredo. Nesse momento, foi possível que muitos brasileiros exilados,<br />

militantes políticos em outro país, tivessem a chance de fazer com que suas vozes<br />

silenciadas por um longo período fossem ouvidas novamente. Vários desses estavam<br />

engajados em comitês internacionais pela anistia no mundo todo, sobretudo<br />

na Europa.<br />

Esse retorno ao Brasil coincidiu, ou melhor, fomentou que memórias do exílio,<br />

da repressão e da militância fossem divulgadas, trabalhadas e produzidas também,<br />

apesar de que algumas obras desse viés já tinham sido publicadas, algumas<br />

fora do país. Pensar as imbricações e relações que essas obras tiveram, dentro de um<br />

contexto de violência e de efeitos traumáticos, é ponto fulcral.<br />

Nesse contexto é importante pensar na História do Tempo Presente ou História<br />

Recente que elucida os temas tratados, que são latentes, se relacionam e coincidem<br />

com as fontes. Estas são vivas, podendo ser o testemunho oral da vítima como<br />

também pode ser algo sobre essa vítima: um relato, uma carta, uma imagem, uma<br />

reportagem de jornal, um documento oficial, filmes e fotos. Ambas as possibilidades<br />

servem para o arcabouço do historiador que estuda a repressão nas Ditaduras<br />

civil-militares de Segurança Nacional no Cone Sul da América do Sul, através das<br />

memórias individuais e coletivas de muitos perseguidos que conseguiram sobreviver<br />

a repressão.<br />

No entanto, a escrita da história do tempo presente foi, e ainda é um processo<br />

custoso e difícil, mesmo com o recente reconhecimento da comunidade acadêmica<br />

de sua legitimidade e de sua operacionalidade. Alguns de nossos pares continuam<br />

com a ideia de que é necessário um distanciamento temporal entre o contemporâneo<br />

e o historiador para se escrever a História. Apesar de parecer uma concepção<br />

retrógrada da história, essa visão positivista da historiografia, que deseja alçar uma<br />

pretensiosa “imparcialidade” dos fatos ainda impede, muitas vezes, que certos trabalhos<br />

sigam adiante.<br />

Para Jean Lacouture “os componentes irredutíveis da história imediata são a<br />

proximidade temporal da redação da obra em relação ao tema tratado e a proximidade<br />

material do autor em relação a crise estudada” 30 . Inclusive, vale destacar a interdisciplinaridade,<br />

no entanto, sem confundir história e jornalismo, mas pensar a relação de<br />

historiadores e a imprensa. Essa história escrita e criada pelo historiador do tempo<br />

presente pretende dar a palavra aos silenciados, aos que foram atores dessa história.<br />

30 LACOUTURE, Jean. A História Imediata. In: Le Goff, Jacques (org). A História Nova. São Paulo : Martins Fontes,<br />

1990, p. 215.<br />

89


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Para Josefina Cuesta, a história do tempo presente não é novidade. Tucidides,<br />

ao escrever “História da Guerra do Peloponeso” e L. Trotsky, que escreveu<br />

“História da Revolução Russa” 31 revelam que o intuito de valorizar o trabalho do<br />

contemporâneo do tempo historiográfico tratado, não é somente para aspirar apenas<br />

a rapidez dos reflexos, nem privilegiar o oral e vilipendiar o argumento escrito, mas<br />

procura basear tanto em sua instantaneidade quanto na sua relação afetiva entre o<br />

autor e o objeto de pesquisa.<br />

Ou seja, o historiador do tempo presente percebe a incapacidade quanto a<br />

conclusão do período que estuda e que isso pode ser uma virtude em seu trabalho.<br />

Conhecer o desfecho de um combate talvez leve a subestimar o rigor e o dinamismo<br />

do vencido.<br />

Ligado ao seu tempo e cultura, independente de estar tratando de assuntos<br />

contemporâneos ou não, o historiador exprime esse feixe de condicionamento na<br />

orientação da sua pesquisa e na interpretação que se faz, ou seja, o historiador do<br />

tempo presente permanece honesto ao manifestar suas opções.<br />

Em busca de uma definição para a história do tempo presente, Lacouture<br />

considera que “o imediatista ver-se-ia tentado a sugerir que a disciplina que ele se<br />

esforça por praticar não tem precisamente por objetos essas mudanças, menos ainda<br />

o ‘mudado’ mas sim ‘o mudar’” 32 . A reflexão sobre o domínio da história do tempo<br />

presente leva a um embate com a incerteza. Não apenas porque nunca se conhece<br />

o fim da história, e porque o trabalho com a incerteza trafega no próprio coração<br />

do porvir humano. O estudo do tempo presente deve levar em conta o fato de que<br />

o observador é ao mesmo tempo um contemporâneo e até um ator. Essa subjetividade<br />

é necessária a toda curiosidade, mesmo a científica. O papel do historiador,<br />

sobretudo o imediatista é ativo, dinâmico, interativo. A construção do objeto está<br />

intimamente ligada a narrativa histórica.<br />

É necessário destacar a criação dos primeiros Comitês Brasileiros de Anistia<br />

em 1978, apesar que as lutas travadas em prol da Anistia foram criadas no momento<br />

em que a repressão se intensificou com a edição do Ato Institucional nº 5, em 1968.<br />

Os comitês foram idealizados por familiares dos presos políticos, o movimento operário,<br />

o estudantil e alguns parlamentares no Congresso Nacional. Foram organizadas<br />

manifestações públicas, sempre com forte repressão.<br />

Portanto, é necessário perceber as ações dos brasileiros em prol da anistia e o<br />

viés repressor do governo brasileiro, ao investigar, espionar e perseguir os exilados<br />

31 Essa obra foi escrita vários anos depois da sequência dos fatos estudados, e apresenta o extraordinário interesse<br />

não apenas visto e revisto, mas vivido e criado.<br />

32 Ibidem, p. 230-231.<br />

90


asileiros, sobretudo da Argentina. Jornalistas, advogados, professores com ampla<br />

pesquisa e produção acadêmica foram alvos certeiros da repressão, por significarem,<br />

para a Ditadura, lideranças natas que poderiam modificar o status quo do sistema<br />

autoritário estabelecido.<br />

Esse trabalho se propôs a discutir e apresentar algumas maneiras de perseguição<br />

e repressão aos brasileiros no exterior, e como tais práticas produziram a apatia<br />

e impossibilidade de se questionar tais ações arbitrárias, por algum motivo que se<br />

remete ao medo e ao terror. Em um Estado no qual as garantias democráticas estão<br />

cortadas, mesmo que o discurso uniformizador estivesse em defesa da democracia,<br />

ficou inviável exercer o direito de cidadão de brasileiros que sofreram algum tipo<br />

de repressão. Contudo, o silêncio imposto não conseguiu provocar o esquecimento,<br />

apenas abafar as aspirações de pessoas que foram forçadas ao exílio ou se exilaram<br />

voluntariamente por discordar do regime ou por temor de algo de ruim lhes acontecesse.<br />

Tal esquecimento foi e continua a ser combatido através da abertura dos<br />

arquivos da repressão na América Latina, sobretudo no Paraguai, onde se encontra<br />

o chamado Arquivo do Terror. Além disso, há necessidade de salientar a importância<br />

das memórias subalternas, periféricas e fora do círculo daquilo que é considerado<br />

oficial, para o entendimento desse período nefasto recente de nossa sociedade. Os<br />

projetos do “Nunca Mais” não são revanchismos, como alguns querem crer, mas<br />

apenas a necessidade de reparação e justiça e, sobretudo, educar as gerações posteriores<br />

ao regime contra-insurgente que se instaurou no Brasil e no Cone Sul entre as<br />

décadas de 1960 e 1980.<br />

Tais incursões não esgotam as discussões a respeito do assunto. Aliás, o empreendimento<br />

se configura como início de uma pesquisa que deve seguir adiante,<br />

com intuito de analisar o caráter repressivo do regime militar do Brasil, instaurado<br />

em 1964, dentro e fora do país. Nesse sentido, foi fundamental apresentar o cotidiano<br />

de brasileiros que, mesmo afastados do seu país e de seus familiares, não se distanciaram<br />

dos seus ideais e nem deixaram de contestar um regime militar que ultrapassou<br />

as fronteiras nacionais e alcançou os brasileiros exilados, através dos serviços<br />

de informações do Brasil. Foi importante também debruçar-se sobre as memórias<br />

daqueles que sofreram a repressão, por entender a importância delas na construção<br />

de um viés diferente sobre o tema, muitas vezes pouco lembrado e valorizado por<br />

alguns setores da sociedade brasileira atual. Com isso, levantar questões da memória<br />

oficial brasileira permite a elucidação do que foi esse momento conturbado na conjuntura<br />

política do nosso país – a formação dos partidos atuais, a atuação da geração<br />

passada na redemocratização e as consequências para os dias atuais.<br />

91


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

92<br />

REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). 2ª edição.<br />

Petrópolis: Editora Vozes, 1984.<br />

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em: http://www.espacoacademico.com.br. Acesso em: 08 de agosto de 2009.<br />

CUESTA, Josefina. Historia del presente. Madrid: EUDEMA, 1993.<br />

DUHALDE, Eduardo Luis. El Estado Terrorista Argentino. Quince años después, uma<br />

mirada crítica. Buenos Aires: Ed. Universitaria de Buenos Aires, 1999<br />

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Ed. Centauro, 2004.<br />

JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memória. Madrid: Siglo XXI. 2002.<br />

LACOUTURE, Jean. A História Imediata. In: Le Goff, Jacques (org). A História<br />

Nova. São Paulo : Martins Fontes, 1990, p. 215.<br />

MARINI, Ruy Mauro. Memória (auto biografia). Disponível em: http://www.mariniescritos.unam.mx.<br />

Acesso em: 08 de Agosto de 2009.<br />

MENDONçA, Eliana Rezende Furtado de. Documentação da Polícia Política do Rio de<br />

janeiro. In Estudos Históricos. Rio de Janeiro: FGV vol. 12, n. 22, 1998. Disponível<br />

em: http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/253.pdf Acesso em 18.11.2005.<br />

POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro,<br />

vol.2, nº 3, 1989.<br />

SARLO, Beatriz. Tempo Passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo : Companhia<br />

das Letras, UFMG, 2007.<br />

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1975. Arquivo do Ministério das Relações Exteriores (AMRE).<br />

______. Informes nº 001 a 522. v.24. Ano: 1976. Arquivo do Ministério das Relações<br />

Exteriores (AMRE).<br />

KOUTZII, Flávio. A luta contra a ditadura. Porto Alegre, RS. Entrevista da TVE.<br />

(DVD) Setembro/ 2003 – Acervo de luta contra a ditadura.


LM, 2006. Entrevista concedida ao autor no dia 07 de abril de 2006. Gravação digital.<br />

NATIONAL SECURITY ARCHIVE. New declassified details on repression and U.S.<br />

support for military dictatorship. Disponivel em: http://www.gwu.edu. Acesso em: 07<br />

de Agosto de 2009.<br />

93


3<br />

esCrAvidão:<br />

trAbAlho, resistênCiA<br />

e liberdAde


A orgAnizAção do trAbAlho esCrAvo<br />

nAs ChArqueAdAs Pelotenses nA segundA<br />

MetAde do séCulo xix<br />

Bruno Stelmach Pessi*<br />

Resumo: O artigo apresentado pretende analisar a organização do trabalho escravo nas charqueadas<br />

pelotenses na segunda metade do século XIX, procurando entender a manutenção da escravidão<br />

após o fim do tráfico trasnatlântico. Para tal, é essencial inserir-se no debate com a obra de<br />

Fernando Henrique Cardoso, Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional. Através de estudo empírico,<br />

basicamente em inventários de charqueadores, mostramos que a lógica do trabalho escravo nas charqueadas<br />

buscava melhor organização da produção, contrariamente à irracionalidade e ao “regime do<br />

desperdício” proposta por Cardoso. Assim, a permanência do trabalho escravo nas charqueadas mesmo<br />

após o fim do tráfico e o progressivo encarecimento dos cativos segue uma racionalidade que visava<br />

permitir condições para o seu melhor aproveitamento, o que proporcionaria a amortização ao longo de<br />

maior tempo da inversão inicial feita pelos charqueadores.<br />

Palavras-chave: Escravidão – Charqueada – Organização do trabalho escravo.<br />

Rever as concepções tradicionais de estudiosos do passado é um dos<br />

objetivos do estudo da História. Afinal de contas, a História é escrita<br />

e re-escrita, as interpretações sobre o passado são somadas umas às<br />

outras, reforçando ou revisando os argumentos e construções em diversas áreas do<br />

conhecimento histórico. Quanto à escravidão, não é diferente. Através de uso de<br />

novas fontes e metodologias, diversos historiadores se propuseram e continuam se<br />

propondo a questionar a constituição tradicional da instituição escravista. O trabalho<br />

aqui apresentado pretende debater com uma visão já clássica da escravidão no<br />

Rio Grande do Sul, a saber, a obra de Fernando Henrique Cardoso “Capitalismo e<br />

escravidão no Brasil Meridional”¹, especialmente no que se refere à racionalidade e<br />

produtividade do trabalho escravo nas charqueadas pelotenses. Para isso, partiremos<br />

* Mestrando em História Social pela USP. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo<br />

(FAPESP).<br />

¹ CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional. 2ª. Edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra,<br />

1977.<br />

97


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

de resultados obtidos em um estudo anterior² e procuraremos avançar – com a utilização<br />

de três registros de compra e venda de charqueadas - no entendimento da<br />

viabilidade ou não da escravidão nessa atividade tão importante para a aproximação<br />

econômica da província com os grandes centros do país.<br />

Ao estudarmos os impactos do fim do tráfico na charqueada e na sua escravaria,<br />

observamos que houve dificuldade na manutenção dos grandes plantéis existentes<br />

no período anterior a 1850. Vimos que em 1870, os charqueadores investiam<br />

parcelas semelhantes às aplicadas em escravos no fim da década de 1840, mas que,<br />

por outro lado, o número médio de cativos sofreu um decréscimo de quase 50%<br />

entre os dois períodos (de 80 para 43 escravos por charqueador). Ou seja, se houve a<br />

possibilidade dos charqueadores manterem os investimentos voltados para aquisição<br />

de escravos o mesmo não ocorre quando observamos o tamanho dos plantéis. De<br />

fato, o que observamos foi que o valor dos plantéis teve um aumento considerável,<br />

impulsionado pela valorização do preço médio dos escravos ocorrida após 1850³.<br />

Também pudemos observar que essa dificuldade obrigou aos charqueadores a racionalizarem<br />

o investimento em escravos, adquirindo mais escravos do sexo masculino.<br />

Se houve uma dificuldade tão grande de manutenção dos grandes plantéis,<br />

como explicar a permanência da escravidão nas charqueadas depois de 1850? Robert<br />

Slenes 4 propôs a mesma pergunta ao observar a expansão dos cafezais e das compras<br />

de escravos pelos fazendeiros do Vale do Paraíba na segunda metade do século XIX<br />

mesmo frente a uma realidade que, desde o estudo de Stanley Stein 5 , parecia de decadência<br />

após os anos 1860 com o envelhecimento dos cafezais, falta de terras virgens,<br />

encarecimento dos escravos e dos custos de manutenção dos mesmos, redução de<br />

compra de cativos e venda dos que existiam na região para novas áreas cafeeiras.<br />

Inspirados no trabalho do citado autor, nos perguntamos: será que a insistência dos<br />

charqueadores na manutenção do trabalho escravo era fruto da permanência de uma<br />

mentalidade pré-capitalista, do apego a valores patriarcais? Ou o trabalho escravo<br />

poderia ser rentável mesmo com o encarecimento do preço dos cativos?<br />

98<br />

***<br />

² PESSI, Bruno Stelmach. O impacto do fim do tráfico na escravaria das charqueadas pelotenses (C. 1846-C. 1874). (Monografia<br />

de Conclusão de Curso de Graduação). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio<br />

Grande do Sul, Porto Alegre, 2008.<br />

³ Ibidem, p. 28 et. seq.<br />

4 SLENES, Robert. Grandeza ou decadência? O mercado de escravos e a economia cafeeira da província do Rio de<br />

Janeiro, 1850-1888. In: DA COSTA, Iraci del Nero (Org.). Brasil: História econômica e demográfica. São Paulo: Instituto<br />

de Pesquisas Econômicas, 1986, pp.103-155.<br />

5 STEIN, Stanley J. Vassouras: a Brazilian Coffee Coutry, 1850-1900. Cambridge, Massachusetts, 1957.


Antes de entrarmos no debate central deste artigo, é necessário observar a<br />

importância do trabalho de Fernando Henrique Cardoso para a compreensão da<br />

escravidão no Rio Grande do Sul, as suas inovações e os argumentos com os quais<br />

procuraremos dialogar. Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional, publicado inicialmente<br />

em 1962, foi um marco para a compreensão da escravidão no Rio Grande do<br />

Sul. É através desse estudo que a sociedade gaúcha passa a ser compreendida como<br />

essencialmente escravista, contrariamente à dita democracia racial postulada por autores<br />

como o General Borges Fortes, Walter Spalding e Moysés Vellinho. A perspectiva<br />

desses autores, que dominava a historiografia sobre o tema no Rio Grande do<br />

Sul, afirmava que os escravos tiveram um papel marginal na construção da sociedade<br />

e economia da região e mesmo que o tratamento concedido a eles pelos escravistas<br />

era bem generoso, tratando-se uns aos outros como iguais.<br />

É a partir de Fernando Henrique Cardoso que a sociedade gaúcha passa a ser<br />

encarada como potencialmente escravista, onde a escravidão negra teve participação<br />

fundamental para a economia, principalmente na região charqueadora. O autor<br />

questionou a imagem do Rio Grande do Sul formado essencialmente por uma economia<br />

de criação de gado nas estâncias, atribuindo a formação da Província a uma<br />

economia agropastoril, sendo a lavoura, atividade complementar à estância. Nessas<br />

lavouras e estâncias, a mão-de-obra utilizada era a escrava. Apesar disso, “não deve<br />

ter havido concentração de escravos nas mãos de poucos agricultores poderosos” 6<br />

por não haver um tipo de atividade compensadora para a importação de mão-deobra.<br />

Foi com a lavoura de trigo que a acumulação de capital possibilitou a aquisição<br />

de escravos em larga escala e a articulação da Província com outras áreas coloniais:<br />

“logo que a agricultura proporcionou-os [recursos monetários para aquisição de<br />

mão de obra], o problema da mão-de-obra pôde ser resolvido pela importação de<br />

escravos” 7 . Mas o cultivo do trigo, para Cardoso, não explica a grande população de<br />

escravos no Rio Grande do Sul, que seria conseqüência da expansão da estância e da<br />

produção do charque 8 .<br />

Quanto à produção do charque, o autor abordou o trabalho escravo nas charqueadas<br />

em contraposição ao trabalho livre nos saladeros platinos e a concorrência<br />

implicada por essa empresa capitalista à produção escravista no sul do Brasil. Segundo<br />

o autor, o trabalho escravo nas charqueadas do Rio Grande do Sul comparativamente<br />

com a produção do charque no Uruguai onde o trabalho era livre, apresentava<br />

6 CARDOSO, Op. cit, p. 54.<br />

7 Ibidem., p. 59.<br />

8 Como vimos anteriormente, essa imagem da charqueada como única atividade compensadora para a importação<br />

de mão-de-obra africana já foi refutada por estudos mais recentes que demonstram a importância da escravidão em<br />

outras atividades que não a charqueadora. Ver nota de número 4.<br />

99


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

menor produtividade e um custo mais elevado de produção 9 . A economia escravocrata<br />

imporia certos limites à racionalização da produção que, em uma produção<br />

sazonal como a do charque, onde o trabalho dos escravos teria que ser ocupado em<br />

alguma forma de produção para mantê-los ativos e proporcionar uma “ilusão do trabalho”,<br />

quando enfrentadas com a concorrência de uma produção nos moldes capitalistas<br />

levariam ao fracasso inerente da produção escravocrata. Segundo o autor, de<br />

forma a ocupar os escravos ao máximo, “o senhor de escravos interessava-se antes<br />

por ocupar sempre o escravo do que por ocupá-lo melhor, ou mais produtivamente”<br />

10 , estabelecendo dessa forma um “regime do desperdício”.<br />

Dessa forma, alguns trabalhos eram executados tardiamente, para serem<br />

executados por todos os escravos. Fazendo-os trabalhar em todos os setores do<br />

processo produtivo, não haveria momento em que os cativos não estivessem dedicados<br />

ao trabalho, fosse ele no abate do gado, na secagem do couro, no embarque<br />

dos produtos, ou em outras atividades, acarretando no desperdício de tempo em<br />

relação ao processo produtivo, mas fazendo com que o trabalho do escravo fosse<br />

despendido ao longo de todo o processo. Assim, não haveria incentivo à divisão e<br />

organização do trabalho, já que tais melhoramentos técnicos implicariam na redução<br />

do trabalho e na possibilidade de não ocupação do escravo permanentemente,<br />

criando momentos de ociosidade, seja nos meses fora do calendário de produção do<br />

charque, seja durante o processo produtivo. É dessa forma que, segundo Fernando<br />

Henrique Cardoso, a escravidão não seria compatível com a charqueada e que seria<br />

a principal responsável pela sua decadência.<br />

Contrariamente ao postulado por Fernando Henrique Cardoso e outros autores,<br />

de que a escravidão seria um obstáculo insuperável para o desenvolvimento<br />

do capitalismo e um sistema produtivo destinado ao fracasso, já que o regime escravocrata<br />

impediria a divisão técnica do trabalho e a especialização profissional,<br />

Berenice Corsetti afirma que havia, sim, certo grau de divisão técnica e especialização<br />

nas charqueadas pelotenses. Segundo a autora, “desde as primeiras informações<br />

apresentadas sobre o tipo de organização do trabalho nas empresas charqueadoras<br />

sulinas, é possível perceber, sem dúvida, a existência de certo grau de divisão técnica<br />

do trabalho” 11 . Apesar dessa afirmação, baseada em análise de inventários de charqueadores,<br />

a autora não avança na análise da organização do trabalho escravo nessas<br />

unidades produtivas.<br />

9 CARDOSO, Op. cit, p. 172.<br />

10 Ibidem, p. 180.<br />

11 CORSETTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no século XIX. (Dissertação de Mestrado). Instituto de<br />

Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1983, p. 136.<br />

100


Leonardo Monasterio 12 também critica as afirmações de Fernando Henrique<br />

Cardoso quando afirma que a escravidão seria o fator responsável pela crise da charqueada<br />

no Rio Grande do Sul e o sucesso do charque platino. Utilizando-se de estudos<br />

sobre a produção do charque no Uruguai, Monasterio afirma que o trabalho<br />

livre não seria essencialmente mais rentável do que o trabalho escravo. Segundo o<br />

autor, os mesmos problemas de organização do trabalho, incentivo e controle eram<br />

enfrentados nos dois lados da fronteira. Através da aplicação de modelos econométricos,<br />

o autor procurou analisar a racionalidade da utilização e manutenção da<br />

escravidão na charqueada no que se refere à taxa de retorno esperada da aquisição de<br />

um escravo para utilização na charqueada e à rentabilidade da troca da mão-de-obra<br />

escrava para o trabalho livre. Segundo os resultados da aplicação de tais modelos,<br />

o trabalhado cativo representava para os charqueadores uma forma de, em uma<br />

situação de escassez de mão-de-obra, obter altas taxas de retorno, aproveitando-se<br />

durante muito tempo das condições favoráveis dos mercados e da exploração dos<br />

trabalhadores negros escravos. Finalmente, afirma o autor, a crise da charqueada não<br />

pode ser explicada pela utilização de mão-de-obra cativa, mas pelo boom do café nas<br />

províncias de São Paulo e Rio de Janeiro, que teria valorizado a taxa de câmbio real,<br />

reduzindo a competitividade de outros setores exportadores ou sujeitos à competição<br />

internacional, como o charque. Assim, a crise aconteceu apesar da escravidão e<br />

não por causa dela.<br />

***<br />

Apesar de proporem a revisão de algumas afirmativas de Fernando Henrique<br />

Cardoso a respeito da irracionalidade da produção charqueadora e afirmarem<br />

a possibilidade da melhor organização do trabalho escravo e da especialização dos<br />

trabalhadores, Corsetti e Monastério não sistematizam essa organização. Em um<br />

trabalho anterior 13 , ao nos centrarmos na análise dos impactos do fim do tráfico na<br />

escravaria das charqueadas pelotenses observamos uma racionalização do trabalho<br />

escravo na segunda metade do século XIX. Nesta pesquisa, analisamos 17 inventários<br />

post-mortem de charqueadores, divididos em dois momentos, oito para os anos<br />

compreendidos entre 1846 e 1850 e sete para o período de 1870 a 1874. Com tal<br />

divisão, propomos analisar as transformações nas fortunas dos charqueadores, nos<br />

plantéis de escravos e na organização da charqueada.<br />

12 MONASTERIO, Leonardo Monteiro. FHC errou? A economia da escravidão no Brasil Meridional. In: Anais do<br />

XXXI Encontro anual da Associação Nacional de Pós-Graduação em Economia, 2003. Disponível em: http://www.anpec.<br />

org.br. Acessado em: abril de 2010.<br />

13 PESSI, op. cit. Especialmente, Capítulo III: Os trabalhadores da charqueada – ofício e avaliação. pp. 52-66.<br />

101


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Assim, vimos que entre 1846 e 1850, 224 dos 633 escravos listados nos inventários<br />

post-mortem dos charqueadores apresentam descrições sobre ofícios especializados,<br />

o que representa 35% dos escravos arrolados no período. Entre 1870 e 1874,<br />

330 dos 386 cativos apresentam descrições sobre ofícios, o que representa 85% dos<br />

plantéis. Esse aumento do número de escravos com conhecimento de algum ofício é<br />

impressionante e pode ter sido gerado por dois fatores: uma maior preocupação dos<br />

escrivães com a descrição dos escravos ou ao crescimento real do número de escravos<br />

especializados. Parece-nos mais convincente a segunda hipótese já que, entre as<br />

outras características dos escravos presentes nos inventários (idade e origem, principalmente)<br />

não houve um detalhamento mais significativo nas descrições. Assim,<br />

acreditamos que houve um processo de intensificação da organização do trabalho<br />

escravo nas charqueadas, o que implicou em um maior grau de especialização da<br />

escravaria.<br />

Como mostra o gráfico 1, a intensificação da organização do trabalho escravo<br />

nas charqueadas, apresentada no aumento do número de escravos com especialização,<br />

foi mais acentuada em algumas áreas do processo produtivo. Observamos<br />

que entre os cativos ligados ao serviço da charqueada, houve um grande aumento<br />

da quantidade de escravos especializados enquanto que entre os ofícios ligados ao<br />

serviço do campo e da lavoura e àqueles ligados aos serviços domésticos, houve uma<br />

redução significativa da participação dos escravos entre os dois períodos.<br />

102<br />

Gráfico 1: Participação dos escravos (%) nas categorias ocupacionais<br />

nos dois períodos<br />

Fonte: APERS. Inventários post-mortem. Pelotas<br />

Através do gráfico podemos ver que a maioria dos escravos especializados,<br />

em ambos períodos, está ligada ao serviço da charqueada. Porém, é preciso fazer


uma distinção importante entre os trabalhadores que consideramos prestar o serviço<br />

da charqueada. Dentre todos os ofícios relativos à charqueada, há aqueles ligados<br />

diretamente à produção do charque, ao abate, esquartejamento do animal, retirada<br />

do couro e afins, e há os que estão ligados indiretamente, seja com o transporte ou<br />

com outros ofícios manuais. Diretamente ligados à produção do charque estão os<br />

escravos carneadores, curtidores e serventes, e indiretamente, os responsáveis pelo<br />

transporte (boleeiros, carroceiros e marinheiros), os oleiros dedicados à olaria e os<br />

escravos com ofícios manuais (carpinteiros, calafates, ferreiros, pedreiros).<br />

Dessa forma, como pudemos ver, o trabalho ligado ao charque podia sim<br />

gerar certa divisão e especialização do trabalho. Ao contrário do afirmado por Fernando<br />

Henrique Cardoso 14 , baseado nas descrições de Louis Couty 15 , parece-nos<br />

que havia muito mais do que trabalhadores que se dedicassem somente às operações<br />

anteriores à salga, salgadores e trabalhadores encarregados pelos subprodutos do<br />

charque. Por mais que no processo que se estende do abate do animal até a produção<br />

do charque, couro e graxas, não nos parece haver uma subdivisão mais rigorosa do<br />

trabalho, a presença de escravos nos processos anteriores e posteriores ao citado acima<br />

denota uma importante divisão do trabalho. Também, o caráter bruto do trabalho<br />

escravo, necessário para que o escravo não se anteponha ao senhor, não parece<br />

encontrar apoio nos dados empíricos, visto a alta especialização de alguns escravos,<br />

como os calafates 16 , carpinteiros e ferreiros. A presença de tais escravos mostra que a<br />

lógica da charqueada escravista não era tão irracional como pretendida por Cardoso,<br />

mas procurava certa auto-suficiência, buscando minimizar as necessidades de recorrer<br />

ao mercado, em relação a algumas atividades correlatas à produção do charque.<br />

Essa auto-suficiência se representa também no setor de transportes, com a importante<br />

presença de escravos marinheiros, além dos boleeiros e carroceiros. Também<br />

nessa atividade, essencial para a produção charqueadora, a utilização de mão-de-obra<br />

escrava era importante, contando com a possibilidade de especialização dos trabalhadores<br />

na execução de suas atividades. A preocupação com auto-suficiência da<br />

charqueada em matéria-prima e alimentos está demonstrada na importante participação<br />

dos escravos ligados ao serviço do campo e da lavoura. Estão incluídos nesse<br />

grupo os campeiros, roceiros e os descritos como “serviço da lavoura”.<br />

14 CARDOSO, op. cit., p. 178.<br />

15 A utilização dos relatos de Louis Couty é uma das grandes críticas feitas ao trabalho de Fernando Henrique Cardoso.<br />

Lembramos que Couty foi um naturalista francês que veio para o Brasil na década de 1870, viajando pelo Rio<br />

Grande do Sul entre o final da década de 1870 e o início da década de 1880. O uso indiscriminado dos seus relatos<br />

fez com que Cardoso generalizasse para todo o século XIX a imagem dos últimos anos da charqueada escravista,<br />

cometendo uma série de equívocos.<br />

16 Talvez os escravos calafates (ou “calafeteiros”, como também são apresentados na fonte) possam ser considerados<br />

como o exemplo máximo da especialização do trabalho nas charqueadas. Esses escravos eram, basicamente, carpinteiros<br />

especializados na manutenção das embarcações.<br />

103


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Por último, observamos que os escravos eram ocupados também em diversas<br />

atividades domésticas, principalmente as mulheres. De fato, somente encontramos<br />

mulheres com ofícios entre os escravos do serviço doméstico. Não nos deteremos<br />

de forma muito extensiva na análise desse grupo, mas parece-nos importante enumerar<br />

os ofícios relacionados a essas atividades. Temos alguns escravos vinculados<br />

à costura de panos, os alfaiates, costureiras e tecedeiras, além de sapateiros, o que<br />

indica que também havia preocupação com o sustento da casa em relação ao fornecimento<br />

de roupas para os escravos. O restante era composto por escravos relacionados<br />

ao serviço doméstico, como cozinheiros, lavadeiras, engomadeiras, mucamas,<br />

padeiros, etc.<br />

O elevado crescimento do número de escravos com ofício e principalmente<br />

daqueles ligados ao serviço da charqueada entre os dois períodos estudados é compatível<br />

com a idéia apresentada de racionalização do trabalho escravo nas charqueadas<br />

em um contexto de crise de braços. Tal incremento na organização do trabalho<br />

após o fim do tráfico foi advogado por Jacob Gorender ao estudar as fazendas de<br />

café do oeste paulista na segunda metade do século XIX. Segundo o autor, “com o<br />

braço escravo comprado a preços altíssimos, a poupança da mão-de-obra tornou-se<br />

imperativa. A tecnificação setorial abriu caminho no próprio escravismo brasileiro,<br />

prolongando sua viabilidade econômica” 17 . Dessa forma, parece plenamente racional<br />

que, aliado à melhoria tecnológica da empresa escravista, o incremento da organização<br />

do trabalho escravo visasse à poupança do escravo cada vez mais caro, a<br />

fim de perpetuar a utilização de sua força de trabalho. Além disso, cabe fazer alguns<br />

apontamentos sobre a importante questão da divisão técnica do trabalho escravo na<br />

década de 1870. Se entre 1846 e 1850, os ofícios referentes ao serviço da charqueada<br />

se resumiam em nove especializações diferentes, na primeira metade da década<br />

de 1870 temos, além do aparecimento de cinco novas especialidades, a presença de<br />

graus de conhecimento do ofício, tais como aprendizes e mestres. Entre os ofícios<br />

que constam na documentação desse período e que não constavam anteriormente,<br />

encontramos correeiros, descarnadores, graxeiros, salgadores e tanoeiros, desaparecendo<br />

dos inventários os carroceiros, curtidores e oleiros. O que chama a atenção<br />

é a maior divisão do processo de abate e esquartejamento do gado e salga da carne,<br />

demonstrado pela presença, além dos carneadores e serventes, de descarnadores<br />

e salgadores. Assim, enquanto os carneadores eram os responsáveis pelo abate e<br />

esquartejamento do animal, os descarnadores separavam ossos, peles e couros e os<br />

salgadores ficavam responsáveis pela última etapa do processo, a salga e empilhamento<br />

da carne.<br />

17 GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Editora Ática, 1980. P. 563.<br />

104


Também se mostrou interessante o fato de que, no segundo período da nossa<br />

análise, encontramos entre os escravos especializados, quatro aprendizes de carneador<br />

e um tanoeiro mestre. Apesar de pouca freqüência de tal tipo de descrição,<br />

isso nos indica que existiam graus de especialização mais vastos do que o simples<br />

conhecimento de ofícios variados, havendo investimento e uma rede de aprendizado<br />

entre os escravos dos charqueadores do período analisado. Assim, o estudo empírico<br />

nos inventários post-mortem nos mostra que as possibilidades de especialização do<br />

trabalho escravo nas charqueadas eram variadas e foram se intensificando ao longo<br />

da segunda metade do século XIX, contrariamente do postulado por Fernando<br />

Henrique Cardoso.<br />

A partir dos dados acima expostos, podemos rever a posição de Fernando<br />

Henrique Cardoso quando afirma que não haveria interesse dos charqueadores em<br />

ocupar os escravos de forma mais produtiva, não investindo na especialização dos<br />

cativos e fazendo com que os mesmos trabalhassem em todos os setores do processo<br />

produtivo. Empiricamente, a presença de um grande número de escravos com<br />

ofícios especializados nos mostra que essa ocupação de todos os cativos ao mesmo<br />

tempo em uma única atividade não ocorria. Existiam, assim, escravos altamente<br />

especializados que se dedicavam a só uma atividade do processo produtivo, sendo<br />

ensinado a fazer aquele trabalho específico. Claro que a grande presença de “serventes”<br />

pode ser uma referência que esses escravos eram alocados conforme a necessidade<br />

da produção, mas não nos parece que o trabalho especializado seja tão<br />

contraditório ao regime escravocrata. Houve, sim, a necessidade e o investimento<br />

dos charqueadores na organização do trabalho em diversas esferas da produção, que<br />

foi crescente ao longo do período estudado nessas páginas. Dessa forma tendemos<br />

a acreditar ser possível que, como afirma Stuart Schwartz, a existência de hierarquias<br />

e especializações na produção se tornavam formas de incentivar a produção e a diferenciação<br />

dos escravos, algo semelhante a promoções entre os melhores cativos,<br />

havendo assim possibilidade de salários e recompensas para os escravos mais especializados<br />

18 . Além disso, a lógica escravista para a segunda metade do século XIX<br />

parece visar a economia - entendida como a melhor utilização - do trabalho escravo.<br />

***<br />

Neste mesmo estudo, ao compararmos os valores dos escravos entre os dois<br />

períodos, observamos um importante encarecimento dos mesmos. É importante<br />

18 SCHWARTZ, Stuart. Trabalho e cultura: vida nos engenhos e vida dos escravos. In: Escravos, roceiros e rebeldes.<br />

Bauru: Edusc, 2001. P. 96 et. seq.<br />

105


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

ressaltar que não estamos lidando com o preço de compra e venda dos cativos,<br />

mas o valor de avaliação dos mesmos nos inventários post-mortem que podem não<br />

representar o valor de mercado do cativo, mas com certeza se regulam através dele.<br />

As avaliações dos bens arrolados nos inventários eram feitas por “especialistas”,<br />

pessoas que tivessem conhecimento dos bens a serem avaliados e que pudessem<br />

seguir uma “geral estimação” dos preços. Os inventários do período que se estende<br />

dos anos 1846 a 1850 nos indicam que a média geral da avaliação dos escravos é alta:<br />

aproximadamente 451$690, maior entre os homens (468$822) do que entre as mulheres<br />

(400$000). Já entre 1870 e 1874, o valor médio dos escravos é surpreendente,<br />

cerca de 1:065$000. Surpreendente também se compararmos a relação entre os valores<br />

dos homens e das mulheres. Os valores médios entre cativos do sexo masculino<br />

foram de 1:122$500 enquanto que entre as mulheres foram de 682$600 (61% do<br />

valor médio dos escravos do sexo masculino).<br />

Como a tabela 1 nos mostra, a variação do valor da avaliação entre os homens<br />

foi muito maior do que entre as mulheres nos 20 anos que separam os períodos<br />

estudados. Enquanto entre os homens, a variação foi de 239%, entre as mulheres<br />

foi de 173%. Podemos observar que o acesso aos escravos do sexo masculino se<br />

tornou dificultoso para os charqueadores, mas que mesmo assim, grande parte do<br />

investimento na compra de cativos se direcionava para esse grupo 19 . Novamente, a<br />

racionalização e a melhor organização do trabalho escravo nas charqueadas, visando<br />

a “poupança” de mão-de-obra, representam soluções para compensar o alto custo<br />

de aquisição de cativos após o fim do tráfico.<br />

106<br />

Tabela 1: Variação dos preços médios dos escravos<br />

Fonte: APERS. Inventários post-mortem. Pelotas.<br />

Se observarmos a variação da avaliação dos escravos especializados e nãoespecializados,<br />

percebemos um movimento semelhante. Obviamente, os valores dos<br />

cativos especializados são mais elevados do que os sem ofício, conforme nos mostra a<br />

tabela 2. De forma geral, os valores dos homens e dos cativos com ofícios variam semelhantemente.<br />

O mesmo ocorre entre as mulheres e os cativos sem ofício declarado.


Tabela 2: Variação dos preços médios entre escravos com e sem ofício<br />

Fonte: APERS. Inventários post-mortem. Pelotas.<br />

A variação dos valores dos escravos com ofício não foi, contudo, igual em<br />

todos os ofícios. Dos 14 ofícios que se repetem nos dois períodos, em 4 a variação<br />

é menor do que a variação média dos escravos com ofício declarado, tendo uma<br />

valorização expressiva, porém semelhante à dos escravos sem ofício declarado (a<br />

avaliação das costureiras teve um aumento de 180%; das lavadeiras, 154%; dos serventes,<br />

142%; e das declaradas “serviços domésticos”, 172%). Isso demonstra que<br />

passou a se tornar cada vez mais necessária a especialização dos escravos na produção<br />

do charque. Essa capacidade de desenvolver uma atividade específica gerando<br />

economia e melhor qualidade do trabalho estava “calculada” no valor do escravo e<br />

tornava-o mais bem cotado em relação aos outros.<br />

Também utilizamos as avaliações dos inventários para analisar o valor dos<br />

cativos em relação à idade, o que nos mostrou quais eram os grupos etários mais<br />

envolvidos com a produção. Entende-se assim que, ao tratarmos o grupo de escravos<br />

dos períodos estudados, a variação de preços ao longo de cada período é essencialmente<br />

um indicativo da capacidade produtiva dos mesmos. Logo, aquele cativo<br />

em idade produtiva e com boa saúde valeria mais do que um cativo muito jovem ou<br />

muito velho para o trabalho, ou mesmo adoentado. Elaboramos o gráfico 2 procurando<br />

entender a variação do valor dos escravos conforme a idade dos mesmos. O<br />

gráfico representa a variação dos valores médios dos escravos agrupados por idades<br />

a cada cinco anos. Para a análise comparativa, consideramos os valores máximos encontrados<br />

em cada período como 100%, na tentativa de mostrarmos a evolução dos<br />

mesmos em relação ao seu ápice. Os máximos encontrados correspondem à faixa<br />

de 20 a 24 anos no primeiro período (583$000) e à faixa de 25 a 29 aos no segundo<br />

(1:407$000).<br />

107


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

108<br />

Gráfico 2: Evolução do preço dos escravos em relação à idade<br />

Fonte: APERS. Inventários post-mortem. Pelotas.<br />

O que podemos observar do gráfico é que, entre os escravos considerados<br />

crianças, manteve-se uma progressão semelhante nos preços entre os dois períodos.<br />

Entre o momento de nascimento do cativo até os quatro anos, os valores correspondiam<br />

a cerca de 15% dos valores máximos. Entre os 10 e 14 anos o valor do escravo<br />

já representava em torno de 70% do valor de um adulto, situação que está intimamente<br />

relacionada à capacidade produtiva que já era demonstrada por tais cativos<br />

nessa idade. Aos 15 anos o escravo já era um adulto com todas as competências para<br />

o trabalho e o vigor físico necessário para tal. Na faixa de idade dos 15 aos 19 anos,<br />

os escravos já alcançam 85% do valor médio máximo, pertencente aos cativos na<br />

faixa dos 20 aos 24 anos, no período que se estende de 1846 a 1850. Até os 34 anos<br />

esse valor é mais ou menos estável, atingindo pouco menos de 90% do preço máximo,<br />

decaindo de forma constante a partir dos 40 anos. Se as avaliações das crianças<br />

representam um crescimento semelhante entre um período e outro, a variação dos<br />

valores quanto aos escravos em idade adulta nos períodos analisados não apresenta<br />

tantas semelhanças. Nos primeiros quatro anos da década de 1870, o valor de um<br />

escravo entre os 15 e 19 anos representava 95% da média máxima, obtida entre os<br />

escravos com 25 a 29 anos. Se o valor médio do escravo supera os 90% do máximo<br />

antes do que no primeiro período, ele volta a cair abaixo desse patamar mais tar-


diamente, por volta dos 45 aos 49 anos, onde representa 85% do valor máximo e a<br />

partir de então decai de forma mais significativa.<br />

Dessa forma, o que podemos analisar no gráfico acima é que os escravos na<br />

década de 1870 possuem um valor relativamente alto (entre 90% e 100% do valor<br />

médio máximo) ao longo de um período maior da sua vida, dos 15 aos 44 anos, o<br />

que representa uma maior valorização do próprio trabalho desses cativos. O que entendemos<br />

por isso é que, numa lógica econômica própria desse momento, o escravo<br />

se tornava velho – sinônimo de improdutivo, ou menos produtivo – em uma idade<br />

mais avançada em relação ao primeiro período. Tendo isso em mente, parece que a<br />

racionalização do trabalho escravo com o objetivo de economizar além do alto capital<br />

investido, o próprio escravo, na forma de melhor organização e especialização do<br />

trabalho, pôde proporcionar a extensão da idade produtiva e o maior aproveitamento<br />

do cativo ao longo de sua existência.<br />

O que esses dados nos mostram é que houve, pelo menos até a década de<br />

1870, condições de racionalizar o trabalho escravo nas charqueadas pelotenses. Assim,<br />

a permanência da escravidão não representa a permanência de uma “mentalidade<br />

atrasada” ou uma “irracionalidade” como propõe Fernando Henrique Cardoso,<br />

mas um esforço de tornar o trabalho escravo especializado e produtivo, permitindo,<br />

além de uma melhor organização, o aumento da produtividade do próprio cativo.<br />

Dessa forma, além da possibilidade de uma maior organização do trabalho, houve a<br />

adoção de medidas racionalizantes para o trabalho escravo nas charqueadas, necessidade<br />

que se tornou premente devido à crise de mão-de-obra causada pelo fim do<br />

tráfico transatlântico de escravos e o paulatino encarecimento do preço do escravo.<br />

Como forma de compensar a crise e tornar possível a permanência da escravidão<br />

nas charqueadas, a maior especialização dos cativos pode ter sido aliada à inovações<br />

tecnológicas e ao uso cada vez maior de mão-de-obra livre, que não nos atemos a<br />

analisar.<br />

***<br />

Manuseando os livros notariais do tabelionato de Pelotas, encontramos três<br />

contratos de compra e venda de charqueadas. Entre os bens comercializados junto<br />

ao estabelecimento, nos três casos, houve a venda de grandes quantidades de escravos.<br />

As escrituras públicas de compra e venda são documentos que mostram a transação<br />

comercial de algum bem, onde estavam envolvidos compradores, vendedores<br />

e testemunhas. Denominava-se uma escritura porque era realizada por um tabelião<br />

e era registrada em livros cartoriais; era também pública porque estava sob controle<br />

do Estado, escrita por um burocrata imperial; e, finalmente, era uma compra e venda<br />

109


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

porque tinha o fim de transacionar de forma legal qualquer bem: casas, terras, móveis,<br />

escravos etc. Assim, este documento produzido durante o século XIX com o<br />

objetivo de tornar público e legal as relações comerciais e também com o fim de evitar<br />

problemas de embargo e herança, torna-se privilegiado para entender a dinâmica<br />

comercial de escravos, já que apresenta informações relevantes sobre os tramites da<br />

obtenção de cativos na época. É importante destacarmos que havia outras formas,<br />

que não com o registro legal, para obtenção de cativos. Os dados coletados para<br />

esta pesquisa foram extraídos de escrituras de compra e venda de escravos, documentos<br />

notariais. Infelizmente, a grande dificuldade observada ao utilizarmos essa<br />

fonte nesse estudo é justamente a pouca freqüência desse tipo de registro nos anos<br />

selecionados.<br />

O primeiro registro que encontramos foi a venda de uma charqueada com<br />

55 escravos que Cipriano Rodrigues Barcellos fez a Cândido Antônio Barcellos e<br />

Irmãos em primeiro de dezembro de 1860 20 . É interessante observar que, dos 49 escravos<br />

do sexo masculino vendidos, apenas sete não tinham nenhum ofício declarado.<br />

Entre os 16 ofícios citados, os mais freqüentes eram carneador (11), carpinteiro<br />

(6) e servente (6). O preço acertado entre as partes foi de 1:400$000 por escravo, valor<br />

bem elevado se comparado com a média das avaliações feitas nos inventários utilizados<br />

anteriormente, mas próximo dos valores médios de carneadores (1:341$758)<br />

e descarnadores (1:400$000) presentes nos mesmos.<br />

Em 29 de novembro de 1875, Manoel Mathias da Terra Velho, morador de<br />

Rio Grande, registra a venda de uma charqueada com 25 escravos para Joaquim Rodrigues<br />

da Silva e Antônio Joaquim da Silva Maia 21 . Nesta transação também encontramos<br />

uma maioria de escravos com ofício declarado: somente cinco não o tinham.<br />

Entre os ofícios mais freqüentes, encontramos carneador (10), oleiro (3) e marinheiro<br />

(3). Foi ajustado o valor de 35:000$000 pela transação, 1:400$000 por cativo.<br />

O último registro de compra e venda que utilizaremos foi feito em nove de<br />

fevereiro de 1882. Junto à charqueada, são vendidos pela Firma Evaristo e Gonçalves<br />

ao Comendador Possidonio Mâncio da Cunha 22 34 cativos, entre carneadores<br />

e serventes. Neste registro não há nenhum escravo sem ofício, apenas um escravo<br />

declarado “serviços domésticos”. O valor, porém, não demonstra semelhança<br />

com os casos anteriores: 19:000$000 pela compra de 34 escravos (aproximadamente<br />

560$000 por escravo). É preciso lembrar que na década de 1880 a escravidão já estava<br />

nos seus momentos finais: as leis Eusébio de Queirós e Rio Branco estancaram as<br />

20 APERS. Pelotas, I Tabelionato, Livro 9 (1860 – 1864), fl. 105r.<br />

21 APERS. Pelotas, II Tabelionato, Livro 16 (1875 – 1876), fl. 17r.<br />

22 APERS. Pelotas, II Tabelionato, Livro 18 (1881 – 1882), fl. 194v.<br />

110


duas fontes de aquisição de novos trabalhadores escravizados, o tráfico transatlântico<br />

e a reprodução interna de escravos. Talvez, pelo valor da negociação, já houvesse<br />

nesta década a consciência do fim inerente da escravidão, mas não é esse o aspecto<br />

que procuramos chamar atenção neste texto.<br />

O que buscamos na análise desses registros de compra e venda não é a relação<br />

entre oferta/procura de escravos ou a intensidade do comércio. Apenas três registros<br />

não dariam conta de perceber toda a dinâmica comercial da localidade. Procuramos,<br />

sim, constituir, através de uma outra fonte que não os inventários, o espaço<br />

produtivo da charqueada no período estudado e compará-lo com as características<br />

evidenciadas no estudo dos inventários. Com o uso dos registros de compra e venda,<br />

percebemos que o valor agregado à especialização do escravo estava presente não<br />

só nas avaliações em inventários, mas também no preço utilizado em transações<br />

comerciais envolvendo cativos especializados. Além disso, podemos ver a proeminência<br />

dos escravos com ofícios frente aqueles sem ofício, tendência que, como já<br />

destacamos, se acentuou após 1850.<br />

***<br />

Voltando à questão que nos propusemos anteriormente, por que os charqueadores<br />

teriam continuado, então, a investir em escravos na década de 1870? Por que<br />

foram registradas compras de charqueadas com quantidades consideráveis de escravos<br />

se, além do encarecimento tão significativo da aquisição de cativos, o trabalho<br />

escravo nas charqueadas não era economicamente racional? Talvez pela própria inexistência<br />

ou insuficiência de um mercado local de trabalhadores livres, mas com certeza,<br />

pela existência de condições de melhoramento da produtividade e organização<br />

do trabalho escravo nas charqueadas. Esses melhoramentos da produtividade, aqui<br />

referenciados essencialmente na melhor organização do trabalho escravo, podem ter<br />

se aliado a melhoramentos tecnológicos como máquinas a vapor, entre outros.<br />

Compreendemos assim que a permanência do trabalho escravo nas charqueadas<br />

mesmo após o fim do tráfico e o progressivo encarecimento da aquisição de<br />

cativos segue uma racionalidade que visava permitir condições para o seu melhor<br />

aproveitamento, o que proporcionaria a amortização ao longo de maior tempo da<br />

inversão inicial feita pelos charqueadores. Assim, até pelo menos a década de 1880,<br />

quando o próprio fim da escravidão já parecia uma possibilidade real para os escravistas,<br />

o investimento no trabalho escravo não parecia para os charqueadores a<br />

permanência de um atraso frente a utilização de mão-de-obra livre, mas possibilitava<br />

condições de expansão e maior organização do trabalho, o que poderia tornar o<br />

escravo mais produtivo e inclusive, mais rentável.<br />

111


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

112<br />

FONTES UTILIZADAS<br />

Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul<br />

Acervo dos Tabelionatos<br />

I Tabelionato, Pelotas, Livros Notariais de Transmissão e Notas, Livro 9 (1860 –<br />

1864), fl. 105r.<br />

II Tabelionato, Pelotas, Livros Notariais de Transmissão e Notas, Livro 16 (1875 –<br />

1876), fl. 17r.<br />

II Tabelionato, Pelotas, Livros Notariais de Transmissão e Notas, Livro 18 (1881 –<br />

1882), fl. 194v.<br />

Acervo do Judiciário<br />

INVENTÁRIO de Jerônimo José Coelho. Pelotas, n° 6, cx. 101, I Vara Cível, 1846.<br />

INVENTÁRIO de Emerencia Maria Teixeira. Pelotas, n° 4, cx. 18, II Vara Cível,<br />

1847.<br />

INVENTÁRIO de José Pereira de Sá Peixoto. Pelotas, n° 276, cx. 396, Vara de Família,<br />

Sucessão e Provedoria, 1847.<br />

INVENTÁRIO de Maria Angélica Barbosa. Pelotas, n° 286, cx. 397, Vara de Família,<br />

Sucessão e Provedoria, 1847.<br />

INVENTÁRIO de Francisca Alexandrina de Castro. Pelotas, n° 293, cx. 397, Vara<br />

de Família, Sucessão e Provedoria, 1848.<br />

INVENTÁRIO de Joaquina Maria da Silva. Pelotas, n° 304, cx. 398, Vara de Família,<br />

Sucessão e Provedoria, 1849.<br />

INVENTÁRIO de Teresa da Silva Santos d’Oliveira. Pelotas, n° 310, cx. 398, Vara<br />

de Família, Sucessão e Provedoria, 1849.<br />

INVENTÁRIO de Dignatário José Rodrigues Barcellos. Pelotas, n° 15, cx. 101, I<br />

Vara Cível, 1850.<br />

INVENTÁRIO de Silvana Claudina Belchior. Pelotas, n° 727, cx. 422, Vara de Família,<br />

Sucessão e Provedoria, 1870.<br />

INVENTÁRIO de Cipriano Joaquim Rodrigues Barcellos. Pelotas, n° 02, cx. 510, II<br />

Vara de Família, 1870.


INVENTÁRIO de Felisbina Silva Antunes. Pelotas, n° 68, cx. 103, I Vara Cível, 1871.<br />

INVENTÁRIO de Laurinda da Silva Guimarães. Pelotas, n° 71, cx. 20, II Vara Cível,<br />

1871.<br />

INVENTÁRIO de Carlota Batista Teixeira. Pelotas, n° 733, cx. 423, Vara de Família,<br />

Sucessão e Provedoria, 1871.<br />

INVENTÁRIO de Antônio José Gonçalves Chaves. Pelotas, n° 754, cx. 424, Vara<br />

de Família, Sucessão e Provedoria, 1872.<br />

INVENTÁRIO de Maria Luiza Chaves. Pelotas, n° 770, cx. 424, Vara de Família,<br />

Sucessão e Provedoria, 1872.<br />

INVENTÁRIO de Matildes Vinhas Lopes. Pelotas, n° 775, cx. 425, Vara de Família,<br />

Sucessão e Provedoria, 1873.<br />

INVENTÁRIO de Luiz Teixeira Barcelos. Pelotas, n° 777, cx. 425, Vara de Família,<br />

Sucessão e Provedoria, 1873.<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional. 2ª ed.<br />

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.<br />

CORSETTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no século XIX. (Dissertação<br />

de Mestrado). Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal<br />

Fluminense, Niterói, 1983<br />

GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Editora Ática, 1980.<br />

MONASTERIO, Leonardo Monteiro. FHC errou? A economia da escravidão no<br />

Brasil Meridional. In: Anais do XXXI Encontro anual da Associação Nacional de Pós-<br />

Graduação em Economia, 2003. Disponível em: http://www.anpec.org.br. Acessado<br />

em: abril de 2010.<br />

PESSI, Bruno Stelmach. O impacto do fim do tráfico na escravaria das charqueadas pelotenses<br />

(C. 1846-C. 1874). (Monografia de Conclusão de Curso de Graduação). Instituto de<br />

Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto<br />

Alegre, 2008.<br />

SCHWARTZ, Stuart B. Trabalho e cultura: vida nos engenhos e vida dos escravos.<br />

In: Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: Edusc, 2001<br />

SLENES, Robert. Grandeza ou decadência? O mercado de escravos e a economia<br />

cafeeira da província do Rio de Janeiro, 1850-1888. In: DA COSTA, Iraci del Nero<br />

(Org.). Brasil: História econômica e demográfica. São Paulo: Instituto de Pesquisas Econômicas,<br />

1986, pp.103-155.<br />

113


uMA eConoMiA esCrAvistA? APontAMentos sobre A<br />

PoPulAção e A estruturA de Posse de esCrAvos eM<br />

Porto Alegre (1779-1792)<br />

Luciano Costa Gomes¹<br />

Resumo: Este trabalho aborda a configuração da população e a estrutura de posse de escravos<br />

de Porto Alegre e suas mudanças entre os anos de 1779 e 1792. As fontes utilizadas são os róis de<br />

confessados de Porto Alegre de 1779, 1782 e 1792 e o mapa de população de 1780. Averiguamos que<br />

o crescimento populacional então verificado teve como principal fator o aumento do número de escravos<br />

e agregados. Este é um dado significativo se atentarmos para o fato de que o período em foco se<br />

caracterizou por expressivo crescimento econômico na Capitania do Rio Grande. Verificamos também<br />

que mais da metade dos domicílios listados apresentava posse de escravo e que, destes, predominaram<br />

aqueles com poucos escravos. Os dados encontrados apontam para a possibilidade de caracterizar a<br />

economia porto-alegrense de escravista.<br />

Palavras-chave: Escravidão – Porto Alegre – População – Estrutura de posse de escravos.<br />

INTRODUçãO<br />

Neste estudo, pretendemos analisar a configuração e mudança da<br />

população de Porto Alegre de fins do século XVIII a partir dos<br />

róis de confessados. O rol de confessados é uma fonte de origem<br />

eclesiástica na qual se registrava a participação dos cristãos de uma localidade nos<br />

sacramentos oferecidos pela Igreja no período da quaresma. Nesse sentido, ao se<br />

considerar que praticamente todos os moradores da Freguesia de Porto Alegre eram<br />

católicos, podemos entender os róis como um censo da mesma população. Nele, as<br />

pessoas são agrupadas a partir do fogo² em que residiam, o que nos permite observar<br />

a variada composição dos núcleos familiares e, especialmente quando contamos<br />

com escravos e agregados, das unidades produtivas. Contamos com os róis de 1779<br />

até 1782 e os de 1790 e 1792. No primeiro conjunto, existem as informações de<br />

¹ Mestrando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista CNPq.<br />

² Por fogo ou domicílio entende-se o conceito de unidade de censo, utilizado por Juan Garavaglia (GARAVAGLIA, 1999,<br />

p. 54):<br />

115


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

nome, situação matrimonial, condição social – se livre, liberto ou escravo –, posição<br />

ocupada no fogo – se pertencente ao núcleo familiar, agregado ou escravo –, cor,<br />

idade e dados referentes à participação dos cristãos nos sacramentos de confissão<br />

e comunhão. Nos róis da década de 1790, constam todas estas informações, com<br />

exceção da idade dos indivíduos.<br />

O principal problema enfrentado no uso desta documentação é seu estado de<br />

má conservação. A partir da visualização do material, temos a impressão de que algo<br />

entre 15 e 20% se perdeu, opinião semelhante a de Fábio Kühn sobre à conservação<br />

dos róis de Viamão³. Para contornar o problema, empreendemos duas operações<br />

distintas. A primeira foi de procurar recuperar informações perdidas por meio de<br />

comparação dos róis de um mesmo período entre si. Muitas descrições de indivíduos<br />

foram assim recuperadas, especialmente as referentes aos chefes dos domicílios. Para<br />

complementar algumas informações, ou mesmo corrigi-las, foram também úteis os<br />

livros de batismos de livres e de escravos de Porto Alegre. A segunda operação foi<br />

de retirar do cômputo as descrições dos fogos muito danificados para evitar maiores<br />

distorções no conjunto dos resultados.<br />

A partir dos dados obtidos pela análise dos róis de confessados, abordaremos<br />

dois temas. O primeiro diz respeito ao tamanho da população, seu crescimento ao<br />

longo do período e sua composição em termos da posição ocupada pelos indivíduos<br />

nos domicílios, se pertencentes ao núcleo familiar, agregados ou escravos. O segundo<br />

tema abordado é o da configuração da estrutura de posse de cativos da localidade,<br />

isto é, a forma como se distribuía a população cativa pelos domicílios escravistas.<br />

Frisamos que nossa perspectiva é diacrônica, pois procuramos avaliar algumas das<br />

mudanças ocorridas na localidade num período de treze anos, entre 1779 e 1792. É<br />

um período curto, mas que apresenta significativas variações no conjunto da população.<br />

Antes de continuarmos, precisamos apresentar algumas informações sobre<br />

a localidade. Foi no contexto da guerra guaranítica que alguns casais açorianos desembarcaram<br />

nas margens do Guaíba em 1753, onde então existia a estância de<br />

Jerônimo de Ornelas 4 . Assim, a paróquia de Porto Alegre estava ocupada há cerca de<br />

quarenta anos quando os róis em questão foram elaborados. Já em inícios da década<br />

de 1780 a localidade se dividia em dois espaços diferentes, o núcleo urbanizado e<br />

o entorno rural, cada qual com suas especificidades produtivas 5 . Este cinturão ru-<br />

3 KÜHN, 2004, p. 50.<br />

4 FLORES, 1993, p. 50.<br />

5 Segundo o rol de 1782, que preservou as localizações de ruas e bairros rurais, o perímetro urbano se constituía<br />

pelas ruas da Praia, da Igreja, Formosa e mais uma cujo nome está corroído. O entorno rural apresenta os seguintes<br />

bairros: a região fora do portão, o Capão da Fumaça (transcrito como Tumasa), o Cristal e o Passo de Ornellas. Este<br />

tema será assunto de futuro trabalho.<br />

116


al era composto por famílias de lavradores, em geral ilhéus, muitas das quais com<br />

escravos e agregados. Havia pequenos rebanhos com até 250 reses 6 e produziam-se<br />

gêneros de subsistência para proveito próprio, para venda no mercado local e para<br />

exportação para o Rio de Janeiro. Segundo o mapa de colheita de 1780, a localidade<br />

produziu 31% do trigo plantado na Capitania neste ano 7 . Temos também registro de<br />

ao menos uma azenha neste período, onde se fabricava farinha de trigo, de propriedade<br />

de Francisco Antônio da Silveira, conhecido entre seus contemporâneos como<br />

Chico da Azenha 8 . No núcleo urbano encontramos comerciantes, militares de alta<br />

patente, artesãos e o porto. Era por este porto que se fazia a ligação entre o interior<br />

da Capitania, até Rio Pardo, e o porto do Rio Grande. No rol de 1792, encontramos<br />

um mínimo de 39 embarcações ancoradas 9 . Entre os comerciantes, encontramos 14<br />

indivíduos, alguns deles acompanhados por caixeiros 10 . Dito isto, passemos à análise.<br />

POPULAçãO<br />

O primeiro ponto que podemos abordar é o do crescimento da população ao<br />

longo do período porque dispomos desta informação para todos os anos contemplados<br />

pelos róis. Na tabela seguinte apresentamos os dados relativos ao tamanho<br />

da população e número de domicílios ainda preservados na fonte, sem acréscimo<br />

ou exclusão de informações. Os valores devem representar algo entre 80 e 85% do<br />

que possuíam os documentos quando ainda estavam intactos. Importa observar que<br />

não estão incluídas as relações dos andantes, nem as relações do destacamento de<br />

infantaria presente em 1782 e da população das embarcações de 1792.<br />

Tabela 1<br />

População e domicílios nos róis de confessados de Porto Alegre, sem exclusão<br />

ou acréscimos de dados, do período entre 1779 a 1782<br />

Fonte: róis de confessados de Porto Alegre, 1779-1782, AHCMPA.<br />

6 Fonte: “Relação de moradores que têm campos e animais no Continente”, feito no início do ano de 1784, depositada<br />

no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Sobre a fonte, ver OSORIO, 2008, p. 79ss.<br />

7 OSóRIO, 2008, p. 179.<br />

8 CORUJA, 1983, p. 128.<br />

9 Fonte: rol de confessados de Porto Alegre, 1792, AHCMPA.<br />

10 Estes comerciantes descritos no rol de confessados foram encontrados pela procura dos mesmos na lista elaborada<br />

por Adriano Comissoli (2008, p. 70) sobre os Vereadores da Câmara de Porto Alegre, pela procura de fogos que<br />

abrigassem caixeiros, indício seguro de que o chefe do fogo era comerciante, e pela pesquisa no Almanaque de Porto<br />

Alegre de 1808, de autoria do comerciante Manuel Antônio de Magalhães (obra transcrita em FREITAS, Décio. O<br />

capitalismo pastoril. Porto Alegre, EST, 1980).<br />

117


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Obs.: foram consideradas apenas as descrições de indivíduos que contivessem, no mínimo, uma informação.<br />

Em 1782 foram excluídas as descrições de dois domicílios repetidos e havia dois domicílios<br />

que, separados por espaço corroído, eram, em realidade, um só.<br />

Dispondo desta série de róis podemos avaliar as mudanças na população no<br />

espaço de treze anos 11 . Mesmo levando em consideração que cada rol apresenta<br />

especificidades próprias dependendo do ano e do padre que o elaborou, temos algumas<br />

razões para creditar ao conjunto dos documentos homogeneidade suficiente<br />

para estabelecer comparações válidas: estes documentos foram feitos com o mesmo<br />

objetivo de registrar a participação dos fregueses nos sacramentos religiosos; aparecem<br />

apenas três padres responsáveis pela coleta das informações; além disso, as categorias<br />

utilizadas são as mesmas em todos os documentos, sem maiores alterações.<br />

Devemos enfatizar que existem especificidades, como o fato de apenas os róis de início<br />

da década de 1780 apresentarem as idades dos fregueses; apenas nos róis de 1781<br />

e 82 aparece a categoria de guarani; algumas descrições dos róis de 1790 foram feitas<br />

com alguma informalidade, pois as informações de cor e condição social de alguns<br />

indivíduos que apareceram nos livros de batismos como pardos e libertos não foram<br />

declaradas. Ainda assim, estas peculiaridades parecem não impedir o relacionamento<br />

entre os diferentes documentos, visto as razões inicialmente apresentadas 12 .<br />

Para avaliar da maneira mais precisa possível a mudança no tamanho da população<br />

entre os dois períodos em questão – fins da década de 1770 e início da década<br />

de 1790 – precisamos também que os documentos estejam com a conservação<br />

das informações em estado algo semelhante. Como os róis parecem ter perdido<br />

a mesma quantidade de dados e que a dupla operação de recuperação e exclusão<br />

de informações foi mais eficiente nos róis da década de 1780, preferimos obter o<br />

tamanho da população de cada ano a partir das informações restantes em cada rol,<br />

sem acréscimos ou decréscimos. Por isso preferimos usar os valores “brutos” que<br />

dispomos, pois assim compararemos os róis em semelhante estado de conservação.<br />

Observamos nos valores constantes nos róis um aumento gradual e constante<br />

no número de descrições de indivíduos, com exceções nos anos de 1780 e 1781. Não<br />

temos condições, por enquanto, de avaliar o porquê desta redução no número de indivíduos<br />

entre 1779 e 1782. Podemos considerar que os róis estejam em pior estado<br />

de conservação que os demais, motivo pelo qual apresentaram menor número de<br />

11 O tamanho da população que encontramos nos róis de 1779 e 1782 se difere daquele encontrado por Ana Silvia<br />

Volpi Scott, em seu estudo sobre os mesmos róis de confessados, que foram de respectivamente 1562 e 1710 habitantes<br />

(SCOTT, 2008, p. 10).<br />

12 Sobre os cuidados ao se comparar róis de uma mesma localidade, ver SIRTORI, 2008, especialmente o capítulo 2.<br />

118


indivíduos. No entanto, uma informação constante no fechamento do rol de 1780<br />

parece indicar que, em realidade, a causa da menor quantidade de pessoas se deva<br />

a sub-registros. No texto de fechamento do documento, após o número de crismados,<br />

aparece a seguinte frase, entre palavras corroídas: “[corroído] fogos duzentos e<br />

quarenta e [corroído]” 13 . Se, de fato, foram descritos cerca de 240 fogos e restaram<br />

216, podemos calcular as perdas deste rol. Antes, devemos excluir os domicílios que<br />

apresentaram muitos danos, que foram oito. Assim, chegamos a um percentual de,<br />

aproximadamente, 13% de perdas, valor próximo ao dos demais róis. É possível,<br />

então, que o rol de 1780 apresente um índice maior de sub-registros.<br />

Entre os anos de 1779 e 1782 encontramos um crescimento populacional<br />

anual de 1,5%, enquanto que entre 1782 e 1792 verificamos um aumento significativo<br />

no crescimento, que passou para 2,5%. Ao que parece nos encontramos diante de<br />

um fenômeno de expansão da população da localidade, que foi também verificado<br />

em outra oportunidade, por meio de um expediente diferente. Sérgio da Costa Franco<br />

utilizou-se da receita do açougue de Porto Alegre, cujas arrematações perante a<br />

Câmara Municipal mostraram um aumento de 10 mil réis, em 1773, para 230 mil e<br />

500 réis, em 1779. Embora houvesse uma série de fatores influentes na evolução das<br />

receitas anuais do açougue, o “fato de o ‘donativo das carnes’ haver-se multiplicado<br />

por 23 entre 1773 e 1779 diz bastante a respeito do aumento do consumo daquele<br />

alimento essencial” 14 .<br />

Este crescimento não foi isolado, mas uma realidade que marcou as últimas<br />

décadas do século XVIII na América portuguesa. Na convergência de fatores estruturais<br />

e de curto prazo – respectivamente, as reformas pombalinas e o impacto<br />

causado pelas lutas de independência colonial nos Estados Unidos e em Santo Domingo<br />

–, a América portuguesa vivenciou um período de acentuado crescimento<br />

econômico, ao qual a literatura denomina de renascimento agrícola 15 . Bahia, Maranhão,<br />

Pará, Rio de Janeiro, Pernambuco, o sul de Minas Gerais, São Paulo e também<br />

o Rio Grande do Sul participaram ativamente das efervescentes movimentações nos<br />

mercados internacional e colonial. Foram exportados algodão, açúcar, arroz, cacau,<br />

café, fumo e cachaça, se importaram fazendas e contingentes crescentes de escravos<br />

e circularam em âmbito interno fumo, cachaça, arroz, os trigos do sul, gado em pé,<br />

charque, sebos e couros, além dos próprios escravos que entraram pelos portos cariocas,<br />

baianos e pernambucanos 16 .<br />

13 Rol de confessados de Porto Alegre de 1780.<br />

14 FRANCO, 2000, p. 21s.<br />

15 Sobre o assunto, ver SCHWARTZ, 1998, p. 337ss, que apresentar foco especial sobre a Bahia. Sobre a situação<br />

verificada no Rio de Janeiro, conferir FRAGOSO; FLORENTINO, 2001, p. 92ss. Para o Rio Grande de São Pedro,<br />

ver OSóRIO 2008, p. 183ss.<br />

16 Ver SCHWARTZ, 1988, p. 348; FRAGOSO e FLORENTINO, 2001, p. 98-101.<br />

119


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Foi paralelo e ligado ao crescimento econômico que se deu o aumento populacional.<br />

No Rio Grande de São Pedro, Helen Osório constatou um período de expansão<br />

econômica e demográfica, no qual a população passou de 17.923, em 1780,<br />

para 22.437 habitantes, em 1791, o que representa uma taxa anual de crescimento<br />

populacional de aproximadamente 2,1% 17 . A partir dos totais de população de São<br />

Paulo apresentados por Maria Luiza Marcílio, entre os anos de 1772 e 1776, verificamos<br />

uma taxa de 3,7%, com um crescimento de 100537 para 124825. Este pequeno<br />

recorte temporal de quatro anos se encontra numa fase demográfica mais ampla<br />

considerada pela autora, que vai de 1765 até 1808, no qual verificou um crescimento<br />

singular da população de 148% devido à introdução da economia de plantation, à<br />

aceleração da introdução de escravos importados e à retração para a região de populações<br />

oriundas das áreas mineradoras decadentes18 . No Recôncavo baiano, entre os<br />

anos de 1724 e 1757, período marcado por uma situação de estagnação econômica,<br />

Schwartz verificou uma taxa anual de crescimento de 1,7%, valor possivelmente aumentado<br />

em conseqüência dos resultados incompletos do primeiro ano; já entre os<br />

anos de 1774 e 1780, a taxa encontrada foi de 3,1%, quase o dobro. O autor acredita<br />

que dita dinâmica demográfica foi consequência, em grande medida, da importação<br />

de cativos19 . Mas não devemos apenas à escravidão o incremento demográfico verificado<br />

no período. Sheila de Castro Faria aponta para a importância representada<br />

pelos “andarilhos da sobrevivência”, brancos e libertos pobres que migravam para<br />

áreas de exploração recente, em busca de melhores condições de vida20 .<br />

Dito isto, acreditamos ser aceitável considerar como válidos o acentuado<br />

crescimento populacional em Porto Alegre e suas respectivas taxas de crescimento<br />

anuais verificados a partir dos róis de confessados nas décadas finais do XVIII. Isso<br />

porque os dados foram obtidos a partir de fontes razoavelmente homogêneas e os<br />

resultados não diferem nem daquele verificado para o Rio Grande de São Pedro,<br />

nem extrapola aqueles verificados em áreas mais dinâmicas da América portuguesa,<br />

como São Paulo e o Recôncavo baiano. Partindo dessa premissa, faremos o esforço<br />

de tentar apontar valores absolutos mais aproximados da população de Porto Alegre<br />

entre os anos de 1782 e 1792.<br />

Os poucos autores que se abordaram a população porto-alegrense colonial<br />

se basearam nas informações constantes no mapa de população de 1780, parte do<br />

Mapa Geográfico do Rio Grande de São Pedro, segundo o qual existiriam 1512 al-<br />

17 OSóRIO, 2007, p. 100.<br />

18 MARCíLIO, 2000, p. 71s.<br />

19 SCHWARTZ, 1988, p. 87s.<br />

20 FARIA, 1998. p. 108ss.<br />

120


mas na localidade 21 . Sem dúvida, este documento traz uma informação importante,<br />

que é o total da população que no mínimo havia recebido sacramento da comunhão<br />

constante no rol de confessados do mesmo ano 22 . No entanto, o valor da população<br />

apresentado não pode ser tomado como o do total da população de Porto Alegre<br />

de então porque não foram considerados os jovens que não receberam comunhão,<br />

em geral menores de sete anos. A exclusão destas crianças representaria, seguindo a<br />

proporção etária do rol de 1782, uma perda de um sexto da população do período.<br />

O documento teoricamente mais adequado para avaliar o tamanho da população<br />

de Porto Alegre seria o rol de confessados, isso se não houvesse sofrido a perda<br />

material verificada. Nesse caso, a contabilidade da população apenas a partir dos<br />

róis não é viável porque os documentos não estão completos. Ainda assim, como já<br />

apontamos, os róis apresentam a vantagem de serem seriados, permitindo verificar a<br />

mudança na população com a passagem do tempo.<br />

Em síntese, para o primeiro período, temos dois conjuntos de informações,<br />

um oriundo do rol de confessados e o outro do mapa de população de 1780, cada<br />

qual com limites e vantagens específicos. Pelo mapa temos os valores da população<br />

jovem e adulta sem perdas de informação, mas não temos o tamanho da população<br />

infantil. Pelos róis, temos o registro de indivíduos de todas as faixas etárias, mas<br />

com perda da descrição da população. Nesse sentido, o ideal seria cruzar os dados<br />

específicos de cada documento: somar o total da população sugerido pelo mapa<br />

ao número de crianças constantes no rol que possivelmente ainda não haviam sido<br />

iniciadas nos sacramentos cristãos. Como, teoricamente, era a idade de sete anos que<br />

marcava a iniciação do jovem na vida cristã adulta 23 , foram somadas aos 1512 habitantes<br />

indicados no mapa, as crianças com até seis anos do rol de 1780, um grupo de<br />

168 crianças livres, que resultou num total de 1680 pessoas.<br />

No entanto, como já relatamos, o rol de 1780 apresenta um conjunto de informações<br />

discrepante em relação ao dos outros róis, o que se demonstra quando<br />

verificamos a quantidade de crianças livres presentes em 1782, que é 284, diferença<br />

de mais de cem crianças para um prazo de apenas dois anos. Assim, possivelmente,<br />

o meio adequado para se obter o valor mais aproximado do que foi a população<br />

de Porto Alegre no período seja tomar o valor dos jovens de 1782 que não haviam<br />

recebido a comunhão em 1780 com aquele representado pela população constante<br />

21 Fonte: Mapa geográfico do Rio Grande de São Pedro suas freguesias e moradores de ambos os sexos, com declaração<br />

das diferentes condições e cidades em que se acham em 7 de outubro de 1780. 9, 4, 9 nº 134, Biblioteca<br />

Nacional do Rio de Janeiro. Agradecemos a Prof.ª Helen Osório por ter cedido a transcrição do mapa de população<br />

referente a Porto Alegre. Sobre os autores que citaram a fonte ver, por exemplo, MACEDO, 1993, p. 75.<br />

22 Homens e mulheres livres são divididos nas seguintes categorias: velhos, casados, solteiros e meninos e meninas<br />

de confissão. Os escravos são apresentados com um número total segundo sexo.<br />

23 MARCíLIO, 2000, p. 38.<br />

121


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

no mapa de população. Como entre 1780 e 1782 não temos registro de qualquer<br />

calamidade que viesse a significar decréscimo demográfico extraordinário, podemos<br />

considerar o total informado pelo mapa como o da população livre com nove anos<br />

ou mais do último ano. Isso porque a faixa etária mais jovem apresentada pelo mapa<br />

de 1780 é a dos meninos e meninas de confissão, os quais possuíam, possivelmente,<br />

um mínimo de sete anos. Ao fim, computamos o total de indivíduos falecidos<br />

adultos no período. Para os escravos, preferimos tomar o valor informado pelo rol<br />

de confessados do ano de 1782, já que o crescimento desta população deve estar<br />

relacionado principalmente ao tráfico. Neste caso, a participação cativa estará subregistrada<br />

visto a perda de dados devido à má conservação dos róis.<br />

Resumimos, agora, nosso método: 1 – tomamos o total populacional livre<br />

informado no mapa como o total da população maior de sete de 1780 e, consecutivamente,<br />

maior de nove anos em 1782; 2 – tomamos os dados de crianças com oito<br />

anos ou menos de 1782, pois este grupo possivelmente esteve fora da categoria de<br />

“meninos e meninas de confissão” em 1780; 3 – tomamos o total de escravos informado<br />

em 1782; 4 – por fim, computamos como decréscimo o total de falecidos<br />

entre os dois anos, constante nos livros de óbitos de livres. Os dados e o resultado<br />

se encontram na seguinte tabela:<br />

Tabela 2<br />

Estimativa da população de Porto Alegre de 1782 a partir das informações<br />

do rol de confessados, do mapa de população e dos primeiro livro de óbitos<br />

de livres e de escravos de Porto Alegre<br />

Fonte: mapa de população de 1780; róis de confessados de 1780 e 1782, AHCMPA; primeiro livro de<br />

óbitos de livres de Porto Alegre, AHCMPA.<br />

Precisamos apontar as limitações destes dados. A categoria das crianças de<br />

confissão em geral se aplicava às crianças maiores de sete anos, o que não impede<br />

que crianças menores possam ter participado ou, ao contrário, crianças maiores não<br />

o terem. Além disso, devido à má conservação da fonte, o número de crianças com<br />

até oito anos está sub-registrado. Outro ponto importante é o de que não temos<br />

122


acesso a um dos fatores fundamentais para o crescimento da população, que é a<br />

imigração. Não temos, por ora, nem o número de escravos aqui aportados, nem o<br />

número de indivíduos livres recém-chegados. Nesse sentido, podemos considerar o<br />

valor de 1818 indivíduos como apenas aproximativo, sendo o número real da população<br />

possivelmente maior.<br />

Uma alternativa para tentar avaliar a população de então é acrescentar ao valor<br />

da população que restou nos róis o possível valor do que foi perdido. Isto é, acrescentar<br />

ao total indicado nos róis aquilo que corresponderia à perda entre 15 e 20%<br />

devida à má conservação da fonte. Se a perda girou, de fato, entre um sexto e um<br />

quinto, então teríamos uma população residente entre 1840 e 1955 indivíduos. Estes<br />

dois resultados estão acima da estimativa feita a partir do mapa de população, o que<br />

pode implicar em duas possibilidades distintas: ou o valor da população estimado é<br />

mínimo em relação ao que deve ter sido a população de Porto Alegre de então; ou<br />

então a perda de informações deve ter girado não entre quinze e vinte percento, mas<br />

entre dez e quinze. Por enquanto, optamos por ficar com a primeira possibilidade.<br />

Para o ano de 1792 encontramos algumas dificuldades em estabelecer o tamanho<br />

da população, pois não encontramos fonte alguma além do rol de confessados<br />

deste ano. Mas como já possuímos um valor absoluto mais aproximado da população<br />

no início da década de 1780 e a taxa de crescimento anual desta mesma década<br />

obtida a partir da série dos róis de confessados, podemos projetar a população de<br />

1792 a partir daquela estimativa encontrada para 1782. Com uma população inicial<br />

de 1818 indivíduos, com um crescimento anual de 2,5% e considerado um período<br />

de dez anos, encontramos uma população final de 2323 indivíduos. Utilizamos<br />

também o método de acrescentar à população constante no rol de 1792 o possível<br />

percentual de perda, que deve ter girado entre 15 e 20%, pelo qual encontramos um<br />

resultado entre 2371 e 2519 habitantes. Novamente, os resultados encontrados estão<br />

acima daquele estimado pela projeção, o que pode significar as mesmas possibilidades<br />

apontadas para a estimativa de 1782. Neste caso, também preferimos apenas<br />

considerar que o valor encontrado para a população seja mínimo em relação a tamanho<br />

real da população de Porto Alegre de 1792.<br />

Lembramos que estes são apenas esforços aproximativos ao se tratar com<br />

fontes fragmentadas, que tornam qualquer investigação passível de equívoco. Utilizamos<br />

mais de um método para tentar avaliar o tamanho da população e, por enquanto,<br />

os valores encontrados apresentam semelhanças entre si. Até aqui, fizemos<br />

um aproveitamento máximo das informações disponíveis para tentar montar um<br />

quadro coerente da população da Freguesia de Porto Alegre. Tomamos como base o<br />

mapa de população e os róis de confessados e averiguamos um crescimento acentuado<br />

da população num período de dez anos, que passou de aproximadamente 1818<br />

pessoas em 1782 para algo em torno de 2323. A partir de agora, faremos uma análise<br />

123


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

privilegiando os dados mais qualificados disponíveis, que são oferecidos pelos róis<br />

de confessados. Deste documento, tomaremos apenas os registros dos indivíduos<br />

que tiverem descrita sua condição social, se livre, liberta ou cativa. A partir de agora<br />

utilizaremos as informações recuperadas por meio de comparação das fontes e<br />

excluiremos da análise os domicílios muito danificados, para evitar maiores perturbações<br />

na amostra. No entanto, há um grupo de domicílios que, apesar de estarem<br />

significativamente danificados, devem ser preservados, que são quinze domicílios<br />

escravistas do ano de 1792 que estão com o espaço da descrição dos familiares livres<br />

completamente corroído. Tomamos esta decisão pelo fato de que englobam um total<br />

de 70 escravos, número significativo, sendo que dentre estes domicílios se encontram<br />

alguns dos maiores plantéis do rol. Além disso, como mostraremos a seguir, a<br />

manutenção destes domicílios não acarretará numa distorção significativa no cômputo<br />

da distribuição da população segundo condição social. É importante avisar que<br />

trabalhamos aqui apenas com a população de moradores dos róis, tendo excluído da<br />

análise os andantes de todos os anos, a relação do destacamento de infantaria constante<br />

em 1782 e a relação dos barcos de 1792, por não sabermos se estes indivíduos<br />

chegaram a criar vínculos na localidade.<br />

Iniciamos a série com o rol de 1779, que é composto por 1468 registros<br />

individuais e de 222 fogos, sendo que cinco destes domicílios foram acrescentados<br />

posteriormente, pois foram transcritos como se pertencessem à descrição do fogo<br />

que lhes antecedia. Ao compararmos este número de registros com aquele do total<br />

de registros “brutos” constantes na fonte (ver tabela 1), verificamos que a exclusão<br />

de informações foi significativo, maior que o aumento de registros que operamos.<br />

O rol de 1782 oferece o melhor conjunto de dados. Primeiro, porque é o<br />

que apresenta a maior quantidade de informações dos róis deste início de década;<br />

segundo, porque nele estão separados os moradores da localidade de acordo com<br />

a rua ou bairro rural em que residiam; terceiro, porque é o único em que encontramos<br />

a categoria de guarani anunciada. Neste rol, trabalhamos com um total de<br />

1611 registros, o que representa 89% da estimativa populacional de 1818 indivíduos,<br />

calculados para o ano a partir do mapa de população e do rol de confessados. Do<br />

total de 279 domicílios existentes na transcrição do documento, trabalhamos agora<br />

com 248. Dois fogos foram excluídos por repetição e outro havia sido separado em<br />

dois no momento da transcrição, possivelmente por possuir informações corroídas<br />

em seu interior. Por fim, devemos ressaltar que os róis deste período apresentam a<br />

informação de idade dos moradores, que não consta nos róis posteriores.<br />

O rol de 1792 é o que apresenta o maior número de registros de nossa série,<br />

com um total de 2007 habitantes, valor que representa 86% da projeção populacional<br />

elaborada para o ano. Se compararmos com o total da população apresentado<br />

na tabela 1, notaremos que houve uma diminuição devido à re-elaboração da fonte.<br />

124


Explicamos o motivo: o processo de recuperação de informações para este conjunto<br />

de róis foi menos eficiente que aquele efetuado sobre os de início da década de 1780.<br />

Isso não apenas porque dispomos de somente dois róis para a década de 1790, como<br />

também a própria “qualidade” das informações é inferior àquela encontrada nos<br />

róis da década de 1780. Neste caso, foram menores as possibilidades de localizar os<br />

dados de um domicílio danificado em outro rol. Quando conseguimos, houve pouca<br />

segurança, em alguns casos, para avaliar se ambas as descrições referiam-se ao mesmo<br />

domicílio. Não temos a informação de idade; alguns indivíduos aparecem sem o<br />

sobrenome; algumas descrições que verificamos serem de homens forros apareceram<br />

sem esta indicação. A impressão que temos é a de que este arrolamento foi feito<br />

ou com pressa ou com certo ar de informalidade, sem intenção ou necessidade de<br />

informações mais precisas. Ou as duas coisas, talvez. Ainda assim, devemos ressaltar<br />

que a recuperação de informações foi muito proveitosa, visto que conseguimos perceber<br />

a continuidade de numerosos domicílios ao longo de mais de dez anos, fato<br />

inicialmente não observado.<br />

A maioria das informações recuperadas refere-se ao nome e sobrenome dos<br />

chefes de domicílio e de seus filhos que estavam corroídas, um dos motivos pelos<br />

quais preferimos manter aqueles quinze domicílios que apresentavam um contingente<br />

significativo de escravos. Dos 456 domicílios transcritos, trabalhamos com 431.<br />

Uma informação interessante deste rol é o de que apresenta o arrolamento dos navios<br />

estacionados no porto, mas que não contabilizamos por não termos indicativo<br />

algum de serem todos, ou sua maioria, de propriedade de moradores da localidade.<br />

A comparação dos três róis traz consigo vantagens e limitações. Em princípio,<br />

trabalhamos com fontes razoavelmente homogêneas, feitas num curto espaço de<br />

tempo, em que se utilizam as mesmas categorias de descrição e que possuem entre si<br />

semelhança no que tange ao estado de conservação. Podemos, desta maneira, pensar<br />

que as comparações realizadas são, em alguma medida, seguras, representativas da<br />

dinâmica demográfica de então. Por outro lado, lembramos que não trabalhamos<br />

com a informação de toda a população. Além das possíveis pessoas que ficaram<br />

de fora durante a elaboração do arrolamento, ainda perdemos algo entre 15 e 20%<br />

das descrições. Por isso, os dados e resultados com os quais trabalhamos devem ser<br />

pensados mais como indicativos, pistas, do que provas do real passado. Mas, evidentemente,<br />

a freqüência com que certas informações aparecem, não apenas nos róis<br />

como nos outros documentos trabalhados, pode aumentar a margem de confiança<br />

no manejo das mesmas.<br />

Iniciaremos pela avaliação da composição da população segundo a posição<br />

ocupada pelos indivíduos dentro dos domicílios, se familiares, escravos e ou agregados.<br />

As duas últimas categorias são encontradas na descrição dos indivíduos; a<br />

primeira, não, e a utilizamos para fazer referência ao chefe do domicílio, sua esposa,<br />

125


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

filhos e outros familiares. Em alguns casos, familiares como tios, pais e sogros foram<br />

descritos como agregados e os mantivemos como tal, mas deixamos assinalada a<br />

familiaridade entre ambos.<br />

126<br />

Fonte: róis de confessados de Porto Alegre, 1779, 1782 e 1792, AHCMPA.<br />

A primeira constatação a ser feita é a de que entre os dois primeiros anos a<br />

composição da população mudou pouco. Apenas os agregados apresentaram uma<br />

variação de 1%. Apenas decorrida uma década os valores mudam de maneira significativa.<br />

Verificamos, em primeiro lugar, que houve um aumento no tamanho da<br />

população escrava em detrimento da livre. Os escravos passaram de 37,9% da população,<br />

em 1779, para 40,7%, em 1792. Sua população aumentou 46,7%, passando<br />

de 557 para 817 indivíduos. Os agregados tiveram um aumento significativo, pois<br />

passaram de 5,3% da população em 1782 para 9,5% em 1792, com um aumento de<br />

124,7% em seu contingente (sendo que esse aumento ficou em 297,9% para o período<br />

entre 1779 e 1792). Já os familiares aumentaram apenas 7,8% entre 1782 e 92,<br />

de 927 indivíduos para 999, o que implicou num decréscimo de sua participação no<br />

conjunto da população, que passou de 57,5 para 49,8%. Ao se levar em consideração<br />

o fato de que a maioria das informações recuperadas serem referentes à família<br />

nuclear descrita no início de cada fogo, podemos pensar que o possível decréscimo<br />

de participação tenha sido algo maior.<br />

A constatação de que aumento da população se tenha verificado principalmente<br />

entre escravos e agregado talvez indique a natureza da dinâmica demográfica<br />

agora observada. O crescimento da população de Porto Alegre parece ter se dado<br />

pelo aumento da mão-de-obra disponível na localidade por meio do incremento de<br />

escravos via tráfico e pela vinda de imigrantes livres ou libertos pobres em busca


de oportunidades. Juntos, escravos e agregados representam 42,5% da população<br />

em 1782, enquanto que em 1792 passaram ao patamar de 50,2%. Este crescimento,<br />

se de fato ocorreu, não foi isolado do plano produtivo. Como demonstrou Helen<br />

Osório por meio da análise dos mapas de animais dos anos de 1780 e 1791, houve<br />

um crescimento acelerado do rebanho vacum na região de Porto Alegre e arredores,<br />

com uma taxa anual na ordem de 10,4%, que foi, por sinal, mais lento que aquele<br />

verificado na região do Rio Grande e do Rio Pardo 24 . Parece haver, desta maneira,<br />

uma inter-relação entre crescimento econômico e crescimento demográfico.<br />

De forma evidente, nossa hipótese parece apresentar uma limitação ao associar<br />

a categoria de agregado à de mão-de-obra não-familiar. No entanto, temos<br />

algumas razões empíricas para supor tal relação. A partir do rol de 1782 elaboramos<br />

um perfil do conjunto dos 85 agregados residentes em Porto Alegre dos quais temos<br />

registro. Os resultados indicam que entre os oitenta indivíduos dos quais obtivemos<br />

o sexo os homens predominam com uma razão de sexo de 150 homens para cada<br />

100 mulheres. Excluindo seis indivíduos sem descrição de idade, a moda e a mediana<br />

etária ficaram em 20 anos, o que indica uma população bastante jovem 25 . A população<br />

muito idosa, com mais de 50 anos, e a muito nova, com seis ou menos, representam<br />

apenas um quinto do total (22,8%). Dezessete destes agregados eram guaranis,<br />

em sua maioria crianças, dois com idade entre seis e nove anos, oito entre dez e doze<br />

anos e cinco entre vinte e trinta anos, quase todos, com duas exceções, acolhidos em<br />

domicílios escravistas. Muito provavelmente estes índios estavam encarregados de<br />

atividades domésticas e/ou produtivas 26 . Havia outros dezessete forros, mas com<br />

um perfil etário mais velho. Cinco dentre eles possuíam mais de 50 anos e estavam<br />

em domicílios de outros forros, possivelmente parentes que os abrigaram. Outros<br />

seis apresentavam quarenta anos e cinco possuíam entre 20 e 36 anos. Apenas um<br />

possuía menos de dez anos. Por fim, sobre o conjunto dos agregados, encontramos<br />

quatro quintos em fogos escravistas. Em suma, os agregados do ano de 1782, em<br />

sua maioria, eram homens, quase metade decididamente não era branca e poucos<br />

eram os muito idosos ou muito jovens. A maioria estava em fogos que já contavam<br />

com mão-de-obra externa ao núcleo familiar. Ao que parece, a maioria estava apta a<br />

desempenhar alguma atividade produtiva ou doméstica.<br />

24 OSóRIO, 2008, p.129s.<br />

25 A média ficou em 25,4 anos; no entanto, o desvio-padrão em 18,3 indica uma ampla dispersão dos dados e a<br />

impossibilidade de a média servir como representativa da amostra.<br />

26 Vide o caso encontrado por Elisa Garcia, em que a filha dos índios Martinho do Porará e Maria Simona, da Aldeia<br />

dos Anjos, foi raptada por Antônio de Vasconcelos, com justificativa de que aquela aprendesse o ofício de tecelã em<br />

sua casa e recebesse da família educação apropriada. Durante o processo, o capitão da aldeia averiguou que à criança<br />

não foi ensinado ofício algum e que, na realidade, a mesma fora empregada em atividades domésticas, como balançar<br />

os filhos do casal branco (GARCIA, 2007, p. 129).<br />

127


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Sobre a população de agregados de 1792 contamos com uma qualidade pior<br />

de informações. Conforme o gráfico 1, população de agregados mais que dobra em<br />

relação aquela de 1782. Dos 191 indivíduos dos quais temos informação, apenas<br />

oito constam como forros. A taxa de masculinidade cai para 120 homens para cada<br />

cem mulheres, mas contínua favorável aos homens. Interessante notar que aumenta<br />

muito o número de agregados casados. As agregadas casadas passam de 3 para 16 no<br />

prazo de dez anos. Esta mudança pode ser resultado de diferentes fenômenos: mulheres<br />

agregadas no primeiro período podem ter se casado e permanecido no domicílio<br />

onde se encontravam; filhas de chefes de fogo que se casaram com indivíduos<br />

pobres podem ter continuado a residir ou no lar ou no terreno do pai, como foi o<br />

caso de uma agregada que aparece como filha do cabeça de fogo; os agregados chegados<br />

no período podiam já estar casados, acompanhados de suas esposas ou não.<br />

Como já observamos, o gráfico 1 apontou não apenas ampla participação da<br />

população escrava em Porto Alegre como um aumento da mesma no período em<br />

questão. Em 1782, 37% da população da Freguesia é composta por escravos 27 ; dez<br />

anos mais tarde, esta participação aumenta em quatro pontos percentuais, chegando<br />

a dois quintos. Estes são indicadores altos, semelhantes àqueles encontrados nos<br />

pontos economicamente mais dinâmicos do América portuguesa de então, voltados<br />

para o mercado externo. No Recôncavo baiano, principal produtor açucareiro do<br />

período, os escravos representavam 30,8% da população nos anos de 1816-17 28 .<br />

Também economias voltadas para o mercado interno possuíam índices semelhantes,<br />

como Mocha, na capitania do Piauí, em 1762, e Viamão, vizinha de Porto Alegre, no<br />

ano de 1778. Ambos os espaços dedicavam-se à pecuária e possuíam respectivamente<br />

69,2 e 40,5% de suas populações em cativeiro 29 .<br />

Importa observar que a população escrava porto-alegrense apresentou um<br />

crescimento vegetativo negativo no ano, pois a taxa de natalidade foi de 43,4, enquanto<br />

que a de mortalidade foi de 55,1 30 . Isso quer dizer que o crescimento veri-<br />

27 Este valor está algo inflado. De acordo com a reconstituição baseada no rol de confessados e no mapa de população,<br />

a população escrava representava 32,9% da população. Nesse sentido, apesar da imperfeição de ambos os<br />

métodos, podemos considerar que a população escrava compunha pouco mais de um terço da população de inícios<br />

da década de 1780.<br />

28 MARCíLIO apud SCHWARTZ, 1988, p. 373. O valor se baseia no registro censitário, retirados por Joaquim<br />

Noberto e Souza, pesquisado por Maria Luiza Marcílio.<br />

29 KÜHN, 2004, p. 54. Ambos os valores baseados em listas nominativas paroquiais.<br />

30 Fontes: primeiro livro de batismos de escravos de Porto Alegre; primeiro livro de óbitos de escravos de Porto<br />

Alegre, AHCMPA. O período que selecionamos como recorte para obtenção do número de nascimentos e falecimentos<br />

não foi o civil, mas o de um ano após o início da elaboração do rol, pois assim, teoricamente, teríamos<br />

maiores chances de encontrar informações nos livros de batismo e óbitos referentes a indivíduos presentes no rol<br />

em questão. O total populacional considerado foi o de escravos constantes no rol de confessados de 1782 (ver tabela<br />

2). Os dados referentes à população livre apontam, pelo contrário, para um crescimento vegetativo positivo, pois sua<br />

taxa de natalidade ficou em 55,8 e de mortalidade em 50,9.<br />

128


ficado está relacionado, possivelmente, à importação de cativos. Dito isto, convém<br />

avaliar como a propriedade escrava se distribuía no seio da população aqui estudada.<br />

Isto é, estudar sua estrutura de posse de escravos.<br />

ESTRUTURA DE POSSE DE ESCRAVOS<br />

A análise da estrutura de posse cativa consiste em averiguar a distribuição dos<br />

escravos em uma localidade e a variação no tamanho das posses. Podemos começar<br />

pela comparação do crescimento do número de posses escravistas e do número de<br />

escravos verificados em dois períodos, o primeiro entre 1779 e 82, e o segundo entre<br />

1782 e 1792, apresentado no gráfico seguinte.<br />

Tabela 3<br />

Crescimento relativo (%) dos fogos escravistas e da população cativa em<br />

Porto Alegre, nos períodos de 1779 a 1782 e de 1782 a 1792<br />

Fonte: róis de confessados de Porto Alegre, 1779, 1782 e 1792, AHCMPA<br />

Ao longo destes treze anos, verificamos um crescimento contínuo tanto do<br />

número de fogos escravistas quanto do de escravos, em ambos os períodos com<br />

o predomínio dos primeiros. Entre os dois primeiros anos, o crescimento é quase<br />

idêntico, de 13 e 7%, respectivamente. No entanto, entre 1782 e 92, o crescimento<br />

de fogos escravistas toma uma distância ainda maior em relação ao crescimento do<br />

número de escravos. Estes crescem 36%, enquanto os primeiros têm um aumento<br />

de 50%. Verifiquemos os extremos: no ano de 1779, temos a informação de 134<br />

fogos escravistas e 557 escravos; em 1792, os valores são de, respectivamente, 226<br />

fogos e 817 escravos, o que implica um crescimento 67% para os primeiros e de 46%<br />

para os últimos. Ao que parece, o crescimento da Freguesia de Porto Alegre, em<br />

termos econômicos e demográficos, não apenas se deu pelo incremento no número<br />

de cativos por meio do tráfico, como foi também acompanhado por um aumento no<br />

número de domicílios comprometidos com o sistema escravista.<br />

Na tabela a seguir, apresentaremos alguns indicadores da estrutura de posse<br />

de cativos em Porto Alegre, que são a percentagem dos fogos escravistas no conjun-<br />

129


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

to dos fogos de cada ano e as medidas de tendência central (média, mediana e moda)<br />

e de dispersão (desvio-padrão) relativas à posse escrava.<br />

Tabela 4<br />

Participação (%) de fogos escravistas no conjunto dos domicílios e média,<br />

mediana, moda e desvio-padrão de posse de escravos em Porto Alegre, 1779,<br />

1782 e 1792<br />

130<br />

Fonte: róis de confessados de Porto Alegre, 1779, 1782 e 1792, AHCMPA.<br />

O indicador de participação de fogos escravistas revela ampla dispersão da<br />

posse escrava em Porto Alegre, pois mais da metade dos moradores dos quais temos<br />

registro, em todos os anos, possuía cativos em seus domicílios. Se entre dos<br />

dois primeiros anos a porcentagem se manteve praticamente inalterada, esse valor<br />

despencou oito pontos percentuais entre 1782 e 1792. Isso, em partes, se explica<br />

pelo aumento do número de registros de domicílios com indivíduos solitários sem<br />

escravos. Em 1779, eles são 11; em 1782, são 14; em 1792, por fim, são 71. Em<br />

1779, a proporção entre homens e mulheres que residiam sozinhos é equilibrada,<br />

com a diferença de um indivíduo a favor dos homens; em 1792, os homens constituem<br />

dois terços do total dos residentes solitários sem escravos. Estes indivíduos<br />

compõem, possivelmente, o grupo dos “andarilhos da sobrevivência” que chegaram<br />

à localidade pelas possibilidades abertas pelo crescimento da triticultura. Inclusive,<br />

este aumento dos homens solitários sem escravos pode ser um dado a reforçar a hipótese<br />

de que o crescimento da população se deu, em alguma medida, pela entrada<br />

de mão-de-obra, representada por homens livres e libertos pobres e, principalmente,<br />

africanos escravizados, num contexto de forte crescimento econômico.<br />

O desvio-padrão do conjunto dos dados é bastante alto, o que impede o uso<br />

da média como valor representativo do conjunto dos fogos escravistas. Ainda assim,<br />

verificamos que a média é decrescente. Os valores de mediana e moda apontam, de<br />

forma mais segura, para um traço importante da estrutura de posse porto-alegrense,<br />

que é o domínio das pequenas posses de escravos. Nos dois primeiros anos, metade


dos escravistas possuía até três escravos, enquanto que o tamanho de posse mais<br />

recorrente foi o de apenas um escravo. Passados dez anos após 1782, a mediana<br />

reduziu-se para dois escravos, enquanto que a moda permaneceu a mesma. Temos,<br />

assim, um indicativo de que o aumento do número de fogos escravistas se deu, principalmente,<br />

pelo aumento das posses menores.<br />

Na próxima tabela, faremos a análise da estrutura de posse de acordo com a<br />

quantidade de escravos detidos pelos senhores. Se adotássemos o padrão de tamanho<br />

de posse comumente utilizado em regiões que apresentam escravarias muito<br />

grandes, como as da Bahia ou da região mineradora das Gerais 31 , a maioria das<br />

nossas posses se classificaria como pequenas posses por apresentarem até nove escravos.<br />

Visto a especificidade dos tamanhos das posses locais, precisamos adotar um<br />

padrão igualmente específico para perceber as características locais. Consideraremos<br />

as menores posses aquelas com até quatro escravos; como médias, com posse entre<br />

cinco a nove escravos; as maiores foram as que apresentaram dez cativos ou mais.<br />

Tabela 5<br />

Fogos escravistas e distribuição dos escravos segundo faixas de tamanho de<br />

posse em Porto Alegre, nos anos de 1779, 1782 e 1792<br />

Fonte: róis de confessados de Porto Alegre, 1779, 1782 e 1792, AHCMPA.<br />

31 Sobre a região das Minas Gerais, ver LUNA; COSTA, 1982; sobre a Bahia, ver SCHWARTZ, 1988.<br />

131


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Temos que começar a análise desta tabela por suas limitações. Foram os maiores<br />

domicílios escravistas os mais prejudicados pela perda de informações. Como<br />

estes fogos ocupam mais espaço nas folhas do documento, proporcionalmente perderam<br />

mais informações que as descrições dos domicílios menores. Por esse motivo,<br />

encontramos algumas incongruências, como a queda no número de domicílios<br />

escravistas e de escravos entre os maiores escravistas do ano de 1779 para o de 1782.<br />

Nesse sentido, talvez seja correto afirmar que o grupo dos maiores escravistas possui<br />

representação inferior se comparada a dos pequenos escravistas.<br />

A constatação mais importante já foi indicada na tabela 3, que é o predomínio<br />

das pequenas posses escravistas, que aumentam entre os anos de 1782 e 1792. Com<br />

a última tabela, podemos ter uma noção da importância das pequenas posses. As<br />

posses com até quatro escravos não são inferiores a 65%. Se somarmos as posses<br />

com até nove escravos, limite das pequenas propriedades em um grande número<br />

de localidades escravistas da América portuguesa, encontramos não menos de nove<br />

décimos do total de escravos.<br />

Podemos observar que houve aumento em termos absolutos em todas as faixas,<br />

tanto do número de fogos escravistas quanto o número de escravos, com a exceção<br />

já apontada dos grandes escravistas de 1782. Mas, em termos relativos, houve<br />

crescimento apenas nas extremidades do conjunto, especialmente entre os pequenos<br />

escravistas, que passaram de 65 para 73% dos fogos e a deter de 33 para 39% dos<br />

escravos. Os escravistas intermediários apresentaram uma participação decrescente,<br />

mas sempre com uma parcela significativa do total dos cativos, nunca inferior a 39%.<br />

Os que possuíam mais de dez cativos eram poucos, algo entre 5 e 8% dos escravistas<br />

e detinham entre um quarto e um quinto dos escravos.<br />

Como havíamos alertado, a tabela 5 não representa de maneira adequada os<br />

maiores proprietários de escravos, pois estes foram os que tiveram as descrições de<br />

seus domicílios mais danificadas. Para se ter uma visão mais precisa deste grupo, optamos<br />

por avaliar a posse daqueles que estivessem entre os 10% maiores escravistas.<br />

Os resultados se encontram na tabela seguinte.<br />

132<br />

Tabela 6<br />

Posse de escravos dos 10% maiores escravistas,<br />

Porto Alegre, 1779 – 1792<br />

Fonte: róis de confessados de Porto Alegre, 1779, 1782, 1792, AHCMPA.


Obs: no ano de 1779 são 13 fogos; em 1782, são 15; no último, são 23.<br />

Na tabela 5 verificamos um decréscimo na posse dos escravistas com mais de<br />

cinco cativos, com uma queda de 4,5 pontos percentuais, entre 1782 e 1792, enquanto<br />

que entre os maiores escravistas houve uma perda de 3,8 pontos percentuais entre<br />

1779 e 1792. A tabela 6 nos aponta um movimento diferente, pois os escravistas que<br />

se encontravam na faixa dos 10% maiores apresentaram um crescimento do total<br />

dos cativos possuídos, de aproximadamente quatro pontos percentuais. As medidas<br />

de tendência central apontam para uma queda no tamanho dos domicílios. A média<br />

diminuiu de quase treze para doze cativos. A mediana e a moda diminuíram entre<br />

1779 e 82, ano a partir do qual os valores se mantiveram. Nestes dois anos, metade<br />

dos domicílios possuía até dez cativos, e o tamanho de posse mais recorrente foi o<br />

de nove escravos. Foram poucos os domicílios com mais de 15 escravos: em 1782,<br />

eram 3; dez anos mais tarde, encontramos apenas 4.<br />

Os dois conjuntos de valores podem apontar para dois fenômenos paralelos.<br />

Por um lado, temos crescimento das pequenas posses ao longo do período em questão,<br />

que pode estar relacionado tanto ao crescimento das posses urbanas como ao<br />

acesso de jovens lavradores aos seus primeiros escravos. Por outro lado, o pequeno<br />

aumento da concentração de escravos entre os maiores escravagistas parece estar<br />

ligado ao crescimento das unidades de lavradores abastados, mais velhos, que ao longo<br />

desses anos conseguiram aumentar o tamanho de seus plantéis. O pressuposto<br />

de que as unidades urbanas são menores que as rurais no Rio Grande foi defendido<br />

por Helen Osório, a partir de estudo de um conjunto de inventários entre os anos<br />

de 1765 e 1825, ao verificar que as posses escravas de inventários de áreas urbanas<br />

e rurais apresentam mais posses com até quatro escravos do que aqueles apenas de<br />

área rural 32 . Tal configuração de distribuição de escravos entre áreas urbanas e rurais<br />

também foi encontrada por Stuart Schwartz na Bahia 33 .<br />

CONCLUSãO<br />

Os róis de Porto Alegre dos anos de 1779, 1782 e 1792 apontam para um<br />

crescimento constante da população, com uma taxa de crescimento anual que acom-<br />

32 OSóRIO, 2004, p. 9.<br />

33 Segundo o autor, “a organização dos dados [de posse de escravos] segundo a localização e o tipo de atividade<br />

econômica, em ordem crescente de concentração de posse, revela claramente o grau em que todas as medidas [coeficiente<br />

de gini, parcela do total de escravos mantida pelos 10% maiores escravistas e número médio de escravos por<br />

proprietário] mais baixas estão associadas à escravidão urbana” (SCHWARTZ, 1988, p. 359).<br />

133


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

panha aquele verificado para toda a Capitania do Rio Grande de São Pedro. Segundo<br />

nossas estimativas, a população residente teria passado da casa de 1800 pessoas para<br />

a de 2300. Se incluirmos andantes, a relação do destacamento de infantaria de 1782<br />

e a população marítima de 1792, a população que Porto Alegre comportava era para<br />

os anos de 1782 e 92 de, respectivamente, 1879 e 2664 pessoas. Se levarmos em<br />

conta a parcela da população que certamente ficou sub-registrada, mesmo com as<br />

estimativas efetuadas, a população deve ter chegado quase à casa das 2000 pessoas,<br />

em 1782, e passado para cerca de 2800 em 1792.<br />

Esse grande crescimento esteve provavelmente ligado ao crescimento econômico<br />

da região. Como demonstrou Osório, houve enorme crescimento dos rebanhos<br />

na localidade no período em destaque. Ao mesmo tempo, os róis apontam<br />

que o crescimento das populações escravizadas e de agregados foi superior aquele<br />

verificado entre os familiares de chefes de fogo. Além disso, houve um expressivo<br />

aumento do número de descrições de domicílios compostos por homens solteiros<br />

e solitários. Ao que parece, esses dados indicam que o aumento populacional então<br />

verificado tenha como seu principal fator a imigração forçada de gente de origem<br />

africana e da migração de homens livres ou libertos pobres oriundos de outras localidade<br />

do próprio Continente ou de outros cantos da América portuguesa. Isto é,<br />

constamos um possível indicativo do aumento da mão-de-obra disponível na região,<br />

num contexto de crescimento econômico em uma região de recente ocupação.<br />

A análise da estrutura de posse demonstrou o peso e a importância da escravidão<br />

numa paragem tão distante dos grandes centros coloniais. Mesmo levando em<br />

consideração a significativa perda de informações pelo mal estado do rol e, também,<br />

a parcela da população que pode ter ficado de fora do arrolamento, os dados encontrados<br />

nas descrições de domicílios disponíveis apontam para o fato de que era<br />

comum que houvesse escravos sob o teto de famílias sem grandes recursos. Fossem<br />

eles lavradores de poucas reses, fossem moradores do núcleo urbano que talvez (sobre)vivessem<br />

do ganho diário de seus cativos.<br />

No conjunto dos fogos escravistas, as pequenas posses se mostraram predominantes,<br />

com crescimento ao longo do período em foco. Isso pode estar relacionado<br />

ao aumento das unidades produtivas urbanas, ligadas ao artesanato, ao comércio<br />

ou às atividades portuárias, como ao ciclo de vida dos jovens lavradores cabeças de<br />

fogo que conseguiram comprar seus primeiros escravos. Ao mesmo tempo, verificamos<br />

o aumento das posses daqueles que mais possuíam escravos. Possivelmente,<br />

este aumento esteve relacionado ao enriquecimento dos lavradores mais abastados<br />

ao longo do período, que conseguiram aumentar o tamanho de suas posses.<br />

Devemos lembrar que a Capitania do Rio Grande foi um dos principais destinos<br />

dos escravos revendidos pelos comerciantes da praça do Rio de Janeiro, como<br />

134


apontaram João Fragoso e Manolo Florentino 34 . Por isso, os dados encontrados<br />

não podem ser tomados como extravagantes, mas, pelo contrário, encontram sua<br />

explicação na rede formada pelo mercado interno colonial. Encontramos nestes<br />

dados um indicativo expressivo de que, talvez, a economia porto-alegrense possa<br />

ter sido escravista, dependente, em grande medida, da mão-de-obra cativa. Apesar<br />

de ainda ser cedo para tal defender tal posição, procuramos apresentar alguns dados<br />

que apontam para a importância de homens e mulheres africanos, em sua maioria<br />

de origem congo-angolana 35 , que participaram, mesmo que contra suas vontades, do<br />

processo de formação da sociedade meridional. Participaram, inclusive, da formação<br />

da própria capital da Capitania do Rio Grande de São Pedro, para a qual foi atribuída,<br />

durante muito tempo, origem açoriana.<br />

34 FRAGOSO; FLORENTINO, 2001, p. 106ss.<br />

35 OSóRIO, 2004, p. 12.<br />

135


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

136<br />

FONTES DOCUMENTAIS<br />

Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre<br />

Róis de confessados de Porto Alegre dos anos de 1779, 1780, 1781, 1782, 1790,<br />

1792;<br />

Primeiro livro de batismos de Porto Alegre;<br />

Primeiro livro de óbitos de Porto Alegre.<br />

Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro<br />

Mapa geográfico do Rio Grande de São Pedro suas freguesias e moradores de ambos<br />

os sexos, com declaração das diferentes condições e cidades em que se acham em 7<br />

de outubro de 1780. 9, 4, 9 nº 134.<br />

REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

COMISSOLI, Adriano. “Os Homens Bons” e a Câmara Municipal de Porto Alegre (1767 –<br />

1808). Porto Alegre: Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre, 2008.<br />

CORUJA, Antônio Alvares Pereira. Antigualhas: reminiscências de Porto Alegre. Porto<br />

Alegre: ERUS, 1983.<br />

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Por ter ido Ao estAdo orientAl: guerrA e fronteirA<br />

nAs CArtAs de AlforriA de Alegrete (1832-1871)<br />

Marcelo Santos Matheus¹<br />

Resumo: O objetivo do presente artigo é analisar como duas características da região da<br />

Campanha, o espaço fronteiriço e a guerra endêmica, refletiram-se nas cartas de alforria em Alegrete,<br />

entre 1832 e 1871. Da mesma forma, espera-se capturar como estes dois elementos influenciaram os<br />

atores sociais, especialmente os escravos, na elaboração de suas estratégias – principalmente na busca<br />

da liberdade. Durante o recorte temporal proposto, foram registradas 230 manumissões, em que aparecem<br />

243 libertos. Com isso, espera-se demonstrar que inclusive os cativos tinham uma interpretação<br />

própria dos acontecimentos que os rondavam, bem como do espaço em que estavam inseridos.<br />

Palavras-chave: Alegrete – alforrias – fronteira – guerra.<br />

INTRODUçãO<br />

Opresente artigo faz parte de uma pesquisa mais ampla, que está sendo<br />

desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em História<br />

da Unisinos. Nesta última, busca-se compreender como ocorreu<br />

o processo de passagem da escravidão para a liberdade, via cartas de alforria, em<br />

Alegrete entre 1832 e 1888. Para isto, serão utilizadas uma série de fontes, caso dos<br />

registros de batismo e de casamentos, além do principal corpo documental da pesquisa,<br />

as alforrias.<br />

Por sua vez, no texto que aqui apresentamos, muito em razão da pesquisa<br />

estar no seu início, o objetivo é mais específico. Nele, pretende-se analisar como dois<br />

elementos característicos da região da Campanha - onde estava inserido o município<br />

de Alegrete, a guerra e a fronteira refletiam-se nas cartas de alforria e influenciavam<br />

os projetos dos agentes sociais ali inseridos, especialmente os escravos e suas estratégias<br />

em busca da liberdade.<br />

¹ Mestrando do Programa de Pós-graduação em História da Unisinos, bolsista CNPq, orientando do Prof. Dr. Paulo<br />

Roberto Staudt Moreira.<br />

139


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Deste modo, a finalidade do texto não é analisar as manumissões como um<br />

todo, mas somente aquelas que apresentam alguma referência aos dois importantes<br />

aspectos referidos acima, entre 1832, ano do registro da primeira manumissão em<br />

Alegrete, e 1871, ano da promulgação da Lei do Ventre Livre, a qual tornou oficial<br />

o direito dos escravos à alforria, acarretando profundas transformações à instituição<br />

escravidão.<br />

A FRONTEIRA E A GUERRA COMO OPORTUNIDADES<br />

O estudo sobre qualquer tema referente à Campanha no século XIX deve levar<br />

em conta duas peculiaridades da região: o espaço fronteiriço e a guerra constante.<br />

De acordo com Eduardo Neumann, em meados do século XVIII e início do século<br />

XIX, aquele espaço estava dividido “entre os interesses das duas Coroas ibéricas e<br />

a luta guarani pela autodeterminação”, com “a fronteira da América meridional”<br />

apresentando-se tripartida. Assim, estas três partes tencionavam e influenciavam os<br />

rumos que tomariam as relações sociais estabelecidas naquela região².<br />

Por sua vez, no século XIX, teve início o processo de construção dos Estados<br />

nacionais independentes, com a questão ganhando novos contornos. Com isso, “os<br />

limites entre” Brasil e a Banda Oriental (no futuro, República Oriental do Uruguai)<br />

“durante os três primeiros quartos do século XIX não haviam sido definidos”³.<br />

Neste sentido, conforme Luís A. Farinatti “a análise dos processos históricos<br />

ocorridos nas terras meridionais do Império não podem prescindir da percepção de<br />

que aquele espaço estava inserido em uma ampla região de fronteira”, sendo muito<br />

influenciada por essa condição 4 . Logo, este espaço fronteiriço dotava os sujeitos<br />

históricos ali presentes de recursos (materiais e simbólicos), e não levá-los em conta<br />

podia fazer com que indivíduos situados em pólos sociais antagônicos sofressem as<br />

consequências.<br />

Neste contexto, mesmo antes da independência política do Brasil, as autoridades<br />

portuguesas se preocupavam com a fuga de escravos da capitania de São Pedro<br />

² NEUMANN, Eduardo Santos. Uma fronteira tripartida: a formação do continente do Rio Grande – século XVIII.<br />

In: Kühn, Fábio .et al (org). Capítulos de História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 2004, p. 46.<br />

³ SOUZA, Suzana Bleil de & PRADO, Fabrício Pereira. Brasileiros na fronteira uruguaia: economia e política no<br />

século XIX. In: Kühn, Fábio. et al (org). Capítulos de História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS,<br />

2004, p. 121-122.<br />

4 FARINATTI, Luis Augusto Ebling. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na Fronteira<br />

Sul do Brasil (1825-1865). Rio de Janeiro: PPGHIS/UFRJ, 2007, p. 67-68 (Tese de Doutorado)<br />

140


do Rio Grande do Sul. Em 1813 foi expedida uma reclamação contra um decreto das<br />

Províncias Unidas do Rio da Prata, o qual tornava livre todo cativo de país estrangeiro<br />

que conseguisse atravessar a fronteira 5 .<br />

Depois de 1822, ainda em uma conjuntura de indefinições de limites nacionais,<br />

muitos senhores de escravos rio-grandenses eram proprietários de terras dos<br />

dois lados da fronteira. Segundo Susana B. de Souza e Fabrício Prado, em meados<br />

do século XIX, a maior parte das terras ao norte do rio Negro pertencia a pecuaristas<br />

brasileiros 6 . Com isso, um senhor que não soubesse negociar certas condições<br />

com seus escravos podia vê-lo fugir para o Estado Oriental (ou lá permanecer, já<br />

que alguns cativos já estavam trabalhando no Estado vizinho), onde a escravidão<br />

havia sido abolida em 1842 7 . Assim, se para os senhores a fronteira podia ser uma<br />

oportunidade para negócios (ou contrabando), os escravos, por sua vez, podiam ter<br />

uma outra interpretação acerca desta condição geográfica. Da mesma forma, se por<br />

um lado a guerra podia significar ganhos ou perdas aos indivíduos mais ricos, para<br />

os escravos podia marcar uma chance de alcançar a liberdade, fugindo do cativeiro e<br />

se alistando no exército do inimigo 8 .<br />

Pensar esta zona de fronteira como uma ferramenta de possível utilização<br />

também pelos subalternos, no caso os escravos, não é um paradoxo. Conforme Fredrik<br />

Barth “pessoas situadas em posições diferentes podem acumular experiências<br />

particulares e lançar mão de diferentes esquemas de interpretação” 9 . Consequentemente,<br />

compreender como os cativos “manejaram” 10 a fronteira, a partir de sua<br />

posição social, ou seja, dentro de suas possibilidades e de sua lógica, torna-se fundamental<br />

para entender as relações sociais ali construídas, bem como as estratégias que<br />

estes indivíduos elaboraram para chegar a liberdade.<br />

5 GRINBERG, Keila. Escravidão, alforria e direito no Brasil oitocentista: reflexões sobre a lei de 1831 e o “princípio<br />

da liberdade” na fronteira sul do Império brasileiro. CARVALHO, José Murilo de (org.). In: Nação e cidadania no<br />

império: novos horizontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 274.<br />

6 De acordo com os autores “em 1857 estimava-se que os rio-grandenses possuíssem cerca de 30% do território<br />

oriental”. Informações em: SOUZA S. B. & PRADO, F. P., op. cit., p. 122 e 133.<br />

7 FARINATTI, op. cit., p. 87. Quando iniciou o movimento pela independência das áreas do Império espanhol no<br />

rio da Prata, o Cabildo de Buenos Aires decretou o fim do tráfico de cativos e a liberdade do ventre escravo, nos<br />

anos de 1812 e 1813, respectivamente, ficando estes obrigados a trabalhar de graça até os 15 anos de idade. Em 1825,<br />

na Banda Oriental, estes decretos foram promulgados em lei. Informações em: MOREIRA, Paulo Roberto Staudt.<br />

Sobre Fronteira e Liberdade: Representações e práticas dos escravos gaúchos na Guerra do Paraguai (1864/1870).<br />

Revista Anos 90 (PPGH-UFRGS), Porto Alegre, v. 6, n. 9, 1998, p. 127; FREGA, Ana. Caminos de libertad em<br />

tiempos de revolución: Los esclavos em la Província Oriental Artiguista, 1815-1820. Revista História UNiSi-<br />

NOS, São Leopoldo, v. 4, n. 2, 2000, p. 4; GRINBERG, op. cit., 2007, p. 283.<br />

8 MOREIRA, op. cit., p. 121-122 e p. 142-144. FARINATTI, op. cit., p. 328-329; BORUCKI, Alex. Caminhos<br />

Cruzados: senhores e escravos da fronteira oeste do Rio Grande. CD-ROM [do] 4º Encontro “Escravidão e<br />

Liberdade no Brasil Meridional”: Curitiba, 2009, p. 7.<br />

9 BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contracapa, 2000,<br />

p. 176.<br />

10 FARINATTI, op. cit., p. 82.<br />

141


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

142<br />

POR TER IDO AO ESTADO ORIENTAL<br />

No primeiro dia do ano de 1868, Duarte Silveira Gomes alforriou seus escravos<br />

Bonifácio, Ângelo, Inocêncio e Antônio (todos crioulos) juntamente com o<br />

africano Pedro. Os cinco cativos chegaram à liberdade com a condição de “servirem<br />

no estado Oriental por tempo de 10 anos” com o seu senhor “dando-lhes durante<br />

esse tempo [...] unicamente comedoria e vestuário” 11 .<br />

O acordo entre os escravos e Duarte Silveira foi feito em meio a Guerra do<br />

Paraguai, conflito que envolveu Paraguai, Brasil, Argentina e Uruguai, e marcou a<br />

história da América do Sul na segunda metade da década de 1860. Dentre os muitos<br />

e complexos motivos que levaram os países à guerra estavam, novamente, os interesses<br />

de criadores de gado e senhores de escravos rio-grandenses com propriedades<br />

nos dois lados da fronteira, os quais se debatiam contra leis uruguaias de taxar a<br />

passagem do rebanho pela fronteira e de não-devolução de escravos fugidos 12 . Para<br />

melhor entender este período e o contexto das alforrias dos cativos de Duarte Silveira,<br />

é preciso voltar um pouco no tempo.<br />

Quando a Revolução Farroupilha terminou, em 1845, a República do Uruguai<br />

estava em guerra civil. A “Guerra Grande” opunha os “blancos” de Manoel Oribe<br />

e os “colorados” de Fructuoso Rivera. Mesmo assim, durante as décadas de 1840 e<br />

1850, os senhores brasileiros seguiam levando seus cativos para suas propriedades<br />

no Uruguai, disfarçando a escravidão com contratos de trabalhos 13 . Oribe, que comandava<br />

o interior - especialmente o norte do Uruguai, começou em 1848 a criar<br />

impedimentos para o livre trânsito de gado do Uruguai para o Brasil, da mesma<br />

forma que recebia em suas tropas os cativos de brasileiros que conseguiam escapar.<br />

Em meio a todas estas contendas, seguidamente os rio-grandenses solicitavam ajuda<br />

ao governo imperial para proteger seus bens no país vizinho 14 .<br />

Com receio do aumento do poder e da influência de Juan M. Rosas na região,<br />

o Império brasileiro entrou no conflito ao lado dos colorados, ajudando-os a vencer<br />

Manuel Oribe e o caudilho “argentino”, assinando em 12 de outubro de 1851 alguns<br />

11 Livros Notariais de Transmissões e Notas, 1º Tabelionato de Alegrete, livro 13, p. 9v, APERS.<br />

12 GUAZZELLI, César Augusto Barcellos. O Rio Grande de São Pedro na primeira metade do século XIX: estadosnações<br />

e regiões provinciais no Rio da Prata. In: Kühn, Fábio. et al (org). Capítulos de História do Rio Grande<br />

do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 2004, p. 95.<br />

13 FARINATTI, op. cit., p. 87.<br />

14 SOUZA, S. B. de & PRADO, F. P., op. cit., p. 128; FARINATTI, op. cit., p. 193.


tratados com o Uruguai que salvaguardavam os interesses dos rio-grandenses. Dentre<br />

eles estava a obrigação de devolução dos escravos fugidos da província 15 .<br />

Contudo, os protestos dos rio-grandenses contra o desrespeito à propriedade<br />

e mesmo aos tratados continuaram, sendo que “entre 1852 e 1864 o governo brasileiro<br />

encaminhou 56 reclamações oficiais ao governo uruguaio” 16 . Esta situação piorou<br />

quando da ascensão dos blancos ao poder, que pôs em perigo os tratados que o<br />

Brasil havia conseguido arrancar do Uruguai e que beneficiavam os rio-grandenses 17 .<br />

Neste contexto, em 1861, já durante a presidência do blanco Bernardo Berro,<br />

o governo uruguaio anuncia o término legal dos tratados de 1851, colocando “um<br />

fim no livre trânsito de gado pela fronteira e na extradição de escravos vindos do<br />

Brasil” 18 , além de decretar que os contratos entre cidadãos de cor e brasileiros não<br />

poderiam exceder seis anos. Após anos de conflitos, reclamações e negociações, em<br />

1864 o governo imperial, novamente, decidiu intervir na política uruguaia, auxiliando<br />

o levante do colorado Venâncio Flores, que derrubou o sucessor de B. Berro, o<br />

também blanco Atanásio C. Aguirre 19 .<br />

Com a volta dos colorados ao poder, os tratados foram mantidos. Neste sentido,<br />

a negociação de Duarte Silveira com seus cinco cativos só foi possível em razão<br />

da intervenção brasileira na política uruguaia. Caso os acordos não houvessem sido<br />

respeitados, o senhor dos escravos não teria garantias de que o governo uruguaio<br />

não iria expropriá-lo, nem que em caso de fuga, os escravos não seriam devolvidos.<br />

Por outro lado, ter ido para o lado uruguaio abriu a oportunidade dos cinco<br />

cativos, se quisessem, ter requerido a sua liberdade via justiça. Isto por que, oficialmente,<br />

o Brasil havia abolido o tráfico de escravos em 1831. A lei de 7 de novembro<br />

daquele ano foi elaborada na esteira dos tratados de 1810, 1815 e 1817 de Portugal<br />

com a Grã-Bretanha, e do tratado de 1826 (ratificado em 1827) do Brasil com o<br />

15 SOUZA, S. B. de & PRADO, F. P., op. cit., p. 131-132. Segundo este acordo, o senhor reclamante tinha que comprovar<br />

a posse e a propriedade do escravo, além de ficar proibido de castigar o cativo. Em 1857 o Brasil também<br />

assinou um tratado de devolução de escravos fugidos com a Confederação Argentina, onde a escravidão havia sido<br />

abolida em 1853. Informações em: GRINBERG, Keila. op. cit., 2007, p. 275 e 284; ZUBARAN, Maria Angélica.<br />

Escravidão e liberdade nas fronteiras do Rio Grande do Sul (1860-1880): o caso da lei de 1831. Estudos ibero-<br />

Americanos, Porto Alegre, v. XXXII, n. 2, p. 119-132, dezembro 2006, p. 125. Uma retificação do Tratado de<br />

Devolução de Escravos de 1851 obrigava os senhores que quisessem levar seus cativos para trabalhar no Uruguai<br />

a alforriá-los previamente, como o fez Duarte Silveira. Informação em: CARATTI, Jônatas Marques. Alforrias e<br />

contratos de trabalho: escravos rio-grandenses em estâncias uruguaias (meados do século XIX). Revista Aedos<br />

(UFRGS), Porto Alegre, v. 2, n. 4, 2009, p. 206.<br />

16 SOUZA, S. B. & PRADO. F. P., op. cit., p. 132.<br />

17 LEITMAN, Spencer. Raízes Sócio-Econômicas da Guerra dos Farrapos. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 173.<br />

18 FARINATTI, op. cit., p. 78.<br />

19 SOUZA, S. B. & PRADO, F. P., op. cit., p. 136; LEITMAN, op. cit., 1979, p. 173.<br />

143


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Império britânico. Ela estabelecia que os escravos que entrassem no Brasil três anos<br />

após a data do acordo (1827), seriam considerados livres20 .<br />

Este foi o caso da parda Maria Estácia, que teve a carta de alforria concedida<br />

pelo juiz municipal de Alegrete Libindo Nunes Coelho, em 13 de maio de 186821 . Ela<br />

requisitou na justiça sua liberdade, provando<br />

[...] com testemunhas e com a assistência de seu curador, o Dr.<br />

Franklin Gomes Souto, a cerca da liberdade que tem direito visto ter<br />

por diversas vezes ido ao Estado Oriental do Uruguai em companhia<br />

de sua ex-senhora Dona Mariana Romana Jacques casada com Sebastião<br />

Molina do Nascimento por seu livre consentimento, em virtude<br />

da Lei de 07-11-31 e Aviso de 20-05-5622 .<br />

O mesmo juiz também passou a alforria para outra escrava, a preta Maria, em<br />

186823 . No texto do registro consta que “em virtude dos senhores [herdeiros de Arminda<br />

Gonçalves Gomes] terem a consciência e certeza que a escrava Maria é livre<br />

por ter ido ao Estado Oriental deveras vezes em companhia de nossa mãe”. Pode<br />

ser que a conjuntura – um juiz favorável à causa do cativo, possa ter contribuído, não<br />

sendo assim uma coincidência Libindo Nunes aparecer nestes dois casos24 .<br />

Finalmente, ainda dentro do recorte temporal deste estudo, mais dois escravos<br />

- Joana25 (em 1869) e Braz26 (1870), de igual forma conquistaram a liberdade<br />

por terem ido ao Estado Oriental. O caso de Joana é muito interessante. Ela entrou em<br />

acordo com seu senhor, Anacleto Rodrigues Jacques, ganhando a liberdade com a<br />

condição de servi-lo por mais 7 anos. Entretanto, no momento do registro do documento,<br />

Anacleto Jacques<br />

[...] informado [...] que não podia dar liberdade a minha escrava Joana<br />

com a condição de servir-me por espaço de 7 anos, visto que ela foi<br />

ao Estado Oriental do Uruguai por meu consentimento, por meio<br />

20 O artigo 1º da lei de 1831 estabelece que “todos os escravos, que entrarem no território ou portos do Brasil,<br />

vindos de fora, ficam livres”. Informação em: GRINBERG, op. cit., 2007, p. 269. Ver também: ZUBARAN, op.<br />

cit., p. 125.<br />

21 Livros Notariais de Registros Diversos, 2º Tabelionato de Alegrete, livro 1, p. 24r, APERS.<br />

22 O aviso 188 de 20 de maio de 1856 foi uma resposta do Conselho de Estado a uma consulta do presidente do<br />

Tribunal de Apelação, Eusébio de Queirós. Nele, os conselheiros ratificaram a validade da lei de 1831. Informação<br />

em: GRINBERG, Keila, op. cit., 2007, p. 276. Por sua vez, o Aviso de 25 de janeiro de 1843 criou o acesso dos<br />

escravos aos curadores, o que garantiu a utilização de normas jurídicas pelos cativos. Informação em: ZUBARAN,<br />

op. cit., p. 121.<br />

23 Livros Notariais de Registros Diversos, 2º Tabelionato de Alegrete, livro 1, p. 27v, APERS.<br />

24 No inventário dos bens de seus falecidos pais, o Capitão Felisberto Nunes Coelho e Ana Joaquina da Conceição,<br />

Libindo Nunes Coelho já havia “abdicado do preço do escravo” Antônio, africano, “em favor de sua liberdade”,<br />

junto com os outros herdeiros, passando a alforria a Antônio em 31 de março de 1854. Informação em: Livros<br />

Notariais de Registros Diversos, 1º Tabelionato de Alegrete, livro 3, p. 65r, APERS.<br />

25 Livros Notariais de Registros Diversos, 2º Tabelionato de Alegrete, livro 1, p. 41r, APERS.<br />

26 Livros Notariais de Registros Diversos, 2º Tabelionato de Alegrete, livro 1, p. 52r, APERS.<br />

144


desta revogo a carta de liberdade que dei a dita a minha escrava com a<br />

condição de servir-me por 7 anos.<br />

No caso do preto Braz, de “mais de 60” anos, parece ter acontecido algo parecido.<br />

Após um longo texto, em que explica as razões de libertar seu escravo, Joaquina<br />

Maria Anhaia (viúva de José Manoel de Souza), expõe como último motivo o fato de<br />

ter sido “informada por pessoas fidedignas que o preto Braz por vezes esteve na República<br />

do Estado Oriental em companhia do mencionado meu marido”. Pode ser<br />

que Joaquina Anhaia pretendesse algo mais (alguma condição por tempo de serviço,<br />

certa quantia em dinheiro) para libertar seu cativo. Porém, o fato dele ter atravessado<br />

a fronteira com seu ex-senhor impossibilitou qualquer tentativa de ganho adicional<br />

para a viúva.<br />

Portanto, dentre as quatro manumissões registradas em razão dos escravos<br />

terem ido ao Estado Oriental, a única que pareceu litigiosa foi a da crioula Maria<br />

Estácia. Tendo conhecimento de que as regras jurídicas lhe possibilitavam tentar a<br />

liberdade, em razão das “contradições criadas pelos conflitos entre as elites locais e<br />

as metropolitanas” 27 sobre a interpretação da lei de 1831, e contando com a ajuda de<br />

outras pessoas – caso do advogado Franklin Gomes Souto, ela escolheu entrar na<br />

justiça. Não sabemos se antes de arriscar esta chance, Maria tentou um acordo com<br />

sua senhora28 .<br />

Keila Grinberg lembra que, embora tivesse entrado em vigência, a lei de 1831<br />

nunca foi colocada em prática – derivando daí à máxima lei para inglês ver 29 . Neste<br />

contexto, os juristas da Corte de Apelação do Rio de Janeiro tinham dúvidas em<br />

como proceder em relação às ações de liberdade que tinham como argumento central<br />

o tráfico ilegal. Por sua vez, mais complicados ainda eram os casos dos escravos<br />

do extremo sul do império, que requeriam a alforria por terem atravessado a fronteira30<br />

.<br />

Assim, em meio “a ambigüidade de regras” e à “necessidade de tomar decisões<br />

em situações de incerteza”, mesmo com uma “quantidade limitada de infor-<br />

27 GRINBERG, Keila, op. cit., 2007, p. 104. Segundo Maria A. Zubaran ocorreram “calorosas discussões entre os<br />

senadores do Império para decidir se esta Lei estava em vigor ou se caíra em desuso”. Alguns deles consideravam a<br />

lei vigente. Já outros pensavam ser ela “caduca”, deixando de “aplicá-la”. De concreto, para a autora, foi que a lei de<br />

1831 abriu “brechas legais que possibilitaram aos escravos, juntamente com seus curadores, pressionar as Cortes de<br />

Justiça para a interpretação da lei a favor da liberdade”. Informação em: ZUBARAN, op. cit., p. 123.<br />

28 Oportuno lembrar que Maria Estácia foi a primeira a conquistar a liberdade em Alegrete através deste argumento<br />

jurídico, não sabendo, deste modo, se iria ter êxito na sua tentativa.<br />

29 GRINBERG, Keila, op. cit., 2007, p. 269.<br />

30 Idem , 2007, p. 269-270. Até 1873, quando de uma sentença em contrário, podia-se apelar para a segunda instância,<br />

que era o tribunal de Relação do Rio de Janeiro. A partir de 1874, passou a ser o Tribunal de Relação de Porto Alegre.<br />

Informação em: ZUBARAN, op. cit., p. 121.<br />

145


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

mações” 31 , Maria Estácia, certamente amparada no grupo social ao qual pertencia,<br />

decidiu apostar na conquista da liberdade via justiça. Podemos nos questionar, caso<br />

tivesse fracassado a ação pela liberdade da cativa, o quão ruim seria seu relacionamento<br />

com sua senhora, com a escrava podendo sofrer retaliações pela sua ousadia.<br />

Felizmente, não foi o caso. Da mesma forma, o seu sucesso pode ter aberto “o caminho<br />

jurídico para a libertação de outros escravos” 32 , ou seja, pode ter contribuído<br />

para as liberdades de Braz, Joana, da outra Maria e de outros casos semelhantes após<br />

1871 33 .<br />

Como mencionei em estudo anterior, não é possível uniformizar toda uma<br />

gama de experiências, cada uma com sua lógica 34 . Deste modo, apesar do fato dos<br />

cinco escravos de Duarte Silveira não terem acessado a justiça, entrando em acordo<br />

com seu senhor, isto não descaracteriza que esta oportunidade foi aberta aos mesmos.<br />

Talvez eles pensassem ser mais vantajoso o acordo com o senhor, ou mesmo<br />

talvez esta possibilidade não tivesse chegado ao seu conhecimento.<br />

Por sua vez, não se está aqui “supervalorizando” ou “superdimensionando” 35<br />

o caso de Maria Estácia e dos demais escravos, nem os colocando em igualdade de<br />

condições em relação aos senhores perante o poder judiciário. Apenas é fato que eles<br />

se utilizaram de um recurso legal disponível. E a utilização da estrutura judiciária de<br />

curadores e juízes não permite a ilação de que esta estratégia somente legitimou o<br />

sistema escravista, debilitando a capacidade dos escravos de revoltarem-se e organizarem-se<br />

em rebeliões. Prefiro entender que Maria agiu dentro dos limites possíveis<br />

e que a sua ação, mesmo que não obtivesse sucesso, ajudou a enfraquecer toda a estrutura<br />

do regime escravista e, quem sabe, contribuiu para que o pensamento liberal<br />

de igualdade natural entre os homens, ainda que de maneira extremamente precária,<br />

se espalhasse mais rapidamente pelo país.<br />

Neste sentido, é importante a reflexão do historiador Edward P. Thompson,<br />

o qual entende que na negociação, mesmo entre forças sociais desiguais, os mais<br />

fracos ainda tinham direitos reconhecidos por aqueles que detinham mais força 36 .<br />

31 LEVI, Giovanni. A Herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVii. Rio de<br />

Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 46.<br />

32 GRINBERG, Keila. Alforria, direito e direitos no Brasil e nos Estados Unidos. Estudos Históricos, Rio de<br />

Janeiro, nº 27, 2001, p. 69.<br />

33 Apesar de não estarem dentro do período deste estudo, foram encontradas outras 8 alforrias, em Alegrete, com<br />

motivos idênticos aos dos 4 escravos, todas elas na década de 1870. Estas serão abordadas e analisadas quando do<br />

aprofundamento desta pesquisa.<br />

34 MATHEUS, Marcelo Santos. Alforrias em Alegrete (1832-1871). Santa Maria: TFG/UNIFRA, 2009, p. 37.<br />

(Monografia)<br />

35 GORENDER, J. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1991, p. 29-30.<br />

36 THOMPSON, Edward P. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p, 260.<br />

146


Da mesma forma, o autor compreende a lei como um espaço para defesa dos grupos<br />

subalternos e também para impor limites às classes dominantes (“muitas vezes<br />

um campo de conflito”), e não apenas como “outra máscara do domínio de uma<br />

classe” 37 . Foi isto que Maria - e o grupo social no qual ela estava inserida, fez. E<br />

com sucesso. Ela desafiou “o direito de propriedade” da senhora, “minimizando os<br />

aspectos coercitivos da lei” 38 .<br />

Contudo, este espaço fronteiriço não abria apenas oportunidades legais aos<br />

cativos. A proximidade com Estados onde a escravidão havia sido abolida, apesar<br />

de acordos entre eles e o Império brasileiro, não impediu as tentativas de fugas – as<br />

quais, por sua vez, não inviabilizaram a reprodução da escravidão naquele contexto<br />

39 . Luís A. Farinatti analisa em sua tese de doutorado um processo-crime onde a<br />

investigação tinha como base uma denúncia de uma fuga coletiva de escravos para<br />

o Estado Oriental, em 1850 40 . No processo aparece aproximadamente uma dezena<br />

de escravos, de cinco diferentes senhores, participando da ação juntamente com homens<br />

livres 41 . A complexidade do caso revela que, além dos cativos se utilizarem da<br />

fronteira dentro de suas possibilidades, eles elaboravam estratégias próprias, mesmo<br />

frente a uma pesada estrutura coercitiva 42 .<br />

Por fim, cabe aqui um comentário sobre uma diferenciação que a fronteira<br />

impunha ao valor dado a escolha dos padrinhos - os quais podiam ter um papel deci-<br />

37 THOMPSON, Edward P. Senhores e caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p.<br />

350-351e 352. Muito embora Thompson exclua “crianças” e “escravos” desta análise mais complexa de como a<br />

lei era produzida e aplicada na prática, releva-se o fato deste grupo social não ser o foco de seu estudo, bem como<br />

as pesquisas acerca da instituição escravidão ainda não estarem em um estágio mais avançado (nos temas e na sua<br />

complexidade) na época da publicação de Senhores e Caçadores. Portanto, considero extremamente válidas suas considerações<br />

sobre o acesso à lei pelos grupos subalternos, inclusive os cativos. Como ele mesmo pondera mais adiante,<br />

“a maioria dos homens tem um forte senso de justiça, pelo menos em relação aos seus próprios interesses”. Os<br />

escravos também o tinham, dentro dos seus limites. THOMPSON, Edward P., op. cit., 1987, p. 353-354.<br />

38 ZUBARAN, op. cit., p. 120.<br />

39 FARINATTI, op. cit., p. 379.<br />

40 Idem, p. 378-382.<br />

41 Aliás, eram frequentes as participações de homens livres, inclusive orientais, na “sedução de escravos”, com o<br />

objetivo de convencê-los a fugir para o Estado Oriental, especialmente a partir dos anos 1850. Nesta mesma década,<br />

Benito Varella, ex-vice-cônsul oriental de Jaguarão, foi inclusive preso acusado de aliciar cativos. Informações em:<br />

LIMA, Rafael Peter de. Violência na Fronteira: o seqüestro de negros no Estado Oriental (século XiX). IV<br />

Mostra de Pesquisa do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: CORAG, 2006, p. 264.<br />

Muito significativa também é a tentativa de insurreição escrava na vila de Taquari, em 1864, analisada por Paulo<br />

Moreira. Nela, os cativos planejavam saquear a cidade e depois atravessar a fronteira em busca da liberdade. MO-<br />

REIRA, op. cit., p. 134-141.<br />

42 Neste mesmo sentido, é exemplar o caso do escravo Salvador, analisado por Silmei Petiz. Salvador, ameaçado de ir<br />

a leilão após a morte de seu senhor, afirma que se tal fato ocorrer, ele “fugirá para o Estado Oriental”. Informação<br />

em PETIZ, Silmei de S. Buscando a liberdade: As fugas de escravos para o além-fronteira de 1811 a 1850.<br />

Passo Fundo: UPF, 2006, p. 63.<br />

147


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

sivo na busca pela liberdade 43 . Sidney Chalhoub, analisando as relações de compra e<br />

venda de escravos na corte, faz referência a um período de testes - o senhor, insatisfeito<br />

com a compra, poderia num curto prazo devolver o cativo 44 . Ele argumenta que, a<br />

princípio, isto que poderia parecer apenas uma garantia ao “consumidor”, também<br />

era um espaço de interferência do escravo na transação: durante o período de adaptação,<br />

os cativos podiam expressar ao futuro senhor o trabalho de sua preferência, a<br />

insatisfação com tarefas exigidas dele ou, no caso de não querer permanecer com o<br />

novo senhor, o cativo podia, dentre várias outras estratégias, ‘parecer’ doente.<br />

Tanto este período de teste, quanto a preferência do escravo em relação à sua<br />

ocupação parece algo impensável para a fronteira 45 . Ali, distante dos centros onde<br />

se comercializavam escravos, a adaptação do cativo ao meio social era uma necessidade.<br />

Por isso, os primeiros laços de parentescos, como o batismo, ganham outro<br />

significado em uma região longínqua de fronteira, ao contrário do que representava<br />

em centros com uma maior população cativa, onde o rito do batismo sancionava<br />

“formalmente uma aliança forjada anteriormente” 46 . Inserir o escravo no mundo<br />

social da Campanha, bem como dotá-lo de uma profissão, era algo que os senhores<br />

tinham que se preocupar, sob risco de perder o investimento 47 .<br />

43 Em minha monografia, analisei a alforria da parda Inácia, que teve sua liberdade paga em 4 de julho de 1837, quando<br />

tinha seis anos, pela madrinha Cipriana. Está pagou 300$ mil réis a Joaquim dos Santos Prado Lima. A madrinha,<br />

que no registro de batismo de Inácia consta como Sipriana Maria da Conceição, apadrinhou a menina juntamente<br />

com Jacinto, pardo e escravo. Até onde pôde ser verificado, Jacinto, entre os anos de 1830-32, foi padrinho de mais<br />

3 crianças escravas (além de Inácia), pertencentes a dois senhores diferentes, o que demonstra que ele era um indivíduo<br />

bastante requisitado e inserido numa extensa rede de relações, podendo apresentar atributos que auxiliavam<br />

outras pessoas a alcançar a liberdade. Informações em: Livros Notariais de Registro Diversos, 1º Tabelionato de<br />

Alegrete, livro 1, p. 73v, APERS; Livro 02 de Batismos da Capela Curada de Nossa Senhora Aparecida de<br />

Alegrete, folhas 358, 375 e 364. Arquivo da Diocese de Uruguaiana.<br />

44 CHAULOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São<br />

Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 75-77.<br />

45 Vinícius Pereira encontrou um caso semelhante aos de Sidney Chalhoub, mas em São Leopoldo e em relação a<br />

um cativo escravizado ilegalmente, pois havia sido seqüestrado no Uruguai. Informação em: OLIVEIRA, Vinícius<br />

Pereira de. De Manoel Congo a Manoel de Paula. Porto Alegre: EST, 2006, p. 67.<br />

46 ENGEMANN, Carlos. Da comunidade escrava e suas possibilidades, séculos XVII-XIX. In: MANOLO, Florentino<br />

(org.). Tráfico, cativeiro e liberdade: Rio de Janeiro, séculos XVii-XiX. Rio de Janeiro: Civilização<br />

Brasileira, 2005, p. 189.<br />

47 Gabriel Berute observou que aproximadamente 1/3 dos escravos despachados para o Rio Grande de São Pedro<br />

do Sul, entre 1788-1802, tinham entre 10 e 14 anos, ou seja, se esta tendência de entrada de escravos jovens continuou<br />

se reproduzindo até a primeira metade do século XIX, o rito do batismo ganha ainda mais importância. Informação<br />

em: BERUTE, Gabriel do Santos. Dos escravos que partem para os portos do sul: características do<br />

tráfico negreiro do Rio Grande de São Pedro do Sul, 1790-1825. Porto Alegre: PPGH/UFRGS, 2006. (Dissertação<br />

de Mestrado). Por outro lado, mesmo utilizando-se de algumas ferramentas como o batismo, não era fácil evitar<br />

as fugas de escravos oriundos de outras províncias, como percebeu Albertina Vasconcelos. A autora, investigando<br />

a importância do tráfico da Bahia para o Rio Grande do Sul através de guias e passaportes de escravos, relata que<br />

um número considerável de cativos naturais da Bahia fugia depois de aportar em Rio Grande, segundo os jornais da<br />

época. VASCONCELOS, Albertina Lima. Tráfico interno, liberdade e cotidiano de escravos no Rio Grande do Sul:<br />

1800-1850. CD-ROM [do] 2º Encontro “Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional”: Porto Alegre, 2005, p. 9-10.<br />

148


Neste contexto, o estudo com os registros de batismos, por exemplo, podem<br />

revelar a existência de alguns escravos que eram responsáveis pela integração dos<br />

novos cativos naquele mundo 48 , bem como quais padrinhos contribuíam mais para<br />

seus afilhados chegarem a liberdade. Portanto, da mesma maneira que a “condição<br />

de fronteira dotava-lhe [a elite rio-grandense] de recursos que outras elites periféricas<br />

não tinham” 49 , os escravos também podiam utilizá-la em beneficio próprio, conforme<br />

suas possibilidades.<br />

GUERRA E LIBERDADE: O DESCOMPROMETIMENTO<br />

DE ALEGRETE COM A CAUSA BRASILEIRA<br />

A guerra, evento constante em boa parte do século XIX na capitania e depois<br />

província de São Pedro do Rio Grande do Sul, também influenciou as vidas e<br />

estratégias dos escravos do Brasil meridional. Gabriel Aladrén, analisando a participação<br />

de pretos e pardos, livres e libertos nas Guerras Cisplatinas entre 1811 e 1828,<br />

período anterior ao deste estudo, afirma que “um dos caminhos mais sólidos para<br />

ascensão social de libertos e negros livres durante o período colonial era a participação<br />

nas campanhas milicianas” 50 . O autor ressalta que em meio às batalhas, em<br />

1817 e 1818, foram criados o 1º e 2º Batalhões dos Libertos para compor as tropas<br />

luso-brasileiras 51 . Este expediente foi utilizado, também, em função do líder oriental<br />

José G. Artigas ter formado em 1816 um “Batallón de Negros” 52 . Assim, os escravos<br />

“que pasasen al ejército português, ‘ganarían su libertad em el dia’” 53 .<br />

Durante o período que este estudo abrange, aconteceram três grandes confli-<br />

48 Inclusive com o papel de lhes ensinar um ofício, fazendo com que no caso de crianças escravas, por volta dos 12<br />

anos, entrassem no mundo dos adultos. Informação em: MANOLO, Florentino. Morfologia da infância escrava: Rio<br />

de Janeiro, séculos XVII e XIX. In: MANOLO, Florentino (org.). Tráfico, cativeiro e liberdade: Rio de Janeiro,<br />

séculos XVii-XiX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 215, p. 217.<br />

49 FARINATTI, op. cit., p. 35.<br />

50 ALADRÉN, Gabriel. Liberdades Negras nas Paragens do Sul: alforrias e inserção social de libertos em<br />

Porto Alegre, 1800-1835. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009, p. 141.<br />

51 ALADRÉN, Gabriel. Guerra, fronteira e liberdade: fuga de escravos e vivências de forros durante a campanha<br />

contra Artigas (Rio Grande de São Pedro, 1811-1820). Caicó: Revista d Humanidades/UFRN, v. 9, n.<br />

24, 2008, p. 1. Sobre o tema também ver: BAKOS, Margaret Marchiori. A Escravidão Negra e os Farroupilhas. In:<br />

PESAVENTO, Sandra Jatahy [e outros] (org.). A Revolução Farroupilha: história e interpretação. Porto Alegre:<br />

Mercado Aberto, 1997, p. 89-90.<br />

52 FREGA, Ana, op. cit., p. 9.<br />

53 Idem, p. 23. Nada menos do que 237 escravos conquistaram a liberdade desta forma. Informação em: ALA-<br />

DRÉN, op. cit., p. 7. No município de Rio grande, conforme Jovani Scherer, as alforrias quase triplicaram durante o<br />

período de “conquista da Cisplatina pelos luso-brasileiros, em ralação ao período anterior a 1810”. Informação em:<br />

SCHERER, Jovani de Souza. Experiências de busca da liberdade: alforria e comunidade africana em Rio<br />

Grande, século XiX. São Leopoldo: PPGH/UNISINOS, 2008, p. 66. (Dissertação de Mestrado)<br />

149


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

tos: a Revolução Farroupilha (1835-1845), a Guerra Grande, a qual levou a entrada<br />

brasileira no conflito configurando a Guerra contra Oribe e Rosas (1851-1852), e a<br />

Guerra do Paraguai (1864-1870). Como fenômeno que desestabilizava as relações<br />

comerciais e sociais, estas guerras também abriram a possibilidade dos escravos alcançarem<br />

a liberdade, seja na forma de alforria, seja na fuga – facilitada pelos problemas<br />

causados pelos conflitos.<br />

No que concerne à Revolução Farroupilha, César A. Guazzeli destaca que o<br />

conflito entre parte da elite rio-grandense e o Império abriu um canal por onde os<br />

cativos podiam alcançar a liberdade, já que a utilização de libertos nas tropas dos<br />

rebeldes foi uma constante 54 . Assim, os escravos pagavam com o serviço militar<br />

pela alforria. Como a necessidade de tropas era enorme, ambos os lados da disputa<br />

empregaram deste expediente, com os farrapos utilizando-se, inclusive, de jornais da<br />

época para prometer a liberdade aos escravos que se engajassem no conflito 55 . Isto<br />

foi preciso, também, em razão de alguns senhores rio-grandenses (farrapos, dentre<br />

eles), com medo de perder seus escravos em meio ao conflito, os transferirem para<br />

o Estado Oriental 56 . Porém, como vimos, esta estratégia acabou por oportunizar a<br />

alguns cativos a possibilidade de requerer a liberdade 57 .<br />

Em 1838, mais precisamente, o governo dos farrapos começou o recrutamento<br />

de índios e pretos libertos para formar, oficialmente, o Corpo de Lanceiros<br />

da 1º Linha, Infantaria e Caçadores, embora o alistamento de escravos já estivesse<br />

acontecendo desde 1836 58 . Estima-se que, ao final do conflito, quase metade das<br />

tropas dos rebeldes era composta por ex-cativos 59 .<br />

54 GUAZZELLI, César Augusto Barcellos. A República rio-grandense e o rio da prata: a questão dos escravos<br />

libertos. CD-ROM [do] 2º Encontro “Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional”: Porto Alegre, 2005, p. 2 e p. 3.<br />

55 Idem, p. 9; CUNHA, Manoela Carneiro da. Sobre os silêncios da lei: lei costumeira e positiva nas alforrias de<br />

escravos no Brasil do século XIX. In: Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo: Brasiliense,<br />

1986, p. 126; LEITMAN, op. cit., 1979, p. 70; BAKOS, op. cit., p. 91.<br />

56 GUAZZELLI, op. cit., 2005, p. 10. Silmei Petiz destaca que, em 16 de novembro de 1835, o governo do Estado<br />

Oriental proibiu, por meio de decreto, a entrada de escravos rio-grandenses em seu território. Com isto, visava<br />

atingir os senhores que transferiam seus cativos, pois tinham medo de perdê-los em meio ao conflito. Informação<br />

em: PETIZ, op. cit., p. 41.<br />

57 Maria A. Zubaran observa que em 4 ações de liberdades que tinham como justificativa o escravo ter ido ao<br />

Estado Oriental, os senhores contra-argumentaram que assim o procederam “devido à Guerra Civil na Província,<br />

a Revolução Farroupilha”. Como destaca a autora, é interessante notar que essa argumentação senhorial inverte o<br />

imaginário sobre a Revolução Farroupilha, qual seja, o de um movimento libertário. Informação em: ZUBARAN,<br />

op. cit., p. 128129.<br />

58 LEITMAN, Spencer. Negros Farrapos: hipocrisia racial no sul do Brasil no século XIX. In: PESAVENTO, Sandra<br />

Jatahy [e outros] (org.). A Revolução Farroupilha: história e interpretação. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997,<br />

p. 64; CARVALHO, Daniela Vallandro. “Nunca o inimigo havia visto as costas destes filhos da liberdade”:<br />

Experiências negras na guerra (Brasil Meridional, 1835-1845). CD-ROM [do] 4º Encontro “Escravidão e<br />

Liberdade no Brasil Meridional”: Curitiba, 2009, p. 4.<br />

59 CARVALHO, op. cit., p. 4.<br />

150


Jovani Scherer, em sua pesquisa sobre o município de Rio Grande, comenta<br />

que a quantidade de “alforrias registradas em cartório demonstram que os conflitos<br />

bélicos da província foram momentos de aumento considerável de cartas de alforria,<br />

sobretudo a Guerra dos Farrapos, período em que a concessão de alforrias alcançou<br />

as maiores médias” 60 . É interessante notar que Scherer encontrou um aumento de<br />

mulheres alforriadas, com registro em cartório, durante a Revolução Farroupilha,<br />

sendo que no período imediatamente anterior ao conflito havia um equilíbrio entre<br />

os sexos 61 .<br />

Como demonstrei em minha pesquisa anterior, o período entre 1832 e 1849<br />

foi o que mais mulheres alcançaram a liberdade em Alegrete (59, ou 39,5% do total<br />

de mulheres manumissas entre 1832 e 1871) 62 . As alforrias que ocorreram somente<br />

entre 1835 e 1846, ano imediatamente após o término do conflito, representam<br />

29,5% do total (44 manumissões de escravas), ou seja, ainda assim seria um número<br />

bastante relevante em relação aos outros recortes temporais. Com isso, é possível<br />

concluir, da mesma forma que J. Scherer, que a Guerra dos Farrapos abriu possibilidades<br />

dos escravos chegarem à liberdade. E, mais importante, o maior número<br />

de alforriados foi de mulheres (ocorreram 24 manumissões de homens em Alegrete<br />

entre 1835 e 1846), o que também nos leva a crer que havia uma estratégia mais<br />

complexa, e coletiva em muitos casos, por de trás destas liberdades.<br />

Por sua vez, retornando ao caso dos libertos farrapos, também havia o receio<br />

por parte dos comandantes rebeldes de que Fructuoso Rivera, em conflito com Manuel<br />

Oribe, incorpora-se nos seus batalhões os forros da Revolução Farroupilha 63 .<br />

Por isso, em 1838 – ano em que Rivera ocupou Montevidéu e retomou o poder, os<br />

republicanos rio-grandenses fecharam um acordo com o governo oriental, o Tratado<br />

de Cangué, em que Rivera comprometia-se a respeitar a propriedade dos escravos<br />

que ultrapassassem a fronteira 64 . A partir deste momento, foi a vez de Oribe, que<br />

comandava o interior, especialmente o norte do Uruguai, receber em suas tropas os<br />

cativos que conseguiam escapar 65 .<br />

60 SCHERER, op. cit., p. 66-67. (grifos meus)<br />

61 Idem, p. 75. Scherer encontrou apenas uma alforria, durante a Guerra dos Farrapos, em que o motivo direto era<br />

o escravo ir servir no lugar de seu senhor. Idem, p. 82.<br />

62 O período entre 1850 e 1859 representou 32,5% das alforriadas em Alegrete, enquanto entre 1860 e 1871, 28%.<br />

Informação em: MATHEUS, op. cit., p. 66.<br />

63 GUAZZELLI, op. cit., 2004, p. 117. Este foi o caso do africano Francisco, relatado por D. Carvalho. Informação<br />

em: CARVALHO, op. cit., p. 11-13.<br />

64 GUAZZELLI, op. cit., 2004, p. 108. Em 1838 os comandantes farroupilhas também fecharam um acordo para<br />

devolução de escravos fugidos com o governador de Corrientes, Pedro Ferré. Informação em: GUAZZELLI, César<br />

Augusto Barcellos. A República rio-grandense..., 2005, p. 8.<br />

65 FARINATTI, op. cit., p. 193.<br />

151


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Finalmente, a questão do que fazer com os escravos que lutaram ao lado dos<br />

farrapos contra as tropas imperiais foi motivo de discussões, tanto por parte dos<br />

rebeldes, quanto do Conselho de Estado imperial 66 . Temia-se que a re-incorporação<br />

deste contingente de soldados, agora livres, pudesse criar um terrível precedente 67 .<br />

A solução foi o pragmatismo: com o extermínio de muitos negros que lutaram ao<br />

lado dos farrapos na Batalha de Porongos, ficou aberto o caminho para o Império<br />

aceitar o artigo quarto do Tratado de Ponche Verde, o qual reconhecia a liberdade<br />

dos escravos que serviram à revolução 68 .<br />

Como se percebe, a guerra civil uruguaia, contemporânea a Farroupilha e que<br />

terminou apenas no início da década de 1850, também possibilitou a alguns escravos<br />

chegarem à liberdade, seja através da alforria - incorporando-se as tropas (tanto de<br />

colorados quantos dos blancos), seja por meio de fugas 69 . No fim dos anos 1840,<br />

quatro cativos do Brigadeiro Ortiz que trabalhavam na estância de Tacumbú, no<br />

Estado Oriental, aproveitaram-se da desorganização causada pela guerra e fugiram 70 .<br />

Na verdade, estas fugas vinham ocorrendo desde o decênio farroupilha. Por causa<br />

delas, nos anos de 1848 e 1849, os delegados de polícia dos municípios organizaram<br />

listas, as quais continham o número de escravos que estavam fugidos, bem como<br />

suas características. Ao todo, contabilizou-se 944 cativos que estavam evadidos, a<br />

maioria para o “além-fronteira” 71 .<br />

Todavia, não se deve imaginar que a fuga era algo de fácil realização. Se por<br />

um lado provavelmente “havia redes de auxílio, proteção e informação que articulavam<br />

escravos e livres”, viabilizando as fugas, por outro também havia “redes de<br />

comunicação e vigilância” por parte dos senhores 72 . Além disso, as longas distâncias<br />

que o escravo teria que atravessar, junto a outras dificuldades, de igual forma trans-<br />

66 GUAZZELLI, op. cit., 2005, p. 21-22; LEITMAN, op. cit., 1997, p. 72 e p. 74.<br />

67 GUAZZELLI, op. cit., 2004, p. 116. LEITMAN, op. cit., 1997, p. 72.<br />

68 GUAZZELLI, op. cit., 2005, p. 22-23; LEITMAN, op. cit., 1997, p. 75-76. Em relação aos sobreviventes, há<br />

indícios, segundo Daniela Carvalho, que muitos deles foram enviados para o Rio de Janeiro e re-escravizados. Informação<br />

em: CARVALHO, op. cit., p. 5.<br />

69 Em 1850, o delegado do município de Rio grande listou 57 escravos que estariam evadidos no Estado Oriental.<br />

Informação em: SCHERER, op. cit., p. 80-81.<br />

70 A propriedade dos cativos e sua ausência constam no inventário da esposa do Brigadeiro, o qual foi analisado por<br />

Luís A. Farinatti. Informação em: FARINATTI, op. cit., p. 382.<br />

71 PÉTIZ, op. cit, p. 25-27. Jônatas Caratti encontrou outra lista, desta vez com 266 cativos que haviam fugido, elaborada,<br />

provavelmente, no início da década de 1850. Destes, apenas 4 também estavam presentes na lista analisada<br />

por Silmei Petiz. Informação em: CARATTI, Jônatas Marques. Em busca da posse cativa: o Tratado de Devolução<br />

de Escravos entre a República Oriental do Uruguai e o império brasileiro a partir de uma relação<br />

nominal de escravos fugidos da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul (1851). CD-ROM [do] 4º<br />

Encontro “Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional”: Curitiba, 2009.<br />

72 FARINATTI, Luis Augusto Ebling. Confins Meridionais...2007, p. 384.<br />

152


formava a fuga em uma empreitada difícil73 . Por fim, “ao fugir para [...] outro país,<br />

o escravo extrapolava a esfera da comunidade em que estava inserido”, tendo que,<br />

algumas vezes, reconstruir do zero suas relações sociais74 .<br />

Um terceiro conflito, a Guerra do Paraguai, engendrou outra possibilidade<br />

aos cativos alcançarem a liberdade. Durante a contenda, alguns senhores alforriaram<br />

seus escravos para estes irem lutar no seu lugar (ou de algum parente). Paulo Moreira,<br />

analisando as cartas de alforria de Porto Alegre, encontrou 144 manumissões que<br />

tinham como finalidade a ida do liberto a guerra75 . Por sua vez, Thiago Araújo destaca<br />

em sua pesquisa sobre Cruz Alta que, provavelmente, “uma parte considerável<br />

do declínio da população escrava da vila [...] foi decorrência da Guerra do Paraguai,<br />

embora as fontes silenciem sobre esta questão” 76 .<br />

Até aqui não foi mencionado nenhum caso de manumissão em Alegrete, relacionada<br />

a algum dos conflitos citados77 . Como vimos, tanto a guerra de independência<br />

do Uruguai e seus conflitos internos posteriores, como a Revolução Farroupilha<br />

abriram caminhos, seja pela fuga, seja pela participação na contenda, para a<br />

liberdade. Com a Guerra do Paraguai não foi diferente. Como o exército brasileiro<br />

precisava de voluntários, a província do Rio Grande é quem melhor podia fornecêlos,<br />

dada sua localização. Analisando rapidamente as alforrias para toda a província,<br />

não foram poucas as liberdades conquistadas em troca do escravo ir lutar na guerra,<br />

principalmente com o objetivo de substituir seu senhor ou algum parente deste78 .<br />

No município de Santa Maria, região central da província, por exemplo, entre<br />

1865 e 1867, 5 escravos foram libertos com a condição de ir lutar no lugar de seu senhor.<br />

Henrique Niederaner alforriou seu escravo Vicente, pardo e nascido no Brasil,<br />

em fevereiro de 1867 para<br />

[...] servir no exército brasileiro em meu lugar, como meu substituto<br />

por me achar compreendido como Guarda Nacional do município<br />

de Santa Maria da Boca do Monte, a marchar para a guerra, sendo o<br />

73 MOREIRA, op. cit., p. 125. PETIZ, op. cit., p. 52.<br />

74 PETIZ, op. cit., p. 139.<br />

75 MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Os cativos e os Homens de Bem: experiências negras no espaço urbano.<br />

Porto Alegre: EST, 2003, p. 220.<br />

76 ARAÚJO, Thiago Leitão de. Escravidão, fronteira e liberdade: políticas de domínio, trabalho e luta em<br />

um contexto produtivo agropecuário (vila de Cruz Alta, província do Rio Grande do Sul, 1834-1884). Porto<br />

Alegre: PPGH/UFRGS, 2008, p. 107. (Dissertação de Mestrado)<br />

77 Em 1841, em meio a Farroupilha, David Canabarro alforriou Joaquim, “crioulo Rio-Grandense”, de 55 anos,<br />

“por bons serviços prestados”. Contudo, não há nenhuma referência direta que estes bons serviços tivessem sido<br />

realizados durante o conflito. Informação em: Livros Notariais de Registro Diversos, 1º Tabelionato de Alegrete,<br />

livro 1, p. 96r, APERS.<br />

78 O que só foi possível em função do importante trabalho realizado pelo Arquivo Público do Estado do Rio Grande<br />

do Sul, e pelos estagiários envolvidos neste projeto, o qual disponibilizou todas as alforrias no seu sítio na internet<br />

153


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

dito meu escravo Vicente, obrigado a servir, não só durante a presente<br />

guerra com a Republica do Paraguai, como depois dela concluída,<br />

conforme for determinado pelo governo, sobre os substitutos escravos<br />

libertados para semelhante fim; e desde o momento que seja aceito<br />

o dito meu escravo, e fique eu isento de todo o serviço, e garantido,<br />

como se lá esteja a minha própria pessoa lhe concedo a liberdade79 .<br />

Apesar de não haver nenhuma carta de alforria em Alegrete relacionada a algum<br />

dos três conflitos citados, o mais intrigante é a inexistência de manumissões durante<br />

a Guerra do Paraguai. Alegrete estava localizada na zona de conflito – a cidade<br />

de Uruguaiana, por exemplo, que foi invadida pelos paraguaios, até 1846 pertencia<br />

ao município de Alegrete80 . Além disso, muitos integrantes da elite alegretense eram<br />

também militares ou tinham laços de parentesco com algum oficial81 .<br />

Assim, quase não faz sentido em Santa Maria, cidade mais afastada da zona de<br />

combate, haver cinco alforrias ligadas à guerra e em Alegrete nenhuma. Dois últimos<br />

exemplos. No município de Jaguarão, também de fronteira, mas não tão perto do<br />

palco das batalhas quanto Alegrete, nada menos do que 17 alforrias foram passadas<br />

com a condição dos escravos irem lutar na guerra. Por sua vez, Antônio Lacerda<br />

encontrou quatro alforrias para o município de Juiz de Fora (!), em Minas Gerais82 .<br />

Como já foi dito, Thiago Araújo levantou a hipótese das cartas silenciarem<br />

em relação a participação dos cativos nesta guerra, já que encontrou apenas duas<br />

alforrias em Cruz Alta relacionadas à Guerra do Paraguai83 . Contudo, considero<br />

complicada está suposição, já que para tantos outros municípios as manumissões<br />

com condição de servirem ao exército aparecem explicitamente nos registros. Não<br />

é possível aqui descobrir o porquê deste falso descomprometimento dos habitantes<br />

de Alegrete para com a causa do Império. Todavia, assim como para Thiago Araújo,<br />

fica a dúvida do por que desta omissão – nos documentos ou dos proprietários de<br />

escravos, zelosos por seu patrimônio84 .<br />

Por outro lado, vimos que dentre os quatro escravos que conquistaram a liberdade<br />

por terem ido ao Estado Oriental, todos eles foram entre os anos de 1868 e 1870,<br />

79 Livros Notariais de Transmissões e Notas, 1º Tabelionato de Santa Maria, livro 4, p. 139r, APERS.<br />

80 FEDERAçãO DE ECONOMIA E ESTATíSTICA. De Província de São Pedro a Estado do Rio Grande<br />

do Sul - censos do RS 1803-1950. Porto Alegre: FEDERAçãO DE ECONOMIA E ESTATíSTICA, 1981, p. 30.<br />

81 FARINATTI, op. cit., 2007.<br />

82 LACERDA, Antônio Henrique Duarte. Os padrões das alforrias em um município cafeeiro em expansão:<br />

Juiz de Fora, Zona da Mata de Minas Gerais, 1844-1888. São Paulo: FABEP/Annablume, 2006, p. 66.<br />

83 ARAÚJO, op. cit., p. 250-251.<br />

84 Provavelmente as fontes referentes ao recrutamento para a guerra do Paraguai ajudem a esclarecer melhor esta<br />

questão. Nelas, talvez, seja possível encontrar quais lideranças militares locais se engajaram na organização do exército.<br />

154


ou seja, no contexto da Guerra do Paraguai. Maria A. Zubaran sugere que o impacto<br />

deste conflito contribuiu para a “produção de um imaginário favorável à libertação<br />

dos escravos na província” 85 . Colaborou com isto a intensificação do “deslocamento<br />

de estancieiros rio-grandenses e seus escravos de um lado para o outro da fronteira<br />

[...] permitindo aos curadores rio-grandenses novas interpretações da Lei anti-tráfico<br />

de 1831” 86 .<br />

Entretanto, não se pode pensar que a guerra e a própria condição de fronteira<br />

traziam apenas esperança e bons ventos aos cativos, já que oportunizava a liberdade<br />

através da fuga ou do engajamento militar. Como evento que desestabilizava o mundo<br />

de todos os agentes históricos ali presentes, ela também trazia infortúnios aos<br />

escravos. Neste sentido, são significativos os casos de seqüestro de negros orientais,<br />

em meados do século XIX, para escravizá-los em terras brasileiras. Alguns destes<br />

eram cativos que haviam fugido, ou descendentes destes. Em outros casos, os riograndenses<br />

raptores falsificavam registros de batismo para provar que o indivíduo<br />

havia nascido no Brasil e, por isso, era escravo 87 .<br />

***<br />

Em trabalho anterior, argumentei ser necessário uma desnaturalização tanto<br />

do conceito da palavra liberdade, quanto o de um suposto desejo intrínseco dos<br />

escravos por ela 88 . Neste sentido, uma passagem do processo-crime analisado por L.<br />

A. Farinatti, referido anteriormente, é reveladora. Durante o interrogatório de vários<br />

indivíduos, envolvidos ou não no crime, o testemunho do escravo Adão é interessantíssimo.<br />

Negando envolvimento na organização da fuga coletiva, Adão admitiu<br />

somente ter sido convidado para a mesma, não tendo aceitado em razão de já ter<br />

fugido uma vez para o Estado Oriental, e “que tendo chegado ali o prenderam e o<br />

85 ZUBARAN, op. cit., p. 122.<br />

86 Idem, p. 122.<br />

87 Informações em: OLIVEIRA, op. cit.; LIMA, op. cit., p. 263 e p. 267-268; CARATTI, Jônatas Marques. Apreensão,<br />

Venda e Extradição: experiências de uma crioula oriental em terras sul-rio-grandenses (1842-1854).<br />

V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: CORAG, 2007, p.<br />

120. Portanto, como vimos anteriormente, da mesma forma que algumas pessoas eram “incitadas” a fugir para o<br />

lado oriental, o caminho inverso era verdadeiro, como destacam Alex Borucki, K. Chagas e Natalia Satalla: “En la<br />

frontera se establecieron corrientes migratorias de población negra em ambas direcciones. Por un lado, las fugas de<br />

esclavos brasileños, por otro, los raptos de morenos orientales llevados a Brasil”. Informação em: BORUCKI, Alex;<br />

CHAGAS, Karla; STALLA Natalia. Esclavitud Y Trabajo: Un Estudio Sobre Los Afrodescendientes En La<br />

Frontera Uruguaya (1835-1855). Montevideo: Pulmón Ediciones, 2004, P. 149.<br />

88 MATHEUS, op. cit., p. 11-12.<br />

155


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

mandaram para o Salto, para servir de soldado e como era inimigo de ser soldado,<br />

tinha fugido do caminho e tinha vindo apresentar-se a seu senhor” 89 .<br />

Ou seja, “aquela” liberdade alcançada por Adão, não o interessava. Certamente<br />

ele mediu os riscos e os ganhos que teria sendo um “homem livre”, mas soldado,<br />

em um contexto onde a guerra era uma constante, e preferiu voltar ao seu senhor,<br />

mesmo que isso representasse a sua volta à condição de cativo e, quem sabe, uma<br />

severa punição 90 .<br />

Portanto, “endemia bélica e irregularidade institucional compunham o ambiente<br />

onde sujeitos buscavam desenvolver estratégias para sobreviver e ascender ou reproduzir<br />

sua posição social” 91 . Como vimos, com os escravos não era diferente. Ao<br />

mesmo tempo em que sofreram as consequências daquele espaço fronteiriço e das<br />

guerras, os cativos também se utilizaram destes recursos para tentar atingir alguns de<br />

seus objetivos, os quais, às vezes, era composto pelo sonho de conquista da liberdade.<br />

89 FARINATTI, op. cit., p. 380.<br />

90 O caso de Adão é semelhante ao do cativo Antônio Maria, estudado por Paulo Moreira. Depois de delatar uma<br />

tentativa de insurreição de escravos em Porto Alegre, Antônio Maria receberia sua alforria, com a condição de servir<br />

as forças armadas na Guerra do Paraguai, o que de pronto rejeitou. MOREIRA, op. cit., 1998, p. 134; Silmei Petiz<br />

também analisa um caso de um cativo que fugiu e, sete anos depois, apresentou-se ao seu senhor. PETIZ, op. cit.,<br />

p. 71.Por fim, um último exemplo da necessidade de qualificar a liberdade, não tratando-a de maneira homogênea.<br />

Na década de 1830, o escravo Caetano, depois de ter sido feito prisioneiro, foi liberto e passou a receber pensão de<br />

soldado em Buenos Aires. Entretanto, Caetano fugiu, apresentando-se ao seu senhor. Informação em: ALADRÉN,<br />

Gabriel, op. cit., 2009, p. 150-151.<br />

91 FARINATTI, op. cit., p. 78.<br />

156


Fontes Primárias<br />

Arquivo Público do Rio Grande do Sul<br />

FONTES PESQUISADAS<br />

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Arquivo da Diocese de Uruguaiana<br />

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Arquivo da Diocese de Uruguaiana.<br />

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160


firMAndo (e AfrouxAndo) os lAços: CoMPAdrio,<br />

AlforriA e exPeCtAtivAs eM torno dA liberdAde – rio<br />

PArdo/rs, últiMAs déCAdAs dA esCrAvidão.<br />

Melina Kleinert Perussatto*<br />

Resumo: O compadrio era, sem dúvida, um laço ritual valorizado pelas famílias escravas, cujos<br />

desdobramentos frequentemente escapavam às projeções dos diferentes atores sociais envolvidos. Dessa<br />

maneira, propomos discutir diferentes expectativas em torno das relações de compadrio no processo<br />

da alforria nas últimas décadas da escravidão. Para tanto, utilizaremos dois casos ocorridos no município<br />

de Rio Pardo/RS que têm em comum a intervenção de padrinhos na consecução da liberdade de<br />

suas afilhadas, sendo um deles liberto condicional e outro membro da casa senhorial.<br />

Palavras-chave: família escrava – compadrio – alforria – liberdade – Rio Pardo.<br />

Em 30 de agosto de 1870 o liberto condicional Severino ofereceu em<br />

juízo o valor da avaliação de sua afilhada para que a mesma pudesse<br />

“gozar de todos os foros e privilégios de pessoa livre”¹. A pequena<br />

Lourença tinha somente dois anos quando foi inventariada por ocasião da morte<br />

de seu senhor, Lino Teixeira de Sá, em 1869². Assim como ela, outros três escravos<br />

adultos beneficiaram-se do que facultava o terceiro artigo de uma lei aprovada há<br />

menos de um ano da abertura do inventário, em 15 de setembro de 1869³. Entre os<br />

libertos estava Joaquina, de 50 anos de idade, avó de Lourença 4 . Lourença era filha<br />

natural de Bernarda e nasceu em dez de agosto de 1868. Foi batizada dois meses<br />

depois. Como padrinhos, os escravos Severino, de Dona Maria Esméria de Farias, e<br />

* Mestre em História pela Unisinos.<br />

¹ APERS. Rio Pardo/RS. 1º Tabelionato. Livro 16, p. 150v. Carta de alforria. Concessão: 30/08/1870. Registro:<br />

01/09/1870.<br />

² Lino Teixeira de Sá em 1869 possuía um monte mor pouco superior a 2:000$000 réis, constituído por nove escravos,<br />

parte de uma casa de moradia e de uma casa de atafona, além de nove animais vacuns e seis cavalares, e outros<br />

móveis e utensílios (APERS. Rio Pardo/RS. Vara da família. Inventários post-mortem. Número 726. Ano 1869).<br />

³ O referido artigo versava o seguinte: Art. 3º. Nos inventários em que não forem interessados como herdeiros<br />

ascendentes e descendentes, e ficarem salvos por outros bens ou direitos dos credores, poderá o juiz do inventário<br />

conceder cartas de liberdade aos escravos inventariados que exibirem à vista de suas avaliações judiciais (Decreto n.<br />

1695 de 15 de setembro de 1869).<br />

4 APERS. Rio Pardo/RS. 1º Tabelionato. Livro 16, p. 150r. Carta de alforria. Concessão e registro em 29/08/1870.<br />

161


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Cipriana, de Dona Ana Ubaldina de Faria Alencar 5 . Seu padrinho, apesar de identificado<br />

como escravo no assento de batismo, já possuía título de liberdade condicional<br />

há anos. Contudo, tratava-se de uma alforria condicionada à morte de sua senhora,<br />

que só se efetivou em 1873.<br />

Nesse mesmo ano, Severino registrou sua alf1orria em cartório 6 . O inventário<br />

dos bens de sua falecida senhora foi aberto somente em 1875 e apesar de Severino<br />

não constar mais entre os bens, constava na matrícula de 1872 e na classificação pela<br />

junta de emancipação em 1873. Interessante observar que no ano seguinte foi preterido<br />

da classificação por possuir carta de liberdade condicional, não sendo mais escravo<br />

aos olhos da junta. Ou seja, apesar de possuí-la há 13 anos somente foi levada<br />

em conta após o registro notarial, evidenciando as ambiguidades que caracterizavam<br />

os libertandos sob essa condição 7 . Na classificação em que foi preterido, Severino foi<br />

descrito como preto, crioulo, 48 anos, lavrador e campeiro. Gostaríamos de frisar<br />

que foi informado também que residia em uma chácara com sua esposa Joaquina, já<br />

liberta, sem filhos.<br />

O teor da carta de alforria, por sua vez, nos mostra que aos olhos de sua senhora<br />

Severino tinha uma boa conduta, sempre servindo com obediência “durante<br />

o tempo de seu cativeiro”. Por isso mereceria a liberdade após seu falecimento –<br />

caso assim continuasse servindo, pois “se por ventura degenerar, fica de nenhum<br />

efeito este benefício que lhe outorgo”. Severino pelo jeito havia conquistado alguns<br />

espaços de autonomia durante o tempo de seu cativeiro, pois morava em uma chácara na<br />

companhia de sua esposa, a liberta Joaquina, e havia amealhado pecúlio suficiente<br />

para libertar sua afilhada Lourença. Além disso, os laços espirituais estabelecidos<br />

com Bernarda podem ter feito parte de seus projetos. Aliás, em 1875 o filho ingênuo<br />

de Bernarda, Cláudio, foi amadrinhado por Joaquina – seria a esposa de Severino?<br />

Bernarda, comadre de Severino e talvez de Joaquina, por seu turno, era cozinheira<br />

e tinha 19 anos quando foi inventariada e partilhada aos herdeiros do senhor<br />

5 AHCMPA. Rio Pardo/RS. Livro de registros de batismos de escravos. 1860-1869.<br />

6 A carta foi concedida “em remuneração dos bons serviços e obediência com que se tem sempre prestado durante<br />

o tempo de seu cativeiro [...], com a condição porém de continuar a servir-me como até agora, e se por ventura<br />

degenerar, fica de nenhum efeito este benefício que lhe outorgo, por ser de minha livre vontade que, tendo ele<br />

merecido, chegue a gozar,pela sua boa conduta, que deve continuar a ser a mesma, para depois de meu falecimento<br />

gozar como e onde lhe convier, de sua plena liberdade”. A senhora pediu ao Tabelião Francisco de Paula Liz que a<br />

fizesse (APERS. Rio Pardo/RS. 2º Tabelionato. Livro 20, p. 104r. Concessão: 06/11/1860. Registro: 15/07/1873).<br />

7 Sobre as ambiguidades e os significados da liberdade ver especialmente: CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade:<br />

uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990; XAVIER, Regina.<br />

A conquista da liberdade: libertos em Campinas na segunda metade do século XIX. Campinas: UNICAMP, 1996;<br />

MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Os cativos e os homens de bem: experiências negras no espaço urbano: Porto Alegre<br />

1858-1888. Porto Alegre: EST, 2003.<br />

162


Lino Teixeira de Sá. A viúva Dona Guilhermina ficou com parte de Bernarda na<br />

partilha e por meio de seu inventário, aberto dez anos depois do falecimento do marido,<br />

descobrimos que Luiz, filho de Bernarda, nasceu após a partilha e foi dividido<br />

entre os herdeiros. Talvez para resolver esse impasse, decidiu-se por classificá-los em<br />

1877. Sem obter sucesso recorreram novamente ao auxílio governamental em 1883.<br />

Dessa vez apresentou-se “o cidadão Major Feliciano de Paula Ribas por parte da<br />

escrava Bernarda”. Dizia ser de propriedade de Antônio de Souza Oliveira – genro<br />

e inventariante dos bens do falecido Lino Teixeira de Sá –, “ser casada com o indivíduo<br />

liberto de nome Luiz José, ter 31 anos de idade e com cinco filhos, dos quais<br />

quatro livres 8 e um escravo”. Na reunião seguinte declarou à junta de classificação<br />

ter ainda uma filha liberta de nome Lourença. Exibiu a quantia de 175$000 réis que<br />

foi recolhida pelo mesário e depositada no cofre dos órfãos. Bernarda e Luiz foram<br />

libertos em segundo e terceiro lugares naquele ano, podendo, assim, viver com sua<br />

família em liberdade, já que os outros quatro filhos eram ingênuos – ou seja, nascidos<br />

de ventre livre após a lei promulgada em 28 de setembro de 1871 –, e Lourença<br />

já ter sido liberta pelo padrinho.<br />

A partir dessa família e suas relações pudemos perceber estratégias de liberdade<br />

e arranjos familiares de escravos que trabalhavam em Rio Pardo/RS. Lourença,<br />

a primeira filha de Bernarda, foi batizada como natural, da mesma maneira que três<br />

de seus cinco irmãos ingênuos. Interessante observar que os dois últimos filhos ingênuos<br />

batizados foram declarados como naturais em 1880 e 1882, ou seja, pouco<br />

tempo antes da classificação pela junta de emancipação em que Bernarda foi declarada<br />

como casada.<br />

Uma hipótese refere-se a um casamento arranjado com o objetivo de galgar<br />

posições na ordem de libertação, já que o regulamento de 1872 determinou a<br />

preferência de escravos casados na libertação pelo fundo de emancipação. Porém,<br />

acreditamos que se tratava de uma união consensual estável e duradoura reconhecida<br />

socialmente, portanto, sem a necessidade de passar pela legitimação eclesiástica. Por<br />

esse raciocínio, os filhos de Bernarda batizados como naturais ou com condição de<br />

nascimento não declarada provavelmente eram filhos com Luiz José. Essa hipótese<br />

é sustentada também pela regularidade do intervalo intergenésico, cuja diferença<br />

média era de 2,3 anos entre o nascimento dos filhos de Bernarda.<br />

8 Paulina, natural, batizada em 1874; Cláudio, batizado em 1875; Paulina, natural, batizada em 1880 e Damião, natural,<br />

batizado em 1882 (AHCMPA. Rio Pardo/RS. Livro de registro de batismos de libertos. 1871-1888). No registro<br />

encontramos também o batismo de Marieta em 1879 que não consta na ata da junta de emancipação, talvez por ter<br />

falecido antes da classificação de sua mãe e irmão.<br />

163


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Ainda podemos sustentar essa hipótese por meio dos dados obtidos junto<br />

ao levantamento dos registros de batismo de escravos e ingênuos da Paróquia de<br />

Nossa Senhora do Rosário do Rio Pardo. Essa fonte nos mostra que entre os anos<br />

de 1860 e 1888 a existência de filhos naturais de escravas era uma regra. Na tabela<br />

abaixo podemos verificar que nos registros de batismos de escravos (1860-69) o índice<br />

de legitimidade era de apenas 1,8% 9 . Se acrescentarmos os cinco casos em que<br />

foi informado o pai, mas não a condição do nascimento, assim como os dois casos<br />

em que consta o pai e a condição natural, esse percentual sobre para 2,5% 10 . Por não<br />

ser informada a legitimidade, podemos pressupor que se tratavam de relações consensuais<br />

reconhecidas naquela paróquia. Ao informar a condição natural e o nome<br />

do pai, os párocos estavam obedecendo às Constituições Primeiras do Arcebispado<br />

da Bahia, norma canônica que regia a feitura dos registros paroquiais. Era facultado<br />

informar o nome do pai, inclusive o da mãe: quando a relação não fosse sancionada<br />

pela Igreja, mas sabida e notória e livre de escândalos, o nome do pai poderia ser<br />

informado, caso contrário, somente constaria o nome da mãe, se esta declaração<br />

também fosse isenta de alvoroços. Nos registros de batismos de ingênuos (1871-<br />

1888), por sua vez, o índice de legitimidade era ainda menor: 1,2% 11 .<br />

Tabela 1: Condição do nascimento de escravos e ingênuos – Rio Pardo/RS,<br />

1860-1888.<br />

Fonte: AHCMPA. Paróquia de Rio Pardo. Livro de registros de batismos de escravos (1860-1869) e<br />

Livro de registros de batismo de ingênuos (1871-1888).<br />

9 De acordo com Sílvia Brügger: “Os registros paroquiais de batismos, ao informarem a legitimidade dos batizandos,<br />

constituem-se em fonte importante para a análise do comportamento conjugal de seus pais. A existência de<br />

longas séries de registros permite analisar a dinâmica de tal comportamento, constatando suas alterações ao longo<br />

do tempo”. BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Minas patriarcal: família e sociedade (São João Del Rei – séculos XVIII<br />

e XIX). São Paulo: Annablume, 2007, p. 72.<br />

10 Desses 21 casais, 15 eram formados por escravos, dois entre escravas e condição do cônjuge não informada, um<br />

em que não foi informada a condição de nenhum dos cônjuges e, por fim, um formado por forra com escravo. Acreditamos<br />

que a libertação da última tenha se dado após o nascimento do filho, batizado com nove meses de idade.<br />

11 Dentre os 14 casais legítimos, sete eram formados por escravos, dois por escrava e cônjuge sem a condição informada<br />

e dois em que nenhuma das condições foi informada. Ainda encontramos outros três casais: dois indicados<br />

com naturais e um não informado, todos os três com mãe escrava e pai incógnito.<br />

12 Trata-se do ingênuo Manoel, filho ilegítimo de Belisária, escrava de Urbano Correa de Oliveira. Foram padrinhos<br />

os escravos do mesmo senhor Marciano e Corina. O batismo aconteceu em 27/11/1875 durante uma visita pastoral<br />

(AHCMPA. Rio Pardo/RS. Livro de registro de batismos de libertos. 1871-1888).<br />

164


Outras fontes como o Recenseamento de 1872, a amostra da matrícula de<br />

1872 e os registros de casamentos confirmam o predomínio de famílias matrifocais<br />

e ilegítimas. Entre as possíveis explicações estão a estrutura de posse e a demografia<br />

escrava observada junto aos inventários post-mortem produzidos pela Vara da Família<br />

(antigo Cartório dos órfãos e Ausentes) e pelo Cartório do Cível e Crime de Rio<br />

Pardo entre os anos de 1860 e 1887. Ao todo identificamos 408 inventários, dentre<br />

os quais havia 287 proprietários de escravos. Deste último universo, observamos a<br />

predominância de pequenos proprietários de escravos (posses de 1 a 9) que se mantiveram<br />

ao longo das três décadas de nosso estudo. Essa característica, de acordo com<br />

Robert Slenes, diminuiria a oferta de parceiros afetivos dentro de uma escravaria,<br />

reduzindo, assim, as chances de se estabelecer casamentos sancionados pela Igreja,<br />

pois concorria com os projetos familiares dos escravos a proibição por parte dos<br />

senhores de uniões formais entre escravos de diferentes proprietários 13 . Entretanto,<br />

isso não significa, sobremaneira, a impossibilidade de formação de laços familiares<br />

nas pequenas escravarias ou para além delas, afinal, “as cercas’ entre as fazendas<br />

deixavam brechas pelas quais os escravos podiam manter e estender suas redes de<br />

amizade e parentesco” 14 .<br />

No estudo de Slenes para Campinas, as pequenas posses caracterizavam-se<br />

justamente pela presença de mães solteiras com filhos naturais, enquanto as médias e<br />

grandes pela presença de famílias nucleares. Dentre as médias e grandes, Slenes percebeu<br />

que mesmo as mães solteiras não tardariam a encontrar um parceiro disposto<br />

a reconhecer seus filhos naturais como legítimos perante a Igreja, parceiros que provavelmente<br />

eram o próprio progenitor 15 . Por seu turno, o fato das mães pertencentes<br />

às pequenas escravarias se manterem solteiras, não opera como ausência de parceiro<br />

afetivo ou de uniões estáveis e duradouras. Indica, provavelmente, o sub-registro de<br />

tais relações nas fontes compulsadas. Lembrando que, no momento da morte de seu<br />

senhor, este possuía nove cativos, ou seja, era um pequeno proprietário, estrutura de<br />

posse caracterizada pelo predomínio de famílias matrifocais.<br />

Nesse sentido, enquanto a documentação paroquial aqui utilizada nos ajuda<br />

a pensar proficuamente na demografia das famílias negras 16 , uma pesquisa qualitativa<br />

13 SLENES, Robert. Na Senzala, uma Flor: esperanças e recordações na formação da família escrava – Brasil, Sudeste,<br />

século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 75-76.<br />

14 ROCHA, Cristiany Miranda. Histórias de famílias escravas: Campinas, século XIX. Campinas: Editora da Unicamp,<br />

2004, p. 128.<br />

15 SLENES, Na Senzala, uma Flor... Op. Cit., p. 103.<br />

16 Utilizamos famílias negras por essa expressão dar conta da diversidade de condições existentes em tais famílias,<br />

compostas por escravos, libertos, libertandos, livres e ingênuos, sobretudo nas últimas décadas da escravidão. REIS,<br />

Isabel Cristina dos. A família negra nos tempos da escravidão: Bahia, 1850-1888. Tese de Doutorado. IFCH/UNICAMP,<br />

2007.<br />

165


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

junto aos processos criminais e às perfilações nos auxiliarão futuramente a desvendar<br />

as relações consensuais estabelecidas por essas e outras mulheres. Com isso<br />

queremos dizer que as relações afetivas não se reduziam àquelas sancionadas pela<br />

Igreja, tanto entre escravos como entre livres17 . No repertório dessas mães solteiras<br />

estavam, sem dúvida, as relações consensuais e de compadrio. Sob esse aspecto, podemos<br />

pensar o caso de Bernarda que buscou firmar laços de compadrio com um escravo<br />

de boa conduta e que já possuía liberdade condicionada antes de sancionar sua<br />

relação com o liberto Luiz José. Certamente não se arrependeu dessa escolha que lhe<br />

rendeu a libertação da filha. Sobre Bernarda devemos lembrar que no momento da<br />

morte de seu senhor, o mesmo possuía nove cativos, ou seja, era um pequeno proprietário<br />

– estrutura de posse caracterizada pelo predomínio de famílias matrifocais.<br />

Letícia Guterres em seu estudo sobre família escrava em Santa Maria (1844-<br />

1882) nos ajuda a pensar na importância do compadrio em um contexto de ampliação<br />

da ilegitimidade, movimento que também observamos para Rio Pardo na<br />

segunda metade doa oitocentos18 .<br />

[...] os dados referentes à ampliação da ilegitimidade podem estar associados<br />

a um movimento do compadrio, envolvendo escravos, principalmente<br />

após 1850. Em um quadro de diminuição de casamentos,<br />

em contrapartida, da existência de uniões que não passavam pela<br />

Igreja, as cerimônias de batismo eram momentos em que as famílias<br />

poderiam contrair laços de compadrio com compadres e comadres<br />

também cativos ou livres, ampliando os vínculos e laços para além<br />

dos limites da consanguinidade e das condições sociais semelhantes19 .<br />

Ainda sobre o predomínio da ilegitimidade devemos levar em conta as características<br />

demográficas das escravarias. Luiz Mott20 para a Bahia, por exemplo,<br />

percebeu que a legitimidade reduzia em locais e épocas onde havia um equilíbrio<br />

entre os sexos, realidade análoga a que encontramos no levantamento de diferentes<br />

fontes (inventários post-mortem, matrículas de escravos, recenseamento) relativas à<br />

Rio Pardo. Ainda devemos considerar que na análise dos inventários ficou patente a<br />

constante renovação das escravarias que se mantiveram jovens, com expressiva po-<br />

17 VASCONCELLOS, Márcia Cristina. Casar ou não casar, eis a questão. Os casais e as mães solteiras escravas no<br />

litoral sul-fluminense. 1831-1850. Estudos Afro-Asiáticos, Ano 24, n. 2, 2002. pp. 291-316.<br />

18 Silmei Petiz em estudo que compreendeu os anos de 1755 e 1835 em Rio Pardo observou um índice de legitimidade<br />

entre os batismos de escravos de 30,9% no período compreendido entre 1755 e 1809. Porém, o período posterior<br />

(1810-1835) já registrou uma redução significativa de 9,4% no índice de legitimidade que em nosso período<br />

de estudo fica abaixo dos 2%.<br />

19 GUTERRES, Letícia. Para além das fontes: im/possibilidades de laços familiares entre livres, libertos e escravos<br />

(Santa Maria – 1844-1882). Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: PPGH/PUCRS, 2004, p. 111.<br />

20 MOTT, Luís. As alternativas eróticas dos africanos e seus descendentes no Brasil escravista. LPH: Revista de História,<br />

v. 3, n. 1, 1992, p. 176-214.<br />

166


pulação adulta e infantil, sugerindo, pois, a importância da reprodução endógena da<br />

força o trabalho pelo menos ao longo do período que estudamos. Essas variáveis demográficas,<br />

sem dúvida, ampliavam as possibilidades de escolha do parceiro afetivo<br />

devido as redução da competitividade observada em regiões onde havia diferenças<br />

expressivas na razão de sexo 21 . Além disso, os dados sugerem uma pequena perda de<br />

escravos para o tráfico interno, já que esse comércio preferia homens e jovens. Caso<br />

contrário, teríamos encontrado uma população com desequilíbrio de sexo e envelhecida.<br />

Em suma, se o Rio Grande do Sul perdeu escravos para o tráfico interno<br />

dificilmente esse contingente foi deslocado de Rio Pardo.<br />

Retornando ao laço de compadrio firmado entre Bernarda e Severino, embora<br />

feita entre sujeitos com condições jurídicas semelhantes, não podemos desconsiderar<br />

o fato de Severino já possuir uma carta de liberdade condicional e residir com<br />

sua mulher em uma chácara. Em outras palavras, Severino já havia conquistado uma<br />

relativa autonomia em seu cativeiro, o que sem dúvida ampliava seu prestigio junto<br />

à comunidade escrava e ampliava suas chances de ajudar seus parceiros. Quanto à<br />

escolha dos padrinhos, as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia permitiam<br />

a indicação de somente um padrinho e uma madrinha, não sendo permitidos dois<br />

padrinhos ou duas madrinhas. Percebemos que praticamente todos os escravos ou<br />

ingênuos batizados tinham ambas as indicações. Sendo assim, apesar de não sancionarem<br />

sua relação afetiva perante a Igreja, não se furtavam em normatizar o compadrio,<br />

o que demonstra a importância de tais laços rituais.<br />

Tabela 2: Condição dos padrinhos e madrinhas de escravos e ingênuos – Rio<br />

Pardo/RS, 1860-1888.<br />

Fonte: AHCMPA. Paróquia de Rio Pardo. Livro de registros de batismos de escravos (1860-1869) e<br />

Livro de registros de batismo de ingênuos (1871-1888).<br />

21 SLENES, Na Senzala, uma Flor... Op. Cit.; MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no<br />

sudeste escravista. Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.<br />

167


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Na tabela acima fica notório a preferência por livres tanto nos batismos de<br />

escravos, como nos de ingênuos – tendência contrária à escolha de Bernarda. Eram<br />

entre os ingênuos que esse percentual tornava-se mais significativo – mais de 65%<br />

dos padrinhos e praticamente 60% das madrinhas de ingênuos eram livres. Essa<br />

constatação confirma a tendência observada por Schwartz de que a condição dos<br />

padrinhos e madrinhas escolhidos geralmente era igual ou superior à do afilhado e<br />

quase nunca inferior 22 . Ou seja, se os filhos de mulheres escravas a partir da lei de<br />

1871 nasceriam livres nada mais compreensível do que pessoas da mesma condição<br />

serem eleitos como padrinhos e madrinhas. Sílvia Brügger chamou essa relação de<br />

parentesco como uma aliança para cima 23 .<br />

Por outro lado, nos chamou atenção o movimento contrário: a significativa<br />

participação de escravos apadrinhando filhos livres de mulheres escravas, cerca de<br />

20%. Muitos deles eram parceiros de escravaria das mães dos batizandos, mas isso<br />

não nos pareceu ser uma regra, o que exige apreender sob que medida os senhores<br />

influenciavam em tais escolhas, assim como o peso das tradições africanas e dos<br />

cálculos existentes na comunidade escrava – aqueles que nem os senhores e nem os<br />

historiadores foram capaz de apreender 24 – se faziam sentir. Sherol Santos nos ajuda<br />

a pensar em tais escolhas ao dizer que a hipótese de que eram os escravos – e não<br />

os senhores, como sugeriu Brügger – que escolhiam os padrinhos parecia mais provável.<br />

Afinal, “ao indicar um padrinho pertencente, e por consequência, morador,<br />

a outra propriedade o senhor estava de certa forma estimulando a circulação desse<br />

sujeito entre as propriedades, dando-lhes razões para tal” 25 . Ao estabelecerem laços<br />

horizontais de compadrio os escravos, talvez, estivessem primando por ampliar e<br />

reforçar laços de solidariedade entre os seus. Esse nos pareceu ser o caso de Severino<br />

que não só apadrinhou como indenizou a liberdade de uma escrava pertencente a<br />

22 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Companhia<br />

das Letras, 1988.<br />

23 Sílvia Brügger sugere a necessidade de olhar com mais cuidado essas alianças para cima. Patentes militares, cargos<br />

políticos ou clérigos são indicativos do prestígio social do padrinho ou da madrinha. Contudo, a simples condição de<br />

livre poderia representar para mãe escravas uma aliança para cima. Além disso, problematizou a influência dos índices<br />

de legitimidade em tais escolhas e até que ponto pais ou mães solteiras adotavam os mesmos critérios dos casais<br />

legítimos. BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Minas patriarcal.... Op. Cit., p. 287-288.<br />

24 Slenes sugere que os senhores “eram estranhos ao mundo mais íntimo de seus cativos, e estes, por sua vez, não se<br />

interessavam em abrir-lhes ‘janelas’ para as senzalas”. SLENES, Na Senzala, uma Flor... Op. Cit. p. 207.<br />

25 Santos nos lembra que as próprias constituições primeiras que regiam tal prática designavam que os padrinhos<br />

seriam “nomeados pelo pai, ou mãe, ou pessoa, a cujo cargo estiver a criança; e sendo adulto, os que ele escolher”.<br />

Schwartz (1988) em seu estudo observou que o número de padrinhos escravos pertencentes ao mesmo senhor<br />

do batizando, se equilibrava com a participação de escravos de diferentes propriedades. SANTOS, Sherol. Apesar<br />

do Cativeiro: Família escrava em Santo Antônio da Patrulha (1773-1824). Dissertação de Mestrado. São Leopoldo:<br />

PPGH/UNISINOS, 2009, p. 154-155.<br />

168


uma escravaria diferente da sua. Consoante a Brügger podemos supor que a “escolha<br />

dos padrinhos pelos cativos aparecia, assim, como fundamental a suas pretensões<br />

de alianças sociais no cativeiro” 26 .<br />

De todo modo, nosso objetivo consiste em deslindar o compadrio na dinâmica<br />

da alforria e para isso torna-se pertinente pensar também nas alianças para cima<br />

que, conforme a tabela, eram bastante valorizadas 27 . Se um padrinho escravo poderia<br />

ser “útil no cotidiano, como apoio nas rotinas diárias e no suporte emocional necessário<br />

ao viver escravo”, não podemos perder de vista, conforme nos lembra Santos,<br />

que “numa sociedade extremamente hierarquizada, um padrinho com condição jurídica<br />

igual ao do senhor poderia a ele, ao menos, encaminhar a demanda” 28 . Porém,<br />

firmar laços com pessoas livres nem sempre contemplava as expectativas sobre o<br />

ato, exemplo disso é o caso envolvendo a escrava Etelvina e seu padrinho que era<br />

membro da casa senhorial. Apesar de Etelvina contar com a ajuda do padrinho para<br />

libertar-se, sua sorte em liberdade não correspondeu as suas perspectivas.<br />

Aos 19 de novembro de 1865 Antônio da Rocha Quebrada e Maria Emília<br />

Ribeiro apadrinharam a pequena Etelvina, nascida em oito de dezembro de 1864.<br />

Era filha natural de Silvéria, escrava de Joaquim Correa, sogro de Rocha Quebrada 29 .<br />

A escravaria de Joaquim Correa era composta por oito cativos aparentados, mostrando<br />

novamente a importância da reprodução endógena. Silvéria, mãe de Etelvina,<br />

manumitiu-se pelo fundo de emancipação no ano de 1875. A indenização cobriu<br />

600$000 réis, no qual estava incluído o pecúlio de 100$000 réis. Sua filha Antônia<br />

teve sua liberdade indenizada durante o inventário. Nos anos subsequentes – 1876<br />

26 BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Minas patriarcal.... Op. Cit., p. 291. Ver também: CUNHA, Maísa Faleiros da.<br />

Demografia e família escrava: Franca/SP, século XIX. Tese de Doutorado. Campinas: IFCH/UNICAMP, 2009; FREI-<br />

RE, Jonis. Escravidão e famílias escrava na Zona da Mata Mineira oitocentista. Tese de Doutorado. Campinas: IFCH/<br />

UNICAMP, 2009.<br />

27 Nesse mesmo aspecto, Florentino & Góes sugerem que “à medida que as gerações de uma família se sucediam<br />

– isto é, à medida que ela se sedimentava no tempo –, a busca de solidariedade e proteção por intermédio do compadrio<br />

tendia a se expressar em direção a alianças com pessoas de estatuto jurídico superior”. FLORENTINO,<br />

Manolo & GóES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790 – c.<br />

1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997, p. 87.<br />

28 SANTOS, Sherol. Apesar do Cativeiro..., p. 162.<br />

29 O monte-mor de Joaquim Correa, dono das escravas e sogro de Rocha Quebrada, somava quase sete contos no<br />

momento da abertura de seu inventário em 1872. Como principal bem de raiz uma casa na rua Barão do Triunfo,<br />

mobilhada com móveis de madeira nobre e prataria, e um terreno na rua da Imperatriz. Além disso, arrolou-se uma<br />

extensa lista de dívidas ativas e passivas e sua principal fortuna acreditamos que provinha dos oito escravos que<br />

possuía. A cozinheira Silvéria de 40 anos, avaliada em 600$000 réis, era mãe de cinco cativos listados entre os bens<br />

inventariados: Maria, 20 anos (800$000 réis); Carlos, pedreiro de 17 anos (1:000$000 réis); Paulino, sapateiro, de 14<br />

anos (800$000 réis); Etelvina, seis anos (400$000 réis); e Antônia de três anos (200$000 réis). Ainda havia outros<br />

dois cativos arrolados: o pedreiro Florêncio de 41 anos (800$000 réis) e Zeferina, 17 anos (700$000 réis) (AHCMPA.<br />

Rio Pardo/RS. Livro de registro de batismos de escravos. Livro 1857-1879. Ano 1865, página 125v).<br />

169


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

e 1877 – foram classificados seus filhos Paulino e Etelvina. Dos quase 700 escravos<br />

classificados em 1877, somente três foram libertos, dentre os quais estavam a pequena<br />

Etelvina, de serviços domésticos.<br />

Nos esclarecimentos prestados à junta, seu padrinho Antônio da Rocha Quebrada<br />

declarou que no inventário do falecido senhor de sua afilhada, Joaquim Correa,<br />

Etelvina foi avaliada em 400$000 réis “para pagamento dos credores da mesma<br />

herança”. Rocha Quebrada na condição de “genro do finado e credor privilegiado da<br />

mesma herança fazia desistência de 58$940 réis que lhe coube na mesma, em favor<br />

da liberdade” da afilhada. No ano anterior, constava na documentação a garantia da<br />

doação feita por ele do mesmo valor com o mesmo fim. Além disso, Rocha Quebrada<br />

apresentou em 1877 uma subscrição de 116$000 réis que arrecadou para a<br />

liberdade da menor 30 .<br />

Ora, havia escravos casados na classificação daquele ano, mas estranhamente<br />

não foram contemplados – em primeiro e segundo lugar foram libertas duas mulheres<br />

como filhos menores escravos e livres. Uma circular datada de 1883 e relatos de<br />

outros historiadores 31 demonstram muitas fraudes na distribuição das cotas do fundo,<br />

pois ao se privilegiar um indivíduo – caso de Etelvina – em detrimento de um classificado<br />

que se enquadrava no critério família fica patente a burla às determinações<br />

legais. Ao olharmos de maneira ampla os classificados e os senhores que buscavam<br />

esse recurso nos parece que o fundo servia também para resolver pendências oriundas<br />

de partilhas ou dívidas. Afinal, com tal indenização ficaria mais fácil o rateio do<br />

produto entre os credores ou herdeiros, do que partilhar a posse de um escravo – o<br />

que nos pareceu ser o caso de Etelvina, que foi dividida entre os credores da herança.<br />

Com a indenização pelo fundo Etelvina alcançou a liberdade, mas também foi<br />

possível quitar as dívidas deixadas por seu falecido senhor.<br />

Mas a história de Etelvina e de seu padrinho não se encerra por aí. Certamente<br />

Rocha Quebrada ficou duplamente satisfeito: se por um lado, mesmo que<br />

parcialmente, teve sua dívida ressarcida, por outro, e talvez mais importante, garantiu<br />

a gratidão da afilhada e de sua comadre. Porém suas expectativas foram frustradas<br />

diante dos planos de sua afilhada.<br />

30 AHMRP. Livro de listas de classificação de escravos para a libertação pelo fundo de emancipação de Rio Pardo/<br />

RS, 1876 e 1877.<br />

31 Ver: CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil, 1850-1888. 1. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,<br />

1975.<br />

170


Silvéria, e talvez as filhas libertas, residia na casa de seu amásio Antônio dos<br />

Santos Cardoso Menezes 32 . Etelvina, pouco tempo depois de ter alcançado a liberdade,<br />

aproveitou um momento de distração de seu padrinho, com quem passou a<br />

residir, e fugiu em direção a casa onde residia sua mãe. Sem titubear, Rocha Quebrada<br />

procurou trazê-la novamente junto de sua companhia. Porém, Antônio Menezes<br />

(seria pai de Etevina?) não permitiu que a mesma fosse levada de sua casa. Ora, após<br />

obter sua liberdade, acreditamos que a menina quisesse viver junto com sua mãe e<br />

irmãs libertas. Possivelmente manifestou em algum momento esse desejo e fracassadas<br />

as negociações com seu padrinho, a estratégia que lhe pareceu viável foi a fuga.<br />

Sem dar o braço a torcer, Rocha Quebrada exigiu que o Juiz de órfãos lhe<br />

passasse a tutoria da afilhada. Na solicitação argumentava que depois de ter se esforçado<br />

para libertá-la, “sem seu consentimento”, a “mulatinha” foi para a casa de Antônio<br />

dos Santos Cardoso Menezes que vivia com a mãe de Etelvina. Segundo ele,<br />

com essa companhia não poderia sua afilhada “ter conveniente educação e mesmo<br />

exemplos de honestidade”. Portanto, “para evitar mal maior no interesse” da protegida,<br />

solicitou que fosse nomeado seu tutor e que se passasse “mandado de entrega<br />

da referida menor, visto como amigavelmente recusa-se fazê-lo o indivíduo em casa<br />

de quem a mesma se acha assentada”. A tutoria foi concedida logo em seguida e no<br />

juramento Rocha Quebrada comprometeu-se em doutriná-la, vesti-la, alimentá-la,<br />

educá-la, tudo as suas custas, pois a menor não possuía bens e sua mãe natural não<br />

possuía “qualidades para ser-lhe conferido o precioso encargo de Tutoria no estado<br />

de mancebia em que atualmente se acha” 33 .<br />

Acionar a tutela sob o argumento da improbidade materna 34 em zelar por<br />

Etelvina foi um expediente acionado por Rocha Quebrada, sem dúvida, com motivações<br />

que transcendiam o apresso pela afilhada. Por conseguinte, a fuga de Etelvina<br />

32 Sílvia Arend a partir de Moreira sugere que o amasiamento caracterizava-se pelo encontro regular; pela “existência<br />

de responsabilidades mútuas entre o homem e a mulher”, e pelo caráter público da relação. “Para os populares, estar<br />

amasiado era considerado um estado próprio de sua cultura, equivalente a um estado civil da ordem jurídica”. Paulo<br />

Moreira já havia sugerido a importância das mulheres populares na conformação de tais relações. Partindo de alguns<br />

casos, constata que elas tinham fundamental importância na escolha de seus parceiros. AREND, Sílvia. Amasiar ou<br />

casar? A família popular no final do século XIX. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2001, p 61; MOREIRA, Paulo<br />

Roberto Staudt. Entre o deboche a rapina: os cenários sociais da criminalidade popular em Porto Alegre. Porto<br />

Alegre: Armazém Digital, 2009, p. 163-185.<br />

33 AHMRP. Documentação Avulsa. Pedido de Tutoria de Etelvina, 1878.<br />

34 A atuação do Juízo dos órfãos, nessa acepção, acaba por atingir as relações sociais e familiares. Na maioria dos<br />

casos era vetada a tutela feminina, com exceção das mães e avós, sobretudo entre os ricos e livres, “pois acreditavase<br />

que as mesmas não possuíam capacidade necessária para um ato de tamanha importância”. Zero constatou que<br />

várias “mães que buscaram na justiça reaver os seus filhos não conseguiram principalmente por serem consideradas<br />

inaptas para executarem a função de tutoras”. ZERO, Arethuza. O preço da liberdade: caminhos da infância tutelada –<br />

Rio Claro (1871-1888). Dissertação de Mestrado. Campinas: UNICAMP, 2004, p. 91.<br />

171


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

da casa de seu padrinho, ultrapassava a rebeldia ou o afronte. Foi, antes de tudo,<br />

o desejo de conviver com sua família e romper com o domínio de seu padrinho.<br />

Percebe-se aí, claramente, um confronto entre diferentes expectativas em relação à<br />

instituição do compadrio. Se a escolha de um livre e membro da família senhorial<br />

para compadre significou para Silvéria uma possibilidade de ganhos que iam desde<br />

a proteção até a liberdade, passando pela ampliação dos recursos materiais, para o<br />

escolhido – nesse caso, Rocha Quebrada – tornava-se uma oportunidade de ampliar<br />

suas redes de dependência e controle. Porém, entrou em conflito com os interesses<br />

de Rocha Quebrada os projetos de Etelvina e Silvéria. Podemos seguramente dizer<br />

que o “despretensioso” auxílio na libertação da afilhada escondeu o interesse em<br />

trazê-la para seu poder, já que a menina seria possivelmente vendida judicialmente<br />

por ter sido separada na partilha dos bens inventariados para o pagamento dos credores.<br />

Cristiany Rocha argumenta que o parentesco estabelecido entre escravos e<br />

membros da família senhorial<br />

[...] pode ser visto como ponto culminante de uma estratégia que<br />

congregava interesses de dominantes e dominados. Afinal, tal relação<br />

enredava o cativo na malha da política de controle paternalista tecida<br />

pelo senhor, mas, em contrapartida, também fornecia ao escravo<br />

meios para proteger e estender seus laços familiares35 .<br />

A alforria de Etelvina deixa entrever, ainda, a precariedade que marcava a mudança<br />

de condição jurídica – mudança que não significava o rompimento dos laços<br />

de dependência que caracterizavam o escravismo36 . Com a liberdade, na maioria das<br />

vezes, essa relação não se rompia por completo e acabava por estruturar a própria<br />

ideia do que era viver em liberdade, menos associada à autonomia e o direito de ir<br />

e vir, e mais com à “segurança na dependência, ou com menor precariedade na dependência”<br />

37 .<br />

172<br />

***<br />

O estabelecimento de parentesco espiritual por meio da escolha dos compadres<br />

e comadres estava, sem dúvida, relacionado aos projetos de alforria e de vida em<br />

liberdade que extrapolavam frequentemente as políticas senhoriais. Os dois casos<br />

35 ROCHA, Cristiany Miranda. Histórias de famílias escravas..., p. 137-138.<br />

36 De acordo com Chalhoub, a dependência era a ideologia que atravessava as relações entre desiguais na sociedade<br />

escravista, sendo que o escravo estava na condição de mais dependente, dentre todos os outros. CHALHOUB,<br />

Sidney. Machado de Assis, historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.<br />

37 CHALHOUB, Sidney. Entrevista. Aedos. vol. 1. ano 1, 2008.


aqui apresentados – de um compadrio entre uma escrava com um liberto condicional<br />

e outro entre uma escrava com um livre – configuram, nesse sentido, estratégias<br />

diferenciadas, cujos resultados apesar de serem, a priori, desconhecidos, eram, ao<br />

menos, projetados 38 . Se no primeiro caso a indenização da liberdade pelo padrinho<br />

liberto condicional sugere laços de solidariedade no interior da comunidade escrava,<br />

o segundo evidencia as intenções do padrinho em sujeitar a afilhada ao seu domínio<br />

após ajudá-la filantropicamente na libertação. Porém, os significados conferidos à<br />

liberdade por Etelvina e Silvéria antes de reafirmar os laços de dependência, operavam<br />

no sentido de afrouxá-los, enquanto Bernarda e Lourença, provavelmente, em<br />

liberdade fortaleceram ainda mais os laços de parentesco ritual com Severino. As<br />

estratégias dos compadres e afilhados aqui apresentados, portanto, se aproximavam por<br />

congregarem interesses que traziam muitos ganhos, mas também algumas perdas<br />

que extrapolavam os cálculos prévios.<br />

38 Henrique Espada Lima ao se reportar ao pensamento de Giovanni Levi converge para essa assertiva ao dizer<br />

que a ação do sujeito “depende da interação com ações alheias” e que por isso “o controle sobre o seu resultado é<br />

limitado por um horizonte de constante incerteza”. LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escalas, indícios,<br />

singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 262.<br />

173


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

174<br />

FONTES<br />

Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre – AHCMPA.<br />

- Paróquia de Nossa Senhora do Rosário de Rio Pardo. Livro de Batismos de libertos<br />

39 . 1871-1888.<br />

- Paróquia de Nossa Senhora do Rosário de Rio Pardo. Livro de Batismos de escravos.<br />

1860-1869.<br />

Arquivo Histórico Municipal de Rio Pardo – AHMRP.<br />

- Documentação Avulsa. Pedido de Tutoria de Etelvina, 1878.<br />

- Livro de atas da junta de emancipação de escravos de Rio Pardo/RS, 1876 e 1877.<br />

- Livro de listas de classificação de escravos para a libertação pelo fundo de emancipação<br />

– Rio Pardo/RS, 1876 e 1877.<br />

Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul – APERS.<br />

- Inventários post-mortem. Vara da Família (antigo Cartório dos órfãos), 1860-1886.<br />

- Inventários post-mortem. Cartório do Cível e Crime, 1861-1887.<br />

- Cópias das listas de matrícula de escravos de 1872 anexas aos inventários, 1869-1887.<br />

- Registros notariais de alforrias selecionados: Rio Pardo/RS. 1º Tabelionato. Livro<br />

16, p. 150v. Concessão: 30/08/1870. Registro: 01/09/1870; Rio Pardo/RS. 1º Tabelionato.<br />

Livro 16, p. 150r. Concessão e registro em 29/08/1870; Rio Pardo/RS. 2º<br />

Tabelionato. Livro 20, p. 104r. Concessão: 06/11/1860. Registro: 15/07/1873. In:<br />

RIO GRANDE DO SUL. Secretaria da Administração e dos Recursos Humanos.<br />

Departamento de Arquivo Público. Documentos da escravidão: catálogo seletivo de cartas<br />

de liberdade acervo dos tabelionatos do interior do Rio Grande do Sul. Porto<br />

Alegre: CORAG, 2006. Vol. 2. p. 741-864.<br />

39 A referência correta, nesse caso, seria ingênuos ou filhos livres de mulheres escravas, pois não se tratavam de<br />

libertos. Porém, mantivemos a designação presente na catalogação.


LEGISLAçõES CITADAS 40<br />

- Lei n. 1695, de 15 de setembro de 1869. Proíbe as vendas de escravos debaixo de<br />

pregão e em exposição pública.<br />

- Lei n. 2040, de 28 de Setembro de 1871. Declara de condição livre os filhos de<br />

mulher escrava que nascerem desde a data desta lei, libertos os escravos da Nação<br />

e outros, e providencia a criação e tratamento daqueles filhos menores e sobre a<br />

libertação anual de escravos.<br />

- Decreto n. 5135, de 13 de Novembro de 1872. Aprova o regulamento geral para a<br />

execução da lei n. 2040 de 28 de setembro de 1871.<br />

REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

AREND, Sílvia. Amasiar ou casar? A família popular no final do século XIX. Porto<br />

Alegre: Editora da UFRGS, 2001.<br />

BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Minas patriarcal: família e sociedade (São João Del<br />

Rei – séculos XVIII e XIX). São Paulo: Annablume, 2007.<br />

CHALHOUB, Sidney. Entrevista. Aedos. vol. 1. ano 1, 2008.<br />

______. Machado de Assis, historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.<br />

______. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte.<br />

São Paulo: Companhia das Letras, 1990.<br />

CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil, 1850-1888. 1. Ed. Rio de<br />

Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.<br />

CUNHA, Maísa Faleiros da. Demografia e família escrava: Franca/SP, século XIX. Tese<br />

de Doutorado. Campinas: IFCH/UNICAMP, 2009.<br />

FLORENTINO, Manolo & GóES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas<br />

e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790 – c. 1850. Rio de Janeiro: Civilização<br />

Brasileira, 1997.<br />

FREIRE, Jonis. Escravidão e famílias escrava na Zona da Mata Mineira oitocentista. Tese de<br />

Doutorado. Campinas: IFCH/UNICAMP, 2009.<br />

GUTERRES, Letícia. Para além das fontes: im/possibilidades de laços familiares entre<br />

livres, libertos e escravos (Santa Maria – 1844-1882). Dissertação de Mestrado. Porto<br />

Alegre: PPGH/PUCRS, 2004.<br />

40 Disponíveis em: http://www2.camara.gov.br/legislacao/publicacoes/doimperio<br />

175


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escalas, indícios, singularidades. Rio<br />

de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.<br />

MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista.<br />

Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.<br />

MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Entre o deboche a rapina: os cenários sociais da<br />

criminalidade popular em Porto Alegre. Porto Alegre: Armazém Digital, 2009.<br />

______. Os cativos e os homens de bem: experiências negras no espaço urbano: Porto<br />

Alegre 1858-1888. Porto Alegre: EST, 2003.<br />

MOTT, Luís. As alternativas eróticas dos africanos e seus descendentes no Brasil<br />

escravista. LPH: Revista de História, v. 3, n. 1, 1992, p. 176-214.<br />

PETIZ, Silmei Sant’Anna. Caminhos Cruzados: família e estratégias escravas na fronteira<br />

oeste do Rio Grande de São Pedro (1750-1835). Tese de Doutorado. São Leopoldo:<br />

PPGH/UNISINOS, 2009.<br />

REIS, Isabel Cristina dos. A família negra nos tempos da escravidão: Bahia, 1850-1888.<br />

Tese de Doutorado. IFCH/UNICAMP, 2007. ROCHA, Cristiany Miranda. Histórias<br />

de famílias escravas: Campinas, século XIX. Campinas: Editora da Unicamp, 2004.<br />

SANTOS, Sherol. Apesar do Cativeiro: Família escrava em Santo Antônio da Patrulha<br />

(1773-1824). Dissertação de Mestrado. São Leopoldo: PPGH/UNISINOS, 2009.<br />

SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial,<br />

1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.<br />

SLENES, Robert. Na Senzala, uma Flor: esperanças e recordações na formação da<br />

família escrava – Brasil, Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.<br />

VASCONCELLOS, Márcia Cristina. Casar ou na casar, eis a questão. Os casais e as<br />

mães solteiras escravas no litoral sul-fluminense. 1831-1850. Estudos Afro-Asiáticos,<br />

Ano 24, n. 2, 2002. pp. 291-316.<br />

XAVIER, Regina. A conquista da liberdade: libertos em Campinas na segunda metade<br />

do século XIX. Campinas: UNICAMP, 1996.<br />

ZERO, Arethuza. O preço da liberdade: caminhos da infância tutelada – Rio Claro<br />

(1871-1888). Dissertação de Mestrado. Campinas: UNICAMP, 2004.<br />

176


esCrAvos eM bAgé: fugAs, quiloMbos<br />

e insurreições<br />

Vinicius Pereira de Oliveira<br />

Resumo: o artigo apresente aspectos da presença escrava em Bagé e localidades adjacentes no<br />

século XIX, analisando dados quantitativos e qualitativos como processos criminais, inventários postmorten,<br />

documentação da Polícia, da Justiça e estatísticas populacionais. Objetiva-se dar visibilidade<br />

à presença escrava na formação histórica da região, estabelecendo contraponto com a historiografia<br />

tradicional que postula a sua inexistência ou pouca expressividade. Especial destaque será conferido<br />

a ocorrências de fugas, aquilombamentos e tentativas de insurreições verificadas na documentação.<br />

Palavras-chave: Bagé – escravos – quilombos – fugas – insurreições.<br />

Neste artigo, apresentamos um recorte histórico de uma pesquisa<br />

maior realizada no ano de 2007 visando a elaboração de relatório<br />

histórico-antropológico para identificação e delimitação do território<br />

remanescente de quilombo “Com unidade de Palmas”, localizado no município<br />

de Bagé/RS¹. Esta pesquisa evidenciou, mediante cruzamento de informações<br />

oriundas da memória quilombola e de documentação histórica, que a gênese desta<br />

comunidade reporta diretamente ao período final da escravidão, e particularmente a<br />

um contexto de relações de trabalho e resistência frente a famílias pecuaristas grandes<br />

proprietárias de terras, exigindo um esforço de pesquisa no sentido de captar<br />

esta realidade.<br />

Nas linhas que se seguem, serão apresentadas apenas considerações de<br />

caráter geral sobre a presença escrava nesta cidade, resguardando-nos da publicização<br />

de aspectos mais específicos da trajetória desta comunidade, uma vez<br />

que a tramitação jurídica deste processo de regularização quilombola ainda está<br />

em curso.<br />

¹ Relatório realizado conforme Artigo 68 dos ADCT da Constituição Federal de 1988, Decreto 4887/2003 e Instrução<br />

Normativa no. 20/2005 do INCRA, mediante convênio firmado entre 11ª. Superintendência Regional do<br />

INCRA e o Laboratório de Observação Social da UFRGS, com interviniência da FAURGS.. A equipe foi composta<br />

pelo Doutor em Antropologia Iosvaldyr Carvalho Bittencourt Junior, pela Bacharel em Geografia Nola Patrícia<br />

Gamalho e pelo Bacharel em Ciências Sociais Lúcio D. Centeno, além do presente autor.<br />

177


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Uma primeira constatação para quem se propõe a tal pesquisa é a da inexistência<br />

de estudos mais detidos sobre a presença negra neste município. Apesar da<br />

abundância de documentação histórica sobre o negro disponível nos arquivos – e<br />

o APERS destaca-se neste cenário –, o papel deste grupo na formação histórica da<br />

região em questão, seja como escravo ou como trabalhador livre, raramente é citada<br />

pela bibliografia.<br />

Esta situação na realidade se estende ao Rio Grande do Sul como um todo.<br />

A historiografia tradicional deste estado por muito tempo invisibilizou e diminuiu<br />

a importância da presença negra na sua formação histórica ao postular que esta<br />

teria sido fruto basicamente de dois tipos sociais: de um lado, os grandes criadores<br />

de gado e peões luso-brasileiros, produto das estâncias da região da Campanha; e<br />

do outro o imigrante europeu (principalmente alemão e italiano), colonizador de<br />

pequenas propriedades rurais, propulsor do progresso e da civilização. Nestas elaborações<br />

idealizadas, pouco ou nenhum espaço é dado aos indígenas, negros, mestiços<br />

e lavradores nacionais pobres².<br />

Seguindo esta mesma perspectiva historiográfica, a escravidão no Rio Grande<br />

do Sul foi vista como não tendo a mesma dimensão e importância verificada em<br />

outras áreas do Brasil como os engenhos de açúcar nordestinos ou as lavouras de<br />

café do sudeste. De qualquer forma, onde ela ocorreu ter-se-ia caracterizado por<br />

um tratamento mais brando e igualitário dos senhores frente aos cativos, em uma<br />

relação supostamente marcada por fortes traços de cordialidade, algo como uma<br />

“democracia racial dos pampas”³.<br />

Resultado dos desejos e projeções de uma intelectualidade preocupados em<br />

solidificar uma representação histórica e identitária regional em contraposição ao<br />

restante do Brasil, tido como escravista, estes discursos não levaram em consideração<br />

referências empírica diversas, como por exemplo levantamentos estatísticos<br />

que demonstram ter sido o Rio Grande do Sul uma das mais importantes províncias<br />

escravistas no século XIX 4 .<br />

² ZARTH, Paulo Afonso. Do arcaico ao moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002, p. 145.<br />

3 Ver obras como: GOULART, Jorge Salis. A formação do Rio Grande do Sul: geografia social, geografia da historia,<br />

psicologia social e sociologia. Porto Alegre: Globo, 1933; e VIANNA, Francisco José Oliveira. Populações meridionaes<br />

do Brasil: história, organização, psycologia. São Paulo: Nacional, 1933.<br />

4 O Rio Grande do Sul era a terceira província com maior proporção de escravos em sua população no ano de 1874,<br />

atrás somente do Rio de Janeiro e Espírito Santo e a frente de estados como Bahia e Minas Gerais, tradicionalmente<br />

referidos como possuidores de grande concentração escrava (ver CONRAD, Robert Edgard. Os últimos anos da<br />

escravatura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975). Cabe ressaltar que estes dados referem-se ao ano de<br />

1874, quando já havia se passado 24 anos, da proibição definitiva do tráfico transatlântico de escravos para o Brasil,<br />

situação que tornou a província fornecedora de escravos no tráfico interprovincial para regiões economicamente<br />

mais prósperas do Brasil.<br />

178


Estudos diversos realizados nas últimas décadas têm, com grande eficácia, contraposto<br />

esta leitura mais tradicional ao demonstrar que a realidade do escravo no Rio<br />

Grande do Sul, além de ter sido demograficamente importante, foi extremamente dura<br />

e cruel como no restante do país, o que pode ser verificado tanto pelo uso de documentação<br />

histórica como pela memória dos descendentes de escravos em todo o estado5 .<br />

Outra afirmação recorrentemente difundida no imaginário histórico regional<br />

versa sobre a inadequação do trabalho escravo às atividades pecuárias, realidade<br />

econômica na qual a Comunidade de Palmas está historicamente inserida6 . Segundo<br />

determinada corrente de análise, a proximidade da fronteira e a cotidiana lida com o<br />

cavalo potencializariam as fugas escravas que, somadas ao baixo grau de capitalização<br />

do setor, tornariam inviável a adoção do trabalhador cativo neste setor econômico<br />

riograndense. Neste sentido, Farinatti chama a atenção de que:<br />

Até hoje, poucos foram os trabalhos que se dedicaram ao estudo específico<br />

da escravidão nas regiões de predominância pecuária no Brasil.<br />

Ao contrário, essa atividade foi, tradicionalmente, entendida como um<br />

palco privilegiado da mão-de-obra livre. 7<br />

Nos últimos anos a questão vem sendo estudada na sua devida medida, a<br />

partir da densa análise de documentação histórica diversificada e refinado aparato<br />

teórico-metodológico, o que possibilita demonstrar a importância e recorrência do<br />

negro escravizado ou mesmo livre nas atividades das estâncias, seja como campeiros,<br />

peões ou domadores, ou até mesmo em atividades acessórias como a produção de<br />

alimentos ou lides domésticas. 8<br />

Ademais, o aprofundamento das pesquisas e uma maior valorização do empírico<br />

ocorrida nas últimas décadas nos estudos sobre o passado brasileiro demonstraram<br />

que, contrariamente ao que se acreditou por muitos anos, a propriedade escrava<br />

era acessível a amplas parcelas da sociedade, estando presente não somente nas grandes<br />

unidades produtivas agro-exportadoras (canaviais, engenhos, lavouras de café),<br />

mas também em produções ligadas ao abastecimento interno. 9 O escravo esteve pre-<br />

5 Sobre as bases da construção historiográfica do mito da benevolência do sistema escravista do RS, ver GU-<br />

TFREIND, Ieda. O negro no Rio Grande do Sul: o vazio historiográfico. In: Estudos ibero-americanos: Anais do I<br />

Simpósio gaúcho sobre a escravidão negra. Porto Alegre: EDIPUCS, 1990.<br />

6 MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala. Mercado Aberto: Porto Alegre, 1988. 4ª edição; FREITAS, Décio. O capitalismo<br />

pastoril. Porto Alegre: EST/UCS, 1980.<br />

7 FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Escravos nas estâncias e nos campos: escravidão e trabalho na Campanha<br />

Rio-grandense (1831-1870). Conservatória: Anais do VI Congresso Brasileiro de História Econômica, CD-ROM, 2005, p. 1.<br />

8 OSóRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da estremadura portuguesa na América: Rio Grande<br />

de São Pedro, 1737-1822. Tese (Doutorado em História). UFRJ/IFCHS, 1999; ZARTH, Paulo Afonso. Do arcaico ao<br />

moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002; FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Confins<br />

meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na Fronteira Sul do Brasil (1825-1865). Tese de Doutorado em História. Rio<br />

de Janeiro: UFRJ, 2007.<br />

9 FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Modelos explicativos da economia escravista no Brasil. In: CARDOSO, Ciro Flamarion<br />

S. (org.) Escravidão e abolição no Brasil: novas perspectivas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, p. 24.<br />

179


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

sente em todos os setores produtivos da sociedade riograndense, desempenhando as<br />

mais diversas atividades urbanas e rurais, inclusive aquelas que exigiam elevado grau<br />

de especialização profissional.<br />

Os dados abaixo apresentados possibilitam captar a importância demográfica<br />

– e porque não social? – da população escravizada em Bagé ao longo do século<br />

XIX 10 :<br />

180<br />

População de Bagé no ano de 1846 11<br />

Dados Estatísticos da População de Bagé em 1858 12<br />

Municípios com maior número de escravos – 1859 13<br />

10 É importante destacar ainda a presença considerável de população negra livre e liberta em Bagé do século XIX,<br />

indígena, além daqueles referidos nos documentos de época como “bugres”, “índios amulatados”, “amorenados”,<br />

“indiáticos”. Um exemplo pode ser verificado em: APERS, Processos Crime, Piratini, Cartório Cível e Crime, Maço<br />

26, Processo 1080.<br />

11 AHRS, Fundo Estatística, Maço 01. Possivelmente se trate somente da sede do município, não considerando os<br />

demais distritos.<br />

12 AHRS, Fundo Estatística, Códice 1, Mapa da População da Província no fim do ano de 1858.<br />

13 Fonte: CAMARGO, Antônio E. Appenso ao Quadro estatístico e geographico da província de São Pedro do RGS. Porto<br />

Alegre: Typ. do Jornal do Comércio, 1868. Citado por ZARTH, Paulo Afonso. Do arcaico ao moderno: o Rio Grande do<br />

Sul agrário do século XIX. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002, p. 123.


Apesar desta constatação, quando nos propusemos a visualizar o passado escravista<br />

desta localidade nos deparamos com a inexistência de trabalhos mais detidos<br />

sobre o tema. Como praticamente inexistem documentos históricos produzidos pelos<br />

próprios escravos temos que recorrer àqueles produzidos pelas instâncias governamentais<br />

para reconstituir o passado dessas populações.<br />

Buscamos, então, uma primeira aproximação com a questão através da análise<br />

de inventários post-morten de indivíduos residentes em Bagé, o que permitiu visualizar<br />

algumas características da propriedade escrava nesta localidade. A partir de uma<br />

amostragem de 38 inventários, compreendendo o período de 1877-1883, podemos<br />

ter uma dimensão da difusão da posse escrava nesta localidade:<br />

Levantamento dos inventários pesquisados: posse de escravos<br />

Fonte: APERS, Inventários, Bagé, 1877-1883<br />

Esta pequena amostragem revela que 65,79% dos indivíduos que legaram<br />

bens possuíam pelo menos um escravo no momento da sua morte, atestando a disseminação<br />

desta prática sócio-cultural na região. Cabe destacar que o recorte temporal<br />

da documentação analisada se insere no período de desagregação do sistema escravista<br />

no Brasil, quando comprovadamente o contingente escravo no Rio Grande<br />

do Sul diminuía progressivamente, situação em grande medida atribuída aos efeitos<br />

da proibição definitiva do tráfico internacional de escravos em 1850.<br />

A análise da documentação referida permitiu igualmente sondar a estrutura<br />

da posse escrava, ao indicar o tamanho dos plantéis quando do elaboração dos documentos:<br />

O tamanho dos plantéis de escravos em Bagé<br />

181


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Constatou-se que a maior parte dos escravos vivia em plantéis pequenos, de<br />

no máximo 10 indivíduos, enquanto que o restante estava distribuído em plantéis<br />

médios, raramente ultrapassando a quantidade de 15 cativos. Estes dados atestam<br />

a predominância da pequena posse de escravos em Bagé, situação que na realidade<br />

vem sendo verificada em diversas outras áreas do Brasil ligadas ao abastecimento<br />

interno 14 . Essa constatação, antes de diminuir a importância da presença escrava<br />

nestas áreas, chama a atenção para a existência de distintas e complexas realidades<br />

escravistas no Brasil, variáveis em função de diferenciações regionais e econômicas 15 .<br />

Cabe destacar que a pecuária, por suas características produtivas, apresentava menos<br />

necessidade numérica de mão-de-obra fixa, se comparada com outros setores da<br />

economia rural da época, o que pode em parte explicar os números apresentados 16 .<br />

Por si estes dados já seriam suficientes para contrapor as referidas abordagens<br />

tradicionais que negam a fundamental presença da população negra escravizada<br />

em Bagé e na pecuária riograndense. Entretanto, uma diversidade de outros documentos<br />

históricos como os processos-criminais, cartas de alforrias, inventários postmorten,<br />

registros policiais e judiciários, aliados à riqueza dos relatos afrodesendentes,<br />

possibilitam visualizar uma diversidade de aspectos da experiência negra no Brasil<br />

escravista.<br />

Por muito tempo tomados pela historiografia como passivas vítimas de um<br />

sistema opressivo, dados estatísticos ou unicamente como força de trabalho, os escravos<br />

emergiram nos estudos especializados mais recentes como um grupo que<br />

buscava, mesmo sob o jugo desigual do cativeiro, ser sujeito de sua própria história.<br />

Neste sentido, uma maior atenção tem sido dada à análise de aspectos cotidianos da<br />

14 Fora setores produtivos específicos que exigiam maior número de trabalhadores como as charqueadas, engenhos<br />

de açúcar e fazendas de café, o padrão da posse cativa não só no Rio Grande do Sul, mas também em outras áreas do<br />

Brasil escravista seguia esta tendência de pequenos e médios plantéis. Hebe Castro observa que os pequenos plantéis<br />

formavam a maior parte dos proprietários de escravos no Brasil. Em regiões com o Recôncavo Baiano, por exemplo,<br />

tradicionalmente referido como área de grandes plantéis escravos em função da produção açucareira, 80% dos<br />

senhores possuíam menos de 10 escravos. Ver: CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Das cores do silêncio: os significados da<br />

liberdade no sudeste escravista - Brasil séc. XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, p. 36; e MATTOS, Hebe Maria.<br />

Escravidão e cidadania no Brasil Monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. Série Descobrindo o Brasil, p. 18.<br />

15 Schwartz, em estudo sobre a realidade escravista no Brasil, observa a existência de uma população de trabalhadores<br />

e famílias rurais que passou a existir à margem da economia agro-exportadora escravista desde o período<br />

colonial, criando uma classe camponesa. Nesta sociedade, a agricultura de subsistência e de exportação estavam<br />

intimamente ligadas numa relação complexa. Regiões como Maranhão, São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul, que<br />

anteriormente não teriam se caracterizado pela economia de exportação nem pelo uso predominante do trabalho<br />

escravo foram, a partir do final do período colonial, induzidas pela expansão das exportações “a uma dependência<br />

cada vez maior da escravidão”. Ver: SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: EDUSC, 2001, p. 129.<br />

Quanto a Bagé, cabe quantificar se tratavam-se de pequenos famílias rurais, no sentido exposto por Schwartz, ou<br />

médios e grandes pecuaristas.<br />

16 Para uma melhor problematização da questão, ver FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Confins meridionais: famílias<br />

de elite e sociedade agrária na Fronteira Sul do Brasil (1825-1865). Tese de Doutorado em História. Rio de Janeiro: UFRJ,<br />

2007.<br />

182


vivência desses agentes, como, por exemplo, a possibilidade de aproveitamento das<br />

brechas do sistema para a ressignificação de suas vidas.<br />

O contexto de opressão, de castigos e maus tratos do regime escravista levau<br />

muitos negros a elaborarem diversificadas estratégias de resistência na resistência na<br />

busca de influenciar no destino de suas vidas. Muitas delas se propunham a romper<br />

com as amarras do sistema e construir uma outra realidade, o que foi freqüentemente<br />

tentada através da formação de quilombos, da fuga e da organização de insurreições.<br />

Vejamos alguns casos ocorridos em Bagé e arredores.<br />

“PRENDER NOS MATOS A NEGROS FUGIDOS”:<br />

AS FUGAS ESCRAVAS<br />

A fuga, sem dúvida, foi expediente que fez parte dos projetos de muitos indivíduos<br />

escravizados, sendo um acontecimento corriqueiro do dia-a-dia do cativeiro.<br />

Os relatos desta prática são abundantes em todo Brasil, motivadas por uma gama<br />

ampla de questões como as condições adversas do cativeiro, os castigos e maus tratos,<br />

a separação de famílias e a imposição de ritmos de trabalho extremamente forçosos 17 .<br />

Nogueról 18 , em artigo onde analisa os riscos de fuga escrava oferecidos pela<br />

fronteira do Rio Grande do Sul com Argentina e Uruguai, apresenta o seguinte<br />

quadro com o número de indivíduos referidos como “fugidos” em inventários de<br />

diversas comarcas, entre elas Bagé:<br />

17 Silva sugere a interessante distinção entre “fugas-reinvidicatórias” e “fugas-rompimento”. As primeiras não se<br />

proporiam a romper com o sistema e muitas vezes tinham uma duração previsível. Seriam pequenas escapadelas<br />

que objetivavam exercer pressão e mostrar descontentamento contra alguma questão específica, como a quebra de<br />

acordos estabelecidos ou castigos considerados injustos e/ou excessivos. Já as “fugas-rompimento” eram casos mais<br />

extremos, em que se buscava a ruptura com o sistema. O autor utiliza também os conceitos de ‘fugas para fora”<br />

(ou seja, para lugares de difícil acesso, matas, montes, etc) e “fugas para dentro” (para as cidades, “para o interior da<br />

própria sociedade escravista”, onde os escravos tentavam se passar por livres). Ver: SILVA, Eduardo. Fugas, revoltas<br />

e quilombos: os limites da negociação. In: REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e Conflito: a resistência negra no<br />

Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.<br />

18 NOGUERóL, L. P. F. ; MIGOWSKI, V. ; Dias, M. S. ; Rodrigues, D ; PINTO, M. S. . Elementos da Escravidão<br />

do Rio Grande do Sul: a lida com o gado e o seguro contra a fuga na fronteira com o. In: XXXV ENCONTRO<br />

NACIONAL DE ECONOMIA, 2007, Recife - PE. Anais do XXXV Encontro Nacional de Economia, 2007.<br />

183


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Mesmo utilizando somente inventários como fonte, o autor demonstra que a<br />

situação de proximidade de Bagé com a fronteira uruguaia era fator potencializador<br />

das fugas escravas 19 . O maior número de ocorrências nesta localidade certamente<br />

estava vinculado ao fato da abolição da escravidão no Uruguai ter ocorrido na década<br />

de 1840, fornecendo mais um atrativo às esperanças de liberdade da população<br />

escravizada 20 .<br />

Os exemplos são múltiplos na Bagé escravista do século XIX. Em 1849, Felícia<br />

Flora Ribeiro, ao efetuar o inventário pelo falecimento de seu esposo, informa<br />

que seis anos antes fugiram para o Estado Oriental os seus escravos Antonio da<br />

Costa, Matheus da Costa e Florinda Crioula, dos quais nunca mais soube notícias 21 .<br />

Em 1848 José Rodrigues de Lima (homem branco, solteiro, natural desta Província,<br />

morador na freguesia de Lavras) foi avisado por ordem do inspetor de quarteirão<br />

que deveria ir até uma tapera nos arredores da povoação de Lavras “prender nos<br />

matos a negros fugidos, que ali se achavam” 22 . Em 1845, ao ser interrogada, a preta<br />

Maria (30 anos aproximadamente, nação Mina, solteira), escrava de Manoel Marques<br />

da Silva, informou que seu senhor “sempre judiava com os escravos, que por isso um<br />

seu companheiro tinha fugido para o mato” 23 .<br />

Diversos registros históricos demonstram que as fugas de escravos para o<br />

Uruguai poderiam ser incentivadas por indivíduos que “seduziam” a escravaria riograndense<br />

com vistas a suprir a necessidade de trabalhadores nas estâncias do outro<br />

lado da fronteira ou para servirem de soldados nos conflitos platinos. No final<br />

da década de 1850, por exemplo, o correntino João Rios teria seduzido o escravo<br />

Sebastião, de José Hipólito de Oliveira Martins, para seguirem para a província de<br />

Corrientes (Argentina) ou Uruguai, com a promessa de liberdade 24 .<br />

Esses são apenas alguns dos muitos exemplos presentes na documentação<br />

histórica da região, reveladores da capacidade escrava de conceber e executar projetos<br />

de liberdade, mas é fato que nunca saberemos a dimensão numérica dos indiví-<br />

19 Sobre as fugas de escravos brasileiros para o além fronteiras, especialmente Uruguai, ver PETIZ, Silmei de S.<br />

Buscando a liberdade: as fugas de escravos da província de São Pedro para o além-fronteira (1815-1851) Passo Fundo: UPF<br />

Editora, 2006.<br />

20 De 1839 a 1851 o Uruguai encontrava-se dividido politicamente por ocasião da Guerra Grande. Havia o Governo<br />

de la Defensa em Montevidéu, sob controle colorado de Fructuoso Rivera que promoveu a abolição em 1842 para<br />

recrutar negros para o exército. E em 1846 o Governo do Cerrito, sob controle blanco de Manuel Oribe também<br />

faz o mesmo.<br />

21 APERS, Inventários, Caçapava do Sul, Cartório de órfãos e Ausentes, Maço 07, Inventário nº 159.<br />

22 APERS, Processos Crime, Cartório 1 o Civil e Crime, Maço 35, Processo n o 1107.<br />

23 APERS, Processo Crime, Caçapava do Sul, Cartório 1 o Civil e Crime, Maço 34, Processo-crime n o 1077, Ano 1845.<br />

24 APERS, Piratini, Processos Crime, Cartório Cível e Crime, Maço 27, Processo nº 1146. Ver outros exemplos em<br />

PICCOLO, Helga Iracema L. A resistência escrava no Rio Grande do Sul. Caderno de Estudo. Porto Alegre: Curso de<br />

Pós-Graduação em História, 1992.<br />

184


duos que obtiveram êxito em suas fugas. Apesar de algumas dessas escapadas terem<br />

caráter reivindicatório e temporário, muitas tinham como objetivo quebrar os grilhões<br />

do cativeiro através da constituição de quilombos em matos de difícil acesso.<br />

“AQUILOMBADOS COM OUTROS PRETOS” – AS<br />

COMUNIDADES DE FUGITIVOS NA REGIãO DE BAGÉ 25<br />

São ricos os relatos de ocorrência de aquilombamentos em Bagé e localidades<br />

vizinhas. Em setembro de 1834, por exemplo, foi formada uma diligencia por<br />

diversos homens brancos da região de Caçapava do Sul afim de prender os escravos<br />

fugidos que viviam aquilombados nos matos da região pois fazia mais de ano que<br />

roubos de gado, roupas e até armamentos estavam ocorrendo. Certo dia, a patrulha<br />

repressiva andava costeando os matos da chácara de Joaquim Vitório Maciel quando<br />

avistaram um negro portando uma velha vestimenta composta de japona, calças de<br />

brim branco e botas. Tratava-se de do preto Manoel (crioulo, nascido em Sorocaba),<br />

escravo de Manoel Veríssimo Esteves26 , um dos quilombolas procurados.<br />

Na tentativa de escapar, Manoel acaba descarregando um trabuco que trazia<br />

consigo sobre um dos homens que tentavam prende-lo, causando-lhe a morte, o que<br />

de nada adiantou pois foi pego em seguida antes de conseguir se ocultar novamente<br />

no mato. Devido o falecimento ocorrido, foi instaurado um processo criminal onde<br />

o quilombola figurava como réu, e em seu diversos testemunhos e interrogatórios<br />

são revelados aspectos importantes da vida quilombola no Rio Grande do Sul27 .<br />

Ao ser interrogado, o quilombola Manoel afirmou andar fugido a mais de um<br />

ano e que se achava:<br />

[...] escondido nos matos da Chácara de Joaquim Vitório Maciel, ao<br />

sair do mato foi encontrado por Albino Francisco da Silva, Félix Roberto<br />

Luis da Silva, Manoel Elias de Morais, a quem apenas vendo lhe<br />

fez tiro com um trabuco que tinha em seu poder roubado da casa de<br />

um morador vizinho de Manoel de Souza Teixeira à costa do rio Santa<br />

Bárbara e cujo o tiro veio cair morto o mencionado Manoel Elias<br />

Moraes [...] porém que fora preso imediatamente pelos companheiros<br />

do morto.<br />

Perguntado pelo juiz se possuía local certo onde se refugiasse no mato e se<br />

haviam mais escravos fugidos consigo, Manoel respondeu que:<br />

25 Expressão retirada de processo crime referente a escravos fugidos: APERS, Processos Crime, Caçapava do Sul,<br />

Cartório 1o Civil e Crime, Maço 34, processo no: 1072.<br />

26 Também referido como Manoel Veríssimo Prestes da Fonseca.<br />

27 APERS, Processos Crime, Caçapava do Sul, Cartório 1o Civil e Crime, Maço 34, Processo no 1072.<br />

185


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

[...] ele e outro seu companheiro, o preto João, escravo de Joaquim<br />

Elias de Morais e uma preta de nome Joaquina, escrava de Joaquim<br />

Claro de Jesus, tinham dois quilombos um em matos de Manoel Correa<br />

Marques e outro nos matos do Coronel Olivério José Ortiz, de<br />

onde se mudavam de dias em dias para assim não serem preso.<br />

O depoimento revela ainda outros aspectos importantes da vivência quilombola.<br />

Manoel informa que ao longo do tempo em que ficou aquilombado ele e<br />

seus companheiros haviam carneado pelo menos nove reses, furtado algumas roupas<br />

como ponchos, pala, japonas, o trabuco que usou no momento de sua prisão,<br />

pólvora e dois cargos de chumbo. Manoel foi julgado e condenado a morte em<br />

04/03/1835, sendo o primeiro réu condenado a morte em Caçapava do Sul28 .<br />

Já em 1831 o escravo Joaquim é acusado de matar seu senhor Joaquim Martins<br />

de Araújo. Os documentos judiciais a que tivemos acesso afirmam que Joaquim costumava<br />

fugir recorrentemente de seu senhor e praticar roubos de gado e em moinhos<br />

de farinha de trigo. Em uma destas situações, entrou em conflito com o escravo de<br />

um proprietário de moinho, acabando por ser preso pelo capitão-do-mato. Mesmo<br />

na cadeia, era conduzido todos os dias por seu senhor Martins de Araújo em ferros<br />

para trabalhar no o ofício de seleiro. Sendo constantemente repreendido (entenda-se<br />

castigado) por seu senhor, o escravo acaba dando-lhe uma facada e ocasionando sua<br />

morte. Segundo o documento anexado ao processo criminal contra o escravo Joaquim,<br />

[...] vários habitantes desta cidade oferecem-se para ajudar e concorrer<br />

para a punição do criminoso com a condição porém se for sentenciado<br />

a morte e vir a cabeça a este mesmo lugar que talvez servisse de<br />

temor a outros 29 .<br />

Ansiosos por um castigo que servisse de exemplo para a ampla escravaria<br />

da região, diversos habitantes da cidade manifestaram sua vontade não só de condenação,<br />

mas de sentença à morte e exposição pública da cabeça do escravo. Em<br />

10/11/1834, porém, a sessão do Júri informou que o réu se achava ausente e em<br />

lugar desconhecido, não podendo dar prosseguimento ao processo.<br />

Em 1832 a Justiça manifestava a existência de<br />

[...] pretos aquilombados nas imediações desta Vila [de Caçapava] de<br />

nome Agostinho, escravo do Tenente Antonio Prudente, Simão, escravo<br />

de Eugenio Alano, João, escravo de Manoel Joaquim Ferreira, Januário<br />

e a preta Joaquina, que se ignora quem sejam seus senhores. 30<br />

28 AHRS, Fundo Autoridades Municipais, Caçapava do Sul, Correspondência Expedida, Maço 24, Caixa 10, Documentos<br />

63 e 64.<br />

29 o o APERS, Processo Crime, Caçapava do Sul, Cartório 1 Civil e Crime, Maço 34, Processo n : 1063.<br />

30 o o APERS, Processos Crime, Caçapava do Sul, Cartório 1 Civil e Crime, Maço 34, Processo n : 1065.<br />

186


Em 23 de novembro do mesmo ano o escrivão da localidade narrou ao Juiz<br />

de Paz Suplente José da Silva Rocha Ribeiro as providências tomadas para por fim<br />

ao quilombo localizado na Costa do Rio Santa Bárbara:<br />

depois de achar feito as diligências necessárias pode ao romper do<br />

dia de hoje cercar o campo onde se achavam os ditos pretos e depois<br />

de rigorosa resistência da parte destes, descarregando sobre a partida<br />

alguns tiros de clavina e pistola, que felizmente ficou ilesa, havendolhes<br />

gritado por 3 vezes que se entregassem a prisão à ordem de Vossa<br />

Senhoria, não obedeceram, antes se portaram com mais afoitosa, por<br />

isso que na forma da lei fui obrigado a repelir a força dos renitentes<br />

ficando mortos os pretos Simão e João, escravo de Manoel Joaquim<br />

Ferreira, cujos corpos não sendo possível conduzir perante a V.S. por<br />

ser o quilombo situado em um lugar aspérrimo cheio de barroca com<br />

bem presenciou o oficial jurado Antonio Machado, foram ali sepultados,<br />

apresentando somente o preto Agostinho baleado em uma coxa<br />

tendo-se escapado uma preta e um preto sendo no todo cinco fugidos.<br />

O preto Agostinho, o único sobreviventes que foi preso, responde a interrogatorio,<br />

revelando primeiramente dados sobre a dimensão do aquilombamento, que<br />

abrigava<br />

[...] quatro negros e uma negra [...] disse chamarem-se Simão, escravo<br />

de Eugenio Alamo, o outro, João, escravo de Manoel Joaquim Ferreira,<br />

outro, Januário e uma preta de nome Joaquina e que estes dois<br />

últimos se escaparam na ocasião da prisão e que ele era escravo do<br />

Tenente Antonio Prudente.<br />

Roubos e furtos são referidos por Agostinho como estratégias de sobrevivência<br />

e supressão de necessidades básicas do dia-a-dia:<br />

[...] perg. se eles tinham vindo as lavagens desta Vila [...] disse terem<br />

vindo algumas vezes de onde tinham roubado algumas roupas das<br />

lavadeiras [...] resp. ele terem carneado muitas reses de várias pessoas<br />

[...] perg. se foram eles que tinham roubados algumas armas da Nação<br />

depositadas em poder do tenente Joaquim Claro de Jesus, e roubadolhe<br />

a casa [...] resp. que eles tinham sido os mesmo que tinham roubado<br />

o dito armamento.<br />

Este armamento fora utilizado no momento da resistência contra a expedição<br />

que buscava prendê-los:<br />

[...] disse que no conflito tinham feito grande resistência pois que ele<br />

tinha uma clavina e Simão seu companheiro uma pistola, e o preto<br />

João uma espada e outro que escapou com arama larga e que nunca<br />

quiseram se entregar, dispararam alguns tiros sobre a partida de que<br />

resultou serem mortos o preto Simão e João, sendo ele baleado em<br />

uma coxa, quando então se entregou a prisão e que os mais companheiros<br />

se haviam escapado [...].<br />

187


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

No ano de 1848 o escravo Antônio, de José Carlos da Costa Ribeiro, foi preso<br />

por viver aquilombado em matos da região de Caçapava. Cerca de um ano antes havia<br />

fugido e se abrigado em matos de Dona Maria dos Santos. Em seu interrogatório<br />

relatou ter se encontrado:<br />

[...] com seis negros que andavam igualmente fugidos e aquilombados<br />

e que passados alguns dias estando ele em companhia dos outros pretos<br />

a tirar mel foram encontrados por um morador daquelas vizinhanças<br />

a quem os seus companheiros queriam matar, deixando de fazer a<br />

rogo dele crioulo, que logo depois disso não lhe parecendo bem andar<br />

em companhia de semelhante gente, os abandonou e veio residir nos<br />

matos de Manoel Correa Marques perto da casa de seu senhor e que<br />

ali estando ele só, pouco dias depois se lhe reuniu o desertor Manoel<br />

Prestes, que andando também fugido encontrou com ele crioulo nos<br />

ditos matos e [...] que depois deste encontro com Manoel Prestes nunca<br />

mais este crioulo separou-se deste e que andavam sempre juntos até<br />

serem presos. 31<br />

Manoel Ferreira Prestes tinha cerca de 20 anos era soldado do segundo regimento<br />

de cavalaria de linha e, juntamente com o escravo Antônio, vivia em um<br />

rancho dentro do mato. Perguntado sobre sua forma de alimentação, Manoel Prestes<br />

afirmou<br />

que costumava-se alimentar com o que vinha da casa de seus parentes<br />

e com mel que tirava das abelheiras e com o palmito de girivá, que<br />

cortava nos matos em que se achava.<br />

Ao ser indagado sobre quem levava para ele comida da casa de seus parentes,<br />

Manoel respondeu “que ele mesmo ia buscar o que comer na casa de seus parentes<br />

e o levava para o mato”. Afirmou ainda que o escravo caçava passarinhos e outros<br />

animais para seu sustento. Este quilombo apresenta a não rara característica de abrigar<br />

tanto escravos como homens livres, no caso um desertor do exército. Revela<br />

também a interessante opção do crioulo Antônio de abandonar o aquilombamento<br />

composto por negros para viver na companhia de um homem branco, o que,<br />

além dos motivos apontados pelo escravo, também propiciava maiores facilidades<br />

de acesso ao universo social externo aos matos, pois mesmo sendo Manoel Prestes<br />

procurado por ter desertado, levantava menos suspeitas ao circular fora dos matos<br />

por não ser cativo.<br />

O extenso Rio Camaquã, curso d’água que corre próximo a Comunidade<br />

Quilombola de Palmas, configurava-se como um espaço privilegiado para esconderijo<br />

de desertores e escravos fugidos32 . A documentação policial da região explicita as<br />

31 APERS, Processos Crime, Cartório 1o Civil e Crime, Maço 35, processo no: 1107.<br />

32 A sesmaria da família Simões Pires, família proprietária e escravista que está relacionada com um dos troncos<br />

que deu origem à comunidade negra de Palmas, tinha como um de seus limites, originalmente, este curso d’água.<br />

188


preocupações das autoridades governantes da época escravista com as possibilidades<br />

de esconderijo oferecidas pelo Rio. Em 08/09/1856 o delegado de polícia de Piratini<br />

informava ao Presidente da Província, Conselheiro General Francisco Coelho, ter<br />

tido notícias de que a costa deste rio estaria servindo de refúgio a:<br />

[...] uns sujeitos chamados Madástres 33 : homens perdidos carregados<br />

de vícios e de crimes que horrorizam a sociedade. O lugar de suas<br />

moradias seria uma grande ilha que há dentro dos matos daquele rio<br />

de onde saem para este lado, e para o da esquerda, que é território do<br />

município de Caçapava, oficiei ao respectivo delegado para q. depois<br />

de um plano feito entre mim e ele, puséssemos em uma noite essa ilha<br />

em sítio para de dia ser invadida [...] Estou informado que para esta<br />

importantíssima diligência será preciso 40 a 50 homens, não porque<br />

se tema esses facínoras, que consta estarem bem fortificados, mas porque<br />

esses matos que guarnecem o rio são de uma extensão enorme, e<br />

por tais motivos, e por não ter gente suficiente para esta empresa, não<br />

a tenho posto em ação. 34<br />

Rico de matos, montes e ilhas, as proximidades do Rio Camaquã era destino<br />

de muitos escravos que buscavam quebrar os grilhões do cativeiro. Cerca de um mês<br />

depois, em 29/10/1856, o delegado suplente de polícia de Piratini remete correspondência<br />

ao Comandante das Armas e Presidente da Província do RS manifestando<br />

sua preocupação com os espaços de refúgio do Rio Camaquã:<br />

Ilmo Exmo. Sr.<br />

Por portaria de V. Ex.a datada de 7 do presente mês, fico autorizado<br />

para requisitar ao Comandante Superior da Guarda Nacional deste<br />

município 40 a 50 praças para sob meu mando marcharem na diligencia<br />

de bater os facínoras que vagam e se acoitam nos montes que<br />

beiram o Rio Camaquã, os quais com gravoso peso tanto afrontam a<br />

sociedade. Já me entendi com o Comandante Superior, que já de V.<br />

Ex.a recebeu ordem para fornecer-me com esse Esquadrão, e agora<br />

só espero que fique baixo aquele grande rio para por em ação essa<br />

manobra, e entre tanto espero receber as convenientes instruções do<br />

Sr. Dr. Chefe de Polícia, conforme V. Ex.a ordena. 35<br />

Os aquilombamentos referidos permitem apreender uma diversidade de aspectos<br />

bastante recorrente sobre estes agrupamentos no Rio Grande do Sul, que<br />

em sua maioria, se caracterizavam por terem pequenas dimensões, congregando um<br />

número pequeno de indivíduos. Uma outra questão diz respeito à presença não só de<br />

33 Madraço, madracear e madraçarta seriam sinônimos de vadio e ocioso. Ver: FIGUEIREDO, Candido. Novo Dicionário<br />

da Língua Portuguesa. Lisboa: 1922, 3ª edição.<br />

34 AHRS, Piratini, Fundo Polícia, Maço 16, correspondência expedida pelo do Delegado de Piratini ao Presidente da<br />

Província Conselheiro General Francisco Coelho em 08/09/1856.<br />

35 AHRS, Piratini, Fundo Polícia, Maço 16, Correspondência Expedida por Bernado Pires, 29/10/1856.<br />

189


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

escravos fugidos, mas também de outros segmentos sociais que por motivos diversos<br />

buscavam nos matos um esconderijo frente uma situação considerada indesejada 36 .<br />

Atualmente, diversos autores têm buscado destacar o fenômeno social do<br />

aquilombamento a partir de suas dinâmicas e complexidades, rompendo com a idéia<br />

do seu isolamento total frente à sociedade escravista. Mediante relações estabelecidas<br />

com a população negra (escravizada ou não) e brancos pobres, por exemplo, os<br />

quilombolas procuravam ter acesso a informações estratégicas para sua sobrevivência<br />

e a outros bens materiais, além da manutenção de vínculos sócio-afetivos e laços<br />

de solidariedade com negros livres e escravos que continuavam no cativeiro. Dificuldades<br />

como a debilidade no acesso a alimentos e bens manufaturados necessários<br />

para o dia a dia levava-os ainda a manter vínculos com pequenos comerciantes,<br />

muitas vezes mediante troca de seu pequeno excedente produtivo ou mercadorias<br />

furtadas por gêneros diversos.<br />

Impossível, porém, é apontar a totalidade destas formações, já que, devido a<br />

ausência de registros escritos deixados pelos próprios quilombolas, somente temos<br />

notícias daqueles quilombos que ‘deram errado’, ou seja, foram descobertos pelas<br />

forças repressivas, havendo assim um sub-registro de suas ocorrências.<br />

190<br />

INSURREIçõES ESCRAVAS<br />

Além dos aquilombamentos e fugas, as revoltas, levantes e insurreições escravas<br />

foram outros atos que aterrorizaram a sociedade branca e senhorial da época.<br />

Bagé e seus arredores não estiveram livres destes temores.<br />

Em dezembro de 1831 o Juiz de Paz Suplente de Caçapava informava ao Presidente<br />

de Província do Rio Grande do Sul uma diversidade de crimes executados<br />

por Alexandre Luis de Queirós 37 . A presença deste homem era vista como ameaçadora<br />

à tranqüilidade dos moradores da região não somente pelos crimes contra a<br />

moral pública, de lesa-majestade, roubos e possíveis mortes que pudesse causar, mas<br />

também pelo temor de aliciar escravos para insurreição:<br />

36 Piccolo apresenta uma ampla relação de ocorrências de quilombos no Rio Grande do Sul, os quais caracterizavamse<br />

por terem pequenas dimensões. Na mesma obra apresenta diversos casos de presença de brancos e desertores<br />

nos quilombos. Ver: PICCOLO, Helga Iracema L. A resistência escrava no Rio Grande do Sul. Caderno de Estudo.<br />

Porto Alegre: Curso de Pós-Graduação em História, 1992; bem como MAESTRI, Mário J. Pampa negro: quilombos<br />

no Rio Grande do Sul. In: REIS, J. J.; GOMES, Flávio. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo:<br />

Companhia das Letras, 1996. p. 291-330. Sobre a recorrência deste aspecto em outras localidades do Brasil, ver<br />

GOMES, Flávio dos Santos; REIS, João José (orgs.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo:<br />

Companhia das Letras, 1996; e GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas<br />

no Rio de Janeiro - século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.<br />

37 AHRS, Justiça, Caçapava do Sul, Maço 5, correspondência do Juízo de Paz.


Este homem mau – Excelentíssimo Senhor, é na crise atual mui perigoso<br />

nesta Província, por todos os motivos, o que bem [?] se deixa ver<br />

sobre a escravatura desse lugar depois que ele aqui chegou, apesar de<br />

não ter-lhe saído o plano como meditou, mas a Vossa Excelência será<br />

constante que lhe é muito fácil não sendo perseguido ou preso, aliciar<br />

em poucos dias a partida da escravatura, a promessa da liberdade.<br />

Com a promessa de liberdade, Alexandre Queirós estaria buscando convencer<br />

os cativos a se insurgirem contra a sociedade branca e escravista:<br />

[...] é constante ter o dito Queirós ter convidado a grande porção de<br />

escravos cativos e alguns malévolos para reunidos ao mesmo em dia<br />

marcado, se levantarem, matando a todos os homens e pessoas brancas<br />

com promessa de libertá-los.<br />

Na mobilização e arregimentação de escravos para este projeto Alexandre<br />

Queirós contava com a participação de “um seu peão ou escravo preto a que chamava<br />

Capitão da Pátria”, o qual<br />

[...] convidava escravos para a insurreição combinado com seu amo<br />

ou senhor, os quais foram positivamente de noite a chácara dos<br />

Senhor Damaso dos Santos de Menezes, cita nos subúrbios desta<br />

freguesia, proprietário que tem por todo 30 escravos a convidá-los<br />

para o dito fim, como com efeito se verificou por declaração dos<br />

mesmos escravos.<br />

Infelizmente os documentos não informam o desfecho do caso. Somente sabemos<br />

que a comunidade da região encaminhou um abaixo-assinado ao Juiz de Paz<br />

de Caçapava solicitando a prisão de Alexandre Luis de Queirós.<br />

A proximidade com a fronteira também era motivo de preocupação em relação<br />

a levantes e insurreições. O Subdelegado de Polícia de Bagé, Matheus Teixeira<br />

Brasil, em correspondência com o Presidente da Província João Marcelino Gonzaga<br />

datada de 24/02/1865, manifesta sua vontade de estabelecer um corpo de policiais<br />

da Guarda Nacional. O temor era voltado à fronteira com o Uruguai, como se verifica<br />

neste documento:<br />

Ilmo. Exmo. Snr.<br />

A invasão dos bárbaros assassinos do Governo de Montivideo, os intentos<br />

de sublelevarem [sic] a escravatura nesta Província; os orientais<br />

imigrados dos dois partidos que vagam pelos distritos sem mostrarem<br />

em que se ocupam, e finalmente os desertores do Exército que também<br />

aparecem tem posto os cidadãos pacíficos em sobressalto, e desassossego,<br />

e desejando tomar as providencias conveniente para estabelecer<br />

a tranqüilidade pública consultei Comandante Superior da G. N. deste<br />

Município para estabelecer uma Polícia dos G. N. da reserva [...]. 38<br />

38 AHRS, Polícia, Bagé, Maço 44.<br />

191


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

O medo de levantes e revoltas escravas esteve presente no imaginário das<br />

elites brasileiras ao longo de todo o período escravista. Segundo Eduardo Silva 39 as<br />

revoltas foram o pesadelo do tempo da escravidão, onde uma elite branca minoritária<br />

convivia diariamente com a grande concentração de “gente de cor”. A ocorrência<br />

da Revolta dos Malês na cidade de Salvador, em 1835, entre tantas outros levantes,<br />

revoltas e insurreições negras, potencializou este medo ao tornar muito próximo o<br />

espectro da Revolução Haitiana, quando negros insurgiram-se e após 10 anos de luta<br />

acabaram com a dominação colonial na região 40 .<br />

192<br />

O MITO DA ABOLIçãO ANTECIPADA EM BAGÉ<br />

Neste último ponto, teceremos breves considerações sobre a errônea afirmação<br />

de que a escravidão teria sido abolida antecipadamente neste município 41 .<br />

Segundo algumas obras da historiografia local, no dia 28/09/1884 a Câmara Municipal<br />

de Bagé, após grande mobilização popular, teria declarado extinta a escravidão<br />

em seus limites, libertando assim todos os “pretos” que viviam em seu território.<br />

O Club 28 de Setembro, sociedade emancipadora que existia com a finalidade de<br />

libertar escravos, teria desempenhado papel fundamental na disseminação do ideário<br />

abolicionista e na decisão do legislativo local de aprovar tal lei 42 .<br />

Entretanto, uma análise mais detida da Ata da Sessão Extraordinária da Câmara<br />

Municipal de Bagé do dia referido revela que este legislativo se reuniu para<br />

comemorar a libertação dos escravos ocorrida por iniciativa particular de alguns pro-<br />

39 SILVA, Eduardo. Fugas, revoltas e quilombos: os limites da negociação. In: REIS, João José; SILVA, Eduardo.<br />

Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 70.<br />

40 Sobre os temores das elites nacionais com o grande percentual de negros e mestiços na sociedade brasileira do século<br />

XIX e o papel da questão racial em seu ideário, ver AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco:<br />

o negro no imaginário das elites século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987 e SCHWARCZ, Lilia Mortiz. O espetáculo das<br />

raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. Sobre a Revolta<br />

dos Males ver REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. São Paulo: Companhia<br />

das Letras, 2003. Edição revista e ampliada. Quanto ao impacto dos conflitos no Haiti sobre o imaginário das eites<br />

brasileiras, ver GOMES, Flávio dos Santos. Experiências transatlânticas e significados locais: idéias, temores e narrativas<br />

em torno do Haiti no Brasil Escravista. Tempo, Rio de Janeiro: Sette Letras, v. 7, n. 13, julho de 2002.<br />

41 Processo semelhante ocorreu em diversas outras cidades do Rio Grande do Sul. Sobre Porto Alegre, onde Moreira<br />

e Tassoni realizaram uma aprofundada análise das alforrias neste, explicitando suas lógicas de concessão e conquista.<br />

Ver: MOREIRA, Paulo Roberto Staudt; TASSONI, Tatiani de Souza. Que com seu trabalho nos sustenta: as cartas de<br />

alforria de Porto Alegre (1748-1888). Porto Alegre: EST Edições, 2007.<br />

42 Ver: TABORDA, Tarcisio Antonio Costa. A abolição da escravatura em Bagé. 28 de setembro de 1884. Bagé: Museu<br />

Dom Diogo de Souza, 1984; e MONTI, Verônica. O abolicionismo: sua hora decisiva no Rio Grande do Sul. Porto Alegre:<br />

Martins livreiro, 1985. A Praça da Matriz de Bagé teria passado a ser denominada “Praça da Redenção” em homenagem<br />

ao feito. Ver: FAGUNDES, Elisabeth Macedo de. Bagé: no caminho da história do Rio Grande do Sul. Porto Alegre:<br />

Martins Livreiro Editor, 1995, p. 58 e 77; e FAGUNDES, Elisabeth Macedo de. Inventário Cultural de Bagé: um passeio<br />

pela história. Porto Alegre: Evangraf, 2005, p, 71.


prietários, e não para declará-la abolida por lei, o que inclusive entraria em choque<br />

com a legislação maior do Império.<br />

A análise da documentação histórica do período revela que estas libertações<br />

foram em grande medida uma série de alforrias condicionadas, ou seja, dependentes<br />

do cumprimento por parte dos escravos de condições estipuladas pelo proprietário,<br />

como a prestação de serviço por mais alguns anos ou a morte do senhor. Até satisfazer<br />

estas cláusulas, os escravos deveriam continuavam a viver na esfera de dependência<br />

dos antigos senhores, os quais tentavam fazer com que o ato da alforria fosse<br />

internalizado pelos ex-escravos como uma concessão senhorial, resultado de um favor<br />

ou doação para com isso reforçar sua ascensão moral sobre os alforriados e criar<br />

um corpo de trabalhadores dependentes. Esta realidade pode ser averiguada tanto<br />

mediante de cartas de alforria como em inventários post-morten do período onde aparecem<br />

avaliados, ao invés dos escravos, os serviços que estes deveriam prestar a fim<br />

de obter a liberdade prometida nos documentos de manumissão.<br />

Comparando a quantidade de cartas de alforria concedidas em Bagé em 1884<br />

em relação aos anos anteriores percebe-se a posição de destaque ocupada por esta<br />

data:<br />

Número de registros de alforrias em Bagé 43<br />

Uma análise mais detida da modalidade das concessões de alforria no mesmo<br />

ano vai ao encontro do exposto acima:<br />

43 RIO GRANDE DO SUL. SECRETARIA DA ADMINISTRAçãO E DOS RECURSOS HUMANOS. DE-<br />

PARTAMENTO DE ARQUIVO PÚBLICO. Documentos da escravidão: catálogo seletivo de cartas de liberdade acervo dos tabelionatos<br />

do interior do Rio Grande do Sul. Porto Alegre : CORAG, 2006. A tabela seguinte está baseada na mesma fonte.<br />

193


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

194<br />

Cartas de Alforria em Bagé – Ano de 1884<br />

Apesar da considerável quantidade de cartas de alforrias concedidas em Bagé<br />

nos anos finais do regime escravista – que, como vimos, configurou-se como uma<br />

forma disfarçada de cativeiro –, o emprego da mão-de-obra escravizada esteve presente<br />

nesta localidade até a abolição em 1888, e após esta data sob a forma de relações<br />

de trabalho livre, assalariadas ou não.<br />

Precipitadamente, parcela da historiografia nacional disseminou a idéia de que<br />

a “transição” do trabalho escravo para o livre teria ocorrido unicamente pela via da<br />

substituição do trabalhador cativo pelo trabalhador livre assalariado – esse último<br />

visto como sinônimo de branco e imigrante europeu. Por detrás desta perspectiva,<br />

emergia a idéia de que os ex-escravos teriam “desaparecido” do mercado de trabalho<br />

nacionais a partir desta “substituição” da mão-de-obra cativa pela livre 44 . A emergência<br />

das histórias de comunidades de remanescentes de quilombos em todo Brasil é<br />

um exemplo sugestivo de como esta afirmação deve ser revista.


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- Fundo Justiça, Caçapava do Sul, Maço 5.<br />

197


4<br />

elites e redes de<br />

soCiAbilidAde


vAlsAs, ContrAdAnçAs e bAilAdos: esPAços de<br />

soCiAbilidAde entre Agentes dA elite no rio grAnde<br />

de são Pedro no séCulo xIX.<br />

Adriano Comissoli¹<br />

Resumo: Este artigo se dedica a apresentar uma interpretação do modo como surgiram e<br />

se desenvolveram os relacionamentos sociais que permitiram os matrimônios de magistrados régios<br />

com mulheres pertencentes a sociedade já estabelecida do Rio Grande de São Pedro. Para esse efeito,<br />

analisamos os espaços de sociabilidade disponíveis aos membros da elite sul rio-grandense entre os<br />

anos de 1808 a 1831 e sua capacidade de aproximar os diferentes membros da mesma em convivência<br />

sociável. A proposta é explorar os eventos sociais como oportunidades para introduzir os magistrados<br />

na sociedade e promover políticas matrimoniais.<br />

Palavras-chave: elite – magistrados – matrimônio – sociabilidade.<br />

O<br />

período compreendido entre os anos de 1808 e 1831 contemplou<br />

alterações decisivas na formação sócio-política da América portuguesa,<br />

dentre as quais a que mais se destaca é a ruptura da unidade<br />

política entre Portugal e Brasil. Nesse cenário, foram importantes para o processo as<br />

transformações nas bases institucionais administrativas ocorridas tanto antes quanto<br />

depois da separação política. O Rio Grande de São Pedro conheceu neste momento<br />

alterações fundamentais em sua malha administrativa que implicaram, dentre outros<br />

fenômenos, a solidificação de conexão com o centro do poder situado no Rio de<br />

Janeiro. Igualmente, passaram a circular pela capitania/província uma série de oficiais<br />

administrativos até então inexistentes. Dentre os mesmo merecem destaque os<br />

magistrados régios, pois não só representavam o inicio do funcionamento de uma<br />

Justiça profissional, como os indivíduos que ocuparam tais cargos terminaram por<br />

desempenhar importante papel no desenvolvimento político do extremo sul. Coincidência<br />

ou não três bacharéis atuantes no Rio Grande foram escolhidos pelos eleitores<br />

e pelo imperador para compor o primeiro senado brasileiro, ainda que por diferentes<br />

províncias.² No Continente de São Pedro estes membros da administração<br />

¹ Mestre em História Social pela UFF. Doutorando do PPGHIS-UFRJ. Bolsista CAPES.<br />

² Foram eles Luís Correia Teixeira de Bragança pelo Rio Grande de São Pedro, José Teixeira da Matta Bacellar por<br />

Sergipe e José Feliciano Fernandes Pinheiro por São Paulo. Bragança, contudo, faleceu antes de tomar posse sendo<br />

substituído pelo padre Antônio Vieira da Soledade.<br />

201


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

nascidos fora da capitania passaram por meio de migração, matrimônios, sociedades<br />

e alianças diversas a compor a elite local oferecendo à mesma um caráter misto, qual<br />

seja, mesclando integrantes oriundos dos grandes proprietários de terra e militares<br />

nascidos na região com estes novos elementos vindo de fora.<br />

Para compreender os laços que atrelavam os indivíduos faz-se necessário<br />

identificar os relacionamentos desenvolvidos entre os mesmo, bem como a forma<br />

como os quais se originavam e desenvolviam. Nosso estudo se dirige a analisar as<br />

formas de integração entre os oficiais administrativos e os representantes da elite<br />

enraizada no Rio Grande de São Pedro, percebendo aí uma complementaridade que<br />

será fundamental para o desenvolvimento política da região e mais amplamente do<br />

Brasil durante o século XIX. Contemplamos aqui os meios de sociação dos membros<br />

da elite em estudo, dissertando sobre os espaços de sociabilidade de que dispunham<br />

para conhecerem-se uns aos outros e interagirem. São abordadas as reuniões<br />

públicas, os encontros cotidianos, as irmandades religiosas, a convivência acadêmica<br />

e as atividades de entretenimento enquanto oportunidades de criação de elos e de<br />

convívio. A fim de desvendar as situações que fomentam a sociabilidade do grupo<br />

utilizamos narrativas diversas que nos fornecem indícios sobre o tema, cruzando tais<br />

informações com dados empíricos coletados em outros documentos.<br />

202<br />

OS ESPAçOS DE SOCIABILIDADE NO<br />

RIO GRANDE DE SãO PEDRO<br />

Eis o fato. O desembargador Luís Correia Teixeira de Bragança, então ouvidor<br />

da comarca de Santa Catarina, casou-se com Josefa Eulália de Azevedo, às<br />

19 horas do primeiro dia do mês de fevereiro de 1807. Eis nossa interpretação.<br />

Sua união representou a aliança entre um magistrado régio representante do poder<br />

central e um ramo da primeira elite terratenente do Rio Grande de São Pedro cujas<br />

raízes se firmavam no século XVIII. Raciocínio semelhante pode ser estendido à<br />

união do magistrado José Maria de Sales Gameiro Mendonça Peçanha com Maria<br />

Pulquéria Menna Barreto ou à do juiz de fora Caetano Xavier Pereira de Brito com<br />

Francisca Godinho de Oliveira Valdez. Tratavam-se todos três de ministros régios<br />

que tomavam casamento com mulheres pertencentes às melhores famílias do extremo<br />

sul. Josefa Eulália era viúva do brigadeiro Rafael Pinto Bandeira, um dos homens<br />

mais ricos e poderosos do setecentos sul rio-grandense. Maria Pulquéria era filha de<br />

João de Deus Menna Barreto, militar que vivenciara as diversas campanhas do Prata<br />

e que desenvolveria intensa atividade política, fortemente alicerçada no largo alcance<br />

de sua parentela. Ao final de sua vida seria agraciado com os títulos de barão e mais<br />

tarde visconde de São Gabriel. Francisca, por sua vez, era filha do coronel Manuel


Godinho Leitão de Alboim, de quem sabemos pouco. Dessa maneira, esses juízes e<br />

ouvidores enviados ao sul pela Coroa portuguesa se enraizavam junto à sua população<br />

por meio de matrimônios que os aproximavam de importantes figuras da região.<br />

Eles logo abandonariam a carreira de juristas preferindo realizar uma conversão de<br />

agentes do poder central para representantes de uma elite local. Essa busca por estabelecer-se<br />

junto à sociedade sulista mostrou-se bastante bem sucedida, do ponto de<br />

vista político, uma vez que os três alcançaram postos políticos de destaque quando<br />

da reformulação das instituições de governo após a independência.³ Contudo, se o<br />

efeito social destas uniões mostra-se claro à nossa observação feita a posteriori, restam<br />

ainda dúvidas sobre o modo como se processa o encontro de tais personagens e sobre<br />

a evolução de tais relacionamentos. A pergunta que objetivamente formulamos é<br />

como se conhecem tais pessoas e como se engendram tais matrimônios?<br />

A 20 de junho de 1805 o então ouvidor da comarca de Santa Catarina, Luís<br />

Correia Teixeira de Bragança, encontrava-se instalado na vila de Porto Alegre, cumprindo<br />

a ordem régia que lhe determinava assumir como vogal e juiz executor da<br />

Junta da Fazenda do Rio Grande de São Pedro e, para tanto, residir em sua capital. 4<br />

Em suas obrigações ele tratava diretamente com os membros da Câmara municipal,<br />

presidindo suas sessões, mas também como governador Paulo José da Silva Gama<br />

e com uma infinidade de oficiais menores. Contudo, sua vivência não se restringia<br />

aos aspectos burocráticos e ele também passou a relacionar-se com a comunidade<br />

porto-alegrense. Parece haver pouca dúvida de que foi nessa localidade que o bacharel<br />

travou contato com a viúva do brigadeiro Rafael Pinto Bandeira, a senhora Josefa<br />

Eulália, dada a moradia dela no termo da vila. No ano seguinte, em 19 de julho, o<br />

príncipe regente de Portugal passava decreto autorizando o ministro a casar-se com<br />

a dita. 5 Quem primeiro se aproximou de quem é uma pergunta que não temos condições<br />

de responder. Não parece fora de propósito imaginar que o ouvidor tomasse<br />

conhecimento, a partir de sua chegada à vila, de quem era a viúva do brigadeiro, que<br />

herdara uma meação de cerca de 30 contos de réis e que segundo relatos da época<br />

possuía uma numerosa parentela. 6 Por outro lado, não há motivos para duvidar<br />

³ COMISSOLI, Adriano. “A Casa da família Pinto Bandeira: estratégias familiares de perpetuação de poder no Rio<br />

Grande de São Pedro (sécs. XVIII-XIX)”. In: Vi Fórum FAPA, 2007, Porto Alegre. Cadernos FAPA - Especial : VI<br />

Fórum FAPA 2007, 2007. www4.fapa.com.br/cadernosfapa/artigos/edicaoSPforum07/artigo12.pdf ; COMIS-<br />

SOLI, Adriano. “O juiz de fora que veio para ficar: um estudo sobre circulação e enraizamento de oficias da Justiça<br />

no império luso-brasileiro de Dom João e Dom Pedro”, In. Revista Territórios e Fronteiras. V. 1 N. 1, Programa<br />

de Pós-graduação - Mestrado em História, jan-jun 2008, pp. 244-262; COMISSOLI, Adriano. “O juiz de dentro:<br />

magistratura e ascensão social no extremo sul do Brasil, 1808-1831”, In. V Jornadas Regionais GT Mundos do<br />

Trabalho/Revista AEDOS, v. 2, nº 4, novembro 2009.<br />

4 AHU-SC. Carta do ouvidor geral da comarca de Santa Catarina ao príncipe regente, cx. 9, doc. 479.<br />

5 AHU-RS. Requerimento do ouvidor da comarca de Santa Catarina ao príncipe regente, cx. 11, doc. 660.<br />

6 APERS. Inventário de Rafael Pinto Bandeira, 1º Cartório de órfãos de Porto Alegre, maço 12, processo 188, ano<br />

1796. MAGALHãES, Manoel Antônio de. “Almanack da Vila de Porto Alegre”, In: Revista do instituto Histórico<br />

e Geográfico Brasileiro, vol. 30, 1867. P. 62.<br />

203


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

de que a senhora Josefa Eulália obtivesse informações sobre o magistrado, dado o<br />

tamanho reduzido de Porto Alegre e a novidade que a chegada do primeiro oficial<br />

de Justiça profissional da capitania se configurava. Com isso queremos afirmar que<br />

no plano dos interesses sociais havia motivos para ambos desejarem a aproximação.<br />

Com os outros dois magistrados o percurso foi bastante semelhante. Caetano<br />

Xavier Pereira de Brito assumiu como juiz de fora no ano de 1820, exercendo-o até<br />

1825, o que implica ter vivido como ministro da Justiça o processo de emancipação<br />

brasileiro. Entretanto, quaisquer que fossem as atribulações do período elas não o<br />

impediram de conhecer sua futura esposa e de tomar matrimônio durante seu mandato<br />

como juiz. Para isso, ele solicitou e recebeu do príncipe Dom Pedro licença para<br />

efetivar suas bodas. 7 Não difere do caso de Mendonça Peçanha que após atuar como<br />

juiz de fora em Porto Alegre foi designado a assumir a recém criada vara da vila de<br />

Rio Pardo em 1820. Se já conhecia Maria Pulquéria ou se veio a conhecê-la somente<br />

em Rio Pardo não temos como esclarecer, mas podemos afirmar que no ano de 1821<br />

os dois casaram-se na “nas casas de residência e no oratório do Ilustríssimo Marechal<br />

João de Deus Menna Barreto” na mesma vila. Era este o segundo casamento de<br />

Maria, então viúva de um capitão do regimento de Dragões. 8<br />

É óbvio os magistrados do monarca não eram os únicos homens de fora da<br />

capitania que contraíam matrimônio com as mulheres da mesma. A população do<br />

Rio Grande de São Pedro encontrava-se em franca expansão graças, em grande medida<br />

ao fluxo migratório. Muitos dos oficiais de vereança eram oriundos de foram<br />

do Rio Grande de São Pedro. Ao menos 53% dos 64 oficiais da Câmara de Porto<br />

Alegre eram portugueses do reino e outros 31,2% provinham de outras capitanias<br />

Americanas, da Colônia do Sacramento ou dos Açores. 9 A maioria desses cidadãos<br />

eram casados. Na listagem de elegíveis de 1814 de um total de 62 sujeitos listados, 47<br />

eram casados e mais um era viúvo. 10 Considerando que a maioria dos sujeitos migrara<br />

para o Rio Grande podemos concluir que seus casamentos também significaram<br />

enraizamento na sociedade sulista, sendo um signo de aceitação e de posicionamento<br />

dentro da mesma.<br />

Antônio José da Silva Guimarães contratou seu casamento com Maurícia Antônia<br />

de Oliveira, filha de Felisberto Pinto Bandeira. Antônio era natural do bispado<br />

de Braga em Portugal, mas Maurícia nascera na freguesia do Triunfo no extremo<br />

7 AHCMPA. Auto de justificação matrimonial de Caetano Xavier Pereira de Brito e Francisca Godinho de Oliveira<br />

Valdez, 1822/62.<br />

8 AHCMPA. Livro 3º de casamentos da freguesia de Rio Pardo, fl. 163.<br />

9 COMISSOLI, Adriano. “A vila coroada: perfil social dos vereadores de Porto Alegre (1808-1828)”, In. Anais: produzindo<br />

história a partir de fontes primárias. Vii mostra de pesquisa do Arquivo Público do Rio Grande<br />

do Sul. Porto Alegre: Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas – CORAG, 2009. P. 149.<br />

10 ANRJ. Caderno de Informadores de 1814, Desembargo do Paço, cx. 187, PAC. 2, doc. 18.<br />

204


meridional americano. Enquanto Antônio era comerciante seu sogro era mais um<br />

representante da estirpe dos Pinto Bandeira e dedicava-se à criação de gado. Domingos<br />

de Almeida Lemos Peixoto também efetuou um bom casamento. Nascido na cidade<br />

do Porto, ao norte de Portugal, ele deixou sua terra natal muito novo e dirigiuse<br />

ao Rio de Janeiro, passando depois a Porto Alegre, onde estabeleceu comércio. Na<br />

vila meridional ele terminou por casar-se com Luísa Joaquina da Silveira, natural de<br />

Viamão e filha de um capitão de Ordenanças e camarista, José Francisco da Silveira<br />

Casado, na altura do ano de 1790. 11 Silveira Casado não era estranho ao comércio<br />

e criava gado em quantidade junto a seus sócios aproximados por parentesco. Era<br />

freqüente participante da Câmara porto-alegrense e junto a seu irmão e filhos dominava<br />

os postos da tropa de Ordenanças. 12 Por fim, Almeida Peixoto também casaria<br />

uma de suas filhas com um negociante/camarista, o senhor Antônio Bernardes Machado,<br />

homem de ativa participação política nos eventos da emancipação do Brasil. 13<br />

Roteiro semelhante foi percorrido por José Antônio da Silva Neves. Ele saiu<br />

da cidade do Porto para o Continente de São Pedro “de menor idade”, ou seja,<br />

jovem demais para haver se casado. No ano de 1795 se contratava para casar com<br />

Inocência, filha do capitão Antônio José Martins Bastos, que dividia seu tempo entre<br />

o comércio e a Câmara. 14 Os depoimentos de sua justifacação matrimonial não nos<br />

permitem saber mais do que isso, mas descobrimos que Silva Neves estava inscrito<br />

na lista de comerciantes do Almanak de Porto Alegre em 1808, foi vereador em<br />

1814 e ostentou o posto de capitão quando do ano de sua morte (1820). 15 Seu sogro<br />

seguira o mesmo percurso: imigrante português que se tornou comerciante, casou<br />

com uma mulher nascida no sul do Brasil e alcançou cargo na Câmara.<br />

Este ciclo de casamentos entre migrantes, especialmente os oriundos de Portugal,<br />

e os descendentes femininos de outros que se deslocaram ao Rio Grande<br />

aponta para um mecanismo de recrutamento social tanto do corpo mercantil quanto<br />

dos vereadores e demais oficiais da Câmara de Porto Alegre. 16 De um ponto de vista<br />

funcionalista estas uniões parecem mesmo um tanto óbvias, visto que garantiam a<br />

11 AHCMPA. Auto de justificação de matrimônio de Domingo de Almeida lemos Peixoto e Luís Joaquina da Silveira,<br />

1790/18.<br />

12 COMISSOLI, Adriano. Os “homens bons” e a Câmara Municipal de Porto Alegre (1767-1808). Porto Alegre:<br />

Editora da UFRGS, 2008.<br />

13 APERS. Inventário de Antônio Bernardes Machado, 1º Cartório de órfão de Porto Alegre, maço 33, processo<br />

818, ano 1824. ANRJ. Caderno de Informadores de 1818, Desembargo do Paço, cx. 187, PAC. 2, doc. 18. PICCO-<br />

LO, Helga Iracema Landgraff. O processo de independência no Rio Grande do Sul, in. MOTA, Carlos Guilherme<br />

(org.). 1822 – Dimensões, São Paulo, Editora Perspectiva, 1972.<br />

14 AHCMPA. Auto de justificação de matrimônio de José Antônio da Silva Neves e Inocência Martins de Oliveira,<br />

1795/55.<br />

15 MAGALHãES, Manoel Antônio de. “Almanack da Vila de Porto Alegre”, Op. Cit. P. 65. APERS. Inventário de<br />

José Antônio da Silva Neves, 1° Cartório de órfãos de Porto Alegre, processo 701, maço 28, ano 1820.<br />

16 COMISSOLI, Adriano. Os “homens bons” e a Câmara municipal de Porto Alegre (1767-1808). Op. Cit.<br />

COMISSOLI. Adriano. “A vila coroada”. Op. Cit.<br />

205


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

continuidade do grupo ligada à administração local ou fundiam, no caso dos magistrados,<br />

duas legitimidades diferentes, otimizando o controle dos atores sobre os<br />

recursos da sociedade. Quando o desembargador Luís Correia Teixeira de Bragança<br />

desposou Josefa Eulália de Azevedo uniu-se o poder institucionalizado da Justiça<br />

régia com a riqueza material e a influência das relações pessoais dos grandes proprietários<br />

de terra do Rio Grande. Entretanto, tal interpretação apresenta o inconveniente<br />

de descrever estes sujeitos como dotados de uma hiperracionalidade, como se<br />

estivessem sempre a calcular cuidadosamente seus passos e ações. Se por um lado é<br />

necessário considerar capacidade dos sujeitos de criar estratégias e aplicá-las, por outro<br />

devemos igualmente respeitar as incertezas e especialmente o papel que o acaso<br />

desempenhava em suas vidas. É necessário ter em mente que estes casamentos, por<br />

mais que pudessem ser planejados tendo em vista interesses objetivos, resultavam<br />

igualmente de encontros fortuitos e da convivência entre os atores sociais localizados<br />

na vila. Explicar de modo menos mecanicista o encontro entre estes sujeitos,<br />

o estabelecimento dos primeiros laços e a evolução dos relacionamentos é nossa<br />

proposta para o presente artigo. A resposta que propomos encontra-se nos espaços<br />

de sociabilidade, que, embora não descrevam nenhum dos casos específicos aqui<br />

trabalhados, estavam disponíveis aos integrantes desta sociedade na época.<br />

Oportunidades para conhecer pessoas e para conviver com as mesmas não<br />

faltavam na Porto Alegre do século XIX. Elas estavam dispersas no cotidiano e talvez<br />

por se tratarem de algo tão corriqueiro tenham escapado ao registro documental<br />

mais sistemático, fato que se agrava pela inexistência de imprensa antes de 1827. 17<br />

Existem, contudo, indícios e rastros que nos permitem inferir as oportunidades de<br />

sociação dos sujeitos, em especial em momentos lúdicos. A teoria da forma lúdica de<br />

sociação como evento de convivência sociável que supera o imediatismo dos interesses<br />

dos sujeitos participantes é expressa por Georg Simmel. Para o sociólogo alemão<br />

a reunião de homens em torno de grupos de convivência – sociedades econômicas,<br />

comunidades de culto, irmandades de sangue – traduz não somente necessidades e<br />

interesses específicas, mas é fruto igualmente de um impulso de estar justamente socializado.<br />

Dessa forma, um ajuntamento de amigos carrega não somente o interesse<br />

de fortalecer ligações sociais, mas igualmente a satisfação de compartilhar a presença<br />

dos mesmos. 18 Essa teoria implica reduzir por alguns instantes em nossa análise a<br />

criação de estratégias conscientes por parte dos indivíduos, mas abre espaço, entretanto,<br />

para os encontros casuais e para os contatos inesperados. Portanto, ela<br />

17 PICCOLO, Helga Iracema Landgraff. “O processo de independência numa região fronteiriça: o Rio Grande de<br />

São Pedro entre duas formações históricas”, In. JANCSó, Istvan. independência: história e historiografia. São<br />

Paulo: Ed. Hucitec/FAPESP, 2005. P. 585, nota 25.<br />

18 SIMMEL, Georg. Questões fundamentais de sociologia: indivíduo e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar<br />

Ed., 2006. Em especial o capítulo 3.<br />

206


ecupera ao mesmo tempo o acaso e a incoerência das ações sociais, pois ainda que<br />

os atores sejam capazes de se posicionar estrategicamente no tabuleiro social eles<br />

não precisam estar jogando o tempo todo. Conquanto a matriz sociológica de Max<br />

Weber seja distinta da de Simmel é pertinente lembrar que o primeiro não considera<br />

que toda ação perpetrada pelos sujeitos possa ser considerada ação social. 19 Neste<br />

mesmo sentido, Fredrik Barth também não descreve que toda ação de indivíduos<br />

possa ser descrita como transação. 20 O que estamos propondo na leitura efetivada<br />

sobre a sociabilidade é pensá-la junto ao fortalecimento de laços e interesses sociais,<br />

mas governada igualmente pelo sentimento de satisfação de compartilhar a presença<br />

de outros sujeitos, notadamente também pertencentes ao círculo da elite sócioeconômica<br />

e política do Rio Grande de São Pedro.<br />

No Brasil do início do século XIX os espaços de interação entre as pessoas<br />

se multiplicavam, aumentando as possibilidades de sociabilizar. Os espaços públicos<br />

têm sido analisados majoritariamente como locais de discussão da política em grande<br />

medida orientada pela ampliação da esfera pública, fenômeno de destaque para a<br />

época. 21 “E a rua transformou-se em espaço de manifestações políticas”. 22 Contudo,<br />

ainda que estes espaços se convertessem em locais de manifestações políticas eles<br />

eram antes de tudo locais de convivência cotidiana e esse caráter, portanto, misto<br />

não pode se perder de vista. A Ra era antes de tudo o local do movimento do dia a<br />

dia, dos encontros na planejados e das conversas corriqueiras. As tavernas, as boticas,<br />

as livrarias e demais lojas comerciais são descritas por vezes como propiciadoras<br />

do debate público da política, pois que serviam como pontos de encontro, mas podemos<br />

igualmente interpretá-los como oportunidades de sociação. Nesse sentido, o<br />

tema da conversa – mesmo sendo de conteúdo político – servia tão somente de “suporte<br />

indispensável do estímulo desenvolvido pelo intercâmbio vivo do discurso”. 23<br />

Em outras palavras, ainda que conversar sobre política servisse para transmitir idéias<br />

e informações por vezes se resumia a compartilhar a companhia dos semelhantes; o<br />

tema agregava os sujeitos em torno de um ponto comum sem, contudo, mobilizá-los<br />

a discutir objetivamente. Avaliar se a conversa assumia um viés subjetivo servindo<br />

somente de palco para a sociabilidade ou se tornava-se objetiva impedindo a mesma<br />

é algo impossível ao historiador que se dedica ao oitocentos, visto não ser possível<br />

19 WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Editora Universidade<br />

de Brasília, 1994.<br />

20 BARTH, Fredrik. Process and form in social life. Selected essays of Fredrik Barth: volume i. London:<br />

Routledge & Kegan Paul, 1981.<br />

21 SLEMIAN, Andréa. Vida política em tempo de crise: Rio de Janeiro (1808-1824). São Paulo: Hucitec, 2006.<br />

22 PICCOLO, Helga Iracema Landgraff. “O processo de independência numa região fronteiriça...”, Op. Cit. 585-<br />

586.<br />

23 SIMMEL, Georg. Op. Cit. P. 75.<br />

207


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

resgatar os debates efetuados no cotidiano. Contudo, serve de aviso que nem toda a<br />

conversação assumia caráter objetivo qualquer que fosse o assunto em pauta podendo<br />

operar tão somente como interação sociável desprovida de outros interesse.<br />

Tendo clara essa possibilidade podemos pensar que os moradores de Porto<br />

Alegre tinham disponível diante de si tanto a expressão de opiniões políticas quanto<br />

a interação sociável por puro prazer. Segundo o naturalista francês Auguste de Saint-<br />

Hilaire, os habitantes da dita vila tinham o hábito de “frequentemente palestrar nas<br />

lojas, mas não há nenhum local de reunião”, ou seja, era nestes espaços de convívio<br />

diário que se operavam os contatos e as sociabilidades. 24 As tavernas eram locais de<br />

encontro tão comuns que em dado momento tiveram de ser vigiados. Em ordem ao<br />

Coronel Francisco Antônio de Borba, a Junta de Governo Provisório da capitania<br />

determinava em 1822<br />

Averiguará o objecto da reunião dos Cidadãos no cazo de se ajuntarem<br />

em lugar e numero que cauze suspeita dando conta a este Governo<br />

no cazo que o objecto de taes ajuntamentos não seja de natureza<br />

da tranqüilidade publica e o bem do estado exija que immediatamente<br />

desbaratados pela força, e prezos os que a elles tenhão concorrido. (...)<br />

Não tolere que as Tavernas, ou quaesquer outras Cazas aonde se vender<br />

vinho, genebra ou água-ardente estejão abertas de noite, depois do<br />

toque da Caixa; (...) E aos donos das mencionadas Cazas, ou Tavernas<br />

que consentirem nelas ajuntamentos de homens brancos, ou faltarem<br />

ao que fica ordenado a respeito d’aqueles os fará prender e deter na<br />

prizão por tempo razoável. 25<br />

A ordem indica, ao contrário do que observou o viajante francês, os estabelecimentos<br />

comerciais como locais de reunião. Os ajuntamentos dos cidadãos em<br />

nenhum momento foram proibidos, pois não eram em si algo ameaçador ou irregular,<br />

importava saber se o objetivo das mesmas era tão somente socializar ou<br />

intentar alguma mobilização política. O que se procurou com a determinação não<br />

foi destruir os espaços cotidianos em sua função sociável, mas policiar o teor das discussões<br />

neles travadas a fim de impedir a formação de facções políticas consideradas<br />

subversivas e ainda mais perigosas dada a instabilidade do início da década de 1820.<br />

As manifestações políticas do ano de 1821 haviam deixado as autoridades em alerta,<br />

bem como a possibilidade de mobilização de tropas militares contrárias à efetivação<br />

da emancipação brasileira. 26<br />

24 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,<br />

2002. P. 59.<br />

25 Revista do Archivo Publico do Rio Grande do Sul, n. 7, set. 1922, p. 194.<br />

26 PICCOLO, Helga Iracema Landgraff. Op. Cit.<br />

208


Os homens do século XIX tinham oportunidade de conviver socialmente<br />

não somente nas lojas e nas tavernas. As irmandades religiosas eram igualmente instrumentos<br />

aglutinadores. Elas desempenhavam um papel aristocratizante para seus<br />

membros, distinguindo hierarquias sociais de acordo com o pertencimento a uma<br />

ou outra confraria. Dessa forma, eram simultaneamente indicadoras e mantenedoras<br />

da hierarquia social. Contudo, também conferiam um sentido de corpo aos irmãos<br />

que os interligava e dava-lhes um sentimento de pertença a algo mais amplo. 27 Dessa<br />

maneira, se a entrada em uma determinada irmandade religiosa revela algo da<br />

categoria social do indivíduo admitido, a vontade de partilhar sua devoção religiosa<br />

por um santo específico junto a outros crentes pode ser avaliada como igualmente<br />

importante. A reunião em torno das irmandades, assim como junto à Misericórdia<br />

local, expressava a convergência de grupos sociais tanto quanto de particularidades<br />

devocionais, elementos que aproximavam os sujeitos e possibilitavam a convivência<br />

sociável que por sua vez permitia o surgimento de laços mais duradouros entre os<br />

mesmos. As reuniões das irmandades, as procissões e o acompanhamento dos funerais<br />

dos irmãos promovia o contato dos membros em situações que não incidiam<br />

necessariamente sobre a política da época.<br />

É bem verdade que a política e a religião caminhavam em proximidade no período<br />

de modo que as celebrações religiosas respaldavam as legitimidades políticas.<br />

Dessa forma, a luta pelas hierarquias geravam conflitos relacionados a preeminência<br />

dos poderes estabelecidos. O panorama era especialmente sensível nos anos 1820<br />

após a saída do governador Conde da Figueira e a instalação de governos provisórios<br />

dos quais participavam militares e civis de expressão local e regional. No ano<br />

de 1822 a Junta de Governo Provisório advertia ao juiz de fora e aos vereadores que<br />

atendendo ao costume vigente de sentarem-se os governadores e seus ajudantes de<br />

ordens sob o arco do cruzeiro da igreja matriz e Porto Alegre quando das festividades<br />

oficiais decorridas no templo que o mesmo deveria se praticar. Dessa maneira<br />

“há por bem a mesma Exma. Junta prevenir aos Senhores Dr. Juiz de Fora Presidente<br />

e oficiais da Câmara desta Capital que nas Festividades a que o Governo assistir<br />

na Matriz terá imediatos a si, e logo abaixo do Arco Cruzeiro os seus Ajudantes de<br />

Ordens, e oficiais do Estado Maior”. 28 A decisão desabonava os vereadores que se<br />

consideravam detentores da distinção de sentarem-se no mesmo local, considerado<br />

de maior prestígio.<br />

Outro propiciador de sociação operava fora do nível local e envolvia apenas<br />

o grupo mais restrito de sujeitos que estudaram na Universidade de Coimbra. A vida<br />

27 KÜHN, Fábio. Gente da Fronteira: família, sociedade e poder no sul da América Portuguesa – século<br />

XViii. Niterói: Tese de Doutorado, PPG em História da Universidade Federal Fluminense, 2006.<br />

28 AHRS. Carta da Junta de Governo Provisório para a Câmara de Porto Alegre, códice A 1-11, fl. 329v-330.<br />

209


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

universitária que se desenvolvia para os jovens estudantes abarcava não somente a<br />

formação intelectual muito acima da média da população, mas igualmente a socialização<br />

com indivíduos de fora do círculo familiar e da comunidade local. “Em Coimbra,<br />

a formação em Direito era um processo de socialização destinado a criar um<br />

senso de lealdade e obediência ao rei”. 29 Para além do serviço ao rei a vida acadêmica<br />

forjava elos entre os estudantes que por anos conviviam mais entre si do que com<br />

suas famílias ou parentes. Em Coimbra o uso do uniforme universitário distinguia<br />

os estudantes dos demais habitantes da cidade, sendo os primeiros famosos por suas<br />

bebedeiras e confusões, elementos que geravam atrito com os moradores. Essas<br />

experiências comuns, muitas delas não acadêmicas, delimitavam o grupo dos estudantes<br />

e futuros bacharéis como algo autônomo da sociedade, mas compartilhando<br />

vivências entre si. 30 Afastados de suas famílias e das solidariedades mais imediatas os<br />

universitários desenvolviam sob forma de amizade e coleguismo – ao mesmo tempo<br />

que por rixas e concorrência – formas de sociabilidade que não necessariamente<br />

dependiam de estratégias de obtenção de prestígio ou de interesses práticos, mas<br />

muitas vezes do afeto e do reconhecimento entre iguais. Ou seja, formas autônomas<br />

de sociabilidade definidas pela “satisfação de estar justamente sociabilizado”. 31<br />

Esse tipo de socialização e de elos formados ao tempo da universidade já<br />

haviam sido mapeados para período anteriores e posteriores às três primeiras décadas<br />

do século XIX. 32 Em todos os casos, entretanto, ficava aberta a possibilidade de<br />

outras alianças a serem formadas, por vezes de caráter pessoal. Não seria este o caso<br />

dos juízes que se casaram com mulheres do extremo sul? “Mais ainda, os magistrados<br />

podiam também servir de mediadores entre grupos ou outras fontes de poder<br />

conflitantes entre si estabelecendo, dessa forma, uma série de alianças temporárias”. 33<br />

Nossa leitura busca justamente interpretar que tais casamentos incorporavam uma<br />

política de mediação a qual era estimulada pela Coroa na medida em que autorizava<br />

os matrimônios de seus ministros. Considerando que Teixeira Bragança serviu em<br />

Porto Alegre como juiz de fora estando previamente casado com uma moradora da<br />

vila, bem como Caetano Xavier que seguiu no mesmo cargo após desposar Francisca<br />

Godinho, podemos facilmente questionar quão desligada de contendas locais<br />

sua atuação se tornara. Mendonça Peçanha, por exemplo, após seu matrimônio veio<br />

29 SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979. P. 60.<br />

30 Idem, ibidem. KIRKENDALL, Andrew J. Mates. Male student culture and the making of a political class<br />

in nineteenth-century Brazil. Lincoln London: University of Nebraska Press, 2002.<br />

31 SIMMEL, Georg. Op. Cit. P. 64.<br />

32 CARVALHO, José Murilo. A Construção da Ordem: a elite política imperial & Teatro de Sombras: a política<br />

imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. SCWARTZ, Stuart. Op. Cit. VARGAS, Jonas Moreira.<br />

Entre a paróquia e a corte: uma análise da elite política do Rio Grande do Sul (1868-1889). Porto Alegre: Dissertação<br />

de Mestrado, PPGH-UFRGS, 2007.<br />

33 SCWARTZ, Stuart. Op. Cit. P. 63.<br />

210


a assumir a ouvidoria da comarca, a mais alta posição judiciária do Rio Grande de<br />

São Pedro, na mesma época que se sogro, o marechal João de Deus Menna Barreto,<br />

exercia a presidência da Junta de Governo Provisório. Ambos seriam, inclusive,<br />

acusados de valer-se da onipresença familiar no aparato de governo e da Justiça para<br />

perseguir desafetos político. 34<br />

Pois a vivência de Mendonça Peçanha em Coimbra havia lhe garantido ao<br />

menos uma experiência singular e particularmente radical. Estudando em Coimbra<br />

à época da invasão francesa ele integrou o Corpo Acadêmico e a 7ª Brigada de Ordenanças<br />

que atuaram no combate ao inimigo. O tenente-coronel que estava encarregado<br />

do comando do Corpo Acadêmico era então José Bonifácio de Andrada e<br />

Silva, que lhe elogiou a atuação militar. 35 Anos mais tardes ambos estariam envolvidos<br />

na defesa das idéias de autonomia do reino do Brasil frente ao de Portugal, ainda<br />

que a atuação de Peçanha passasse muito menos percebida que a de José Bonifácio.<br />

Essa aventura militar não apenas colocou-o em proximidade ao futuro “patriarca<br />

da independência” como pode ainda ter angariado a simpatia de seu futuro sogro,<br />

homem calejado nos combates platinos.<br />

Ao considerarmos tais sociabilidades, afastando-as da busca imediata pela<br />

ampliação de redes e de alcance a recursos sociais, podemos conceber como os laços<br />

entre sujeitos se davam muitas vezes de forma casual e não premeditada. Ao mesmo<br />

tempo, se consideramos a vida cotidiana com seus encontros e desencontros, mesmo<br />

que dotada de regras de convívio e rituais, deixamos de entender os sujeitos somente<br />

como oficiais da administração ou potentados locais para dotá-los de maior humanidade.<br />

Eles estavam envolvidos não somente com a administração pública ou mesmo<br />

com a gerência de suas riquezas, mas estavam constantemente sendo requisitados<br />

pelos diferentes relacionamentos que haviam construído. Por vezes os mesmos se<br />

fundiam em suas demandas. Retornando aos exemplos práticos que selecionamos,<br />

os juízes e ouvidores não restringiam suas vidas aos seus ofícios, conquanto socialmente<br />

fossem avaliados também pelos cargos que desempenhavam. Devemos aqui<br />

recordar a noção de Fredrik Barth de que os atores sociais são compostos de status<br />

múltiplos e que os mesmos são ativados ou solicitados conforme as transações concretas<br />

vão se sucedendo. Esta avaliação requer grande sensibilidade a fim de evitar<br />

uma leitura funcionalista. Para tanto, vale lembrar a idéia de que os sujeitos buscam<br />

soluções para seus dilemas primeiro dentro do seu círculo de relações.<br />

For great number of our purposes we do not use random methods, or<br />

classified directories, to locate suitable alters; on the contrary, we turn<br />

34 Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Vol. 8. Porto Alegre, AHRS, 1984. P. 159-166.<br />

35 BNRJ. José Maria de Sales Gameiro Mendonça Peçanha, Setor de Manuscritos, Coleção de Documentos Biográficos,<br />

C 667,7.<br />

211


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

precisely to those persons about whom we already have information<br />

incidentally obtained in other connections, i.e., that we ‘know’, to provide<br />

us with a range of potential candidates. 36<br />

Portanto, a seleção de candidatos aos intentos dos sujeitos passa, antes de<br />

mais nada, pelas relações pré-estabelecidas e estas, por sua vez, dependem da progressão<br />

de relacionamentos simples a outros mais complexos. Significa que os espaços<br />

de sociabilidade da época tinham o importante papel de contatar sujeitos pela<br />

primeira vez ou de multiplicar os status envolvidos entre os mesmos. Assim sendo,<br />

muitos dos relacionamentos que permitiam a construção de articuladas redes sociais<br />

que viriam a determinar posicionamentos políticos e favorecimentos surgiam como<br />

resultado da interação cotidiana, muitas vezes despida da intenção de ampliar tais<br />

laços, mas que permitia o florescer de novos elos.<br />

Um espaço de interação social, em particular, mostrava-se propício ao estabelecimento<br />

de novas relações por meio da sociação desligada de outros interesses<br />

e em particular ao desenvolvimento dos importantes matrimônios que explicitamos<br />

acima, os bailes e jantares sociais. O século XIX conheceu um aumento neste tipo<br />

de atividade, calcado em grande medida à chegada da família real ao Rio de Janeiro<br />

e ao início das galas na Corte. Os anos de 1810 e 1820 assistiram na nova Corte a<br />

propagação dos bailes particulares, jantares sociais e chás que reuniam as famílias<br />

mais ricas, os comerciantes e os membros do corpo político. Não somente junto ao<br />

aparato da realeza, mas igualmente em diversas casas de particulares os recepções<br />

sociais se multiplicavam.<br />

Notadamente na década de 1820, crescia também entre essa gente o<br />

hábito de festas privadas, fossem jantares, bailes ou chás, em que se<br />

encontravam as famílias mais abastadas, negociantes ricos e muitos<br />

dos integrantes da sociedade política da época. Estavam aí os indícios<br />

do surgimento de sociabilidade de tipo cortesã. 37<br />

Conquanto não possam ser descritos como acontecimentos cotidianos eles<br />

não deixavam de inserir-se na normalidade da sociedade e neles, por vezes, atavamse<br />

novos nós das redes de relacionamentos ou apertavam-se os pré-existentes. Ainda<br />

assim é necessária cautela na comparação destes eventos como condizentes com<br />

uma sociedade de corte ou definindo um “processo civilizador” tal como o descreve<br />

Norbert Elias, pois no Brasil esse fenômeno não seria endógeno, mas resultante da<br />

sobreposição de valores europeus aos hábitos propriamente americanos. 38<br />

36 BARTH, Fredrik. “Scale and Network in Urban Western Society”. In. BARTH, Fredrik (ed.). Scale and Social<br />

Organization. Oslo: Universitetforlaget, 1978. P. 168.<br />

37 SLEMIAN, Andréa. Vida política em tempo de crise. Op. Cit. P. 61.<br />

38 SLEMIAN, Andréa. Op. Cit. ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Volume 1. Uma história dos costumes.<br />

Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993. ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da<br />

realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. MALERBA, Jurandir. A corte no exílio:<br />

civilização e poder no Brasil às vésperas da independência (1808-1821). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.<br />

212


Maria Fernanda Martins percebeu o papel de tais momentos lúdicos para a<br />

sociabilidade dos sujeitos e seus efeitos sobre a política do II império brasileiro. “A<br />

convivência nos salões da moda, nos grandes eventos sociais, nas reuniões de família<br />

e até mesmo nos bancos escolares e universitários aproximava o grupo”. 39 A autora<br />

sugere mesmo que tais ocasiões influenciavam tomadas de decisões referentes à política<br />

nacional, uma vez que oportunizava-se a participação de indivíduos não ligados<br />

diretamente à esfera política. “Em tais ocasiões a vida social misturava-se à política,<br />

permitindo o acesso às mais destacadas personalidades da Corte”. 40 Entre danças e<br />

contradanças a proximidade afetiva e social permitia sugerir indicações de cargos e<br />

posicionamentos partidários. Contudo, para além da possibilidade de definir parte<br />

da vida pública por meio da vida privada esses eventos possibilitavam aos indivíduos<br />

interagir uns com os outros pelo simples prazer da convivência e da companhia de<br />

seus correspondentes sociais. Em outras palavras muito do que interpretamos como<br />

políticas de ascensão social e manutenção de prestígio ocorria em contatos triviais e<br />

por vezes não premeditados. 41<br />

Em Porto Alegre, ainda que carecesse do esplendor da Corte, a vida social<br />

possuía certo dinamismo. Não lhe faltavam nem as festas públicas nem as privadas.<br />

O viajante francês Auguste de Saint-Hilaire após um mês na vila escreveu em seu<br />

diário que<br />

Aqui não há tanta vida social como nas cidades européias; porém há<br />

muito mais do que nas outras cidades do Brasil.<br />

São freqüentes as reuniões nas residências para saraus, e algumas senhoras<br />

tocam, com maestria, o violão e o piano, instrumento este desconhecido<br />

no interior, por causa das dificuldades de seu transporte. 42<br />

Os pianos estavam entre os bens arrolados em alguns dos inventários de nossos<br />

investigados, assim como os aparelhos de chá. 43 A posse desse instrumento demonstra<br />

que se investia no refinamento da educação das mulheres, mas indica que<br />

esses proprietários estavam entre os anfitriões de alguns dos saraus acima descritos,<br />

ainda que não nos sejam dados nomes. Domingos José de Araújo Bastos (vereador<br />

em 1810 e membro do Conselho Geral da Província entre 1830 e 1833) possuía não<br />

um, mas dois pianos arrolados em suas posses, sendo um deles pertencente a uma<br />

39 MARTINS, Maria Fernanda Vieira. A velha arte de governar: um estudo sobre política e elites a partir do<br />

Conselho de Estado (1842-1889). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007. P. 168.<br />

40 “Em tais ocasiões a vida social misturava-se à política, permitindo o acesso às mais destacadas personalidades da<br />

Corte”. Idem, ibidem.<br />

41 Os bailes e jantares sociais podem em boa medida ser descritos enquanto atos e eventos. Significa que são simultaneamente<br />

acontecimentos que passíveis de descrição objetiva e interpretáveis à luz dos valores sociais. BARTH,<br />

Fredrik. “Por um maior naturalismo na concepção das sociedades”. In. O guru, o iniciador e outras variações<br />

antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000. P. 173.<br />

42 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. Cit. P. 72.<br />

43 COMISSOLI, Adriano. “Serão os números a certeza da História?”. Op. Cit.<br />

213


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

de suas filhas, que muito provavelmente recebera aulas. 44 Francisco de Sá e Brito<br />

(vereador em 1811 e 1816) também possuía dois pianos, um descrito como usado e<br />

outro como “antigo escangalhado”, o que talvez implique em adquirir um produto<br />

de segunda mão. 45 O de João Coelho Neves (procurador da Câmara em 1806, 1810,<br />

1813 e 1828) estava ainda “em bom uso” quando de sua morte. 46 Manuel Gomes<br />

Coelho do Vale, Manuel José de Freitas Travassos, Manuel José Pires da Silveira Casado<br />

eram outros proprietários deste tipo de instrumento, inexistente em inventários<br />

do século XVIII no Rio Grande de São Pedro. 47 A popularização dos pianos indica<br />

novos níveis de riqueza, mas igualmente demonstra a busca por entretenimento e a<br />

promoção de reuniões sociais. A menção a conjuntos de porcelana para o chá aponta<br />

tanto uma preocupação em seguir a tendência da propagação dessa cerimônia<br />

quanto em promover a reunião íntima dos círculos de convivência. Nesse sentido,<br />

os eventos sociais estavam ainda muito ligados ao universo da sociedade de Corte,<br />

pois que se reduziam ao âmbito privado das casas abastadas.<br />

Saint-Hilaire nos descreve algumas das reuniões a que teve oportunidade de<br />

comparecer. Um baile ocorrido em Porto Alegre, outros dois em Rio Grande e um<br />

jantar em homenagem ao governador da capitania, também na última vila. Ao de Porto<br />

Alegre ele não hesitou em atender o convite por saber tratar-se “de que essa casa<br />

era uma das mais prestigiosas” da vila. O anfitrião do evento foi certo Sr. Patrício, ao<br />

qual não foi possível identificar, mas que poderia muito bem tratar-se de Patrício José<br />

Correia da Câmara, alto oficial militar e futuro Visconde de Pelotas. Segundo o viajante<br />

tratava-se de “uma reunião de trinta a quarenta pessoas, entre homens e mulheres. Em<br />

se tratando de parentes e amigos íntimos não havia luxo nos trajes”. O que significa<br />

que o pequeno baile se deu entre pessoas já com prévio conhecimento uns dos outros<br />

em sua maioria, com exceção do narrador da festa que se encontrava na vila não havia<br />

muito e que se surpreendeu com os hábitos da sociedade local. 48<br />

As senhoras conversavam sem constrangimento com os homens; estes<br />

as cercavam de gentilezas, mas não demonstravam desvelo ou desejo<br />

de agradar, qualidade, aliás, quase exclusiva dos franceses. Desde<br />

que estou no Brasil ainda não tinha visto uma reunião semelhante. No<br />

interior, como já o afirmei centenas de vezes, as mulheres se escondem;<br />

não passam de primeiras escravas da casa. 49<br />

44 APERS. Inventário de Domingos José de Araújo Bastos, 1º Cartório do Cível e Crime de Porto Alegre, maço10,<br />

processo 175, ano 1844.<br />

45 APERS. Inventário de Francisco de Sá e Brito, 1º Cartório de órfãos de Porto Alegre, maço 63, processo 1285,<br />

ano 1839.<br />

46 APERS. Inventário de João Coelho Neves, 1º Cartório de órfãos de Porto Alegre, maço 42, processo 995, ano<br />

1829.<br />

47 APERS. Inventário de Manuel Gomes Coelho do Vale, 2º Cartório de órfãos de Porto Alegre, maço 6, processo<br />

79, ano 1853. Inventário de Manuel José de Freitas Travassos, 2º Cartório de órfãos de Porto Alegre, maço 86, processo<br />

1809A, ano 1877. Inventário de Manuel José Pires da Silveira Casado, 1º Cartório de órfãos de Porto Alegre,<br />

maço 53, processo 1142, ano 1833.<br />

48 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. Cit. P. 64.<br />

49 Idem, ibidem.<br />

214


A reunião não se deteve somente em conversações, pois houve danças e “algumas<br />

senhoras tocaram piano, outras cantaram com muita propriedade, acompanhadas<br />

ao violão, e o sarau terminou em jogos de salão”. 50 Portanto, o que o francês<br />

nos descreve é um ambiente de divertimento e descontração, dentro do qual<br />

a sociação desinteressada se mostra bastante propícia. Logicamente que a mesma<br />

obedecia a certos códigos e condutas, visto que o fenômeno da sociabilidade tende a<br />

polir as atitudes dos envolvidos, evitando excessos. Para Simmel, a conversa, o jogo<br />

e mesmo a sedução são formas de sociabilidade com fim em si mesmas, isto é, não<br />

precisam necessariamente se ligar à busca de interesses específicos. Contudo, quanto<br />

mais íntimo o grau de sociabilidade mais os sujeitos estão envolvidos como indivíduos<br />

e tendem a regular características subjetivas da personalidade para permitir a<br />

interação sociável, isto é, o compartilhamento mútuo de conteúdos. 51 Jurandir Malerba<br />

faz ressalva, entretanto, quanto à obediência dos habitantes do Rio de Janeiro<br />

à etiqueta, quer à mesa, quer em outras ocasiões, destacando um desprezo comum à<br />

mesma. Ainda assim demonstra a preocupação com a regulação dos modos. Como<br />

o autor adverte não é possível afirmar se os utensílios descritos nos inventários eram<br />

utilizados no uso diário, mas eles se tornavam cada vez mais freqüentes em meio aos<br />

bens da camada mais abastada da população. 52 Em Porto Alegre a interação social<br />

era elogiada, pelo naturalista francês, como superior à maior parte do Brasil, onde<br />

os hábitos lhe pareceram mais rudes e tacanhos. Na vila meridional, surpreendeulhe<br />

que as senhoras conversassem diretamente com os homens, um elemento a ser<br />

considerado com atenção dentro do quadro de possibilidades de sociação da época.<br />

A esse baile numa das casas mais prestigiosas de Porto Alegre certamente<br />

foram convidadas as figuras mais destacadas da comunidade. Poderíamos aventar<br />

a hipótese de se fazer presente o governador-geral, os oficiais militares de altas patentes<br />

ou os “homens bons” da Câmara local. Saint-Hilaire fora convidado por um<br />

negociante francês o que demonstra que os estrangeiros e a classe profissional dos<br />

mercadores não se via excluída. Ele anuncia que um dos bailes na vila de Rio Grande<br />

foi promovido justamente por um rico comerciante ali estabelecido. Alguns dos<br />

proprietários de pianos que encontramos representam justamente a classe dos negociantes<br />

e os integrantes habituais da Câmara, o que aponta a convergência entre<br />

nossos investigados e os freqüentadores dos eventos que analisamos. Ainda considerando<br />

a posse dos instrumentos musicais é sensato supor nossos investigados<br />

também promoviam suas confraternizações, visto serem “freqüentes as reuniões nas<br />

residências para saraus”. É factível, por fim, supor uma competição entre os anfitri-<br />

50 Idem , ibidem.<br />

51 SIMMEL, Georg. Op Cit. P. 65-67. Sobre etiqueta ver. ELIAS, Nobert. A sociedade de corte. Op. Cit. Cap. V.<br />

52 MALERBA, Jurandir. Op. Cit.<br />

215


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

ões no intuito de impressionar os convidados e destacar-se frente à nata da sociedade<br />

local. Neste sentido a mobília, a decoração, a comida, o serviço e a competência<br />

das mulheres a mostrar suas habilidades de entretenimento serviam de medida ao<br />

sucesso da festa. Se, como afirmou Malerba, não é possível averiguar o uso cotidiano<br />

das louças e prataria localizada nos inventários é mais do que razoável que a mesma<br />

fosse utilizada nos eventos sociais a fim de receber adequadamente os convidados e<br />

causar boa impressão frente aos pares de elite.<br />

O tenente-general Manuel Marques de Souza, que logo chefiaria uma série<br />

de motins em 1821, demonstrou possuir o necessário para se fazer admirar por sua<br />

generosidade e bom gosto ao promover um jantar de recepção ao governador geral,<br />

o Conde da Figueira, quando da passagem deste por Rio Grande, antes de deixar a<br />

capitania. 53 Segundo um de seus detratores Marques de Souza era não somente um<br />

mestre da guerra, mas um hábil cortesão, pois “impõem para a Corte de homem de<br />

bem por suas expressões estudadas e astuciosas”. 54 Ele talvez não praticasse essas<br />

expressões estudadas somente para bajular as autoridades que lhe eram superiores,<br />

mas igualmente para fazer jus ao legado de seus antepassados “os quais os pais e<br />

avós foram pessoas nobres das famílias de Souzas e Marques, que neste Reino foram<br />

Fidalgos de Linhagem, Cota de Armas e de Valor conhecido como tais se trataram<br />

com cavalos, criados, e toda a mais ostentação própria da Nobreza”. 55 Neste<br />

caso, suas ações seriam não somente dissimulação de suas atitudes ilegais – como<br />

o contrabando – como demonstração de qualidade social. E assim recebeu em ao<br />

governador, a Saint-Hilaire e demais convivas “num lindo salão”, no qual ofereceu<br />

uma grande diversidade de pratos entre ensopados, carnes e massas, aos quais sucederam<br />

“uma sobremesa magnífica, composta de uma variedade de bombons e doces”,<br />

finalizando com café e licores. O ambiente era bastante festivo e descontraído<br />

e bebeu-se em grande quantidade. “A reunião prolongou-se até alta madrugada e a<br />

maioria dos convivas estava de pileque quando se retirou”. Ao dia seguinte estavam<br />

todos “tristes e fatigados”, claramente devido aos excessos da noite anterior. Este é<br />

um caso muito bem descrito do que afirmamos sobre impressionar os pares da sociedade<br />

sulista. Ao oferecer um “esplêndido jantar” em homenagem ao governador<br />

Manuel Marques de Souza de destacava enquanto anfitrião competente demonstrando<br />

igualmente sua generosidade e liberalidade ao acolher seus iguais e garantir-lhes<br />

53 COMISSOLI, Adriano. “Pescadores que explicam estancieiros ou mais uma sobre história e antropologia”, Métis:<br />

história & cultura. Revista de História da Universidade de Caxias do Sul, v.7, n. 14, jul/dez 2009, Caxias do<br />

Sul, RS: EDUCS, 2009. No prelo.<br />

54 BNRJ. Coleção Augusto de Lima Júnior, II – 35, 34,12.<br />

55 APERS. Registro de uma Carta Régia de Padrão de Armas Nobreza e Fidalguia ao Coronel da Legião da Cavalaria<br />

deste Continente hoje Brigadeiro Manuel Marques de Souza, 5 de maio de 1800, Fundo Câmara, Registros Diversos,<br />

Câmara de Porto Alegre livro 1 Fl. 19v.-21.<br />

216


somente o melhor. Esta breve passagem demonstra que o fazer-se elite no sul do<br />

Brasil no oitocentos passava não somente pelo controle dos homens e pela riqueza<br />

material, mas igualmente pelo oferecimento de cortesia e pela demonstração de bons<br />

modos frente à classe dominante. Se Marques de Souza, um militar experiente e<br />

ambicioso, era capaz de demonstrar seu atrelamento à etiqueta e promover uma tão<br />

bem sucedida recepção então os tempos de uma sociedade rústica e agreste faziam<br />

definitivamente parte do passado.<br />

Uma semana mais tarde um baile foi promovido pelo sargento-mor Mateus<br />

da Cunha Teles com novos divertimentos, danças e a participação de uma orquestra.<br />

Embora elogiasse os trajes dos participantes Saint-Hilaire achou o baile um tanto<br />

aborrecido. Digno de nota se mostrou seu comentário crítico de que uma “jovem<br />

dançou solo, mas, embora reconhecendo sua graciosidade, não pude deixar de lamentar<br />

que uma mãe honesta expusesse sua filha aos olhares de todos”. 56 Contudo,<br />

considerando a qualidade dos convidados, que envolviam o governador, seus oficiais<br />

e os vários comerciantes de Rio Grande, a apresentação da jovem pode ganhar<br />

novos contextos, destacadamente a exibição de qualidades visando o matrimônio.<br />

Jonas Vargas apresentou, embora não sistematicamente, a importância dos bailes<br />

como momentos de sociabilidade das elites tanto da Corte fluminense como sul<br />

rio-grandense. A função dos bailes no mercado matrimonial da segunda metade<br />

do século XIX foi um dos elementos sugeridos em sua leitura. Seria as festas uma<br />

oportunidade de conhecer as moças das mais abastadas famílias da sociedade do<br />

Rio de Janeiro, elemento importante tanto na construção de laços sociais quanto na<br />

obtenção de progressão profissional e de posses materiais. 57 O que a descrição de<br />

Saint-Hilaire nos oferece é a possibilidade de pensar estas práticas como difundidas<br />

já no início do século XIX.<br />

Extrapolando o raciocínio que estamos desenvolvendo podemos imaginar<br />

que este tipo de festividade pode ter servido de palco para que o magistrado Luís<br />

Correia Teixeira de Bragançaviesse a ser apresentado à “brigadeira” Josefa Eulália<br />

de Azevedo. Não parece fora de propósito supor que quando de sua chegada a<br />

Porto Alegre, ainda como ouvidor, ele fosse recebido com algum baile ou jantar de<br />

boas-vindas. Considerando que a seleção dos convidados passava por critérios de<br />

afinidade (“parentes e amigos”), mas igualmente de projeção social (“uma das casas<br />

mais prestigiosas”) não seria despropositado supor que a viúva do lendário Brigadeiro<br />

Rafael Pinto Bandeira viesse a estar presente no mesmo convescote ao qual<br />

comparecesse o seu futuro segundo marido. Neste tipo de evento poderiam ser apre-<br />

56 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. Cit. P. 86 e 92-93.<br />

57 VARGAS, Jonas. Op. Cit. P. 46.<br />

217


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

sentados por intermédio de conhecido mútuo ou ter iniciado qualquer conversação<br />

por livre iniciativa, se confiarmos na descrição de Saint-Hilaire de que mulheres e<br />

homens conversavam sem qualquer embaraço em tais episódios.<br />

Não há dados empíricos para comprovar o encontro entre os dois personagens,<br />

mas podemos considerar alguns fatores desta sociedade. O primeiro refere-se<br />

ao potencial sociável dos eventos lúdicos, pois os mesmos serviam para introduzir<br />

novos membros à sociedade ao mesmo tempo em que reforçavam os laços entre os<br />

já socializados. A interação entre homens e mulheres conhecia aqui um momento<br />

especial, pois afastados da governança pública e gozando da companhia (supostamente)<br />

agradável de seus pares eles podiam entreter-se a conversar com as senhoras,<br />

admirar as mesmas a tocar instrumentos musicais ou divertir-se dançando. É<br />

bastante crível que o primeiro contato dos magistrados que mais tarde se casaram<br />

com filhas de potentados locais sul rio-grandenses se efetuasse em tais ambientes<br />

de bailes, saraus ou jantares. Neste sentido, a análise dessas interações lúdicas serve<br />

para evitar uma interpretação puramente funcionalista das políticas de matrimônio,<br />

ao mesmo tempo que nos permite supor um espaço no qual o papel feminino deixa<br />

de ser passivo.<br />

Os bailes e jantares oportunizavam às mulheres em idade matrimonial mostrar<br />

sua educação artística e sua capacidade de convívio. Indo mais longe eram o<br />

momento ideal para familiares e amigos intercederem pelas moças de suas redes de<br />

relações. Ainda considerando a liberdade que as mulheres porto-alegrenses tratavam<br />

com os homens é interessante ponderar o papel de uma personagem em particular,<br />

a madrinha. Os eventos sociais podiam muito se tornar uma arena na qual uma madrinha<br />

habilidosa soubesse aproximar-se dos partidos masculinos e dirigir a atenção<br />

dos mesmos à sua afilhada. Ou talvez para incitar as moças a dançar solo, atitude<br />

que Saint-Hilaire condenou por considerar de excessiva exposição. Contudo, tal exposição<br />

talvez mesclava deleitar a audiência tanto quanto impressioná-la. Em termos<br />

mais amplos eram avaliadas não somente a habilidade pessoal das jovens, mas igualmente<br />

o comprometimento de seus pais no investimento de sua educação. Se o mesmo<br />

ocorresse então a sociabilidade lúdica se rompia e valores objetivos começavam<br />

a ser avaliados permitindo interações que sugeriam mais do que a simples convivência<br />

agradável. As políticas matrimoniais começavam a se desenhar nas conversações<br />

aparentemente desinteressadas e adentrava-se outro espaço de sociabilidade, mais<br />

conformado pela etiqueta cortesão na qual apesar das gentilezas e das cortesias todos<br />

medem a todos a fim de saber mais do que revelar. O contato de recém chegados<br />

com a sociedade por meio de bailes, saraus, chás e a jantares, portanto, retomava o<br />

interessa em casamentos e na ampliação de redes sociais. Nas primeiras décadas<br />

do oitocentos a opção das famílias de elite sul rio-grandense em recrutar para seu<br />

seio os magistrados régios não somente incidia sobre recrutamento social como<br />

218


igualmente apresentava uma nova opção ao grupo. Não investindo na formação universitária<br />

de seus próprios membros essas famílias optaram por recrutar os bacharéis<br />

naturais de outras regiões, fato que lhes garantia mediadores adequados ao trato com<br />

a Corte e a estes a chance de projeção política. Tal assunção parece correta não somente<br />

para o juiz Luís Correia Teixeira de Bargança, mas igualmente para Caetano<br />

Xavier Pereira de Brito e para José Maria de Sales Gameiro Mendonça Peçanha. De<br />

tal forma, os espaços de sociabilidade serviram à inserção desses agentes na sociedade<br />

sulista e no conseqüente protagonismo político que desempenharam.<br />

219


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

220<br />

REFERêNCIAS DOCUMENTAIS<br />

AHCMPA – Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre<br />

Autos de justificação de matrimônio<br />

- Domingo de Almeida lemos Peixoto e Luís Joaquina da Silveira, 1790/18.<br />

- José Antônio da Silva Neves e Inocência Martins de Oliveira, 1795/55.<br />

- Caetano Xavier Pereira de Brito e Francisca Godinho de Oliveira Valdez, 1822/62.<br />

Livro 3º de casamentos da freguesia de Rio Pardo, fl. 163.<br />

AHRS – Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul<br />

A.1-11. Registro de correspondência para autoridades da capitania Carta da Junta de<br />

Governo Provisório para a Câmara de Porto Alegre.<br />

Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Vol. 8. Porto Alegre, AHRS,<br />

1984.<br />

AHU - Arquivo Histórico Ultramarino<br />

Manuscritos Avulsos da Capitania do Rio Grande do Sul 1732-1825 (CD-ROM do<br />

Projeto Resgate Barão do Rio Branco)<br />

Manuscritos Avulsos da Capitania de Santa Catarina (CD-ROM do Projeto Resgate<br />

Barão do Rio Branco)<br />

ANRJ – Arquivo Nacional do Rio de Janeiro<br />

Desembargo do Paço, Caderno de Informadores de 1814, cx. 187, PAC. 2, doc. 18.<br />

Desembargo do Paço, Caderno de Informadores de 1818, cx. 187, PAC. 2, doc. 18.<br />

APERS – Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul<br />

Inventários<br />

-Antônio Bernardes Machado, 1º Cartório de órfão de Porto Alegre, maço 33, processo<br />

818, ano 1824.<br />

-Domingos José de Araújo Bastos, 1º Cartório do Cível e Crime de Porto Alegre,<br />

maço10, processo 175, ano 1844.


-Francisco de Sá e Brito, 1º Cartório de órfãos de Porto Alegre, maço 63, processo<br />

1285, ano 1839.<br />

-João Coelho Neves, 1º Cartório de órfãos de Porto Alegre, maço 42, processo 995,<br />

ano 1829.<br />

-José Antônio da Silva Neves, 1° Cartório de órfãos de Porto Alegre, processo 701,<br />

maço 28, ano 1820.<br />

-José Antônio de Azevedo, 2° Cartório do Cível e Crime Porto Alegre, maço 8, processo<br />

196, ano 1833.<br />

-Manuel Gomes Coelho do Vale, 2º Cartório de órfãos de Porto Alegre, maço 6,<br />

processo 79, ano 1853.<br />

-Manuel José de Freitas Travassos, 2º Cartório de órfãos de Porto Alegre, maço 86,<br />

processo 1809A, ano 1877.<br />

-Manuel José Pires da Silveira Casado, 1º Cartório de órfãos de Porto Alegre, maço<br />

53, processo 1142, ano 1833.<br />

-Rafael Pinto Bandeira, 1º Cartório de órfãos de Porto Alegre, maço 12, processo<br />

188, ano 1796.<br />

Fundo Câmara, Registros Diversos, Câmara de Porto Alegre livro 1 Fl. 19v.-21.<br />

Revista do Archivo Publico do Rio Grande do Sul, n. 7, set. 1922.<br />

BNRJ – Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro<br />

Setor de Manuscritos<br />

- Coleção Augusto de Lima Júnior, II – 35, 34,12.<br />

- Coleção de Documentos Biográficos.<br />

REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de<br />

Janeiro: Contra Capa, 2000.<br />

BARTH, Fredrik. Process and form in social life. Selected essays of Fredrik<br />

Barth: volume i. London: Routledge & Kegan Paul, 1981.<br />

BARTH, Fredrik (ed.). Scale and Social Organization. Oslo: Universitetforlaget,<br />

1978.<br />

CARVALHO, José Murilo. A Construção da Ordem: a elite política imperial<br />

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223


PAi MonArquistA, filho rePubliCAno: ProPAgAndA<br />

rePubliCAnA, eleições e relAções fAMiliAres<br />

A PArtir dA trAjetóriA de joAquiM frAnCisCo<br />

de Assis brAsil (1877-1889)<br />

Jonas Moreira Vargas*<br />

Tassiana Maria Parcianello Saccol**<br />

Resumo: Joaquim Francisco de Assis Brasil foi o único deputado eleito pelo Partido Republicano<br />

Rio-grandense durante o período monárquico. O presente artigo busca analisar como o mesmo<br />

conseguiu eleger-se, assim como a sua atuação na Assembléia Legislativa Provincial. Tal episódio foi<br />

importante para fortalecer a propaganda republicana no Rio Grande do Sul, apesar da força dos partidos<br />

monárquicos. A análise das atas das eleições e das famílias dos principais propagandistas revela<br />

que os republicanos estavam vinculados à elite monárquica por diferentes laços de parentesco, o que<br />

acabou auxiliando a vitória de Assis Brasil. Além disso, a partir da sua trajetória é possível perceber que<br />

a região da campanha era um forte reduto dos estancieiros conservadores e não somente dos liberais<br />

como se costuma afirmar.<br />

Palavras-chave: Assis Brasil – Partido Republicano Rio-grandense – Propaganda republicana<br />

– Elite política<br />

Aos 19 dias de janeiro de 1885, o jornal A Federação, órgão oficial do<br />

Partido Republicano Rio-grandense (PRR), trazia em suas páginas um<br />

entusiástico editorial parabenizando o jovem advogado Assis Brasil<br />

pela vitória nas eleições provinciais¹. Certamente foi um duro combate. Foram necessários<br />

dois pleitos nos fins de 1884 e início de 1885 para consagrá-lo como o<br />

primeiro e único deputado eleito pelo PRR ao longo da monarquia. Contando com<br />

apenas 27 anos, Joaquim Francisco era natural de São Gabriel, município da região<br />

* Doutorando do Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bolsista<br />

CNPq. E-mail: jonasmvargas@yahoo.com.br<br />

** Graduanda do curso de História da Universidade Federal de Santa Maria<br />

¹ A Federação. 19.01.1885. Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa.<br />

225


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

da campanha, cuja base econômica era essencialmente pecuarista. Ainda adolescente,<br />

foi fazer os estudos preparatórios em Porto Alegre e mais tarde formou-se em<br />

Direito na faculdade de São Paulo. Com o diploma na mão, Assis Brasil retornou<br />

para a sua cidade natal, onde abriu banca de advogado e dedicou os próximos anos<br />

de sua vida ao Partido Republicano, do qual foi um dos principais líderes².<br />

O autor do empolgante artigo que comemorava a eleição de Assis Brasil era<br />

Júlio de Castilhos, seu colega de faculdade em São Paulo, onde o Republicanismo<br />

se difundia aceleradamente. Amigos inseparáveis, acabaram tornando-se cunhados,<br />

pois Assis Brasil casou-se com a irmã de Júlio. A data escolhida para o matrimônio<br />

foi o dia 20 de setembro de 1885, ou seja, nos 50 anos de comemoração do início da<br />

Revolução Farroupilha. A memorável Guerra que havia tornado o Rio Grande uma<br />

república por quase 10 anos era referência marcante para a mocidade republicana<br />

rio-grandense³.<br />

A estréia de Assis Brasil no Parlamento, em novembro de 1885, encheu de orgulho<br />

seus correligionários e a notícia correu por todas as províncias onde existiam<br />

partidos republicanos. Os defensores da abolição da escravidão, do federalismo, do<br />

republicanismo, do sufrágio universal, entre outros, multiplicavam-se em todo o país.<br />

Certamente, em poucas épocas na história do Brasil, viveu-se e respirou-se um fluxo<br />

de idéias estrangeiras, teorias sociais, projetos e ações políticas tão diversas e intensas<br />

como nos anos 1870 e 1880 do século XIX 4 . No entanto, aquela geração que agia<br />

em nome de seus ideais não podia romper totalmente com o mundo considerado<br />

“arcaico” e que tanto combatiam. Se a monarquia e a escravidão estavam em crise,<br />

como os mesmos declaravam, elas eram fundamentais para manter a posição política<br />

e econômica de muitos de seus familiares e eleitores, por exemplo. Portanto, ingressar<br />

na elite política provincial por vias legais, como Assis Brasil o fez, exigia apoio e<br />

conivência com parte das práticas política vigentes, muito embora, no discurso, os<br />

mesmos adotassem uma postura mais radical.<br />

O eleitorado republicano era pequeno, oscilando entre 10% e 15% da província,<br />

e permaneceu assim até a queda da monarquia 5 . A ênfase na trajetória de Assis<br />

2 Os principais dados biográficos sobre Assis Brasil estão presentes em REVERBEL, Carlos. Assis Brasil. Porto<br />

Alegre: IEL, 1996 e AITA, Carmen. Perfil biográfico de Assis Brasil. In: ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ES-<br />

TADO DO RIO GRANDE DO SUL. Perfis Parlamentares: Joaquim Francisco de Assis Brasil. Porto Alegre:<br />

ALRS, 2006, p. 17-207.<br />

³ Tamanha importância resultou num livro, A História da República Rio-grandense, publicado por Assis Brasil sob encomenda<br />

do Club 20 de setembro – que reunia rio-grandenses que estudavam direito em São Paulo.<br />

4 Ver, por exemplo, ALONSO, Ângela. idéias em movimento: a Geração de 1870 na crise do Brasil-império.<br />

São Paulo: Paz e Terra, 2002.<br />

5 É bem verdade que nas eleições gerais de agosto de 1889, os liberais preencheram todas as cadeiras e os conservadores<br />

foram pela primeira vez ultrapassados pelos republicanos, que ficaram em segundo lugar. Entretanto, tal<br />

façanha foi conseqüência da enorme conversão de saquaremas para as hostes do PRR, após o Partido Liberal ter<br />

subido ao poder em julho e da nomeação de Silveira Martins para presidente da província.<br />

226


Brasil e na análise das eleições que o elegeram nos ajuda a iluminar a história do próprio<br />

PRR, da propaganda republicana e do mundo da política no século XIX. Mas<br />

antes disso é preciso compreender como o jovem gabrielense conseguiu eleger-se<br />

num forte reduto de estancieiros monarquistas.<br />

I – DAVI CONTRA GOLIAS OU DE COMO<br />

ASSIS BRASIL CONSEGUIU VENCER OS LIBERAIS<br />

NA REGIãO DA CAMPANHA<br />

O sucesso de uma candidatura no período monárquico dependia da combinação<br />

de uma série de fatores. Os mais importantes eram convencer o eleitorado<br />

local e os líderes dos partidos das suas competências e propostas. A livre consulta<br />

aos eleitores por meio de palestras individuais e excursões políticas era fundamental,<br />

assim como os pedidos de votos através da imprensa. Mas antes disso era necessário<br />

conquistar o apoio dos líderes locais e principais chefes do partido que, caso aceitassem,<br />

emitiam dezenas de circulares aos eleitores mais influentes aconselhando-os a<br />

acolherem às candidaturas. Entretanto, conquistar a confiança dos chefes do partido<br />

e dos eleitores não era fácil. Ter um diploma de curso superior e pertencer a uma<br />

família tradicional e rica na região eram pré-requisitos importantes. Quanto maiores<br />

os vínculos pessoais com os grandes líderes e obviamente a aceitação de sua política,<br />

maiores eram as chances. Firmando-se as alianças eleitorais, os estancieiros e demais<br />

eleitores empregavam toda a sua clientela local e influência na Guarda Nacional,<br />

nos juizados de paz e de direito, na delegacia de Policia e na Câmara municipal para<br />

vencer os pleitos. Como as eleições eram bastante freqüentes (praticamente todo<br />

ano se votava), as alianças tinham que ser renovadas continuamente, pois os eleitores<br />

trocavam de candidatos tornando todo o processo bastante complexo 6 .<br />

Assis Brasil teve a oportunidade de pular ao menos uma etapa deste complexo<br />

processo, pois ele constituía-se num dos principais chefes do PRR, ou seja,<br />

não precisava conquistar a aceitação dos mesmos. Entretanto, teve que legitimar<br />

tal liderança entre seus pares e a mesma foi conquistada intelectualmente desde a<br />

época em que era estudante de Direito 7 . A primeira vez que Assis Brasil concorreu<br />

6 Ver, por exemplo, GRAHAM, Richard. Clientelismo e Política no Brasil do Século XiX. Rio de Janeiro: UFRJ,<br />

1997. Para a dinâmica no Rio Grande do Sul, com muitos exemplos, ver VARGAS, Jonas Moreira. Os políticos de<br />

aldeia: eleições, negociações e prática política nas paróquias do Rio Grande do Sul (1868-1889). In: Vi Mostra de Pesquisa do<br />

Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: CORAG, 2008, p. 39-57.<br />

7 É necessário lembrar que por trás da fundação do PRR, em 1882, não estavam somente os jovens estudantes como<br />

Assis Brasil e Júlio de Castilhos. O Partido apenas agregou republicanos espalhados esparsamente em “clubes”<br />

municipais e trouxe para o seu interior antigos e insistentes militantes, como Venâncio Ayres e Apolinário Porto<br />

Alegre, entre outros. Entretanto, ninguém pode negar que os jovens bacharéis egressos de São Paulo renovaram as<br />

bases ideológicas do Republicanismo rio-grandense, pois os mesmos auxiliaram na difusão de idéias intensamente<br />

debatidas entre os políticos e intelectuais paulistas, como o positivismo e o evolucionismo, entre outros.<br />

227


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

às eleições provinciais foi em dezembro de 1883 8 . A Assembléia Legislativa reunia<br />

30 deputados, sendo 5 para cada um dos 6 círculos eleitorais em que o território do<br />

Rio Grande do Sul estava dividido e cada eleitor votava em apenas um candidato.<br />

O 3º círculo, pelo qual Assis Brasil concorria, estava composto pelos municípios de<br />

Alegrete, Quarai, Itaqui, São Gabriel, Santo Ângelo, São Luís Gonzaga, Rosário, São<br />

Borja, Santiago, São Vicente, São Francisco de Assis e Uruguaiana. Sua estréia foi<br />

decepcionante, pois os pleitos resultaram numa vitória esmagadora do Major Geraldo<br />

de Faria Corrêa (liberal) que recebeu 592 votos em toda a região contra 72 de<br />

Assis Brasil, que ficou em segundo lugar 9 .<br />

Para ampliar os votos do partido, a estratégia seria intensificar a propaganda<br />

pela imprensa e negociar o apoio de estancieiros da região. Em janeiro de 1884, os<br />

republicanos fundaram o jornal A Federação, e Venâncio Ayres assumiu a chefia<br />

da redação. Uma nova batalha estava marcada para dezembro de 1884, nas eleições<br />

provinciais. O resultado das urnas foi o seguinte: Egídio Barbosa Itaqui (384), Severino<br />

Ribeiro (361), Propício Barreto (331), Francisco Azevedo e Souza (319), Assis<br />

Brasil (277), Eduardo Lima (52) e Jayme Couto (03) 10 . A Lei mandava considerar<br />

eleitos somente os deputados que atingissem o quoficiente eleitoral. Portanto, o<br />

liberal Egídio e o conservador Severino receberam seus diplomas de deputados e<br />

os outros foram alçados ao 2º escrutínio, onde somente três candidatos poderiam<br />

tornar-se deputados.<br />

No dia 12 de janeiro de 1885, nas diferentes paróquias do 3º círculo, os eleitores<br />

foram mais uma vez escolher os outros três deputados da região. Como Egídio<br />

e Severino já estavam eleitos, aqueles eleitores que votaram em ambos teriam que<br />

escolher novos candidatos para deputado. Abria-se, assim, uma brecha para todo e<br />

qualquer tipo de negociação. Desta vez o resultado foi o seguinte: Francisco Aze-<br />

8 Nesta ocasião, as eleições foram organizadas para eleger somente um deputado, pois uma cadeira havia ficado vaga<br />

na Assembléia Provincial.<br />

9 Livros de Registros Diversos, Primeiro Tabelionato de Alegrete, Fundo 2, Estante 24, 1881-1890 (APERS). Os<br />

conservadores parecerem ter agido em abstenção. Os resultados das eleições no 3º círculo citado daqui em diante<br />

estão contidos nos mesmos livros.<br />

10 Egídio Barbosa Itaqui era advogado na cidade que adotou como sobrenome e membro do Partido Liberal na<br />

região. Severino Ribeiro também era advogado em Alegrete. Neto de Banto Manoel Ribeiro, foi o um dos políticos<br />

mais influentes na região da campanha e chefe conservador de enorme prestígio. Francisco de Azevedo e Souza<br />

também era conservador e pertencia a uma família de ricos charqueadores pelotenses. Propício Pinto era proprietário<br />

em São Gabriel e representante liberal do município. Eduardo Lima também era advogado em Itaqui, mas<br />

seu posicionamento em 1885 é uma incógnita. Pertenceu ao PRR em 1882 e neste ano foi candidato no 3º círculo.<br />

Mas em 1884, perdeu esta posição para Assis Brasil e é provável que tenha rompido com o partido e concorrido<br />

como dissidente, algo não raro na época. Também é possível que tenha feito alianças com os liberais, pois parece ter<br />

recebido muitos votos deles no 2º escrutínio.<br />

228


vedo e Souza (549), Propício Barreto (517), Assis Brasil (429), Eduardo Lima (272).<br />

Assis Brasil conquistara a última vaga do círculo e estava eleito! Mas como conseguiu<br />

ampliar tanto os seus votos em poucos dias?<br />

A historiografia gaúcha costuma mencionar que Assis Brasil elegeu-se com o<br />

auxílio dos conservadores, mas demonstraremos tal apoio empiricamente. A quantificação<br />

dos votos revela que os eleitores do conservador Severino Ribeiro foram<br />

fundamentais na vitória de Assis Brasil. Dos 4 candidatos que passaram para o 2º escrutínio<br />

somente Francisco Souza era conservador. Se os 361 eleitores conservadores<br />

que votaram em Severino Ribeiro no 1º escrutínio também tivessem votado em<br />

Francisco ele teria somado 680 votos, mas não foi isto que ocorreu, pois ele obteve<br />

apenas 549. Portanto, 131 conservadores não votaram no candidato do seu próprio<br />

partido e decidiram apoiar outro11 . Ora, de 277 votos recebidos no 1º escrutínio,<br />

Assis Brasil saltou para 429, conseguindo, portanto, o apoio de 157 eleitores em<br />

poucos dias. E como sabemos que estes votos foram dados pelos conservadores?<br />

Dias depois da apuração, o próprio Assis Brasil admitiu ao escrever para um amigo,<br />

esboçando certo desconforto pelo apoio saquarema:<br />

“Os cento e tantos votos que o Severino mandou-me dar não importaram<br />

retribuição alguma. Este teve em vista evitar que fossem<br />

eleitos dois liberais, preferindo um oposicionista a um governista. Eu<br />

nem sequer tive ciência disto, senão nas vésperas da eleição, e nunca<br />

dei grande crédito ao que diziam os conservadores, mesmo porque<br />

entendi que eles me queriam passar mel pelos beiços” 12 .<br />

É importante notar que se estes conservadores tivessem votado em Eduardo<br />

Lima, a vitória de Assis Brasil poderia ter naufragado, o que evidencia mais ainda<br />

a importância da aliança momentânea13 . Os liberais, indignados, denunciaram que<br />

conservadores e republicanos estavam na verdade trocando votos, pois Severino<br />

estaria retribuindo o apoio que havia recebido do PRR nas eleições para deputado<br />

geral, alguns dias antes. Nesta ocasião, ele disputou e venceu as eleições contra o<br />

liberal Egídio Itaqui. Na carta que Assis Brasil escreveu a Aparício Mariense, ele parecia<br />

estar dando satisfações ao mesmo e negou tal negociação: “Se nós tivéssemos<br />

protegido o Severino sequer com um terço da votação republicana, o que seria do<br />

11 Também é possível que alguns eleitores que no 1º escrutínio votaram em Francisco, Assis Brasil, Propício e Eduardo<br />

tenham alterado seu voto no 2º escrutínio, mas tal ação deve ter sido pouco significativa.<br />

12 Carta de Assis Brasil a Aparício Mariense. São Gabriel, 29.01.1885 apud RAMOS, Eloísa H. Capovilla. O Partido<br />

Republicano Rio-grandense e o poder local no litoral norte do Rio Grande do Sul (1882-1895). Porto Alegre:<br />

Dissertação de Mestrado. PPG em História - UFRGS, 1990, p. 245-249.<br />

13 A maioria dos eleitores que votou no liberal Egídio Itaqui converteu seu apoio ao também liberal Propício Barreto<br />

e ao “dissidente” Eduardo Lima, que, por ser advogado em Itaqui, devia possuir eleitores em comum com Egídio.<br />

229


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

nosso Itaqui?”. Era um tanto constrangedor que republicanos estivessem votando<br />

em líderes saquaremas que defendiam o escravismo, o senado vitalício e o Poder<br />

Moderador. Mas ao falar dos correligionários, o próprio Assis Brasil acabou admitindo<br />

que “3 votaram no Severino em 1º escrutínio e mais 4 em 2º, para deputado geral,<br />

mas por excesso de dedicação ao partido republicano. Erraram, mas não praticaram<br />

a infâmia de se deixarem arrastar pelo vil interesse” 14 . O fato é que Severino venceu<br />

Egídio supostamente com votos republicanos e decidiu retribuir a “gentileza” elegendo<br />

Assis Brasil 15 .<br />

Mas seriam somente 3 ou 4 eleitores republicanos os que votaram em Severino?<br />

Analisando as atas de duas eleições para deputado geral, em 1886, é possível<br />

observar não apenas que este número era bem maior, mas também que a aliança<br />

entre conservadores e republicanos manteve-se por muito tempo. Na primeira delas,<br />

em abril de 1886, novamente o conservador Severino Ribeiro enfrentou o liberal<br />

Egídio Itaqui por uma vaga na câmara dos deputados na Corte. Severino venceu,<br />

mas faleceu dias depois. Por conseqüência da fatalidade, novas eleições foram convocadas<br />

para setembro, mas desta vez os conservadores, representados pelo Dr.<br />

Borges Fortes, foram derrotados pelos liberais que escolheram Francisco Antunes<br />

Maciel como candidato 16 . A prova de que os republicanos votaram nos conservadores<br />

pode ser verificada através do cruzamento das atas eleitorais destas duas eleições<br />

com outra realizada no fim do mesmo ano. Examinando as eleições provinciais de<br />

dezembro de 1886, quando Assis Brasil foi reeleito, é possível notar que ele venceu<br />

todos os outros 8 candidatos monárquicos em dois municípios: São Vicente e São<br />

Luís (1º distrito). Em São Vicente, ele obteve 17 dos 19 votos, o que revela que a<br />

localidade era um forte reduto do republicanismo 17 . Entretanto, nas eleições de abril<br />

e setembro, em que o PRR não possuía candidatos concorrendo, como os eleitores<br />

de São Vicente se comportaram?<br />

A análise das referidas atas de abril e setembro de 1886 revela que o eleitorado<br />

do pequeno município apoiou em massa os conservadores: Severino 38 X 02 Egídio;<br />

Borges Fortes 45 X 01 Antunes Maciel. Ou seja, os republicanos de São Vicente<br />

empenharam-se bastante para eleger os candidatos saquaremas. Em São Luís, onde<br />

14 Carta de Assis Brasil a Aparício Mariense. São Gabriel, 29.01.1885 apud RAMOS, Eloísa H. Capovilla. Op. Cit.<br />

15 Apesar disso, os liberais, que eram governistas, deram um jeito de caçar o mandato de Severino na Comissão de<br />

Verificação de Poderes na Corte e Egídio acabou assumindo.<br />

16 Tanto nesta eleição como na anterior, Assis Brasil não atingiu a votação necessária para ser alçado ao 2º escrutínio.<br />

Isto revela que quando os cargos principais estavam em jogo (deputado geral e senador), o PRR não tinha muitas<br />

chances.<br />

17 Em 1883, cinco dos seis vereadores de São Vicente eram republicanos. No congresso do PRR do mesmo ano, Assis<br />

Brasil participou como representante do município, o que indica as íntimas relações que possuía com o mesmo.<br />

230


o propagandista Pinheiro Machado era líder político de destaque, aconteceu algo semelhante,<br />

embora com menor intensidade. É possível que em outras localidades os<br />

republicanos também tenham prestado seu apoio aos conservadores, contrariando<br />

o que Assis Brasil argumentou. As explicações do jovem deputado eram coerentes<br />

com a decisão dos republicanos na primeira convenção do partido, em fevereiro de<br />

1882. Nesta ocasião, seus líderes estipularam que em todas as localidades os republicanos<br />

deveriam concorrer às urnas para eleger seus correligionários, mas “no caso<br />

de naufragar no 1º escrutínio”, a ordem era a “abstenção no 2º”. Para o PRR, o 2º<br />

escrutínio era “um meio de facilitar essas transações por demais perigosas e nocivas<br />

à boa ordem do Partido” 18 . Entretanto, como demonstramos, tal prática não foi<br />

respeitada.<br />

Tais acordos revelam que os republicanos não estavam “isolados” das lutas<br />

faccionais entre os monarquistas. Na prática, não tinha como jogar o jogo eleitoral<br />

sem flertar com as regras monárquicas estabelecidas. Assis Brasil foi ainda mais longe.<br />

Na longa carta transcrita abaixo, notamos que para aumentar o número de eleitores<br />

do PRR, ele orientou os clubes republicanos do 3º círculo a criarem um fundo<br />

que arrecadasse dinheiro para fraudar documentos comprobatórios e necessários na<br />

qualificação:<br />

“Aqui estou afiando-me para a qualificação. Pretendo meter pelo menos<br />

mais 30 eleitores neste município. Na qualificação está o segredo<br />

da causa. Não se descuidem lá. Se é preciso eu ir é só avisarem-me.<br />

Mas São Borja é o município onde há bons companheiros em maior<br />

número: façam tudo por si. É bom desde logo irem organizando uma<br />

lista dos cidadãos que se podem qualificar, para que tudo se facilite<br />

na ocasião. Tive aqui uma idéia excelente, que espero que dará os<br />

melhores resultados. É sabido que há companheiros excelentes que<br />

não se podem qualificar por não poderem provar a renda. A minha<br />

idéia consiste no modo de arranjar a prova, que é a seguinte: Desde<br />

já os clubes das diferentes localidades irão formando por meio de<br />

donativos, benefícios, mensalidades, enfim, como melhor puderem,<br />

um fundo destinado à qualificação. No mês de agosto deste ano, os<br />

correligionários que possuírem terras passarão escrituras no valor de<br />

2 contos de réis aos que tem deficiência de renda. O fundo do clube<br />

será empregado no pagamento da siza e da escritura. As propriedades<br />

vendidas podem ser as mais insignificantes, marcando-se as divisas, a<br />

siza de 2 contos à 140 réis, e, por conseguinte, um conto e quatrocentos<br />

dão para 10 eleitores. Destes, muitos já terão escrituras de menor<br />

MONTEIRO, Hiram Ayres. Venâncio Ayres: o cavaleiro do ideal. São Paulo: Editora Grill, 1997, p. 322-323. O<br />

Partido não condenava o recebimento de votos dos monarquistas, pois isto era visto como um indício de possível<br />

conversão do eleitorado. Entretanto, o contrário não era recomendado.<br />

231


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

valor, e, nesse caso a que se passar está no que basta para inteirar os<br />

2 contos. Outros poderão pagar por si, senão tudo, ao menos parte.<br />

Assim é que não será necessário que os clubes reúnam exatamente os<br />

1.400 réis para fazerem por esta forma 10 eleitores. Temos 10 clubes<br />

no círculo; se todos fizerem isto são 100 eleitores que vamos ter de<br />

mais, e boa gente, porque está claro que devemos escolher companheiros<br />

muito firmes para esta jogada” 19 .<br />

O Assis Brasil que escreveu esta carta é o mesmo que, anos antes, condenou<br />

a diminuição do número de eleitores implementada pela Lei Saraiva, em 1881. O sufrágio<br />

restrito, para ele, concretizava um privilégio e apenas beneficiava algumas classes<br />

em detrimento de outras. “A prática do sufrágio censitário é digna do princípio<br />

de onde emana. Proposital ou não, o alvo dos governos, estabelecendo as exclusões<br />

em massa é corromper mais facilmente o corpo eleitoral. Mais depressa se corrompe<br />

e disciplina um pequeno do que um grande número de eleitores (...)” 20 . Assis Brasil<br />

estava correto, mas esqueceu de mencionar que ele poderia ser o principal disciplinador<br />

dos eleitores. Na mesma carta, ele destacou como seu plano deveria ser executado:<br />

“Tudo se deve fazer em segredo, que é para os adversários não nos imitarem<br />

(...). Estas coisas só deves comunicar a bons companheiros (...). A alma do negócio<br />

é o segredo” 21 . Concluindo a missiva, Assis Brasil defendeu-se argumentando que<br />

não havia nenhuma ilegalidade no procedimento, pois para ele todos possuíam a<br />

renda necessária, embora não tivessem como comprová-la. A renda de 200 mil réis<br />

anuais de fato era baixa, mas não justifica que as transações de terras forjadas com<br />

a finalidade de adquirir comprovantes de rendas não fossem consideradas fraudes.<br />

Portanto, existiam muitas coisas em comum entre monarquistas e republicanos.<br />

E o apoio que estes últimos deram aos conservadores, assim como a retribuição<br />

saquarema, também poderia ter outra motivação bastante significativa. Severino Ribeiro<br />

e Borges Fortes possuíam íntimas ligações com importantes lideranças republicanas<br />

por meio do vínculo mais elementar do mundo da política: a própria família.<br />

232<br />

II – OS FILHOS PRóDIGOS: PAI MONARQUISTA,<br />

FILHO REPUBLICANO<br />

Não apenas Assis Brasil, mas toda a mocidade republicana, por intermédio de<br />

seus familiares, estava conectada ao eleitorado de suas respectivas regiões de origem.<br />

19 Carta de Assis Brasil a Aparício Mariense. São Gabriel, 29.01.1885 apud RAMOS, Eloísa H. Capovilla. Op. Cit.<br />

20 ASSIS BRASIL, Joaquim F. de. A República Federal. In: Senado Federal (Org.). A Democracia representativa<br />

na República: antologia. Brasília: Senado Federal, 1998, Ed. Fac-similar, p. 82.<br />

21 Carta de Assis Brasil a Aparício Mariense. São Gabriel, 29.01.1885 apud RAMOS, Eloísa H. Capovilla. Op. Cit.


Este eleitorado, não é difícil imaginar, era monarquista e votava ou nos liberais ou<br />

nos conservadores, únicas possibilidades na década de 1870. Portanto, seus familiares<br />

não estavam descolados da elite local, mas sim, profundamente vinculados à<br />

mesma, visto que manter um filho estudando em alguma academia do Império era<br />

um investimento bastante custoso. A análise de algumas trajetórias é reveladora.<br />

Podemos começar por Júlio de Castilhos. Se o pai era um estancieiro de considerável<br />

fortuna em São Martinho, “pelo lado materno descendia de família aristocrática”.<br />

O avô de Castilhos era o Capitão Fidelis Nepomuceno Prates, grande estancieiro<br />

em São Gabriel, que chegou a ajudar financeiramente os rebeldes farrapos e foi deputado<br />

na Constituinte da República Rio-grandense. Outros dois parentes também<br />

ligavam a família à elite provincial. O primeiro deles foi Dom Feliciano José Rodrigues<br />

Prates, primeiro bispo do Rio Grande do Sul e cuja influência política devia ser<br />

grande 22 . O segundo foi Fidêncio Nepomuceno Prates, médico em São Gabriel e<br />

deputado provincial entre 1848 e 1859 e geral entre 1853 e 1856. As redes sociais da<br />

família de Castilhos estenderam-se até o mundo da Corte quando Fidêncio casou-se<br />

com a filha do Barão de Antonina. Este era senador do Império pela província do<br />

Paraná e já havia sido deputado em São Paulo, para onde enviava tropas de mulas.<br />

O Barão de Antonina era irmão do Barão de Ibicuí, rico estancieiro com terras em<br />

Cruz Alta, São Martinho, Palmeira e Santo Ângelo. Ambos os irmãos foram importantes<br />

chefes conservadores 23 .<br />

Outro exemplo foi José Gomes Pinheiro Machado. Propagandista da região<br />

missioneira, era filho de Antônio Pinheiro Machado, advogado renomado em São<br />

Paulo e que ao se envolver com a Revolta de 1842, teve que refugiar-se na região<br />

serrana do Rio Grande, onde já possuía parentes e negócios com tropas de animais.<br />

Fixados em São Luís, os Pinheiro Machado tornaram-se ricos estancieiros. Antônio<br />

foi deputado provincial (1858 a 1864) e geral (1864 a 1866) – quando defendeu os<br />

progressistas e derrotou Silveira Martins. Os Pinheiro Machado eram parentes dos<br />

Oliveira Ayres, família a qual pertencia o também paulista Venâncio Ayres, cunhado<br />

de José Gomes, e que contribuiu muito com a propaganda republicana na Província,<br />

após ter sido deputado em São Paulo, pelo Partido Conservador.<br />

Vejamos os exemplos dos Abbott e dos Ribeiro de Almeida. Os Abbott<br />

eram uma família de estancieiros e médicos com base em São Gabriel e eleitores<br />

do Partido Conservador. Fernando e João foram os principais membros da família<br />

22 SOARES, Mozart Pereira Soares. Júlio de Castilhos. Porto Alegre: IEL, 1996, p. 9.<br />

²³ Todas as referências aos laços de parentesco envolvendo os indivíduos nobilitados pertencem a CARVALHO,<br />

Mário Teixeira de. Nobiliário Sul-riograndense. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1937.<br />

233


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

a aderirem ao republicanismo na década de 1880. Ambos eram cunhados de João<br />

Borges Fortes Filho, cujo pai era o grande chefe do Partido Conservador na região<br />

da campanha. O Doutor Borges Fortes foi deputado provincial (1850 a 1863; 1869 a<br />

1872 e 1887 a 1888) e geral (1857 a 1860) 24 . Os Ribeiro de Almeida eram uma família<br />

igualmente conservadora com forte influência em Alegrete, Quarai, Uruguaiana e<br />

Livramento, onde possuíam estâncias. Severino Ribeiro foi o chefe político máximo<br />

da família, tornando-se deputado provincial (1885-1886) e geral (1877; 1882-1884;<br />

1886). O republicano da família foi seu irmão caçula, Vitorino, que havia sido colega<br />

de Assis Brasil e de Castilhos na faculdade de Direito. Ambos eram filhos do Barão<br />

de São Borja – comandante de destaque na Guerra do Paraguai e um dos principais<br />

chefes conservadores da região da campanha – e netos de Bento Manoel Ribeiro,<br />

estancieiro que pegou em armas em 1835, mas passou para o lado legalista por duas<br />

vezes. A partir destas linhas é possível considerar que os laços de parentesco devem<br />

ter facilitado com que Severino Ribeiro convencesse seus eleitores a votarem no<br />

amigo de seu irmão Vitorino, Assis Brasil, e os republicanos retribuírem apoiando<br />

Borges Fortes e o próprio Severino, como demonstramos antes.<br />

Podemos citar outros casos de forma mais resumida. Ramiro Barcellos, por<br />

exemplo, era sobrinho do Barão de Viamão, o principal chefe conservador de Cachoeira,<br />

e primo de Borges de Medeiros, outro importante propagandista e que, na<br />

República, governou o Rio Grande por 25 anos. Joaquim Pereira da Costa era sobrinho<br />

e acabou tornando-se genro do Barão de Nonoai, rico estancieiro e importante<br />

chefe conservador em Cruz Alta. Joaquim foi colega de Faculdade de Castilhos e<br />

ambos acabaram tornando-se cunhados. João Jacintho Mendonça pertencia a uma<br />

importante família de charqueadores saquaremas de Pelotas e Demétrio Ribeiro era<br />

sobrinho do Barão de Santana do Livramento, antigo líder conservador de Alegrete,<br />

mas que por desavenças com os Ribeiro de Almeida tornou-se o principal chefe gasparista<br />

da região. Possidônio Cunha era sobrinho do Barão de Corrientes, capitalista<br />

e charqueador pelotenses, e Marçal Escobar, neto do poderoso Barão de São Lucas<br />

– rico estancieiro são borjense.<br />

Muitos destes propagandistas pertenciam ao “Club 20 de setembro”, que<br />

reunia estudantes republicanos rio-grandenses na academia de São Paulo. Examinando<br />

a lista dos sócios e pesquisando suas vidas percebemos que outros membros<br />

deste grupo também possuíam trajetória semelhante aos citados anteriormente. Alfredo<br />

Lobo d’Eça era filho do Barão de Batovi, estancieiro com enorme destaque<br />

24 Além disso, uma das filhas do Doutor Borges Fortes casou-se com Carlos Prates de Castilhos que provavelmente<br />

era um parente próximo de Júlio. (CARVALHO, Mário Teixeira. Op. Cit., p. 92).<br />

234


na campanha do Paraguai e com terras em São Gabriel. Enéias Galvão era filho do<br />

Visconde de Maracajú, outro militar que chegou a ser ministro da Guerra, e que era<br />

irmão do Barão de Rio Apa, principal repressor da Revolta do Vintém, na Corte. O<br />

Barão de Candiota, outro importante estancieiro gabrielense que possuía terras em<br />

diversos municípios da região da campanha e que era primo do Senador e Ministro<br />

Henrique D’Avila, era pai de José Maria Chagas. E Adolpho Osório era filho do<br />

General Osório e Marquês do Herval, principal chefe político do Rio Grande do Sul<br />

nos anos 1870.<br />

Outros exemplos poderiam ser dados e Assis Brasil também se encaixa no<br />

perfil descrito. Filho do estancieiro Francisco de Assis Brasil, a família era aparentada<br />

com os Jobim – conservadores e íntimos do Imperador. Um de seus membros<br />

ilustres era o Barão de Cambaí, tio-avô de Assis Brasil e que na juventude foi negociante<br />

no Rio de Janeiro e depois se tornou estancieiro em São Gabriel. Irmão<br />

da Viscondessa de Sabóia e filho do Senador José Cruz Jobim, o Barão era “senhor<br />

de avultados bens de fortuna” e “contribuiu, largamente, para a campanha do Paraguai”<br />

25 . Na década de 1870, Assis Brasil também se tornou cunhado do estancieiro<br />

Antônio de Castro Jobim, casado com sua irmã Felisberta.<br />

Filhos, netos, sobrinhos, em suma, parentes de barões, viscondes e marqueses.<br />

Pode-se dizer que a grande maioria destes propagandistas pertencia às famílias<br />

mais nobres do Império. Tinham ascendentes conhecidos no mundo da Corte, seja<br />

pelos títulos de nobreza, seja pelos altos cargos ocupados, e respiravam a política<br />

desde a sua infância. Provenientes de famílias da elite monárquica é possível considerar<br />

que sua conversão ao republicanismo tenha acontecido em algum momento<br />

de suas vidas, seja na adolescência, nas escolas preparatórias, seja na juventude, já na<br />

academia. Esta simples constatação evidencia que ao retornarem para sua terra natal,<br />

estes jovens republicanos viam-se como membros de uma extensa parentela de<br />

monarquistas. Devido às novas posições políticas trazidas para o interior da família,<br />

o relacionamento com seus pais podia tornar-se problemático. Mas por outro lado,<br />

caso fosse tolerado, um possível apoio da família nas negociações políticas do filho<br />

recém chegado poderia facilitar seus contatos iniciais.<br />

O fato é que o convívio com outros estudantes mais velhos e o contato com<br />

novas idéias mexiam com a cabeça dos rapazes. No caso dos rio-grandenses, muitas<br />

vezes o calor do republicanismo já era sentido nos estudos preparatórios realizados<br />

em Porto Alegre, no Colégio de Fernando Gomes, por exemplo. Este professor era<br />

25 CARVALHO, Mário Teixeira de. Op. Cit., p. 51.<br />

235


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

republicano e abolicionista declarado e ensinava a doutrina de Comte aos seus jovens<br />

alunos. Freqüentaram suas aulas Júlio de Castilhos, Assis Brasil, Barros Cassal,<br />

Ernesto Alves, entre outros26 . Posteriormente, nas Escolas Militares ou nas Academias<br />

de Medicina e Direito eles tinham contato com as elites de todo o Brasil, suas<br />

experiências se renovavam e eles conheciam um caldeirão de idéias, por muitos consideradas<br />

subversivas. Um trecho das memórias do abolicionista Joaquim Nabuco<br />

ilustra o impacto deste encontro:<br />

“QUANDO ENTREI PARA A ACADEMIA, LEVAVA A MINHA<br />

FÉ CATóLICA VIRGEM; SEMPRE ME RECORDAREI DO ES-<br />

PANTO, DO DESPREZO, DA COMOçãO COM QUE OUVI<br />

PELA PRIMEIRA VEZ TRATAR A VIRGEM MARIA EM TOM<br />

LIBERTINO; EM POUCO TEMPO, PORÉM, NãO ME RESTA-<br />

VA DAQUELA IMAGEM SENãO Pó DOURADO DE SAU-<br />

DADE (...) AS MINHAS IDÉIAS ERAM, ENTRETANTO, UMA<br />

MISTURA E UMA CONFUSãO; HAVIA DE TUDO EM MEU<br />

ESPíRITO. ÁVIDO DE IMPRESSõES NOVAS, FAZENDO OS<br />

MEUS PRIMEIROS CONHECIMENTOS COM OS GRANDES<br />

AUTORES, COM OS LIVROS DE PRESTíGIO, COM AS IDÉIAS<br />

LIVRES, TUDO O QUE ERA BRILHANTE, ORIGINAL, HAR-<br />

MONIOSO, ME SEDUZIA E ARREBATAVA POR IGUAL”. 27<br />

No Rio Grande do Sul, no fim dos anos 1870 e início dos anos 1880, não era<br />

novidade para as elites que a faculdade de Direito de São Paulo estava tornandose<br />

um reduto de jovens rio-grandenses convertidos ao republicanismo. Da turma<br />

formada em 1878, retornaram para o Rio Grande os propagandistas José Gomes<br />

Pinheiro Machado e Marçal Escobar. Da turma de 1880, foi a vez de Wenceslau Escobar,<br />

Alexandre Cassiano do Nascimento e Antônio Pinheiro Machado Júnior. Em<br />

1881, formaram-se Eduardo Lima, Júlio de Castilhos e João Mendonça. Cruzando<br />

a lista dos formados nas turmas posteriores com a dos propagandistas, percebemos<br />

que a grande maioria dos formados já voltava ao Rio Grande pronta para abastecer<br />

as fileiras do PRR. Mas o que os pais monarquistas vinham pensando sobre isto?<br />

Resolvemos construir um gráfico demonstrando o número de rio-grandenses<br />

diplomados em Direito a cada ano. Como os anos indicados são os da formatura,<br />

devemos considerar que os pais enviaram seus filhos para a academia sempre cinco<br />

anos antes da conclusão do curso. O gráfico apresenta quatro momentos em que a<br />

elite rio-grandense reduziu o envio dos filhos para São Paulo. Três delas tem nítida<br />

26 RIBEIRO, Célia. Fernando Gomes: um mestre no século XiX. Porto Alegre: LP & M, 2008.<br />

27 NABUCO, Joaquim. Minha Formação. Brasília. UnB, 1963, p. 10-11.<br />

236


vinculação com as épocas em que o Rio Grande do Sul envolveu-se em guerras. A<br />

primeira queda brusca nos envios inicia-se em 1842, o que evidencia que a partir<br />

de 1837, os rio-grandenses foram cada vez menos estudar na Academia Paulista.<br />

A segunda queda inicia-se em 1857, ou seja, cinco anos depois da Guerra contra<br />

Oribe e Rosas. Esta queda foi pequena, assim como o impacto da mesma Guerra. A<br />

terceira queda, relacionada com a Guerra do Paraguai, foi igualmente brusca como a<br />

primeira. Ela inicia-se em 1872 e demonstra que a partir de 1867 os rio-grandeses diminuíram<br />

o envio de seus filhos para São Paulo. Estes três ciclos de queda demonstram<br />

que as guerras provocaram significativa crise política e econômica e acabaram<br />

alterando o projeto de muitas famílias, reduzindo as possibilidades de manterem um<br />

filho estudando fora da Província, algo muito custoso. Mas como explicar a enorme<br />

diminuição iniciada em 1887?<br />

Não houve nenhuma guerra no início da década de 1880 e nem é possível<br />

falar de uma grande crise econômica que inviabilizasse tal investimento familiar. A<br />

mencionada crise nas charqueadas é discutível. O número de estabelecimentos saladeris<br />

em 1882, por exemplo, era maior que na década anterior e as vendas do produto<br />

não caíram tanto 28 . A população rio-grandense continuou a crescer bastante e as<br />

exportações de alimentos da região colonial também aumentavam a cada ano. Nossa<br />

hipótese é que um dos motivos pelo qual os rio-grandenses diminuíram o envio de<br />

filhos para São Paulo se deu exatamente pela explosão do movimento republicano.<br />

As primeiras manifestações de Castilhos e Assis Brasil, a fundação do PRR e a defesa<br />

de idéias perigosas, como a abolição da escravidão, por exemplo, deve ter incomodado<br />

muitos estancieiros monarquistas e charqueadores fiéis à Coroa. A academia paulista<br />

estava se tornando um espaço anti-monárquico e é provável que pais de famílias<br />

da elite proprietária não quisessem ver seus filhos convertidos a “tais” doutrinas.<br />

28 O estudo das charqueadas pelotenses constitui-se no tema atual de pesquisa de Jonas Vargas. Resultados parciais<br />

podem ser acompanhados em VARGAS, Jonas Moreira. A elite charqueadora de Pelotas (1850-1890): algumas notas<br />

sobre as suas estratégias familiares e a transmissão de propriedade. In: GARCIA, Graciela B. (Org.). Anais do ii<br />

Encontro do GT de História Agrária (ANPUH-RS). Porto Alegre, 2009, CD-ROM, p. 1-20.<br />

237


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

238<br />

Gráfico – Bacharéis em direito rio-grandenses<br />

formados em São Paulo (1832-1895)<br />

Fonte: FRANCO, Sérgio da Costa. Gaúchos na Academia de Direito de São Paulo no século XIX in:<br />

Revista Justiça & História. Porto Alegre: CEMJUG, 2001, pp. 107-129.<br />

Muitas famílias, no Brasil inteiro, devem ter vivido este dilema. Pais monarquistas<br />

e filhos republicanos. Pais escravocratas e filhos abolicionistas. Pais excessivamente<br />

religiosos e filhos anti-clericais. As famílias se desentendo ou se acertando,<br />

em conflitos com diferentes intensidades, muitas vezes dentro da própria casa. Mas<br />

para Júlio de Castilhos, Assis Brasil, Pinheiro Machado, Ramiro Barcellos, Vitorino<br />

Monteiro, e talvez alguns outros, contornar a vontade paterna não foi problema,<br />

pois os mesmos eram órfãos de pai quando foram estudar em São Paulo 29 . Tal fatalidade<br />

pode ter contribuído para favorecer uma militância mais livre de tensões dentro<br />

da própria casa. Além disso, ter ficado órfão desde a juventude deve ter exigido<br />

dos mesmos uma precoce e constante busca por padrinhos políticos. A ausência<br />

da figura paterna trazia dificuldade para muitas coisas, mas acabava abrindo outras<br />

portas. Nenhum biógrafo declarou, mas conforme a mãe de Assis Brasil, o mesmo<br />

seria encaminhado à carreira da medicina, para a qual possuía “caracterizada vocação”<br />

30 . Não sabemos se este era seu desejo, mas com a morte do pai, ele acabou indo<br />

estudar Direito. O mesmo pode ser dito de Vitorino Ribeiro. O pai enviou-o para<br />

estudar na Academia Militar da Corte, mas tendo falecido, em 1877, Vitorino acabou<br />

transferindo-se para São Paulo, o que talvez fosse sua verdadeira vontade 31 . Se tais<br />

29 Com exceção de Ramiro, formado em medicina na Corte.<br />

30 Inventário de Francisco de Assis Brasil. Processo 247, maço 12, ano 1872, São Gabriel, Cartório de órfãos e<br />

ausentes (APERS), p. 62.<br />

31 VARGAS, Jonas Moreira. Entre a paróquia e a Corte: os mediadores e as estratégias familiares da elite<br />

política do Rio Grande do Sul (1868-1889). Santa Maria: Editora da UFSM/ Anpuh-RS, 2010.


fatalidades não tivessem ocorrido é provável que a relação de ambos com Castilhos,<br />

efetivadas em São Paulo, não tivessem se estreitado tanto.<br />

As relações familiares dentro do mundo da política eram importantes tanto<br />

para os monarquistas quanto para os republicanos e tais vínculos acabavam conectando<br />

a todos. As alianças eleitorais entre conservadores e republicanos, portanto,<br />

também deve ter sido fruto de uma retribuição parental só perceptível quando se<br />

analisa a fundo as famílias desta elite. Na região da campanha esta ligação parece<br />

ter sido mais forte. Assis Brasil, Fernando Abbott e Vitorino Ribeiro, por exemplo,<br />

tinham importantes lideranças conservadoras na própria família, o que pode ter<br />

facilitado a aliança partidária e os votos depositados em Assis Brasil. Para muitos,<br />

portanto, o ódio familiar contra Silveira Martins e seu séquito já vinha de família,<br />

mesmo antes da década de 1870 e foi apenas reatualizado na fase da propaganda<br />

republicana e elevada a uma nova etapa na Revolução Federalista (1893-1895). Os<br />

inimigos de Gaspar eram bem-vindos nas hostes republicanas. Isto ajuda a explicar<br />

porque os parentes do General Osório e todos os liberais expurgados por Silveira<br />

Martins foram acolhidos no seio do PRR. Quando Assis Brasil tomou a palavra na<br />

sessão parlamentar do dia 8 de dezembro de 1885 e enfrentou Silveira Martins de<br />

forma impetuosa é provável que muitos membros da velha guarda saquarema da<br />

província, que tanto sofrera nas mãos do intransigente tribuno liberal, estivessem<br />

satisfeitos, certos de que fizeram um bom negócio ao apoiar ocasionalmente aquele<br />

rapaz de apenas 28 anos.<br />

III – JOAQUIM NA COVA DOS LEõES: UM<br />

REPUBLICANO NO PARLAMENTO PROVINCIAL<br />

As sessões da Assembléia Legislativa provincial duravam pouco mais que<br />

dois meses, mas era a oportunidade dos partidos implementarem a sua política. Na<br />

leitura dos anais do parlamento é possível perceber que Assis Brasil demonstrouse<br />

bastante ativo na defesa da região da campanha. A hipótese que defendemos<br />

é que não apenas os votos conservadores o deram a vitória, mas também a habilidade<br />

com que o mesmo preencheu um espaço que estava aberto para novos<br />

representantes daquela região. Logo que foi eleito, em janeiro de 1885, ele escreveu<br />

ao mesmo Aparício Mariense convidando-o para a convenção do Partido na<br />

capital: “Espero que cumpras a palavra que me deste, sendo representante de São<br />

Borja. É um passeio que dás a Porto Alegre e com isso aproveitas a ver funcionar<br />

a Assembléia, onde já vai tomar parte um republicano”. E na mesma carta deixou<br />

clara a insatisfação dos eleitores da fronteira: “Não podemos continuar, nós da<br />

239


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Campanha, a ser representados por gente da capital. É o amor ao partido que exige<br />

a tua ida, ou de algum de nossos bons companheiros daí” 32 .<br />

Mas porque “gente da capital”? A insatisfação de Assis Brasil apenas refletia<br />

o fato de que muitos candidatos monarquistas que concorriam com ele nas eleições<br />

residiam em Porto Alegre. Albino Pinto e Egídio Itaqui, embora fossem naturais da<br />

campanha, há muito haviam trocado sua residência para a capital, onde advogavam.<br />

O engenheiro Adriano Ribeiro fizera o mesmo. Mas outros concorrentes como José<br />

Bittencourt, Francisco Souza e Hemetério Silveira nem da campanha eram e pretendiam<br />

representá-la no parlamento. O próprio Silveira Martins e seus seguidores<br />

como Joaquim Salgado e Eleuthério de Camargo, constituíam-se em homens que<br />

haviam migrado para a capital. O Partido Liberal era forte em Porto Alegre. Em<br />

1882, por pressão dos comerciantes da capital que reclamavam do contrabando na<br />

fronteira oeste, Silveira Martins empenhou-se em aprovar no Senado a tarifa especial<br />

que favorecia aqueles negociantes, em detrimento dos da campanha. Muito comemorado<br />

na capital, Gaspar teve seu retrato exposto na sala de reuniões da Associação<br />

Comercial de Porto alegre 33 . Soma-se a isto o fato de que Silveira Martins já nem<br />

concorria mais às eleições pelos círculos eleitorais da campanha. Na década de 1880,<br />

ele sempre se elegeu pelo 6º círculo, que reunia a região de colonização alemã, além<br />

de importantes cidades como Rio Pardo, Santa Maria e Cachoeira.<br />

Assis Brasil, portanto, parecia estar tentando legitimar um discurso onde ele<br />

seria o verdadeiro representante da região da campanha. Jamais saberemos o conteúdo<br />

de suas conversas pessoais com os eleitores da fronteira, mas é provável que ele<br />

estivesse utilizando isto para conseguir votos. As críticas aos deputados monarquistas<br />

daquela região já vinham sendo realizadas antes dele, o que deve ter facilitado<br />

a sua missão. Anos antes, Wenceslau Escobar, advogado em São Borja, e Propício<br />

Barreto Pinto, proprietário em São Gabriel, acusavam o próprio partido que representavam,<br />

o liberal, de ter abandonado a campanha. Eleuthério de Camargo, em<br />

defesa, tentou contornar a situação, mas não apresentou argumentos capazes de<br />

contrariar os dois jovens 34 . Meses mais tarde, Wenceslau acabou ingressando no<br />

PRR. Talvez esta nova agremiação fosse uma saída para aqueles homens da campa-<br />

32 Carta de Assis Brasil a Aparício Mariense. São Gabriel, 29.01.1885 apud RAMOS, Eloísa H. C. da Luz. Op. Cit.,<br />

p. 245-249.<br />

33 FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre e seu comércio. Porto Alegre: Associação Comercial de Poa, 1983,<br />

p. 78.<br />

34 Anais da Assembléia Legislativa Provincial, sessão de 21 de abril de 1881. Eleuthério dizia que as críticas eram<br />

coisas de jovens radicais, mas Antônio Ribas, um velho deputado de Itaqui concordou com eles. Eleuthério admitiu<br />

o abandono e concluiu que o Partido não governava por localidades, mas sim pelo crescimento de toda Província,<br />

discurso muito comum entre os situacionistas.<br />

240


nha que estavam descontentes com a administração dos liberais e de sua política para<br />

com aquela região. Estes e outros episódios devem ter contribuído para o aumento<br />

do eleitorado republicano na campanha. Conforme Eloísa Ramos, a maioria das adesões<br />

ao PRR, logo após a sua fundação, em 1882, aconteceu na região da campanha.<br />

Em quase todos os municípios eles conseguiram eleger um vereador, sendo que, em<br />

Alegrete, assumiram dois 35 .<br />

Algumas das manifestações de Assis Brasil foram em defesa dos estancieiros<br />

daquela região. Favorecendo São Gabriel, por exemplo, ele tentou aumentar sua<br />

arrecadação ao propor uma lei obrigando todo o gado vindo da região missioneira<br />

para Pelotas a pagar pedágio na ponte recém criada sobre o Vacacaí 36 . Em outro<br />

discurso, ele buscou vetar o projeto de lei encaminhado pelos liberais para diminuírem<br />

o corpo policial na fronteira. Segundo ele, o mal para as estâncias da campanha<br />

era exatamente a falta de policiamento. Assis Brasil acrescentava: “Venho de lá do<br />

interior da província, onde vejo com os meus olhos (...) o descrédito com que os<br />

homens públicos aparecem aos olhos dos nossos patrícios, desiludidos de promessas<br />

(...)” 37 . Em abril de 1886, ele defendeu a criação de gado como a principal fonte de<br />

riqueza da província e atacou todos os deputados por não estarem se empenhando<br />

na melhoria da atividade pecuária. E ao condenar ambos os partidos monárquicos<br />

por este abandono, ele enfatizava: “não falo desta legislatura; refiro-me a todas (...)<br />

Pouco se tem feito pelo bem real da província, e pela indústria pastoril particularmente<br />

quase nada” 38 .<br />

Com relação à abolição da escravidão Assis Brasil também foi um parlamentar<br />

ativo. No ano de 1886, a única medida legislativa relativa à questão servil foi<br />

enviada por ele, que encaminhou uma emenda ao projeto de orçamento das câmaras<br />

municipais onde dizia: “de cada individuo que tiver escravos ou libertos, com cláusu-<br />

35 A autora acrescenta que nesta região fronteiriça os assinantes d’A Federação, jornal oficial do partido, também eram<br />

bastante numerosos. Esta inclinação ao republicanismo só poderia significar uma insatisfação com os representantes<br />

políticos liberais e conservadores, além de servir como mais um espaço às elites paroquiais alijadas da política local.<br />

(RAMOS, Eloísa H. C. da Luz. Op. cit, p. 109-110).<br />

36 Anais da Assembléia Legislativa do RS. Sessão do dia 9 de novembro de 1885.<br />

37 Anais da Assembléia Legislativa do RS. Sessão do dia 20 de novembro de 1885.<br />

38 Anais da Assembléia Legislativa. Sessão do dia 02.04.1886. Assis Brasil, habilmente, estava preenchendo um<br />

espaço aberto à “mediação”. Era bom orador e palestrante e, de fato, preocupava-se com os problemas relativos<br />

à criação de gado, como demonstram os livros que escreveu já no século XX. Tornara-se, aos 28 anos, um jovem<br />

líder político com uma clientela formada a todo custo. Mas buscava ampliá-la e com isto deveria beneficiar a comunidade<br />

local, cujos estancieiros eram seus principais chefes. O reconhecimento dos mesmos legitimava a posição de<br />

Assis Brasil, que conectava a região da campanha com a capital – centro administrativo da província e da qual os<br />

estancieiros esperavam favores e cargos. Mas esta era uma tarefa difícil e muitos cobiçavam o seu posto de mediador<br />

político. Para uma reflexão teórico-metodológica do papel do mediador nas sociedades agrárias e pré-industriais ver<br />

VARGAS, Jonas Moreira. Op. Cit., 2010.<br />

241


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

la de prestação de serviços por mais de três anos se cobrará 50$000 por cada escravo<br />

ou liberto”. A emenda foi vetada pela maioria. Um ano depois, em novembro de<br />

1887, dois deputados propuseram a criação de um imposto de 500$000 sobre cada<br />

escravo que fosse importado em qualquer município rio-grandense. Assis Brasil novamente<br />

ofereceu uma emenda, ampliando os impostos a todos os escravos, quer de<br />

passagem de um município para outro, quer fixos em um só município, sugerindo o<br />

imposto de 100$000 sobre cada liberto com a condição de servir. Encontrando nova<br />

oposição, Assis Brasil retirou sua emenda para não prejudicar a aceitação de todo o<br />

projeto. Incansável, o jovem republicano propôs outra emenda juntamente com o<br />

liberal Severino Prestes, sob “o imposto de 200$000 a que ficam sujeitas as cartas de<br />

alforria concedidas da data desta lei em diante com a cláusula de serviços por mais<br />

de três anos”. Desta vez a emenda foi aprovada e incorporada à lei 39. .<br />

Assis Brasil vinha-se demonstrando empenhado em representar a região da<br />

campanha, mas não conseguiu se reeleger em 1888. É provável que a abolição da<br />

escravidão, em maio deste ano, tenha auxiliado no afastamento entre conservadores<br />

e republicanos, pois ambos ocupavam posições distintas com relação ao delicado<br />

tema 40 . Além disso, a votação que ele obteve no 1º escrutínio de 1884 foi praticamente<br />

a mesma que em 1886, o que demonstra que o Partido não havia crescido<br />

em quase nada, mas pelo contrário, perdido seu potencial eleitoral, pois em 1888,<br />

sua candidatura naufragou. Estaria Assis Brasil afastando-se do seu eleitorado da<br />

fronteira? O fato é que nos dois únicos discursos publicados nos Anais para o ano<br />

de 1888, ele defendeu interesses de outras regiões. Numa delas, propôs a criação de<br />

uma aula pública num distrito rural de Santa Maria. Na outra, ele estava representado<br />

“os mais respeitáveis comerciantes e proprietários” de Porto Alegre, e exigindo a<br />

restituição total de impostos supostamente cobrados de forma ilegal 41 . Ele que tanto<br />

criticara os representantes da campanha que estavam vinculadas à capital, agora estava<br />

ligado aos ricos negociantes de Porto Alegre.<br />

No entanto, outro fator contribuiu para que o mesmo não fosse eleito. Aprovada<br />

em 1887, entrou em vigor no ano seguinte a “lei do terço”, que havia sido abandonada<br />

em 1881, mas retornava como salvação para a representação das minorias.<br />

Ela exigia que cada eleitor ao invés de votar num candidato, votasse em 2/3 das ca-<br />

39 Em dezembro de 1887, Assis Brasil e Albino Pereira Pinto apresentaram um projeto, logo aprovado, que dispensava<br />

“das dívidas provenientes da taxa de escravos os senhores que derem ou deram liberdade incondicional aos<br />

escravos sobre os que versaram as dívidas”, bem como as pessoas que desistirem dos serviços dos libertos com cláusula<br />

(BAKOS, Margaret Marchiori. RS: escravismo & abolição. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982, p. 63-77).<br />

40 Muito embora alguns conservadores tenham participado do movimento abolicionista e outros republicanos fossem<br />

mais receosos a cerca da abolição.<br />

41 Anais da Assembléia Legislativa do RS. Sessões dos dias 29 e 30 de novembro de 1888.<br />

242


deiras a serem preenchidas, ou seja, cada eleitor votaria em 4 candidatos. Os liberais<br />

e conservadores que antes tinham que escolher apenas um candidato do seu partido<br />

para votar, agora podiam votar em quatro. A minoria beneficiada acabou sendo a<br />

conservadora e os republicanos não elegeram nenhum candidato. É provável que o<br />

PRR não estivesse suportando todo o peso de jogar o jogo eleitoral completamente<br />

controlado pelos monarquistas. A nova lei foi mais um indício de que o sistema político<br />

monárquico precisava ser derrubado. Não foi coincidência que meses depois,<br />

em março de 1889, na fazenda da Reserva, eles passaram a aceitar a via revolucionária,<br />

muito embora ela ainda não fosse considerada a principal 42 .<br />

IV – ALGUMAS NOTAS CONCLUSIVAS<br />

Costuradas lenta e habilmente ao longo da década de 1880 e em parte herdadas<br />

de seus pais e parentes estabelecidos na região, as alianças e relações de amizade<br />

que os jovens propagandistas estabeleceram com estancieiros e eleitores foi uma<br />

exigência para a sua sobrevivência política. Por serem novatos na cena política, muitas<br />

destas ligações tiveram que ser realizadas com lideranças monarquistas ou recém<br />

convertidas ao republicanismo. Tanto estas alianças quanto inúmeras dissidências no<br />

interior das facções locais eram tomadas de posição conjunturais, sendo que algumas<br />

acabavam tornando-se mais duradouras. Mas toda e qualquer transação, sem importar<br />

o partido ou credo em questão, tinha como principais protagonistas elementos<br />

pertencentes às elites de cada município, fosse no papel de candidatos, fosse no<br />

papel de eleitores 43 . Elites estas formadas por ricos estancieiros, comerciantes, charqueadores,<br />

profissionais liberais e empregados públicos civis e militares distribuídos<br />

em suas diferentes facções e muitas vezes vinculados por laços de parentesco.<br />

É importante fazermos tal consideração, pois o quadro construído por Celi<br />

Pinto ainda mantém-se com significativa importância historiográfica, visto que sínteses<br />

mais recentes, como a realizada por Ricardo Pacheco, seguem na íntegra tal<br />

42 “Reconhecendo a necessidade de organizar a oposição em qualquer terreno ao futuro terceiro reinado (...) e a<br />

necessidade de preparar elementos para, no momento oportuno, garantir o sucesso da revolução, declaramos que<br />

temos nomeado nossos amigos, José Gomes Pinheiro Machado, Júlio de Castilhos, Fernando Abbott, Assis Brasil,<br />

Ramiro Barcellos e Demétrio Ribeiro para trabalharem para que consiga aqueles fins, empregando livremente os<br />

meios que escolherem. Nós juramos não nos deter diante de dificuldade alguma, a não ser o sacrifício inútil de<br />

nossos cidadãos. Excluída esta hipótese, só haveremos de parar diante da vitória ou da morte”. PESSOA, Reynaldo<br />

Carneiro (Org.). A idéia republicana no Brasil através de documentos. São Paulo: Alfa-ômega, 1973, p. 93.<br />

43 Com isto não estamos querendo dizer que as camadas subalternas da sociedade e pequenos e médios estancieiros<br />

e comerciantes não tinham participação ativa. Para uma análise mais completa acerca da participação dos mesmos<br />

ver VARGAS, Jonas Moreira. Op. Cit., 2010. Em especial o capítulo segundo.<br />

243


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

análise. Para Celi Pinto, o perfil dos propagandistas era o de um grupo de indivíduos<br />

muito jovens e com uma instrução educacional “excepcional” para a época em que<br />

viviam. Em sua grande maioria, eles pertenciam à “classe média urbana” e não estavam<br />

envolvidos diretamente nos interesses do grupo dominante da campanha ou<br />

das regiões mais pobres do norte da Província. A autora conclui enfatizando que a<br />

propaganda republicana foi feita à revelia destes segmentos da sociedade 44 .<br />

Ora, a maioria destas afirmações está equivocada e ao longo do texto foi possível<br />

demonstrá-las. As mesmas são tributárias de um tipo de interpretação bastante<br />

em voga nos anos 1970, que vinculava, de forma simplista, a história das idéias a um<br />

determinismo de classe e geográfico. Primeiramente, a instrução escolar dos políticos<br />

monárquicos também era bastante alta. Entre os líderes monarquistas da política<br />

provincial, 80% possuíam formação superior. Entre os deputados gerais este índice<br />

ultrapassava os 90%, e para os ministros e senadores ele era ainda maior 45 . Segundo,<br />

a relação “juventude = republicanismo” deve ser relativizada, pois ela aconteceu<br />

justamente porque as academias estavam tornando-se importantes focos de crítica à<br />

monarquia e, obviamente, era um reduto de estudantes. Fora dali, e até mesmo naquele<br />

espaço, existiam jovens monarquistas e republicanos de idade mais avançada.<br />

Terceiro, depois de tudo que foi visto aqui não é possível afirmar que os propagandistas<br />

pertencessem a uma “classe média urbana” e sem vínculos com a região da<br />

campanha, pois foi exatamente nesta região que o republicanismo cresceu ao ponto<br />

de eleger o único deputado do PRR.<br />

A tese de Celi Pinto estava em perfeita sintonia com aqueles autores que buscaram<br />

analisar os partidos monárquicos no Segundo Reinado. Todos estes autores<br />

insistiam em afirmar que o Partido Liberal era o representante dos interesses dos<br />

estancieiros da campanha 46 . Nas páginas escritas até aqui, foi possível perceber que a<br />

44 PINTO, Celi Regina Jardim. Contribuição ao Estudo do Partido Republicano Rio-Grandense. Porto Alegre,<br />

UFRGS. Dissertação de mestrado. PPG – Ciência Política da UFRGS, 1979. O texto referido é o de PACHECO, Ricardo<br />

de Aguiar. Conservadorismo na tradição liberal: movimento republicano (1870-1889). In: PICCOLO, Helga e PADOIN,<br />

Maria M. História Geral do Rio Grande do Sul: Império. Porto Alegre: Editora Méritos, 2007, v. 2, p. 139-153.<br />

45 VARGAS, Jonas Moreira. Op. Cit., 2010.<br />

46 Como, por exemplo, GUTFREIND, Ieda. Rio Grande do Sul: 1889-1896. A Proclamação da República e a<br />

reação liberal através da sua imprensa. Dissertação de mestrado. PPG em História da PUCRS, 1979; ISAIA,<br />

Arthur. A imprensa liberal rio-grandense e o regime eleitoral do império: 1878-1889. Dissertação de mestrado.<br />

PPG em História da PUCRS, 1988; ALVES, Francisco das Neves. O Discurso político partidário sul-rio-grandense<br />

sob o prisma da imprensa rio-grandina (1868-1895). Tese de Doutorado. Porto Alegre: PPG em História<br />

da PUCRS, 1998; CARNEIRO, Newton Luis Garcia. A identidade inacabada: o regionalismo políticos no Rio<br />

Grande do Sul. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000; TARGA, Luiz R. (org.). Gaúchos e Paulistas: dez escritos de<br />

história regional comparada. Porto Alegre: Fundação de Economia e Estatística, 1996, p. 81-92; KLIEMANN,<br />

Luíza H. Schmitz. RS: Terra & Poder. História da Questão Agrária. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986; TRIN-<br />

DADE, Helgio & NOLL, Maria Izabel. Rio Grande da América do Sul: Partidos e eleições (1823-1990). Porto<br />

Alegre: EDUFRGS/Sulina, 1991; PESAVENTO, Sandra. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado<br />

Aberto, 1997, 8.a edição; FONSECA, Pedro Dutra. Economia e conflitos políticos na República Velha. Porto<br />

Alegre: Mercado Aberto, 1983; FÉLIX, Loiva Otero. Coronelismo, Borgismo e cooptação política. Porto Alegre:<br />

Mercado Aberto, 1987; FRANCO, Sérgio da Costa. Julio de Castilhos e sua época. Porto Alegre: EDUFRGS,<br />

1996.<br />

244


campanha estava repleta de conservadores. Sem estes, Assis Brasil não teria sido eleito.<br />

Na realidade, na década de 1880, os conservadores venceram muitas eleições para deputado<br />

geral e provincial no 3º círculo – o coração da campanha 47 Tal esquematismo<br />

é tributário do antigo mito do gaúcho amante da liberdade, farroupilha quase que por<br />

natureza, seguidor de Silveira Martins, guerreiro e, que logicamente, não teria outra<br />

posição política a não ser votar nos liberais. É interessante que esta mesma raiz farrapa<br />

também serviu para Assis Brasil naturalizar o republicanismo entre os rio-grandenses<br />

48 . A memória da Guerra acabou sendo disputada por liberais e republicanos. O<br />

preço de tais interpretações foi pago pelos legalistas e conservadores que caíram num<br />

secular ostracismo historiográfico, pois nenhuma pesquisa buscou investigar de forma<br />

profunda os saquaremas da província. Entretanto, não havia nada que impedisse um<br />

estancieiro de ser conservador, nem mesmo em nível discursivo 49 .<br />

Este esquematismo teve forte influência sobre a vinculação que se fez entre<br />

o movimento abolicionista e a participação do PRR, por exemplo. Margareth Bakos<br />

afirmou que se para os castilhistas, que se baseavam ampla e profundamente nos<br />

fundamentos de Comte, a posição tomada era a de abolição imediata e sem indenização,<br />

a posição de Assis Brasil e Ramiro Barcellos na Assembléia mostrava um outro<br />

caminho a ser seguido. Sua atuação se deu no sentido de propor emendas e projetos<br />

que onerassem a posse de escravos e nesse sentido, dificultassem a continuação da<br />

instituição escravocrata. Bakos argumentou que as posições de Assis e Ramiro foram<br />

conseqüência destes serem grandes proprietários de terra, enquanto os “representantes<br />

padrão do partido republicano provincial”, eram pertencentes em sua maioria<br />

ao “setor médio urbano” 50 . Ora, cremos que a posição de Assis Brasil deve ser compreendida<br />

na medida em que ele sabia que um projeto mais radical evidentemente<br />

seria vetado na Assembléia, assim como outras propostas dele já haviam sido. Além<br />

disso, ele não podia desagradar seu eleitorado da região da campanha, onde a ausência<br />

de mão-de-obra já vinha sendo sentida há anos 51 . Sua defesa a favor da abolição<br />

se deu, ainda que de forma mais gradual, onerando a posse de escravos, ou seja, da<br />

forma que era possível dentro da Assembléia.<br />

47 Mesmo antes disso, Severino Ribeiro acumulou mandatos para deputado geral no círculo. Durante a época em<br />

que os liberais estiveram no poder (1878-1885), Severino venceu-os por duas vezes, exatamente na região em que<br />

se diz que os liberais eram imbatíveis.<br />

48 Ver, por exemplo, GRIJó, Luiz Alberto. Articuladores do Partido Republicano se apropriam da “Revolução”. Artigo apresentado<br />

como Comunicação no Vi Encontro Estadual de História da ANPUH/RS. Passo Fundo, 2002. dat.<br />

49 Para uma análise mais aprofundada do perfil sócio-econômico dos conservadores no Rio Grande do Sul, ver<br />

VARGAS, Jonas Moreira. Op. Cit., 2010.<br />

50 BAKOS, Margareth. Op. Cit., p. 63-77.<br />

51 FARINATTI, Luis Augusto. Confins Meridionais: Famílias de Elite e Sociedade Agrária na Fronteira Sul<br />

do Brasil (1825-1865). Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: PPG em História Social do IFCS-UFRJ, 2007.<br />

245


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Portanto, os partidos monárquicos não eram partidos classistas e nem se pretendiam<br />

como tal. Todos os setores sócio-econômicos estavam representados nas<br />

três agremiações políticas da província, com possíveis variações que respeitavam<br />

conjunturas específicas e peculiaridades regionais. Existiam importantes lideranças<br />

liberais entre os setores médios urbanos, estancieiros republicanos sem educação<br />

superior e conservadores mandando e desmandando na região da campanha. O<br />

descaso para com a composição social dos membros dos partidos monárquicos é<br />

conseqüência de uma história política somente preocupada com as idéias defendidas<br />

pelos partidos monárquicos, construídas a partir da leitura dos editoriais de<br />

imprensa, dos anais da Assembléia Legislativa e dos programas partidários 52 . Mas<br />

todas estas pesquisas possuem seus méritos e, a partir delas, podemos afirmar que a<br />

principal diferença entre republicanos e monarquistas estava no terreno ideológico e<br />

não no sócio-econômico e geográfico. Em alguns momentos podia haver uma concentração<br />

de votos num partido em uma determinada região, mas estes fenômenos<br />

conjunturais não podem ser essencializados e a busca da sua contrapartida enriquece<br />

ainda mais o panorama político do oitocentos. Novas pesquisas devem ser realizadas<br />

para deixar mais nítidas as aproximações e os afastamentos entre republicanos e<br />

monarquistas, levando em conta suas incoerências e sem mitificar nenhum dos seus<br />

líderes. A partir do que foi exposto aqui, as alianças e conflitos ocorridos entre a Proclamação<br />

da República e a Revolução Federalista, por exemplo, podem ser revistos e<br />

contados sob outro ponto de vista.<br />

52 Como as pesquisas de PICCOLO, Helga. A Política Rio-Grandense no ii império (1868-1882). Porto Alegre:<br />

UFRGS, 1974; CARNEIRO, Newton. Op cit.<br />

246


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249


Poder e PArentesCo nos Confins dA AMériCA<br />

PortuguesA: uMA Análise sobre A rede de CoMPAdrios<br />

do governAdor veigA CAbrAl dA CâMArA<br />

(Porto Alegre, 1774-1798)<br />

Márcio Munhoz Blanco¹<br />

Resumo: Este trabalho estuda a inserção social do governador Sebastião Xavier da Veiga Cabral<br />

da Câmara na capitania do Rio Grande de São Pedro. Para tal, observa os compadrios estabelecidos<br />

na freguesia Nossa Senhora Madre de Deus de Porto Alegre, o que ocorreu entre os anos de 1774 e<br />

1798. O principal corpus documental são os registros de batismo nos quais esse administrador aparece<br />

apadrinhando infantes. Através do método onomástico procurou-se identificar o lócus ocupado<br />

naquela sociedade pelos compadres do governador, a fim de entender quais foram as estratégias que<br />

nortearam a criação daqueles vínculos. Discute-se a importância do parentesco e das relações inerentes<br />

a ele para a formação de redes sociais na Época Moderna.<br />

Palavras-chave: redes sociais – parentesco – compadrio – poder – Antigo Regime<br />

Governar nunca foi tarefa simples. O poder não advém meramente<br />

de uma posição de mando, uma lei ou do esforço de um espírito<br />

elevado; ele precisa ser conquistado, ou ao menos negociado. Poder<br />

é movimento. As relações de poder são uma via de mão dupla, onde para cada ação<br />

existirá uma reação. Mesmo nos tempos do Antigo Regime, quando homens singravam<br />

os oceanos em nome de Sua Majestade Fidelíssima para administrar os povos<br />

do Império Ultramarino português, era necessário legitimar-se perante aquelas populações,<br />

fossem elas autóctones ou reinóis migrantes. Alguns obtiveram êxito, outros<br />

quebraram por não quererem se dobrar. Assim aconteceu ao longo dos séculos,<br />

do Rio de Janeiro à índia, do Maranhão a Sacramento.<br />

Esta pesquisa se dedica a um desses governantes do período colonial: Sebastião<br />

Xavier da Veiga Cabral da Câmara. Este militar fidalgo administrou a capitania<br />

¹ Graduado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: mm.marcioblanco@<br />

hotmail.com. Telefone: (51) 9307-9814.<br />

251


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

do Rio Grande de São Pedro, no extremo-Sul da América lusitana, entre 1780 e 1801.<br />

Foi o governante do século XVIII que permaneceu mais tempo no cargo. Datam de<br />

seu período de gestão o princípio da produção de charque, produto que dinamizou<br />

a economia local, tornando-se o grande elemento de exportação rio-grandense no<br />

século seguinte. Incentivou o cultivo da cochonilha, criação de ovelhas e plantio de<br />

trigo. Foi Sebastião, ainda, o comissário português responsável pela demarcação do<br />

Tratado de Santo Ildefonso, assinado em 1777, mas cujos trabalhos iniciaram-se apenas<br />

alguns anos mais tarde. Esse acordo firmado entre Portugal e Espanha redefinia<br />

os limites meridionais dos dois impérios, devolvendo a Colônia de Sacramento ao<br />

domínio castelhano. Embora seu governo tenha sido um período de paz, Sebastião<br />

dedicou seus últimos dias à retomada das Missões, em 1801, empreitada na qual<br />

faleceu sem poder ver o resultado.<br />

Não há nenhum estudo específico sobre sua trajetória, figurando sempre<br />

como coadjuvante em obras sobre o Rio Grande do Sul colonial. Normalmente são<br />

ressaltados, em poucas páginas, os aspectos político-administrativos de sua gestão<br />

ou seus feitos militares, em obras que se dedicam à formação ou afirmação da identidade<br />

sul-riograndense. Tratam-se de olhares similares², que retratam um homem<br />

que, em certo sentido, esteve à frente do seu tempo.<br />

Neste estudo, entretanto, busca-se um homem de seu tempo, um homem de<br />

Antigo Regime. A partir da proposta de Giovanni Levi, procuro ver um sujeito<br />

histórico dotado de uma racionalidade específica do contexto em que vivia, “porém<br />

não em termos de uma realidade cultural inconsciente destinada a sufocá-lo progressivamente.<br />

Esta racionalidade pode ser mais bem descrita se admitirmos que ela [...]<br />

fosse também empregada na obra de transformação e utilização do mundo social<br />

[...].”³ Observo um indivíduo que, apesar de possuir visibilidade naquela sociedade,<br />

precisou se adaptar e inserir nos modos de ser e viver das pessoas da localidade que<br />

fora governar, o que por vezes esteve de acordo com as práticas as quais era acostumado<br />

e em outras se mostrou conflituosa. Sobre essa inserção, os laços mais segura-<br />

² À exceção de Tiago Luís Gil e Adriano Comissoli, que mostraram esse governador em outro viés, lançando algumas<br />

das bases para minha análise. Nessas duas pesquisas Veiga Cabral da Câmara figura como um indivíduo ciente<br />

da conjuntura em que vivia e que agia conforme as exigências do momento. Teria uma postura política coerente<br />

com a rede administrativa da qual faria parte e tato suficiente para um bom relacionamento com homens poderosos<br />

do Rio Grande de São Pedro. Ver: GIL, Tiago Luís. Infiéis transgressores: os contrabandistas da fronteira (1760-1810).<br />

(Dissertação de mestrado)Universidade Federal do Rio de Janeiro: Rio de Janeiro, 2002; COMISSOLI, Adriano. Os<br />

“homens bons” e a Câmara de Porto Alegre (1767-1808). (Dissertação de mestrado) Universidade Federal Fluminense,<br />

Niterói, 2006.<br />

³ LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização<br />

brasileira, 2001, p. 45.<br />

252


mente observáveis são os estabelecidos através do compadrio, importante mecanismo<br />

de sociabilidade no Antigo Regime, dado a importância que as relações de cunho<br />

familiar possuíam naquele período. Portanto, o Sebastião Xavier da Veiga Cabral da<br />

Câmara que procuro é, parafraseando Jacques Revel, o homem ao “rés-do-chão” 4 .<br />

O texto que o leitor tem em mãos originou-se de uma pesquisa modesta e<br />

baseada em dados fragmentados, visando acender algumas fagulhas para iluminar a<br />

historiografia sobre o Rio Grande colonial, introduzindo um número de variáveis e<br />

destacando algumas ambigüidades, conflitos e contradições existentes na época. Feitas<br />

essas considerações, façamos um esforço de voltar nossas mentes para o passado<br />

a fim de olhar mais detidamente, a partir de agora, alguns fragmentos das ações de<br />

Sebastião no Rio Grande de São Pedro.<br />

O HOMEM QUE VEM D’ALÉM-MAR<br />

Sebastião nasceu no povoado de Santa Maria do Soutello, pertencente à província<br />

de Chaves, ao norte de Portugal. Viveu sob o signo de uma distinta família<br />

daquele Reino, cresceu em meio a alguns homens que se dedicaram ao mando nos<br />

territórios d’El-Rey. Trata-se de uma família cuja trajetória se mistura com a história<br />

da administração do Império Ultramarino português, e revela mecanismos de ascensão,<br />

distinção social e poder.<br />

Essa trajetória familiar começa com Sebastião da Veiga Cabral, o velho. Foi<br />

mestre de campo general e governador de armas de Trás-os-Montes. Descendente<br />

da “nação hebréia” por via paterna, conseguiu o hábito da ordem de Cristo em<br />

1667, graças à dispensa papal. Tornou-se fidalgo da Casa Real e comendador das<br />

Comendas de Beilão, Robeal e Santa Maria de Bragança 5 . Trata-se de uma forma<br />

de reconhecimento que certamente beneficiou os que dele descendiam. Teve dois<br />

filhos, Francisco, filho legítimo, e Sebastião, filho natural, isto é, fruto de uma relação<br />

extraconjugal. O primeiro é o pai de nosso personagem e o segundo, por possuir o<br />

mesmo nome, será chamado aqui como Sebastião, o tio, para fins de melhor entendimento.<br />

Pois é este Sebastião, o tio, o primeiro a levar o nome da família para o Novo<br />

Mundo. Nascido em Bragança, começou a carreira como um simples soldado e foi<br />

4 REVEL, Jacques. A história ao “rés-do-chão”. In: LEVI, Giovanni, op. cit. p. 7- 37.<br />

5 SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra. Política e administração na América portuguesa do século XVIII. São Paulo:<br />

Companhia das letras, 2006, p. 261.<br />

253


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

galgando postos na hierarquia militar devido a seus feitos. Como retribuição aos seus<br />

serviços foi nomeado governador da Colônia de Sacramento, ponto extremo meridional<br />

do Império lusitano. Ocupou o posto entre os anos de 1699 e 1705. Procurou<br />

estratagemas para se manter no cargo, supostamente interessado no gado bovino e<br />

negócios de couro, muito lucrativos na época. Sua gestão foi tida como competente.<br />

Durante o tempo em que esteve no governo batizou diversos índios. Após voltar ao<br />

Reino pleiteou, sem êxito, os cargos de governador de Minas Gerais e São Paulo. Em<br />

1720 encontrava-se novamente na América portuguesa, mais especificamente em<br />

Vila Rica, onde participou do levante conhecido como Revolta de Felipe dos Santos.<br />

Possuía muito interesse nas Minas Gerais, supostamente pela possibilidade de acumulação<br />

de riquezas, assim como alguns governantes daquela capitania obtiveram 6 .<br />

O outro filho de Sebastião, o velho. Sobre ele possuo poucas informações: sei<br />

que exerceu o mesmo cargo de seu pai e foi governador da província de Chaves; teve<br />

cinco filhos varões. Em 1742 7 , veio ao mundo Sebastião, nosso personagem, que<br />

muito possivelmente cresceu vendo o pai exercer seus cargos administrativos, e em<br />

meio às memórias dos feitos do avô e histórias do tio sobre o Novo Mundo. Não é<br />

difícil supor que o pequeno respirava o poder e status que sua família gozava, o que<br />

provavelmente lhe serviu como escola para a maneira de proceder quando chegasse<br />

a sua vez de cruzar o mar.<br />

O certo é que Sebastião tornou-se engenheiro geógrafo e em 1767, com 25<br />

anos de idade, rumou para a América portuguesa. Na ocasião exercia a patente de<br />

tenente-coronel do Regimento de Infantaria de Bragança, estabelecendo-se no Rio<br />

de Janeiro. Em 1774 seguiu para a capitania do Rio Grande de São Pedro 8 para, sob<br />

o comando do general João Henrique Böhm, combater as tropas castelhanas que há<br />

uma década ocupavam a metade sul daquela capitania 9 .<br />

254<br />

COISAS SAGRADAS E PROFANAS: FORMAS DE<br />

SOCIABILIDADE (PAUSA)<br />

Façamos uma pequena pausa em nossa história, pois para entender a inserção<br />

social de Veiga Cabral da Câmara no Rio Grande de São Pedro é mister entender<br />

6 SOUZA, op. cit. p. 253- 283.<br />

7 BARRETO, Abeillard. Bibliografia sul-riograndense: a contribuição portuguesa e estrangeira para o conhecimento e a integração do<br />

Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1973-1976, p. 254-255.<br />

8 BENTO, Cláudio Moreira. A guerra de restauração. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército editora, 1996, p. 261- 262.<br />

9 Em 1763, tropas vindas de Buenos Aires comandadas por Dom Pedro de Cevallos invadiram a Vila de Rio Grande<br />

afugentando a população para a margem norte do rio Jacuí e tomando posse da metade sul da capitania. Durante<br />

treze anos a região foi palco de batalhas entre portugueses e espanhóis.


o cotidiano das relações sociais durante o Antigo Regime. As sociabilidades desse<br />

período calcavam-se na reciprocidade entre as partes, onde para cada benefício material<br />

ou simbólico feito a alguém haveria a obrigação de retribuir. Essa forma de<br />

relacionamento, que perpassava todos os segmentos da sociedade chegando até o<br />

rei, encontrava na família um suporte. Por família trato aqui não apenas o grupo<br />

consangüíneo, de filiação e que compartilha o mesmo sobrenome, mas também toda<br />

a parentela, isto é, o conjunto de laços de parentesco fundados na consangüinidade,<br />

sobrenome, matrimônio ou laço espiritual (tal como o compadrio) 10 .<br />

A família atuava como base para as demais formas de sociabilidade, pois<br />

constituía-se no primeiro lócus onde um indivíduo encontra o apoio e laços de que<br />

necessitava. Era no seio da família que se realizavam os primeiros fenômenos de<br />

mobilidade em uma sociedade de ordens. As estratégias pessoais se enquadravam na<br />

convicção de que as decisões tomadas reverberariam nos demais membros do grupo.<br />

Essa constatação tente a reforçar a solidariedade do coletivo, sem, no entanto,<br />

ignorar toda gama de conflitos e tensões passíveis de ocorrer entre seus membros 11 .<br />

O conjunto de relações de um individuo constitui o que se denomina redes sociais.<br />

Michel Bertrand define rede social como uma “estructura construída por la<br />

existencia de lazos o de relaciones entre diversos individuos [...] sería también un<br />

sistema de intercambios en el seno del cual los vínculos o las relaciones permiten<br />

la realización de la circulación de bienes e de servicios.” Numa rede, nem todas as<br />

relações entre os atores sociais se manifestam da mesma maneira, existem relações<br />

efetivas, que se traduzem em trocas constituindo um vínculo de fato; e relações potenciais,<br />

que podem vir a ser mobilizadas - dependendo das circunstâncias - dando<br />

lugar a um intercâmbio¹².<br />

Os vínculos entre os membros de uma rede se enquadram na economia do dom 13 .<br />

No entanto, a tríade de obrigações (dar, receber e restituir) não significa igualdade<br />

entre as partes, isso dependeria da posição social de cada indivíduo. Havia a tendência<br />

de relações simétricas entre sujeitos pertencentes à mesma camada social. Já entre<br />

indivíduos de camadas distintas a tendência era haver uma relação de desigualdade,<br />

onde um pólo deve mais; a esse tipo de laço chamamos de clientelar. Insisto que reciprocidade<br />

não pode ser tomada como igualdade. Nesse caso, o dom estabelece um<br />

elo que para o pólo dominante (credor), se traduz na disponibilidade de quem dá um<br />

10 BERTRAND, Michel. De la família a la red de sociabilidad. In: Revista Mexicana de Sociología. Vol. 61, n°. 2., Abr.<br />

- Jun., 1999, p.117- 118.<br />

11 Idem, p. 134.<br />

¹² Idem, p. 119- 120.<br />

¹³ Ver: XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, António Manuel. As redes clientelares. In: MATTOSO, José (dir).<br />

História de Portugal: o Antigo Regime. Lisboa: editorial Estampa, s/d. p. 381-393<br />

255


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

benefício e não exige uma contrapartida expressa e/ou imediata, e, do lado do pólo<br />

do dominado (devedor), está associada às idéias de “respeito”, “serviço”, “atenção”,<br />

significando a disponibilidade para prestar serviços futuros e incertos 14 .<br />

Estes e outros hábitos e formas de sociabilidade se estenderam aos quatro<br />

cantos do Império ultramarino português. A sociedade formada no Rio Grande de<br />

São Pedro ao longo do século XVIII viveu sob os costumes e valores da desse mundo,<br />

tanto nos planos material quanto simbólico, mundano e sagrado. Se no Reino a<br />

religião oficial era o catolicismo, a sombra da cruz se projetou para as colônias no<br />

ultramar. Assim, são interessantes para a compreensão de meu objeto de estudo<br />

algumas considerações acerca da doutrina católica e significados do batismo.<br />

De acordo com o dogma católico, quando Adão provou o fruto proibido<br />

perpassou seu pecado a todos os seus descendentes. Dessa maneira, o ser humano<br />

nasceria impuro, e todos os aspectos desse nascimento carnal estariam vinculados ao<br />

pecado, imperfeição, vergonha e introspecção. A concepção de uma criança restringe-se<br />

à cópula do casal, realizada em local privado e longe de olhares. O parto é um<br />

momento de dor, onde a mãe perde muito sangue e só há o testemunho do médico<br />

ou parteira. O pós-parto é um período delicado, pois ainda há o risco de morte tanto<br />

da mãe quanto do recém-nascido. Devido a essas máculas, seria necessário um renascimento,<br />

não mais no plano material, mas espiritual. Essa é a função do batismo,<br />

o primeiro dos sete sacramentos da Igreja Católica. A criança batizada renasceria<br />

no mundo espiritual, purificando-se do pecado original através da imersão em água<br />

benta e demais atos do ritual. Se o nascimento carnal era feito quase às escondidas<br />

e marcado por dor e lágrimas, o nascimento espiritual era um momento de alegria<br />

realizado numa cerimônia pública. O ato do batismo é a representação sacramental<br />

tanto da paixão de Cristo (pois haveria a morte no plano carnal e renascimento espiritual)<br />

quanto da sua natureza ao mesmo tempo humana e divina 15 .<br />

Para o renascer espiritual seria necessário uma outra filiação, e essa é a função<br />

dos padrinhos. No rito de batismo são eles que respondem as perguntas em nome<br />

do infante (ainda incapaz para tal) dando-lhe fiança aos olhos de Deus. Se padrinhos<br />

tornavam-se pais espirituais do rebento, por conseqüência tornavam-se irmãos espirituais<br />

dos pais biológicos. Padrinhos estabelecem laços imateriais, portanto, tanto<br />

com seus afilhados quanto com seus compadres 16 .<br />

14 XAVIER, Ângela Barreto, HESPANHA, António Manuel. op. cit. p. 382.<br />

15 HAMEISTER, Martha Daisson. Para dar calor á nova povoação: estudo sobre estratégias sociais e familiares a partir de registros<br />

batismais da vila do Rio Grande (1738-1763). (Tese de doutorado). Universidade Federal do Rio de Janeiro: Rio de<br />

Janeiro, 2006, p.185-214.<br />

16 Idem.<br />

256


Mas o batismo e os vínculos intrínsecos a ele, de acordo com Stephen Gudeman,<br />

possuem duas faces: uma voltada para a esfera do sagrado e outra voltada para<br />

a esfera das relações sociais 17 . “O pecado original purgado das almas dos batizandos<br />

os insere, ao mesmo tempo, no rebanho divino e no mundo social. Os pais dão à<br />

criança o ser e os padrinhos dão o ser social no seio da cristandade.” 18 Percebe-se,<br />

então, o quão importante era para aquela sociedade formada sob o signo da Igreja<br />

Católica o ato do batismo e os vínculos estabelecidos por ele. Ficaria a cargo dos padrinhos<br />

cuidar da educação, acompanhamento religioso, conselhos, encaminhamento<br />

para profissão e matrimônio de seus afilhados, que, em contrapartida, deveriam<br />

apoio, respeito e obediência. O vínculo estabelecido entre os compadres (chamado<br />

de compadrio) deveria ser de solidariedade mútua.<br />

Mas se aos olhos de Deus havia igualdade entre as partes, aos olhos dos homens<br />

os vínculos originados do batismo se revestiam da mesma hierarquia e diferenças<br />

existentes naquela sociedade. Privilegio em minha análise o caráter mundano<br />

do compadrio, por considerá-lo o mais relevante para o entendimento das questões<br />

propostas. Parto do pressuposto que ao escolher os padrinhos para seus filhos, os<br />

indivíduos o faziam de acordo com seus interesses de aproximação social, o mesmo<br />

valendo para o aceite do compadrio.<br />

O elo espiritual criado com o batismo projeta-se para a o plano material,<br />

originando a cadeia de préstimos e retribuições revestidas das mesmas hierarquias<br />

existentes naquela sociedade. Essa relação de afinidade, chamada de parentesco fictício,<br />

segundo Giovanni Levi, tem tanto a função de reforçar os vínculos já existentes<br />

entre as partes quanto de criar outros novos. Estes vínculos podem se manifestar<br />

de forma horizontal (ou simétrica) se estabelecido entre amigos e parentes do mesmo<br />

status, ou vertical (ou assimétrico) se evolvendo pessoas de categorias distintas.<br />

Membros das elites tenderiam a buscar o compadrio entre seus pares, servindo<br />

como estratégia de proteção e demarcação de seu prestígio, bem como a exclusão de<br />

indivíduos de categoria considerada inferior. Essas alianças poderiam mobilizar créditos<br />

e contatos. Por seu turno, pessoas de estratos sociais mais baixos tenderiam a<br />

procurar estabelecer compadrios verticais, isto é, com pessoas de uma categoria mais<br />

alta, formando um vínculo patrão-cliente. Esse tipo de ligação, apesar dos deveres<br />

mencionados acima, pode ser encarado como uma estratégia de ascensão social por<br />

parte do pólo inferior 19 . Nota-se que, embora os compadres fossem iguais aos olhos<br />

17 GUDEMAN, Stephen. Spiritual relationship and selecting godparent. In: Man, new series. Vol. 10 (2), Jun. 1975.<br />

Royal Anthropological Institute of Great Britain and Ireland, 1975,p 222.<br />

18 HAMEISTER, Martha daisson, op. cit., p. 208.<br />

19 LEVI, Giovanni. Family and kin- a few thoughts. In: Journal of family history. Vol. 15, n° 4, 1990. p. 571- 572<br />

257


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

de Deus, estavam à mercê do mesmo tipo de diferenças e desigualdades criadas pelos<br />

homens.<br />

Feitas essas digressões, voltemos agora à história de Sebastião ao sul dos trópicos.<br />

258<br />

ENTRE A CORTE E A ALDEIA<br />

Após o traslado para o Rio Grande, escrevia o cirurgião-mor do 1° Regimento<br />

de Infantaria do Rio de Janeiro:<br />

Amenizava nosso afastamento do Rio, virmos na companhia do Sr,<br />

Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara, comandante das tropas<br />

do Sul, pelo seu gênio amável, pelas suas virtudes admirado e<br />

pelo seu ilustre nome respeitado20 .<br />

Nessa correspondência se evidencia o prestígio que Sebastião gozava entre<br />

seus pares, características essas que parecem ter sido reconhecidas por outras pessoas.<br />

Logo após a sua chegada às paragens sulinas, o casal Tomás José da Costa e<br />

Souza e Ana Joaquina da Costa e Souza, convidou-o para apadrinhar seu pequeno<br />

rebento. Sebastião aceitou o convite para conduzir o menino (que recebeu o nome<br />

do padrinho) à pia batismal²¹. Não possuo registros de quem seja esse referido casal,<br />

mas com certeza queriam que seu filho fosse bem representado aos olhos de Deus<br />

e da sociedade, pois para madrinha convidaram dona Clara Maria de Oliveira, viúva<br />

do ilustre Francisco Pinto Bandeira e mãe do prestigiado Rafael.<br />

Essa simples ação denota que Veiga Cabral da Câmara, embora não tenha<br />

contraído matrimônio nem deixado filhos, tentou estabelecer imediatamente laços<br />

com a população local, procurando formar sua rede de relações. Afinal de contas,<br />

deveria ter consciência de que apenas o fato de ser fidalgo não era garantia suficiente<br />

para boas sociabilidades na América meridional. Assim como aquelas pessoas da<br />

elite precisavam constantemente reafirmar seus espaços através de ações, o mesmo<br />

servia para ele. Era preciso provar a fidalguia, conquistar um lugar. Era preciso, de alguma<br />

maneira, tornar-se parte daquela elite. E foi isso que, ao que parece, Sebastião<br />

20 BENTO, op. cit., p. 261.Grifo meu.<br />

21 1° livro de batismos de Porto Alegre, fl. 9, 07.08.1774. In: NEUMANN, Eduardo; KÜHN, Fábio (coord.). Projeto<br />

resgate de fontes paroquiais. Porto Alegre- Viamão (século XVIII).


começou a construir desde seus primeiros momentos no Rio Grande. Certamente<br />

era importante para um forasteiro, mesmo que detentor de boa fama e títulos sociais,<br />

ser reconhecido como alguém que fez par à pia batismal com a referida dona Clara<br />

Maria.<br />

Esse patrimônio imaterial, cuja construção iniciou-se logo após a chegada<br />

ao Continente do Rio Grande, se efetivou no campo de batalha. Segundo Bento,<br />

Sebastião atuou com bravura na reconquista dos territórios perdidos aos espanhóis,<br />

tendo tomado parte ativa no assalto à Vila de Rio Grande, batalha que selou a vitória<br />

portuguesa em 1776. Devido a esse feito foi promovido a brigadeiro²². Certamente<br />

um ato dessa importância era razão de prestígio frente aos companheiros de caserna.<br />

Possivelmente essa boa fama se estendia à população em geral, devido aos ares de<br />

guerra que aquela gente se acostumara a respirar. Vemos então, que Sebastião desde<br />

cedo procurou conquistar seu lugar naquela sociedade, valendo-se de sua fidalguia e<br />

ações militares como catalisadores para bons relacionamentos.<br />

Quatro anos mais tarde Veiga Cabral da Câmara foi nomeado governador da<br />

capitania do Rio Grande de São Pedro²³. O número de batismos realizados por ele<br />

esteve intimamente ligado à sua práxis administrativa, que pode ser dividida em duas<br />

fases: antes e depois da demarcação do Tratado de Santo Ildefonso, que embora<br />

tenha sido assinado em 1777 foi efetivado entre 1784 e 1792.<br />

Quadro 1<br />

Compadrios e fases da administração de Veiga Cabral da Câmara, 1774-1801<br />

Fontes: 1° e 2° livros de batismos de Porto Alegre. In: Projeto resgate de fontes paroquiais (2009)<br />

Após ter sido nomeado governador em 1780 o número de batismos aumentou<br />

significativamente, como evidencia o Quadro 1. Sebastião ficou oito anos afas-<br />

22 BENTO, Cláudio Moreira. Canguçu, reencontro com a história. Um exemplo de reconstrução da memória comunitária. Porto<br />

Alegre: Instituto estadual do livro, 1983, p. 40.<br />

²³ Projeto Resgate- Arquivo Histórico Ultramarino- Capitania do Rio Grande do Sul. Cx. 2, doc. 206.<br />

259


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

tado da governança, situação em que foi substituído pelos interinos Rafael Pinto<br />

Bandeira e Joaquim José Ribeiro da Costa. Se levarmos em conta esse afastamento,<br />

podemos ter uma boa idéia acerca da relação entre compadrio e exercício do poder<br />

por parte do governador fidalgo. Analisando os registros batismais de Porto Alegre,<br />

detectei que Sebastião batizou 21 crianças e um adulto, tornando-se compadre de 20<br />

casais 24 . Trata-se de um número bastante expressivo se comparado ao seu antecessor<br />

José Marcelino de Figueiredo –que batizou seis crianças- 25 e um pouco inferior aos<br />

28 batismos efetuados pelo Provedor da Fazenda Real Inácio Osório Vieira 26 . Segundo<br />

Kühn, quando governou o Rio Grande José Marcelino procurou estabelecer<br />

compadrio com oficiais militares e burocratas, em detrimento de membros da elite<br />

mercantil e agrária 27 . Veiga Cabral da Câmara, no entanto, adotou outras estratégias.<br />

Observando o Quadro 2, evidencia-se que Sebastião Xavier da Veiga Cabral<br />

da Câmara, durante a primeira fase de seu governo, optou em estabelecer compadrio<br />

com companheiros de armas. Desses compadres nenhum ocupou cargos na administração<br />

pública ou ofícios no Senado da Câmara. Embora todos possuíssem patente<br />

inferior a de Sebastião, tomo os laços estabelecidos como de cunho horizontal,<br />

confirmando a busca de reconhecimento e prestígio junto a militares. Alguns nomes<br />

de visibilidade naquela sociedade figuraram junto ao de Sebastião nas cerimônias<br />

de batismo, mostrando como esse governante procurou, num primeiro momento,<br />

cercar-se de pessoas com status. Trata-se, portanto, do estabelecimento de vínculos<br />

entre seus pares.<br />

24 O governador batizou Sebastião e Inácio, ambos filhos do casal Francisco Rodrigues da Silva e Angélica de Jesus.<br />

2° livro de batismos de Porto Alegre, fl. 8v, 21.12.1792; fl. 84v, 21.04.1797. In: NEUMANN, Eduardo; KÜHN,<br />

Fábio (coord.). Projeto resgate de fontes paroquiais. Porto Alegre- Viamão (século XVIII).<br />

25 KÜHN, Fábio. Os homens do governador: relações de parentesco e redes sociais no Continente do Rio Grande<br />

((1769- 1780). In: GUAZZELLI, César Augusto Barcellos; FLORES, Mariana Flores da Cunha Thompson; AVI-<br />

LA, Arthur Lima de. Fronteiras americanas: teoria e práticas de pesquisa. Porto Alegre: Suliani letra e vida, 2009, p.34- 48.<br />

26 NEUMANN, Eduardo; KÜHN, Fábio (coord.). Projeto resgate de fontes paroquiais. Porto Alegre- Viamão (século<br />

XVIII).<br />

27 KÜHN, Fábio. op. cit. p. 45.<br />

260


Quadro 2<br />

Relações de compadrio do governador Veiga Cabral da Câmara, 1780- 1784<br />

Fontes: 1° livro de batismos de Porto Alegre. In: Projeto resgate de fontes paroquiais (2009)<br />

A terceira criança que Veiga Cabral da Câmara batizou foi a pequena Clara,<br />

filha de Felisberto Pinto Bandeira e sua primeira esposa, dona Ana Clara do Espírito<br />

Santo 29 . Se a ligação com essa poderosa família da capitania já havia dado seus<br />

primeiros passos quando Sebastião e dona Clara Maria de Oliveira batizaram o filho<br />

do casal Costa e Souza, agora ela se tornava mais sólida. Novamente dona Clara<br />

Maria apadrinhou uma criança ao lado do governador fidalgo, no entanto quem<br />

a representou na cerimônia foi ninguém menos que seu primogênito Rafael. Esse<br />

vínculo estabelecido com Felisberto pode ser mais significativo do que parece. Os<br />

Pinto Bandeira não eram apenas uma linhagem descendente dos primeiros conquistadores<br />

do Rio Grande e uma das famílias mais ricas e prestigiadas daquele lugar, mas<br />

também o único grupo responsável pelo contrabando de couros e gados naquela<br />

fronteira. Felisberto era um dos líderes “menores” do bando liderado por seu irmão<br />

Rafael 30 , e utilizava sua chefia militar como um facilitador para os negócios ilícitos<br />

que conduzia.<br />

Penso o compadrio entre Felisberto Pinto Bandeira e Sebastião Xavier da Veiga<br />

Cabral da Câmara como um indício que corrobora a afirmação de Gil de que Ra-<br />

28 GIL, Tiago Luís. Infiéis transgressores: os contrabandistas da fronteira (1760-1810). (Dissertação de mestrado)Universidade<br />

Federal do Rio de Janeiro: Rio de Janeiro, p. 140.<br />

29 1° livro de batismos de Porto Alegre, fl. 57v, 16.07.1780. In: NEUMANN, Eduardo; KÜHN, Fábio (coord.).<br />

Projeto resgate de fontes paroquiais. Porto Alegre- Viamão (século XVIII).<br />

30 GIL, Tiago Luis, op. Cit., p. 152.<br />

261


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

fael Pinto Bandeira e os seus teriam nesse governante um aliado. Assim, a tentativa<br />

de Sebastião em embargar uma investigação contra os negócios escusos de Rafael no<br />

ano de 1784, torna-se mais compreensível. O vínculo de compadrio entre Felisberto<br />

e o governador selou a aliança entre uma das famílias mais poderosas do Rio Grande<br />

e um dos governantes mais prestigiados do período colonial. Logo, trata-se de um<br />

laço de cunho horizontal, onde as nobrezas do Rio Grande e de Portugal se saudaram.<br />

Isso não significa, necessariamente, que Veiga Cabral da Câmara tivesse alguma<br />

participação efetiva no contrabando, mas certamente a amizade com a referida família<br />

foi um dos principais passos para fazer-se elite de fato nas paragens meridionais.<br />

Outro vínculo importante foi com Patrício José Correia da Câmara e sua<br />

esposa dona Joaquina Leocádia. É bem possível que Patrício e Sebastião tenham se<br />

conhecido nas batalhas de reconquista dos territórios rio-grandenses que estavam<br />

sob o jugo dos castelhanos até 1776. Naquela ocasião Patrício ainda ocupava a patente<br />

de sargento-mor e não estava bem articulado nos arranjos locais de poder. 31 Foi<br />

esse mesmo Patrício que representou, através de procuração em outubro de 1780,<br />

o governador na cerimônia de batismo do filho do tenente de Dragões Francisco<br />

Barreto Pereira Pinto e sua mulher Eulália Joaquina de Oliveira. 32 Trata-se de uma<br />

demonstração do bom relacionamento entre Correia da Câmara e o governador. Em<br />

março do ano seguinte, a recém-nascida Rita (primeira filha de Joaquina e Patrício)<br />

receberia os santos óleos de Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara. Duas semanas<br />

após essa cerimônia, Patrício Câmara ingressava na Irmandade do Santíssimo<br />

Sacramento, ordem religiosa local da qual fazia parte seu mais recente compadre 33 .<br />

Não tenho como precisar se a entrada de Patrício na confraria e o compadrio com<br />

o governador foram mera coincidência, mas é bem possível que o tenente-coronel<br />

tenha sido indicado por seu compadre fidalgo. Se Patrício era à época das escaramuças<br />

contra os espanhóis alguém ainda sem arranjos locais de poder, em poucos anos<br />

essa situação se modificou: galgou diversos postos na hierarquia militar, passando de<br />

sargento-mor a tenente-coronel, era compadre do ilustre governador da capitania e<br />

ingressara em uma ordem religiosa, denotando seu reconhecimento como pertencente<br />

à elite local.<br />

31 HAMEISTER, Martha Daisson; GIL, Tiago Luís. Fazer-se elite no extremo-Sul do Estado do Brasil: uma obra em<br />

três movimentos. Continente do Rio Grande de São Pedro (século XVIII). In: FRAGOSO, João; ALMEIDA, Carla<br />

Maria Carvalho de; SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Conquistadores e negociantes: histórias de elites no Antigo Regime nos<br />

trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2007, p. 292.<br />

32 1° livro de batismos de Porto Alegre, fl. 60, 14.10.1780. In: NEUMANN, Eduardo; KÜHN, Fábio (coord.). Projeto<br />

resgate de fontes paroquiais. Porto Alegre- Viamão (século XVIII).<br />

³³ AHCMPA. Livro de entrada de irmãos da Irmandade do Santíssimo Sacramento de Porto Alegre, 1774- 1798,<br />

fl. 1- 3v, 10v.<br />

262


Ainda em 1781, Sebastião batizou o filho do tenente João Carneiro da Fontoura<br />

e sua esposa Josefa Bernardina 34 . Na cerimônia a madrinha não pode comparecer<br />

e foi representada pelo Provedor da Fazenda Inácio Osório Vieira. Esta era<br />

a primeira vez que Osório e Veiga Cabral da Câmara estariam lado a lado na pia<br />

batismal. Em 1792 ambos apadrinhariam (de fato, não apenas como representante<br />

de outra pessoa) o filho de Francisco Rodrigues da Silva e Teresa Angélica de Jesus 35 ,<br />

que recebera o nome do governador. Cinco anos mais tarde Sebastião batizaria outro<br />

filho desse mesmo casal, mas desta vez como único padrinho 36 .<br />

Durante o período em que Veiga Cabral da Câmara esteve afastado do governo<br />

devido às demarcações do Tratado de Santo Ildefonso, batizou apenas duas<br />

crianças. Uma delas é o acima mencionado filho do casal Francisco e Teresa Angélica;<br />

a outra é a infanta Maria, filha de Antero José Ferreira de Brito e Bernardina<br />

Azevedo Lima 37 . Esse segundo casal merece nossa atenção.<br />

Antero nasceu no Rio de Janeiro e estudou em Coimbra, formando-se em<br />

Leis. Com muito esforço, conseguiu o Hábito da Ordem de Cristo em 1768. Foi<br />

secretário no gabinete do Marquês de Pombal, mas devido a desentendimentos com<br />

este passou sete anos no cárcere, recuperando a liberdade após a ascensão de dona<br />

Maria I. Em seguida rumou para o Rio Grande, assumindo as propriedades que herdara<br />

de um tio. Ao sul dos trópicos era conhecido como “doutor Antero”, por ser<br />

um dos poucos homens letrados naqueles tempos onde a maioria da população era<br />

analfabeta. Casara com Bernardina, filha do capitão Domingos da Lima Veiga, juiz<br />

de órfãos e escrivão da Fazenda Real, homem de vistosa reputação 38 . Era, portanto,<br />

um casal de notáveis este com quem Veiga Cabral da Câmara estabeleceu compadrio.<br />

Após retornar às funções de governador, no entanto, o governador adotou critérios<br />

diferentes para a escolha de seus compadres. Atentemos para o quadro a seguir.<br />

34 1° livro de batismos de Porto Alegre, fl. 72v, 24.11.1781. In: NEUMANN, Eduardo; KÜHN, Fábio (coord.).<br />

Projeto resgate de fontes paroquiais. Porto Alegre- Viamão (século XVIII).<br />

35 2° livro de batismos de Porto Alegre, fl. 8v, 21.12.1792. In: NEUMANN, Eduardo; KÜHN, Fábio (coord.). Projeto<br />

resgate de fontes paroquiais. Porto Alegre- Viamão (século XVIII).<br />

36 2° livro de batismos de Porto Alegre, fl. 111v, 12.05.1785. In: NEUMANN, Eduardo; KÜHN, Fábio (coord.).<br />

Projeto resgate de fontes paroquiais. Porto Alegre- Viamão (século XVIII).<br />

37 1° livro de batismos de Porto Alegre, fl. 72v, 24.11.1781. In: NEUMANN, Eduardo; KÜHN, Fábio (coord.).<br />

Projeto resgate de fontes paroquiais. Porto Alegre- Viamão (século XVIII).<br />

38 KÜHN, Fábio. Gente da fronteira : família, sociedade e poder no sul da América Portuguesa - século XVIII. (Tese de doutorado).<br />

Universidade Federal Fluminense: Niterói, 2006, p. 367- 370.<br />

263


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Quadro 3<br />

Relações de compadrio do governador Veiga Cabral da Câmara, 1793- 1798<br />

264<br />

Fontes: 1° e 2° livros de batismos de Porto Alegre. In: Projeto resgate de fontes paroquiais (2009);<br />

COMISSOLI (2006).<br />

Dos doze 39 indivíduos com quem Veiga Cabral da Câmara estabeleceu compadrio<br />

na segunda fase de seu governo não sei a ocupação de nove. Para tal seria ne-<br />

39 No Quadro 2 são indicados 13 batismos, pois levamos em consideração o caso de Tomás, homem inglês de 30<br />

anos para quem não consta filiação ou demais informações sobre sua procedência. Devido à carência de dados<br />

exclui esse indivíduo da análise, embora, pelas informações que constam no registro batismal trate-se de um sujeito<br />

sem reconhecimento social naquela localidade, indicando mais uma relação clientelar.


cessário consultar registros matrimoniais, testamentos e inventários post-mortem para<br />

verificar suas atividades, o que extrapola os limites deste artigo. No entanto, desses<br />

nove com ocupação desconhecida, sei que três40 integraram a Câmara Municipal,<br />

todos em mais de uma ocasião, o que significa que eram homens de cabedal e reconhecimento<br />

social, portanto, membros da elite sócio-econômica local. Daqueles que<br />

tenho conhecimento da atividade à qual se dedicavam, um era capitão de Dragões,<br />

outro era comerciante e o terceiro dividia seu tempo entre as atividade militares e a<br />

mercancia.<br />

Este terceiro é André Álvares Pereira Viana, um dos únicos oito comerciantes<br />

do Continente do Rio Grande a ser agraciado com o Hábito da Ordem de Cristo.<br />

Sabe-se que nasceu em Portugal e ainda rapaz transferiu-se para a cidade do Rio de<br />

Janeiro, residindo na casa do comerciante João Gomes da Costa, com quem aprendeu<br />

as artes do comércio. Quando seu tutor faleceu, André veio a casar-se com a<br />

viúva. Era reconhecido como um sujeito de grandes créditos e avultado cabedal. 41<br />

Observemos outro exemplo. Sobre o negociante Antônio Monteiro de Barros<br />

não tenho como precisar o volume de seus negócios e o valor de seu patrimônio.<br />

Todavia, o fato de ter composto a Câmara em quatro ocasiões, prova que era um<br />

homem de posses. Reinol nascido na cidade do Porto42 e casado com Ana Maurícia,<br />

natural de Viamão, é provável que, assim como André Álvares Pereira Viana, tenha<br />

realizado o trajeto Portugal- Rio de Janeiro- Rio Grande. Segundo Osório, esta rota<br />

foi a mais usual, pois diversos jovens seguiram a trilha das gerações anteriores, saindo<br />

sobretudo de localidades ao norte de Portugal, ainda em tenra idade, para a casa<br />

de parentes, padrinhos ou conhecidos sediados no Rio de Janeiro para aprender as<br />

lidas do trato mercantil. O início mais comum da carreira era através da função de<br />

caixeiro na expectativa de uma futura ascensão. Frequentemente esses negociantes<br />

migravam, ou enviavam seus representantes para diversas praças mercantis, sendo<br />

que os bem sucedidos normalmente retornavam ao Rio de Janeiro. Os negociantes<br />

de menor cabedal e com maior espírito de aventura tendiam a se fixar pelas paisagens<br />

sulinas 43<br />

40 Na listagem de oficiais da Câmara elaborada por Comissoli consta um tal Francisco Rodrigues de Almeida e Silva,<br />

que talvez seja o já mencionado Francisco Rodrigues da Silva, por duas vezes compadre do governador. Na dúvida,<br />

consideramos prudente tratar como camaristas apenas aqueles em que há certeza da participação em tal instituição.<br />

Ver: COMISSOLI, Adriano. Os “homens bons” e a Câmara de Porto Alegre (1767-1808). (Dissertação de mestrado) Universidade<br />

Federal Fluminense, Niterói, 2006, anexo II.<br />

41 OSóRIO, Helen. O império português no sul da América: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: Editora da<br />

UFRGS, 2007, p. 288.<br />

42 2° livro de batismos de Porto Alegre, fl. 68v, 09.06.1796. In: NEUMANN, Eduardo; KÜHN, Fábio (coord.).<br />

Projeto resgate de fontes paroquiais. Porto Alegre- Viamão (século XVIII).<br />

43 OSóRIO, Helen. op. cit., p. 277- 299.<br />

265


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Levando em consideração esses homens que participaram da governança local<br />

ou que conheço as atividades, é possível perceber como Veiga Cabral da Câmara<br />

modificou suas estratégias de escolha de compadres. Se num primeiro momento a<br />

escolha recaia sobre militares, num segundo momento os homens bons e indivíduos<br />

de reconhecimento social parecem ter caído nas graças do governador. É possível<br />

que essa tenha sido uma tentativa de Sebastião em se espraiar por um lócus ainda<br />

não “conquistado” por ele: a Câmara Municipal. A capitania do Rio Grande de<br />

São Pedro contava com apenas uma Câmara, situada em Porto Alegre. Os laços do<br />

governador com integrantes dessa instituição podem ter sido uma tentativa de harmonização<br />

política, procurando evitar conflitos entre poderes administrativos, tais<br />

como os que ocorreram entre os camaristas e o governador José Marcelino44 .<br />

Sobre os outros seis compadres que não compuseram a Câmara local em nenhuma<br />

ocasião, é difícil precisar suas atividades e esboçar uma trajetória sem consultar<br />

inventários e testamentos. Poderiam ser pessoas que se dedicassem ao comércio,<br />

à criação de animais ou agricultura. Se a participação na Câmara é um indicativo de<br />

riqueza e prestígio, o fato de não compor essa instituição não é, necessariamente,<br />

sinônimo de qualquer tipo de marginalização, pois, poderia ser uma escolha desses<br />

homens não atuar na governança local. Mesmo sem consultar os mencionados inventários,<br />

fiz um levantamento dessa documentação visando a continuidade dessa<br />

pesquisa, e dos seis sujeitos em questão, localizei o inventário apenas de um, Vitorino<br />

Pereira Coelho. A inexistência dos demais inventários pode indicar a pobreza<br />

daqueles homens que nada, ou muito pouco, tinham a legar para seus herdeiros.<br />

Também é possível que estes indivíduos tenham inventariado seus bens em outras<br />

regiões da Colônia, caso se tratassem de migrantes.<br />

Vê-se aqui, mais uma mudança nas estratégias do compadre governador: a<br />

aliança com as camadas baixas da sociedade, denotando uma relação de clientelismo.<br />

É difícil saber exatamente qual a contrapartida que estes homens poderiam dar ao<br />

governador, entretanto<br />

o acto de “dar” podia corresponder a um importante investimento de<br />

poder, de consolidação de certas posições sociais, ou a uma estratégia<br />

de diferenciação social. O “dar” com liberalidade, com caridade e com<br />

magnificência parece, por outro lado, essencial para o próprio impacte<br />

[sic] político do acto45 44 Para informações sobre a Câmara Municipal e atritos entre seus integrantes e o governador José Marcelino de<br />

Figueiredo, ver: COMISSOLI, Adriano, op. cit.<br />

45 XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, António Manuel. op. cit. p. 388.<br />

266


Apadrinhar filhos de pessoas de pouca visibilidade naquele tipo de sociedade<br />

era um ato de nobreza, fundamental para um fidalgo que tem que provar seu valor<br />

ao sul dos trópicos. Ato essencial para quem se torna elite. Além de aumentar seu<br />

prestígio, no jogo de relações sociais o governador conquistava alguns curingas, indivíduos<br />

que lhe prestariam serviços quando necessário. Portanto, esses indivíduos<br />

de baixos estratos sociais parecem orbitar a periferia da rede de relacionamentos do<br />

governador, constituindo-se não como relações efetivas de fato, mas como relações<br />

potenciais.<br />

Se, em tese, o vínculo entre compadres deveria ser de solidariedade mútua,<br />

isso não significa que na prática assim o fosse. Apesar de eternos e igualitários no<br />

mundo espiritual, os laços de compadrio eram traspassado por todas as hierarquias<br />

existentes no mundo dos homens. Reitero que reciprocidade não significa igualdade.<br />

E mesmo as relações horizontais poderiam se desmanchar em meio a raios e tempestades.<br />

QUEM SE ALIANçA AOS OLHOS DE<br />

DEUS E DOS HOMENS<br />

Devido ao caráter estratégico dos vínculos entre os compadres criados ou reforçados<br />

através do batismo, os padrinhos escolhiam bem quais crianças receberiam<br />

a nova filiação aos olhos de Deus e da sociedade a qual faziam parte. Nos tempos<br />

do Antigo Regime, os valores de cor e prestígio se misturavam. Indígenas e negros<br />

(bem como sua descendência) eram considerados como categoria inferior, vivendo,<br />

via de regra, à margem do mundo dos brancos.<br />

Olhemos para a recém-nascida Sebastiana, que recebeu os santos óleos do<br />

governador Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara em julho de 1794. A pequena<br />

era filha de Inácio José Filgueira e Rosa Ferreira, ambos pardos livres. Sobre<br />

os avós nada é informado, o que serve como indício de que se tratavam de pessoas<br />

de baixa importância para aquela sociedade. Segundo Faria, os pardos tiveram maior<br />

possibilidade de incorporação aos padrões do mundo livre, em especial no referente<br />

a práticas católicas. Netos de forros que casassem com pessoas da mesma condição<br />

já não receberiam nenhuma referência após seus nomes 46 . É possível que fosse esse<br />

o caso do casal Rosa e Inácio, ou ainda que mesmo sem ter o referido distancia-<br />

46 FARIA, Sheila de Castro A Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova fronteira,<br />

1998, p. 305.<br />

267


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

mento dos antepassados escravos, o simples fato de ter uma filha apadrinhada pelo<br />

governador fidalgo fosse o suficiente para constarem nos registros com designação<br />

de pardos, demonstrando o processo de “branqueamento” social.<br />

Mas o que o batismo de crianças pardas pode nos indicar? Por se tratarem<br />

de pessoas de categoria considerada inferior, os laços estabelecidos pelo compadrio<br />

com indivíduos do alto escalão administrativo (como era o caso de Sebastião)<br />

tendem a ser verticais, onde os brancos estariam na posição superior, para quem os<br />

respectivos compadres deveriam lealdade e prestação de serviços e favores. Essa<br />

tendência se torna especialmente forte no caso de Veiga Cabral da Câmara, por ser<br />

ele fidalgo.<br />

Analisando os registros batismais percebe-se ainda que grande parte dos batismos<br />

não era realizado por marido e esposa, mas pessoas de casais diferentes. Vejo<br />

essa prática como a valorização dos laços de reciprocidade entre compadres, pois<br />

assim os pais da criança, ao invés de estabelecerem laços com uma única família<br />

(o caso de marido e esposa) estabeleceriam com duas. Mas além de compadres e<br />

afilhados o ato do batismo proporcionava um laço entre os padrinhos. No caso<br />

do padrinho e da madrinha não serem casados, o fato de numa cerimônia pública<br />

estarem lado a lado batizando uma criança, reconhecendo-a como filha espiritual,<br />

representa o reconhecimento do status um do outro, como na cerimônia referida<br />

algumas páginas atrás, em que Veiga Cabral da Câmara e Clara Maria de Oliveira<br />

estiveram lado a lado.<br />

268<br />

A GRAçA DO ESPíRITO E A VIDA ALÉM DO SER<br />

O caro leitor já deve ter percebido que o governador Sebastião batizou diversas<br />

crianças que receberam a seu nome. Dos seus 21 afilhados, onze meninos<br />

chamaram-se Sebastião e duas meninas foram nomeadas como Sebastiana. Hameister<br />

comenta que segundo as normas da Santa Madre Igreja o nome de uma criança<br />

deveria ser escolhido pelo padrinho, mas no entanto não há como precisar se na<br />

prática era de fato o que ocorria ou se a nomeação era decidida pelos pais e apenas<br />

ratificada pelos padrinhos 47 . De qualquer forma, seja pela autopromoção de seu<br />

nome ou por homenagem dos compadres, a criança receber o nome do padrinho é<br />

sinônimo de prestigio deste frente aos novos irmãos espirituais.<br />

47 HAMEISTER, Martha Daisson. op. cit. p. 78- 137.


Era recomendado ainda que o nome escolhido fosse cristão ou nome de um<br />

santo. De acordo com a lenda, São Sebastião foi um soldado romano brutalmente<br />

assassinado por defender os cristãos, tornando-se um mártir. O nome Sebastião, de<br />

origem grega, significa venerável, sagrado, características essas coincidentemente coerentes<br />

com a postura do governador em questão. Não sei se na América portuguesa<br />

setecentista havia preocupação com a etimologia do nome, mas certamente havia<br />

preocupação do rebento possuir o nome de alguém importante naquela localidade,<br />

pois<br />

nomear, estabelecer uma nomenclatura familiar e pessoal, nessas circunstâncias,<br />

é uma prática social que visa, antes de mais nada, estabelecer<br />

e perpetuar o “nicho” de certos homens e famílias no grupo ao<br />

qual pertenciam e ante outros grupos, podendo assumir, assim, um<br />

aspecto místico48 .<br />

Dessa forma, dar ao filho o nome do valoroso governador, herói na reconquista<br />

de territórios frente aos espanhóis, pode ser visto como uma tentativa de<br />

preservar ou conquistar um lugar de destaque na sociedade, uma vez que a família<br />

já planejava o matrimônio e carreira da criança, visando o engrandecimento familiar.<br />

Esta deve ter sido a intenção do capitão José Ferreira da Silva Santos, ao talvez planejar<br />

a brilhante carreira militar de seu pequeno Sebastião, cujas façanhas preservariam<br />

a reputação da família. O comerciante Antônio Monteiro de Barros possivelmente<br />

pensou algo parecido, visando a prosperidade dos negócios familiares e uma venerada<br />

posição no alto da hierarquia social. Estes são dois exemplos de homens de elite<br />

que prestigiavam Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara, comprovando como<br />

este foi conquistando seu lócus entre as camadas dominantes com o passar dos anos.<br />

Para Hameister, o nome tinha por finalidade promover a continuidade do<br />

indivíduo em termos simbólicos. “Eram dois e ao mesmo tempo um, pois continuavam-se<br />

um no outro. O nome não era apenas desinência de um indivíduo; antes,<br />

designava uma espécie de entidade, entidade esta pertencente à família ou ao grupo<br />

no qual estavam inseridos.” 49 Nomear uma criança era a tentativa de transmitir-lhe<br />

as qualidades do dono do primeiro nome, servindo de inspiração para a vida adulta.<br />

Da mesma forma que a atribuição do nome era usada para a manutenção de<br />

determinados padrões de vida e status por indivíduos pertencentes às elites, poderia<br />

ser utilizada como um mecanismo - ainda que as vezes de forma um tanto quimérica<br />

– de ascensão social e busca de um nicho por parte da arraia miúda. Não esqueçamos<br />

de Sebastiana, filha do casal de pardos Inácio e Rosa. O legado que a vida lhe dera<br />

48 HAMEISTER, Martha Daisson, op. cit., p. 118.<br />

49 Idem, p. 108.<br />

269


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

não era nada auspicioso. Embora livre, nascera mulher, pobre e com ascendência<br />

africana. A perspectiva de vida dessa menina não era das mais animadoras, e talvez o<br />

único bem que seus pais pudessem lhe legar fosse um nome, que não era o deles ou<br />

dos ancestrais, mas de um homem importante naquele Rio Grande do século XVIII.<br />

Era o nome de um fidalgo, herói e governador. Rosa e Inácio devem ter projetado<br />

na filha seu desejo de uma vida melhor. Mesmo na pobreza, Sebastiana poderia<br />

arrogar-se de possuir um nome imponente e de ser a extensão, metafórica, de um<br />

padrinho importante. Esse exemplo ilustra que Veiga Cabral da Câmara também se<br />

fez presente entre as camadas subalternas da sociedade colonial, verticalizando sua<br />

rede de relacionamentos.<br />

Assim como os compadres do governador procuraram conquistar ou manter<br />

um lugar ao sol através do nome de seus filhos, esse administrador também imortalizou<br />

a si e a sua família através desses rebentos. Sebastião faleceu em 1801, aos 59<br />

anos de idade, durante as batalhas de retomada dos Sete Povos das Missões; naquele<br />

momento já havia sido nomeado capitão-general de Pernambuco. 50 Seu nome continuou<br />

sendo lembrado e utilizado pelos anos que se seguiram. Embora não mais no<br />

plano dos homens, Sebastião continuou vivendo através de seus afilhados.<br />

270


FONTES PRIMÁRIAS<br />

1° e 2° livros de batismos de Porto Alegre. NEUMANN, Eduardo; KÜHN, Fábio<br />

(coord.). Projeto resgate de fontes paroquiais. Porto Alegre- Viamão (século XVIII).<br />

AHCMPA- Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre. Livro de<br />

entrada de irmãos da Irmandade do Santíssimo Sacramento de Porto Alegre, 1774-<br />

1798, fl. 1- 3v, 10v.<br />

AHU- Arquivo Histórico Ultramarino- Projeto Resgate- RS. Caixa 2, documento<br />

206.<br />

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VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

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LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII.<br />

Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2001.<br />

272


_____. Family and kin- a few thoughts. In: Journal of family history. Vol. 15, n° 4, 1990.<br />

p. 568- 578.<br />

OSóRIO, Helen. O império português no sul da América: estancieiros, lavradores e comerciantes.<br />

Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007.<br />

SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra. Política e administração na América portuguesa<br />

do século XVIII. São Paulo: Companhia das letras, 2006.<br />

XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, António Manuel. As redes clientelares. In:<br />

MATTOSO, José (dir). História de Portugal: o Antigo Regime. Lisboa: editorial Estampa,<br />

s/d. p. 381-393.<br />

273


eM noMe de “nossos AMigos PolítiCos”:<br />

vinCulos PessoAis, Poder e influênCiA<br />

Ao teMPo do iMPério do brAsil<br />

Miguel Ângelo Silva da Costa<br />

Resumo: o presente trabalho dedica-se ao tema dos vínculos pessoais, das redes sociais e da<br />

ação política de seus protagonistas sob a perspectiva do historiador de ofício. Para tanto, adotará como<br />

recorte analítico as tramas constituintes da política local, do poder e da influência nos idos do Império<br />

do Brasil a partir de duas linhas de raciocínio: a) as relações de poder embutidas em vínculos pessoais<br />

como canais transacionais de lealdades por proteção social e b) os intercâmbios recíprocos entre indivíduos<br />

com recursos e necessidades similares, dentro de um espaço de sociabilidade e (des)confiança,<br />

como as facções políticas.<br />

Palavras-Chave: Redes Sociais – Ação Política – Política Local – Império do Brasil.<br />

PRIMEIRAS PALAVRAS<br />

Partindo da assertiva de que o social é feito de relações, inicialmente<br />

poderíamos indagar como os indivíduos se relacionam entre si e com<br />

as instituições do social. Evidentemente, essas indagações e o debate<br />

na qual se inscrevem não são novos no âmbito intelectual. Seria demasiado pretensioso<br />

e desnecessário querer explorar genealogicamente um conceito amplamente<br />

debatido por intelectuais filiados à sociologia, antropologia, economia, psicologia<br />

social, geografia humana, história, entre outras ciências dedicadas à compreensão da<br />

complexidade que permeia o que convencionalmente chamamos de sociedade. Porém,<br />

não resta dúvida de que, independente da filiação disciplinar, faz-se necessário<br />

definir um quadro de referência em relação ao objeto de estudo e as lentes com quais<br />

se vai observá-lo. Portanto, partiremos da idéia defendida por José Maria ímizcoz<br />

de que<br />

La trame d’une société, ce sont les liens et les réseaux de relations<br />

entre individus et/ ou collectivités. Ils organisaient les individus selon<br />

des modes de fonctionnement déterminés en fonction d’actions<br />

précises, de telle sorte que chaque société se caractérisaint par<br />

275


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

l´existence d´um systèma de relations particulier ou muni de caractéristiques<br />

propres.¹<br />

Parafraseando Peter Burke, também poderíamos indagar-nos qual a utilidade<br />

das teorias formuladas no campo das ciências sociais para os historiadores. A resposta<br />

dessa aparente simples questão não é óbvia, pois, como observou Burke, “diferentes<br />

historiadores, ou tipos de historiadores, reconheceram a utilidade das diferentes<br />

teorias em formas diversas, algumas como um arcabouço abrangente e outras como<br />

um problema específico”². No entanto, tratando-se do espaço de reflexão no qual<br />

se encontra o debate sobre redes sociais e sua aplicabilidade no campo da pesquisa<br />

histórica, o que seria possível apreender em termos de instrumentalização analítica?<br />

Qual a especificidade deste “olhar” sobre as sociedades do passado? Por que a metodologia<br />

tem atraído um número cada vez maior de historiadores?<br />

Responder essas indagações não é tarefa fácil. Contudo, ao ocuparem lugar na<br />

agenda de pesquisa, parece indiscutível a necessidade de refletirmos sobre elas. Esse,<br />

portanto, é o objetivo mais amplo desse trabalho. O esforço consistirá em condensar<br />

algumas reflexões que orientam nossa pesquisa de doutoramento. Para tanto, buscaremos<br />

balizar nossa contribuição para a VIII Amostra de Pesquisa do Arquivo Público do<br />

Estado do Rio Grande do Sul – APERS, explorando algumas possibilidades de análise<br />

acerca dos vínculos pessoais de amizade e seus desdobramentos no campo das disputas<br />

políticas locais.<br />

276<br />

“COM ELE DE ENVOLTA FOMOS TODOS OS SEUS<br />

AMIGOS E PARENTES”<br />

Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, década de 1860. O contexto<br />

era de guerra contra o Paraguai, ecoavam valores construídos em torno da figura<br />

idealizada do intrépido guerreiro sul-rio-grandense e pulverizava-se o chamado à<br />

peleja. No rastro do recrutamento de quem iria seguir destacado para o campo de<br />

batalha, setores diversos da população, cada qual ao seu modo, sentiam os efeitos<br />

da intensa mobilização de tropas para o teatro de operações. Sujeitos com influência<br />

política local – comandantes ou não dos corpos militares –, empregavam diferentes<br />

formas de ação para formar e dar sustentabilidade às suas clientelas. Não raro, lançavam<br />

mão de indulgências paternalistas para atender os interesses de seus subordi-<br />

¹ IMíZCOZ, José Maria. Communauté, réseau social, élites. L’armature sociale de l’Ancien Régime. In: CAS-<br />

TELLANO, J. L.; DEDIEU, J. P. Réseaux, familles et pouvoirs dans le monde ibérique à la fin de l’Ancien Régime. Paris: CNRS<br />

Éditions, 2002. p. 36<br />

² BURKE, Peter. História e Teoria Social. São Paulo: UNESP, 2002. p. 11.


nados. De modo associado ao patronato que exerciam ou que pretendiam exercer,<br />

buscavam enfraquecer seus adversários qualificando seus desafetos políticos para<br />

as tropas da ativa.³ Foi no centro de um movimento de mão dupla, recheado por<br />

histórias absolutamente banais e ao mesmo tempo sintomáticas dos mecanismos<br />

sociais que virtualmente estruturavam as engrenagens de funcionamento do poder<br />

político local, que um sujeito chamado Francisco Pinto Porto, amigo próximo do<br />

General José Joaquim de Andrade Neves, assim se dirigiu ao Dr. Francisco Ignácio<br />

Marcondes Homem de Mello, à época presidente da província:<br />

Rio Pardo, 9 de março de 1867.<br />

[...] Desgraçadamente, nesta localidade a intolerância política e a sede<br />

ardente de mando não se têm extinguido diante da grave situação<br />

porque passa o país. Duas facções antes que dois partidos dividem a<br />

população deste termo: à frente de uma sempre se achou o General<br />

Andrade Neves, que há mais de dois anos está em campanha, tendo levado<br />

consigo a maior parte de nossos amigos particulares e políticos;<br />

os poucos que restamos, ou são de lá vindos inválidos, enfermos ou os<br />

que não ocuparam postos estão para marchar. [...] À frente da segunda<br />

facção, o Coronel reformado da Guarda Nacional João Luis Gomes,<br />

tristemente celebridade desde a revolução desta província, depois que<br />

obteve posição e alguns meios que lhe facilitou seu protetor e cunhado<br />

o General Andrade Neves, declarou-lhe uma guerra de extermínio.<br />

Nada poupou àquele que lhe serviu de pai! Na praça pública como na<br />

imprensa o general Andrade Neves foi atacado miseravelmente; com<br />

ele de envolta fomos todos os seus amigos e parentes. V.Exa., crerá<br />

talvez que tanta ousadia terá fonte em uma robusta coragem; perfeito<br />

engano: é apenas uma regateira que quer disputar os foros de honra!<br />

Fez-se cercar este Chefe de indivíduos que adrede colocou em posições<br />

oficiais por meio de seus patronos o Sr. Desembargador Sayão,<br />

falecido Oliveira Bello e Dr. João Mendonça, o acaso lhe trouxe mais<br />

um juiz ad hoc que lhe serviu de guia, pois que perfeito saúde-o, era<br />

então assessorado por um mestre escola. Entre os de sua escolta está<br />

o comandante superior interino, que sendo reformado foi nomeado<br />

chefe do Estado Maior. É homem de bons precedentes, creio mesmo<br />

ser honesto, mas sem energia alguma e pronto a subscrever o que diz<br />

o seu chefe de Partido. [...] 4<br />

³ Diversos autores já enfocaram a questão. Todavia, entre os trabalhos mais recentes sobre o tema no Rio Grande<br />

do Sul, ver: FERTIG, André Atila. Clientelismo político em tempos belicoso : a Guarda Nacional da Provincia do Rio Grande<br />

do Sul na defesa do Estado Imperial centralizado (1850-1873). Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul.<br />

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em História, Tese de Doutorado. 2003 e<br />

RIBEIRO, José Iran. Quando o serviço os chamava: os milicianos e os guardas nacionais gaúchos (1825-1845). Santa Maria. E.<br />

UFSM. 2005.<br />

4 Correspondência enviada por Francisco Pinto Porto ao Dr. Francisco Ignácio Marcondes Homem de Mello,<br />

09/03/1867. AHRS – GN. 22º C. Cav. Rio Pardo, maço n.º 97.<br />

277


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Michel Foucault já observou que o poder deve ser analisado como algo que<br />

circula, que funcionada em forma de cadeia e sem localização precisa. Não está<br />

nas mãos de ninguém, de forma fluída transita entre os indivíduos. Em suas redes<br />

e numa relação dialética, estes mesmos indivíduos estão constantemente em vias<br />

de exercitar ou de sofrer seus impactos. De modo reticular e de forma inerente às<br />

relações sociais, o poder apresenta-se como elemento de conexão entre os sujeitos.<br />

Ou seja, o poder não está aqui ou ali, ele flui transversalmente entre os indivíduos 5 .<br />

Sem dúvida, este é um dos conceitos que nas palavras de Jacques Revel “fascina<br />

os historiadores e os cientistas sociais”. Mas o historiador adverte que aqueles que<br />

o estudam, constantemente o alocam ao “lado do comando, de um capital de estima<br />

ou de fidelidade, do lado da detenção de um capital de bens materiais e culturais, ou<br />

ainda nos esforçamentos para demonstrar que todos esses capitais obedecem a uma<br />

lei tendencial de concentração, que eles se acumulam de acordo com regras mais ou<br />

menos complexas”. Todavia, o poder não é um atributo dos atores, mas sim uma<br />

relação sobre a qual confluem interesses. Neste caso, se a definição de poder não<br />

pode ser pensada de modo descolado de um “campo onde agem forças instáveis<br />

e que estão sempre sendo reclassificas” e, se ele, ou certas de suas formas, são as<br />

recompensas dos “que sabem explorar os recursos de uma situação, tirar partido<br />

das ambigüidades e das tensões que caracterizam o jogo social” 6 , François Xavier<br />

Guerra assevera que enquanto uma relação entre atores “cada actor lo es de una<br />

forma diferente según lá posición que ocupa con respecto a tal o cual outro actor, y<br />

o éxito en la práctica política se basa en un conocimiento, muy a menudo intiuitivo,<br />

de estas relaciones” 7 .<br />

Sob esta perspectiva poderíamos considerar que a carta enviada pelo Tenente<br />

Coronel Pinto Porto ao presidente Homem de Mello coloca em cena um sujeito que<br />

sabia o modo como seria possível acionar recursos e tirar vantagens das ambigüidades<br />

e tensões próprias de um jogo político que interconectavam sujeitos em redes de<br />

poder. Consciente das regras e dos dispositivos inerentes à prática política, falou em<br />

5 Segundo Roberto Machado, o que Foucault procurou demonstrar em sua microfísica do poder foram as formas como<br />

os poderes de diferentes ordens se efetuam em distintos níveis do corpo social. Gestos, atitudes, comportamentos,<br />

hábitos, discursos são algumas das formas de manifestação. Assim sendo, ao pensar em poder e na sua análise, devese<br />

levar em conta seu caráter relacional e suas múltiplas formas de exercício. Trata-se, portanto, de refletir sobre seus<br />

mecanismos e seus efeitos, seus domínios e suas extensões no corpo social e sobre os agentes que nele interagem.<br />

MACHADO, Roberto. Por uma genealogia do poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro:<br />

Edições Graal, 1981. p.XII.<br />

6 REVEL, Jacques. Prefácio à Herança Imaterial: In: LEVI, Giovanni. A Herança Imaterial. Rio de Janeiro: Civilização<br />

Brasileira, 2000. p. 31-33.<br />

7 GUERRA, François Xavier. México: Del Antiguo Régimen a la Revolución. Tomo I. México: Fondo de Cultura Económica,<br />

1988. p. 127.<br />

278


nome de seus “amigos políticos”. Sua mobilização assinala o apelo de quem acompanhava<br />

o gradual fortalecimento de uma facção contrária a sua, pois, segundo suas<br />

palavras, “uma grande parte senão todos que foram com o General Andrade Neves<br />

nos eram dedicados”. Não obstante, sua correspondência ainda lança luzes sobre o<br />

modo como se processavam agências da política e do poder local. Na senda da “intolerância<br />

política” e sobre a “sede ardente de mando”, convergia um intricado e dinâmico<br />

processo atravessado por interesses, alianças e interdependências, no qual os<br />

indivíduos e os grupos implicados mobilizavam diferentes formas de ação política.<br />

A narrativa de caráter retrospectivo nos fornece pistas importantes sobre a<br />

forma como o parentesco e a amizade, as fidelidades e as traições, os favores e os<br />

desfavores permeavam a história do dia-a-dia das relações sociais e políticas. A objetividade<br />

das informações prestadas ao presidente da província dispensa qualquer<br />

comentário quanto ao clima de disputas pelo poder na localidade. Para os objetivos<br />

desse trabalho, mais proveito são os sinais que Pinto Porto nos fornece acerca das<br />

relações de poder imersas num “campo onde agem forças instáveis”, permeadas<br />

por intercâmbios recíprocos entre indivíduos com recursos e necessidades similares.<br />

Suas impressões sobre o comportamento de um sujeito que após ter obtido<br />

“posição” à custa de seu “protetor e cunhado abriu-lhe uma guerra de extermínio”,<br />

são indicativos pontuais de que os vínculos mais característicos de nossa formação<br />

social oitocentista não eram simplesmente relações interpessoais entre indivíduos<br />

de uma sociedade atomizada que se associavam segundo uma adesão livre ou voluntária.<br />

Eram, pois, vínculos alinhavados por diferentes formas: por nascimento,<br />

pertencimento a uma família, comunidade; ou contraídos como laços de amizade,<br />

de alianças matrimoniais, compadrio ou relações de clientela que exigiam pautas de<br />

comportamento baseadas em trocas de obrigações. Como tais, esses vínculos foram<br />

particularmente estruturantes, pois, por um lado, articulavam de forma privilegiada<br />

a autoridade, a integração e a subordinação, os direitos e obrigações, os negócios,<br />

economias e intercâmbios de serviços; por outro, aglutinavam sujeitos em grupos ou<br />

redes que atuavam habitualmente de forma solidária no campo social, em negócios<br />

comuns, conflitos e lutas pelo poder, ou se quisermos, traduzem em parte as la trame<br />

d’une société.<br />

A questão abordada pelo nosso informante era profunda e envolvia disputas<br />

internas localizadas entre membros de uma família política local cindida. É correto<br />

afirmar que os laços parentais (sanguíneos ou rituais) eram canais facilitadores no<br />

processo de formatação das redes políticas. Em torno de um indivíduo com reconhecida<br />

expressividade no campo político como o General Andrade Neves – o<br />

mesmo se poderia dizer para outros campos do social – gravitavam “todos os seus<br />

amigos e parentes”. No grupo relacional entravam todos: irmãos, primos, sobrinhos,<br />

filhos, tios, cunhados, amigos, etc. Também é verdadeira a assertiva de que<br />

279


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

as relações baseadas em parentesco de sangue certamente eram mais sólidas e, por<br />

natureza, hereditárias. Na maioria dos casos, denotavam laços afetivos intensos que<br />

se reforçavam pela confluência de interesses, pois os membros da família tendiam<br />

a ser solidários tanto no êxito, como no fracasso de seus entes. Poderíamos afirmar<br />

que não era por acaso que as famílias políticas regionais investiam decididamente em<br />

alianças vantajosas. A permanência de uma família numa determinada região não<br />

resultava exclusivamente das fortunas distribuídas entre os seus membros (terras,<br />

escravos, propriedades em geral), mas também do interesse de manterem, agregarem<br />

e redistribuírem suas heranças imateriais: a influência política e a capacidade de<br />

manipularem amplos repertórios relacionais.<br />

Em segundo lugar, o parentesco sanguíneo poderia ser reforçado com uma<br />

aliança matrimonial. O matrimônio poderia colocar fim a determinadas rivalidades,<br />

pois não se convertiam apenas em aliança entre cônjuges, mas entre famílias ou<br />

grupos supostamente rivais. Poderia é o termo mais apropriado, pois, como bem o<br />

observou Francisco Pinto Porto, um cunhado poderia abrir uma verdadeira “guerra<br />

de extermínio” contra quem há pouco havia lhe garantido posição e lhe servido de<br />

pai. Todos esses laços de parentesco acabam revelando conjuntos humanos extremante<br />

amplos, com manifestações inesperadas, favorecidas pela existência de famílias<br />

numerosas. No espaço relacional não só se objetivavam laços de amizade e de<br />

relações de clientela de diferentes formas, como também se produziam interações<br />

que poderiam convergir tanto para a coesão como desagregação social.<br />

Em linhas gerais, poderíamos considerar que os vínculos políticos ao imporem<br />

direitos e deveres que justificavam ações e comportamentos, também reforçavam<br />

laços já existentes de amizade, de interesse e de clientela. Contudo, as relações<br />

não tinham o mesmo significado nem a mesma virtualidade aglutinadora. Dentro<br />

da abordagem das redes sociais, as relações clientelares e paternalistas são consideradas<br />

verdadeiros protótipos do vínculo vertical. Através daquelas formas relacionais<br />

se configurava uma relação implicitamente pautada por trocas e obrigações<br />

mais ou menos explícitas cujos estatutos normativos se baseavam numa situação<br />

de dominação e de dependência. Todavia, tanto a prática do clientelismo como do<br />

paternalismo são apenas alguns dos caminhos possíveis de observação das relações<br />

entre desiguais, relações que nem sempre correspondem às características de antemão<br />

convencionadas historiograficamente. Ao invertermos a lógica de abordagem<br />

das relações verticais que se desenvolviam quando existia diferença, mas não necessariamente<br />

distância social, podemos contemplar a existência de vínculos individuais<br />

que colocam em relação sujeitos com status sociais distintos. 8<br />

8 IMíZCOZ, José Maria. Actores sociales y redes de relaciones: reflexiones para una historia global. In: Revista da<br />

Faculdade de Letras e História. Porto: III Série, Vol. 05, 2004. pp. 115-140.<br />

280


Essas questões se inserem num universo de pesquisa no qual os historiadores<br />

tem buscado dar conta das relações entre família, poder, política e sociedade. Penso<br />

não ser necessário enveredar na direção de uma ampla revisão sobre os diferentes<br />

percursos que os estudiosos da questão trilharam, até porque outros historiadores<br />

bem mais habilitados já o fizeram. 9 Entretanto, gostaria de apenas observar alguns<br />

aspectos que poderão contribuir para evitar algum tipo de confusão quanto ao nosso<br />

propósito, pois, de antemão, devemos esclarecer que não se trata de um trabalho dedicado<br />

à família em si, antes às redes de interação social e de articulação política segundo<br />

as quais, famílias e sujeitos diversos compartilhavam suas experiências. Nesse<br />

sentido, como observou Sheila de Castro Faria, “ao invés de demarcar a família<br />

como um objeto em si mesmo, deve-se levar em conta a sociedade à sua volta” 10 . Ou<br />

seja, atentaremos para as redes de relações sociais e o amplo espectro de sociabilidade<br />

em que o indivíduo se inscreve.<br />

Sob este aspecto, a amizade coloca-se como um elemento importante para a<br />

questão. As amizades engendram-se nas intricadas disputas políticas, mesclam-se às<br />

famílias e às unidades faccionais. Pode converter-se num instrumento político, uma<br />

espécie de “amizade política”, uma relação recíproca entre pessoas onde se entrelaçam<br />

direitos e deveres reconhecidos pelos diferentes estratos sociais. Nas relações<br />

verticais, os direitos e deveres não assumem o mesmo peso e significado para os<br />

intervenientes. Do lado dos protegidos, quanto mais baixa a posição social do ator,<br />

maiores são os deveres: mobilização dos “amigos” por um chefe político para oferecer<br />

oposição numa disputa política local, para obter informações, para reafirmar<br />

manifestações de adesão ao poder ou para apoiar um representante oficial daquele<br />

mesmo poder. De parte dos personagens proeminentes, seus dependentes esperam<br />

intervenções ante as autoridades para obter exceções a lei e a disposições gerais teo-<br />

9 Para uma revisão sobre os diferentes percursos que os estudiosos da questão tem trilhado, além de FARIA, Sheila<br />

de Castro. A Colônia em Movimento... 1998, também ver, entre outros: MUAZE, Maria de Aguiar Ferreira. O Império<br />

do retrato: família, riqueza e representação social no Brasil oitocentista. Tese Doutorado em História - Programa de Pós-<br />

Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, Niterói. 2006; CASTELLANO, J. L.; DEDIEU, J. P.<br />

Réseaux, familles et pouvoirs dans le monde ibérique à la fin de l’Ancien Régime. Paris: CNRS Éditions. 2002. Para o<br />

caso especifico do Rio Grande do Sul, entre outros trabalhos, KUHN Fábio. Gente da Fronteira: família, sociedade e poder<br />

no Sul da América Portuguesa – Século XVIII. Tese Doutorado em História - Programa de Pós-Graduação em História<br />

da Universidade Federal Fluminense, Niterói. 2006, HAMEISTER, Martha Daisson. Para dar calor à nova povoação:<br />

estudo sobre estratégias sociais e familiares a partir dos registros batismais da vila do Rio Grande (1738-1763). Tese de Doutorado.<br />

Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ. Rio de Janeiro, 2006; FARINATTI, Luís Augusto Ebling.<br />

Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na Fronteira Sul do Brasil (1825-1865). Rio de Janeiro: Universidade<br />

Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais: Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação<br />

em História Social, 2007; VARGAS, Jonas Moreira. Entre a paróquia e a Corte: Uma análise da elite política do Rio Grande do<br />

Sul (1868-1889). Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Dissertação de Mestrado, PPGH, 2007.<br />

10 FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento.... p. 43.<br />

281


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

ricamente aplicáveis a todos. O recrutamento militar, enquanto instrumento político<br />

utilizado pelos chefes para coerção dos menos favorecidos e proteção de seus apaniguados,<br />

é um exemplo cabal de relações perpetradas em torno desses elos sociais.<br />

Debaixo de uma forte propaganda que incentivava a deserção, as autoridades locais<br />

do grupo em oposição abrigavam seus dependentes em torno de si mesmos. Não<br />

raro, chegavam a abrirem as portas de suas próprias casas para abrigá-los.<br />

Expressando seu desabafo, o sectário e amigo do General Andrade Neves reiterou<br />

a necessidade de uma intervenção firme do presidente e também correligionário<br />

daquele “distinto e bravo general”. Francisco Pinto Porto despediu-se do Dr.<br />

Homem de Mello dizendo-lhe que<br />

independentemente destes entraves que adrede se levanta para desprestigiarmos,<br />

a reunião seria mesquinha, mas ainda assim se poderia<br />

fazer; com estas armas porém, e tendo o fiel da balança um companheiro<br />

dedicado desse perturbador nada se fará. No destacamento<br />

da Guarda Nacional, às ordens do comandante da Guarnição e do<br />

Delegado de Polícia, em casa do Coronel João Luis Gomes e outros,<br />

existem indivíduos maiores de 20 e menores de 30 anos, solteiros e robustos<br />

que não foram e nem serão designados para marchar, a menos<br />

que isso terminantemente VExa o não faça.<br />

VExa relevará o tempo precioso que lhe roubei; preciso ser franco<br />

e por isso fui prolixo; sirva em desculpas a causa em que todos os<br />

bons brasileiros se empenham e VExa tão patrioticamente tem sabido<br />

sustentar.<br />

VExa se dignará dar-me as ordens que entender a respeito.<br />

Reitero a VExa minha mais alta consideração e sou de VExa atento e<br />

venerador criado. Tente. Coronel Francisco Pinto Porto.<br />

Não seria nenhum exagero insinuar que é no território dos diálogos sociais –<br />

sejam estes no sentido literal ou metafórico – entre amigos ou camaradas que podemos<br />

observar iniciativas voluntárias, espontâneas, imprevisíveis e, que, eventualmente,<br />

podem apresentar uma mudança de sentido da situação de dependência. Desde a<br />

antiguidade romana, a palavra amigo é uma das palavras chaves do vocabulário político.<br />

Contudo, lembra-nos Xavier Guerra que assim como em Roma, é providencial<br />

desconfiarmos do termo, “pues puede designar tanto personajes de un nível semejante<br />

a quien emplea este calificativo, como a hombres situados mucho abajo en la<br />

escala social, y cujas relaciones no pueden poseer la igualdad relativa de condiciones<br />

que hacem posible la verdadera amistad”. Por conseguinte, o cuidado para não cairmos<br />

em generalizações exige que tenhamos atenção redobrada no que diz respeito<br />

aos vínculos que de alguma forma nos remetam à relações provenientes destes tipos<br />

enlaces sociais. Em seu Clientelismo e política no Brasil do século XIX, o brasilianista Richard<br />

Graham já observou a complexidade inerente às teias de relações que ligavam<br />

282


sujeitos com recursos desiguais¹¹, também observou o peso dos vínculos verticais<br />

para sustentabilidade das redes clientelares e o modo como se buscava conferir legitimidade<br />

para a diferença entre os intervenientes. Assim, poderíamos considerar<br />

que onde se produzem relações entre homens de níveis sociais diferentes o termo<br />

clientela parece mais adequado. Já o termo amizade, demonstra-se uma referência e/<br />

ou elemento de conexão entre atores de níveis sociais equivalentes¹². Ainda assim, a<br />

distinção na prática não é fácil, visto ser possível a existência de elementos afetivos<br />

entre atores desiguais. Talvez, um desses exemplos possa ser um caso que mobilizou<br />

o coronel João Luis Gomes, desafeto político de Pinto Porto e de outros sectários<br />

do General Andrade Neves, na Rio Pardo dos tempos de Pedro II.<br />

ENTRE O CORONEL E O DELEGADO HAVIA “UM<br />

PRETO QUE SE DIZIA ESCRAVO PARA NãO PRESTAR<br />

SERVIçO ALGUM À NAçãO”<br />

Em 5 de agosto de 1860, na esteira do velho hábito da conscrição compulsória,<br />

um sujeito chamado Francisco Cardoso foi preso por outro de nome Juvêncio<br />

Juvino do Rego Rangel. No centro da questão havia um terceiro, ninguém menos<br />

que o tão mencionado coronel João Luis Gomes, com quem o primeiro apresentava<br />

laços de camaradagem e contra quem o segundo guardava mágoas difíceis de serem<br />

digeridas. Cardoso era negro, morador do Distrito de São Sepé e andava por Rio<br />

Pardo “intitulando-se escravo para não prestar serviço algum à Nação”¹³. Rangel era<br />

formado em Direito pela Faculdade de Pernambuco, havia chegado à localidade em<br />

1855 para ocupar a vaga de juiz municipal, mas na ocasião desempenhava as funções<br />

de delegado de polícia daquele termo e tinha ligações políticas com o Liberal<br />

Progressista José Joaquim de Andrade Neves. João Luis Gomes da Silva era filho<br />

do português Francisco Gomes da Silva Guimarães e de Dona Ana Bernardina da<br />

Silva Jacques, era homem de expressividade política nas fileiras locais do Partido<br />

Conservador.<br />

O núcleo urbano do município não apresentava grandes dimensões e a aparente<br />

arbitrariedade praticada pelo delegado Rangel circulou rapidamente pela localidade.<br />

Talvez mais rápido por se tratar de um ato que poderia reanimar uma querela<br />

¹¹ GRAHAM, Richard. Clientelismo e Política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997, p. 37.<br />

¹² GUERRA, François Xavier. México: Del Antiguo Régimen a la Revolución..., p. 150<br />

¹³ APERS – Comarca de Rio Pardo, Cível e Crime, n.º 4704, maço 94, ano 1860.<br />

283


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

antiga entre membros das facções que disputavam o controle político local. João<br />

Luis Gomes havia se ausentado por alguns dias da cidade, mas, ao desembarcar na<br />

rampa do rio Jacuí, foi informado de que Francisco havia sido recolhido ao xadrez.<br />

Na companhia de seu informante, o alferes João Francisco de Moraes, saiu à cata de<br />

Juvêncio Rangel “afim de se saber por qual motivo estava preso o seu camarada” 14 .<br />

Não precisou muito para que aqueles homens se encontrassem. Ao avistar Rangel<br />

na casa de negócio do vereador Bernardo Gomes Souto, o coronel não hesitou em<br />

lhe exigir posicionamento sobre a detenção do preto Francisco. Tenazmente interpelado,<br />

o delegado respondeu em altas vozes que “como recruta e que não tinha que<br />

lhe dar satisfação!!!” 15 . Faltou pouco para que o bate boca chegasse às vias de fato.<br />

Publicamente chamado de “biltre” e acusado de praticar as mais descabidas canalhices,<br />

Juvêncio Rangel sentiu o ímpeto de um sujeito que buscava constantemente<br />

reiterar sua posição social e capacidade de mando. O alarido ganhou a rua, atraiu<br />

vários espectadores e em meio à troca de ofensas recíprocas, gritos e “deixa disso”,<br />

o delegado não teve outra alternativa a não ser evocar o nome de “Sua Majestade o<br />

Imperador” e dar voz de prisão ao seu inimigo capital.<br />

Essa é outra daquelas situações cotidianas que, apesar de serem absolutamente<br />

banais, podem auxiliar a detectar o modo como a solidariedade e o conflito<br />

transitavam pelos fios que interconectavam tanto homens de alto como de baixo escalão<br />

social. O recurso microanalítico de relações tecidas no centro de antagonismos<br />

equilibrados e móveis, coloca-se com uma alternativa metodológica que possibilita a<br />

observação das diferentes formas de ativação tanto dos vínculos como dos próprios<br />

antagonismos sociais. Não se trata aqui de uma inovação sob o ponto de vista mais<br />

amplo da produção historiográfica, até porque os estudos desenvolvidos na área têm<br />

contribuído para que o tema das relations interpesonnelles se consolide cada vez mais<br />

como um véritable objet historiographique. 16 Em grande medida, os trabalhos dedicados<br />

a refletirem sobre o que tange os diferentes tipos sociabilidades (culturais, políticas e<br />

econômicas) encontram-se associados às reflexões nascidas no âmbito da antropologia<br />

social. Sobretudo, a que postula o tecido social como uma rede de interações,<br />

negociações e conflitos sociais concretos. Como lembra M. Gribaudi,<br />

14 Auto de depoimento de João Luis Gomes. APERS – Comarca de Rio Pardo, Cível e Crime, n.º 4704, maço 94,<br />

ano 1860. fls 40-41.<br />

15 Auto de depoimento do comerciante Bernardo Gomes Souto. APERS – Comarca de Rio Pardo, Cível e Crime,<br />

n.º 4704, maço 94, ano 1860. fls 9-10.<br />

16 DEDIEU, Jean-Pierre; MOUTOUKIAS, Zacarias. Approche de la théorie des réseaux sociaux: intoductcion. In:<br />

CASTELLANO, Juan Luis; DEUDIEU, Jean-Pierre. Réseaux, familles et pouviers dans le monde ibérique. Paris: CNRS<br />

Éditions. 2002, p. 07.<br />

284


dans réseaux de relations se lisent les traces de l’histoire des interactions<br />

et des négociations qui ont eu lieu entre chaque individu et les<br />

mileux dont il est issu et qui’l a traversés tout au long de son parcours<br />

social. Les itinéraires se déroulent à l’interieur d’espaces differentement<br />

articulés , maqués par formes et des logiques de cohésion differentes.<br />

17<br />

É no centro desses espaços de interlocução social (nas redes de relações)<br />

que se encontra o locus onde podemos observar a história das interações entre os<br />

indivíduos, suas margens de negociação, seus itinerários em fluxos de diferentes<br />

sociabilidades e de distintas lógicas de coesão social. A estrutura de funcionamento<br />

das redes sociais baseia-se nos vínculos – horizontais e verticais –, firmados entre os<br />

atores implicados. Mas, como observou Michel Bertrand, “on peut définir un réseau<br />

comme un système de liens permettant d’englober et aussi de dépasser l’ensemble<br />

des relations ou des liens noués par un individu membre d’un lignage”. Ao chamar<br />

a atenção para um sistema de laços efetivos que podem englobar e ultrapassar o<br />

conjunto de relações ou de laços agregados por um indivíduo membro de uma linhagem,<br />

o historiador francês nos faz refletir sobre os vínculos que configuram as<br />

relações, os intercâmbios (simétricos e assimétricos) que, articulados entre si, operam<br />

como elementos de composição do tecido social. Assim, poderíamos considerar<br />

que numa sociedade atravessada por redes relacionais sobrepostas é justamente a<br />

existência dessas redes “qui determine la configuration et e’lexistence d’une société”<br />

18 . Ainda poderíamos considerar que a sobreposição de redes e suas combinações<br />

acabam conferindo sentido a cultura política. Isso significa dizer que na medida em<br />

que os repertórios culturais reforçam e legitimam as estruturas das redes, eles incluem<br />

manifestações que refletem as normas, os códigos, os costumes sociais, entre<br />

outros elementos imateriais constitutivos das estruturas relacionais. Em síntese, o<br />

fluxo dessas interconexões evidencia referencias importantes sobre os mecanismos<br />

de consciência que, por sua vez, subsidiam as formas de (inter)agir dos atores.<br />

Foi baseado num sistema relacional alicerçado pela lógica do favor e da cooperação<br />

que poucos dias após o ocorrido supracitado, Juvêncio Rangel dirigiu-se ao<br />

promotor público Joaquim José da Silveira, sujeito cujo currículo trazia notícias de<br />

sua destacada atuação nas hostes farroupilhas durante os arrancos de 1835. O con-<br />

17 GRIBAUDI, Maurizio. Les descontinuités du social: un modéle configurationnel. In: LEPETIT, Bernard (direction).<br />

Les formes de l’expérience: une autre histoire sociale. Paris, Éditions Albin Michel, 1995.p. 192.<br />

18 BERTRAND. Michel. Familles, fidèles et réseaux: les relations sociales dans une société d’Acien Régime. In:<br />

CASTELLANO, Juan Luis; DEDIEU, Jean-Pierre. Réseaux, familles et pouviers dans le monde ibérique. Paris: CNRS<br />

Éditions. 2002. p. 182.<br />

19 APERS – Comarca de Rio Pardo, Cível e Crime, n.º 4704, maço 94, ano 1860.<br />

285


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

teúdo do documento não só refletia o desgosto e a vergonha que perturbavam seu<br />

raciocínio, como, também, sua dúvida em relação ao resultado do processo crime<br />

que movia por injúrias verbais e desacato contra João Luis Gomes da Silva19 . Rangel<br />

empenhava-se “por todos meios, colhendo indícios e provas” para “desagravar a<br />

força moral” de sua autoridade. Impor os rigores da lei a um sujeito cuja capacidade<br />

política e eficiência em arregimentar clientes eram reconhecidas entre seus pares se<br />

fazia necessário. Mas, para isso, era preciso mobilizar os laços políticos alinhavados<br />

com homens que também tinham interesses nos enfrentamentos com João Luis<br />

Gomes. Diante daquela constatação, o delegado observou ao promotor que<br />

[...] Esse coronel, fiado no patronato político de uma facção de<br />

quem se tem constituído cabeça, animou-se a ir publicamente<br />

ameaçar-me com gritos e insultos para que mandasse soltar um<br />

seu peão ou agregado que havia sido recrutado. Foi tal o modo insólito<br />

com que exigiu essa soltura que tendo-lhe dado em flagrante delito<br />

vozes de prisão não encontrei nenhuma pessoa que então me coadjuvasse;<br />

sendo cercado de empenhos para desistir fiquei tão coagido e aterrado<br />

por me ver assim isolado e ameaçado que quatro cidadãos se empenharam<br />

por aquela desistência. 20<br />

Mas além do promotor público Joaquim da Silveira, o delegado contava com<br />

outros interlocutores solidários à causa. Em “nome da verdade, da justiça e dos<br />

nobres sentimentos de homem que preza a honra e a dignidade social”, rogou ao<br />

capitão Joaquim José de Brito que não se deixasse “trepidar um só momento em<br />

proclamar mesmo que com receio do compromisso e considerações que possam<br />

fazer calar a voz da sua consciência” os insultos e ameaças praticados pelo coronel<br />

João Luis Gomes ao “negociante português José Francisco da Silva, cidadão respeitável<br />

pela sua avançada idade e por iguais predicados”. Mesmo “retraído de julgar os<br />

atos do coronel João Luis Gomes”, o capitão não se esquivou da solicitação e, em<br />

reposta ao “afetuoso amigo”, asseverou que<br />

estava este ancião sentado à porta da casa de minha residência, quando<br />

para ele dirigiu-se o supradito coronel agredindo-o de palavras e ameaçando<br />

dar-lhe com um chicote, ao que eu e mais pessoas que comigo<br />

então se achavam nos apressamos metendo-nos de permeio a eles<br />

acomodando-os, o que podemos conseguir antes que chegasse a vias<br />

de fato, retirando-se para logo o agressor conduzido pelo seu cunhado<br />

o Brigadeiro José Joaquim de Andrade Neves. Se não me consta que<br />

20 Ofício apresentado ao promotor público Joaquim José da Silveira, pelo delegado de polícia Juvêncio Juvino do<br />

Rego Rangel. 16/08/1860. APERS – Comarca de Rio Pardo, Cível e Crime, n.º 4704, maço 94, ano 1860. fls 31- 32.<br />

21 Correspondência enviada por Juvêncio Juvino do Rego Rangel ao capitão Joaquim José de Brito. Sem data.<br />

APERS – Comarca de Rio Pardo, Cível e Crime, n.º 4704, maço 94, ano 1860. fls 35. A resposta do capitão encontrase<br />

no verso da correspondência.<br />

286


o agressor fosse responsabilizado pelo respectivo fato. É o que, por<br />

amor a verdade e aos princípios por vossa senhoria encovados em seu<br />

apelo, posso declarar sobre o fato que dá origem a esta resposta. Com<br />

a mais perfeita consideração sou de VSa afetuoso amigo e criado, Joaquim<br />

José de Brito. 21<br />

Entre os outros interlocutores de Rangel se encontrava Patrício Falkenback e<br />

José Joaquim de Andrade Neves, ambos cunhados de João Luis Gomes.<br />

Em resposta a “desinteligência havida entre o coronel e o cidadão José Francisco<br />

de Silva”, Falkenback observou “que cumpria-lhe dizer que é certo que este<br />

cidadão foi insultado pelo dito coronel, que armado de um chicote veio repreendê-lo<br />

em frente de uma obra que o mesmo Silva estava fazendo na rua da Imperatriz, cuja<br />

repreensão não foi mais adiante por ter intervindo diversas pessoas que presentes se<br />

achavam” 22 . Andrade Neves foi mais contundente e além de corroborar as informações<br />

de Brito e Falkenback considerou ser “com grande pesar que respondo a carta<br />

retro por meu presente punho sobre os atropelos que tem praticado contra mim e<br />

outros cidadãos o homem de que fala vossa senhoria, do qual é meu inimigo como<br />

todo o Rio Pardo e Província sabem” 23 .<br />

Mais uma vez estava criada uma situação sobre a qual convergia todo um<br />

intricado jogo de interesses, de entrosamento e de adesão social. Há poucos meses,<br />

um embate travado entre João Luis Gomes e Juvêncio Rangel descortinou nuanças<br />

de um processo em que seus protagonistas se mobilizaram, acionaram alianças e<br />

investiram com afinco na defesa de seus objetivos. Mas, no centro do novo atrito<br />

estava um sujeito que ocupava um lugar pouco privilegiado na hierarquia daquela sociedade.<br />

É verdade que o preto Francisco Cardoso não dispunha dos mesmos recursos<br />

que seus contemporâneos bem afortunados, tampouco tinha acesso às mesmas<br />

regalias dos senhores da boa sociedade. No entanto, tal posição lhe exigia colocar<br />

em prática as especificidades de uma rede de sentidos que consubstanciava ações<br />

de sujeitos que viviam sob as tensões próprias de um refinado sistema de controle<br />

social. Em outras palavras, o embrulho em que se viu metido suscitou que aquele<br />

praticamente invisível homem de cor colocasse em prática o aprendizado compartilhado<br />

em larga escala com seus contemporâneos.<br />

Infelizmente não foi possível obter maiores informações sobre quem exatamente<br />

era Francisco Cardoso. Apesar disso, quis o destino que Juvêncio Rangel<br />

²² Correspondência enviada por Patrício Falkenback a Juvêncio Juvino do Rego Rangel. 13/08/1860. APERS –<br />

Comarca de Rio Pardo, Cível e Crime, n.º 4704, maço 94, ano 1860. fl 36.<br />

²³ Correspondência enviada por José Joaquim de Andrade Neves a Juvêncio Juvino do Rego Rangel. 9/08/1860.<br />

APERS – Comarca de Rio Pardo, Cível e Crime, n.º 4704, maço 94, ano 1860. fl 37.<br />

287


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

deixasse registrado na documentação anexa ao processo crime movido contra o<br />

coronel João Luis Gomes, um detalhe que lança luzes sobre o recurso acionado na<br />

tentativa de exercer algum tipo de pressão sobre o delegado num momento crucial<br />

de sua vida. Mesmo sem saber os reais motivos que o levaram à cidade, o delegado<br />

observou que se tratava de um agregado de João Luis Gomes que andava pelas ruas<br />

da localidade. Mas tão logo recebeu voz de prisão, intitulou-se “escravo pra não<br />

prestar serviço algum à Nação” 24 .<br />

Sem querer empregar um tom impressionista a atitude de Francisco Cardoso,<br />

a frase é digna de ser repetida. Justifica-se na medida em que demonstra sua habilidade<br />

para mover-se num mundo pautado por relações de deferência e subordinação.<br />

Com eficiência, colocou-se entre o coronel e o delegado acionando o que definimos<br />

como uma espécie de deferência calculada/ instrumental. Ou seja, Francisco sabia que<br />

sua existência social estava atrelada a sua inserção em redes de dependência e de proteção<br />

próprias a uma sociedade que diferenciava seus membros, atribuindo-lhes poderes<br />

e competências, e para nela mover-se, se fazia necessário acionar uma prática<br />

política sutil e inteligentemente articulada ao interesse de agir por entre as eventuais<br />

brechas de relações alicerçadas sob os princípios da autoridade e da subordinação 25 .<br />

Valer-se do vínculo de camaradagem alicerçado com João Luis Gomes e ao<br />

mesmo tempo recorrer à rede de dependência que envolvia senhores e cativos são<br />

subsídios que nos permitem insinuar sobre os cálculos cotidianos de um homem<br />

que conhecia de perto a lógica da autoridade e da subordinação. Neste caso, o que<br />

menos importa é se Francisco era ou não escravo, mas sim o modo como instrumentalizou<br />

politicamente sua condição social de subordinado e de supostamente<br />

cativo do desafeto de Rangel. Este, no mínimo, parece ter sido um fator que influiu<br />

no raciocínio do delegado, pois naquele mesmo dia cinco de agosto, após os desentendimentos<br />

com o coronel, o algoz de Francisco ordenou ao carcereiro João<br />

Bernardino de Abreu que o soltassem “imediatamente, visto ser o mesmo recrutado,<br />

segundo me consta, peão ou agregado do Coronel João Luis Gomes, o qual é meu<br />

inimigo capital” 26 .<br />

24 Auto de denúncia apresentado ao promotor público Joaquim José da Silveira, pelo delegado de polícia Juvêncio<br />

Juvino do Rego Rangel. APERS – Comarca de Rio Pardo, Cível e Crime, n.º 4704, maço 94, ano 1860. 06/08/1860.<br />

fls 4-5.<br />

25 THOMPSON, E.P. Costumes em Comum. Estudos sobre a Cultura Popular Tradicional. São Paulo: Companhia das Letras,<br />

2005, p. 57.<br />

26 Auto de soltura [sic] do preto Francisco Cardoso, expedido pelo delegado de polícia Juvêncio Juvino do Rego<br />

Rangel. 05/08/1860. APERS – Comarca de Rio Pardo, Cível e Crime, n.º 4704, maço 94, ano 1860. fls 34.<br />

288


Francisco saiu novamente de cena, não foi ouvido no processo. Contudo, a<br />

pendenga entre aqueles homens ainda teria novas repercussões. Outrossim, mesmo<br />

que o panorama daquela polêmica de cor política nos remeta a um conflito nascido<br />

na fronteira entre facções locais, parece lícito imaginar que tais embates não forma<br />

protagonizados por indivíduos mecânicos ou demasiadamente racionais, mas por<br />

indivíduos cujos comportamentos eram atravessados por um repertório de sentimentos<br />

variados, nascidos nos bojo de tensões anteriores à prisão daquele simples<br />

homem de cor.<br />

“AMEAçA-ME ESSE JUIZ COM UM PROCESSO,<br />

O QUE RESPONDO COM UMA RISADA...”<br />

Os embates pessoais entre João Luis Gomes e Juvêncio Juvino do Rego Rangel<br />

não eram tão recentes. Até onde sabemos, eles se agudizaram numa acalorada<br />

qualificação eleitoral. Mais especificamente, no dia 25 de abril de 1859, quando no<br />

consistório da igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário do Rio Pardo, o então juiz<br />

municipal Juvêncio Rangel foi surpreendido pelo coronel. Na ocasião, o líder da facção<br />

saquarema não só observou ao juiz que vinha pessoalmente receber as sentenças<br />

dos recursos eleitorais despachados, como, também, intrepidamente meteu a mão<br />

no bolso e sobre a mesa jogou um maço de papel cujo conteúdo lançava suspeita sob<br />

a isenção política do presidente do conselho municipal de recursos eleitorais27 . Instilado<br />

pelo que definiu como fruto de uma “acintosa arquitetura política” esboçada<br />

a partir do dia em que a junta de qualificação havia sido instalada, João Luis Gomes<br />

não economizou palavras para também atacar o coronel José Joaquim de Andrade<br />

Neves. Conhecendo intimamente seu principal adversário político e consciente de<br />

que sua influência teria peso na lista final de votantes, João Luis Gomes assim se<br />

dirigiu aos “Ilustríssimos senhores do Conselho Municipal de Recurso”:<br />

[...]Esse juiz trata de respeitável a junta de qualificação sem saber talvez<br />

o que exercem, porque para qualquer tribunal se torna respeitável<br />

é preciso que não se deixe corromper por empenhos, utilidades próprias,<br />

ou partidos políticos; e desde o dia que essa junta se instalou, já<br />

se fazia recomendações para não haver esquecimento de qualificarem<br />

o Tenente [Miguel Pereira de Oliveira] Meireles que estava em Porto<br />

Alegre. Sendo por fim o nome dele mandado escrever no final da lista<br />

geral dos votantes pelo Chefe desorganizador deste município às cin-<br />

27 Depoimento de Francisco de Paula Liz, escrivão do judicial e notas do município. APERS – Comarca de Rio<br />

Pardo, Júri, Maço: 02, Processo Crime, n.º 47, 1859, fls.29v e 30r.<br />

289


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

co horas da tarde da véspera do dia que deveria assinar esta lista o que<br />

submissamente animaram os membros da junta esquecendo-se assim<br />

do cumprimento da lei e só tendo em vista a obediência à vontade<br />

desse que reconheciam como por seu chefe [...];Agora, ameaça-me<br />

esse juiz com um processo, o que respondo com uma risada, pois só<br />

teria medo de processo quando me forem eles instaurados por prevaricações<br />

ou outros crimes semelhantes. [...] Rio Pardo, vinte e cinco de<br />

abril de 1859. João Luis Gomes. 28<br />

Embora longo, o documento não poderia deixar de ser citado praticamente<br />

na íntegra. Não é demais referir a escassez de fontes como os recursos eleitorais,<br />

mais ainda por se tratarem de documentos que podem nos oferecer pistas sobre os<br />

grupos que disputavam palmo a palmo o controle político local. Além disso, é possível<br />

visualizar relances de um ambiente atravessado por conchavos e manobras que<br />

se colocavam em evidência ao longo das etapas de preparação dos pleitos eleitorais.<br />

Ainda que a lei conferisse o direito de recurso eleitoral a qualquer cidadão, a<br />

prerrogativa transcendia as especificidades legais. Habituados a buscar subterfúgios<br />

para denunciar seus adversários, sobretudo quando urgia a necessidade de firmar<br />

oposição, sujeitos com certa influência já adquirida se valiam dessas prerrogativas<br />

institucionalizadas para denunciar publicamente os membros da facção no poder.<br />

Normalmente à frente de uma facção alternativa, um líder político rival testava o<br />

poder de seu competidor acusando-o de atos ilegais nas etapas que antecediam os<br />

pleitos ou nas eleições propriamente ditas. 29 Foi o que João Luis Gomes não deixou<br />

de fazer ao acusar Juvêncio Rangel de mandachuva político de Joaquim José de Andrade<br />

Neves, por ele reconhecido como “chefe desorganizador” do município. Sob<br />

este ponto de vista, o recurso eleitoral apresentado além de um direito de contestação<br />

ao poder de mando exercido pelo Liberal Progressista Andrade Neves, também<br />

pode ser pensado como um instrumento político acionado contra a “opinião pública<br />

corrupta” e de reivindicação da “honra, dignidade e ordem”.<br />

João Luis Gomes sabia que desafiar uma liderança local e seus seguidores<br />

exigia certa capacidade de enfretamento, principalmente por se tratar de sujeitos<br />

aquilatados politicamente. Em outras palavras, e com certa obviedade, é coerente<br />

considerar que o coronel não iria aventurar-se ao enfrentamento caso não tivesse<br />

consciência dos recursos que para tanto dispunha. Questionar a conduta pública do<br />

28 Documento apresentado por João Luis Gomes ao Conselho Municipal de Recursos Eleitorais. APERS – Comarca<br />

de Rio Pardo, Júri, Maço: 02, Processo Crime, n.º 47, 1859. Anexo, fls.21 – 25. (grifo meu)<br />

29 GRAHAM, Richard. Clientelismo e Política no Brasil do século XIX..., p. 165.<br />

290


juiz Juvêncio Rangel e também fustigar seu cunhado José Joaquim de Andrade Neves<br />

talvez fosse uma ação estimulada pelo seu interesse de expor e reiterar prestígio,<br />

o que poderia evidenciar sua capacidade para enfrentar publicamente seus adversários.<br />

Por outro lado, fazer-se ver capaz para tanto aos olhos de seus concidadãos<br />

e das autoridades superiores do Império era parte integrante e necessária de toda a<br />

parafernália que constituía a luta política, pois, de outro modo, somente com ações<br />

de violência explícita poderia evidenciar sua capacidade de criar uma clientela e fazer<br />

parte do jogo político graúdo.<br />

Mas Juvêncio Rangel não estava sozinho naquela peleja. Ciente da necessidade<br />

de reiterar constantemente sua imagem enquanto homem público e imbuído pelo<br />

propósito de honrar os compromissos firmados com seus sectários, o bacharel não<br />

teve outra alternativa a não ser aceitar o confronto e, em face das “injúrias, insultos<br />

e insinuações” amargamente digeridas, contra-atacar o coronel no campo da justiça.<br />

Sua queixa foi acolhida pelo juiz municipal suplente Manoel Assumpção Vianna e<br />

João Luis Gomes viu seu nome citado numa intimação judicial. Porém, o coronel<br />

optou em esquivar-se da audiência marcada para o dia 21 de maio daquele ano de<br />

1859 30 . Talvez, a necessidade de estabelecer adequada estratégia para enfrentar a escaramuça<br />

tenha concorrido para que decidisse não comparecer em juízo³¹.<br />

Ainda que João Luis Gomes não tivesse comparecido à audiência, as testemunhas<br />

arroladas por Juvêncio Rangel foram ouvidas em juízo. O primeiro a depor<br />

foi o vereador municipal Antônio José Martins de Menezes, à época com 28 anos de<br />

idade e praticante do ofício de comerciante. Menezes pouco ou quase nada disse sobre<br />

o ocorrido. Apenas considerou que havia ouvido ruídos sobre o desentendimento<br />

entre aqueles cidadãos e que no caso “dela testemunha passar por situação idêntica,<br />

também se sentiria injuriado”. Com mesma opinião se manifestou o comerciante<br />

e capitão da Guarda Nacional Antônio José Landim. Em seu depoimento salientou<br />

30 Intimação expedida pelo juiz municipal suplente Manoel Assumpção Vianna, 18 de maio de 1859. APERS – Comarca<br />

de Rio Pardo, Júri, Maço: 02, Processo Crime, n.º 47, 1859.<br />

31 A intimação foi assim respondia pelo Coronel João Luis Gomes: Acho-me doente de um pé desde que cheguei a<br />

este lugar [Fazenda das Ouveiras] e sem poder montar a cavalo, por isso não compareço no dia 21 do corrente como<br />

quer o senhor tenente coronel reformado, que, por má conduta habitual e o mais que consta do Conselho de Guerra<br />

a que respondeu não lhe tremeu a mão quando assinou um mandado para citar um coronel que sempre trilhou a<br />

estrada da honra a quem ora trata de criminoso. [...] E que talvez saiba de alguns bons bocados passados na Guarda<br />

Nacional do Rio Pardo, quando efetivamente exerceu o lugar de chefe do Estado Maior. Por isso senhor tenente<br />

coronel, se vossa senhoria tivesse dignidade, sendo nós como somos adversários há muito tempo, não deveria de<br />

aceitar ser juiz em pendência que comigo se movesse; mas cá, deste meu retiro das Ouveiras, eu bem calculei que só<br />

Vossa Senhoria no meu Rio Pardo poderia querer ser juiz no tal processo Juvêncio. Lembre-se, porém, que este processo<br />

não há de ser tão gostoso como foi o da dispensa do serviço de destacamento do filho do finado José Ferreira<br />

da Costa Terra. Fazenda das Ouveiras, 19 de maio de 1859. Coronel João Luis Gomes. Resposta à intimação expedida<br />

pelo juiz municipal suplente, o tenente coronel José Manoel de Assunção Viana ao coronel João Luis Gomes da<br />

Silva, em 18/05/1859. APERS – Comarca de Rio Pardo, Júri, Maço: 02, Processo Crime, n.º 47, 1859. fls. 26 e 27.<br />

291


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

que se inteirou dos fatos após ser noticiado por várias pessoas da localidade, todavia,<br />

concordava com o queixoso na medida em que se a ele testemunha fosse dirigida<br />

ofensa semelhante também se sentiria injuriado. O último a depor foi o tabelião do<br />

judicial e de notas Francisco de Paula Liz, homem de 44 anos e única testemunha<br />

ocular do desentendimento. Aparentemente bem relacionados, o tabelião e o coronel<br />

haviam se encontrado logo cedo na residência do primeiro, de onde seguiram<br />

para igreja pouco antes das nove horas. Contudo, mesmo com “mágoa”, revelou<br />

“não poder deixar de confessar” que as expressões utilizadas pelo amigo denotaram<br />

“injúrias graves”³². O processo correu a revelia do coronel João Luis Gomes e, ao<br />

que parece, a economia de palavras das testemunhas refletiu-se sobre o seu desfecho.<br />

É verdade que o embate no âmbito formal da justiça se polarizou entre o<br />

coronel e o juiz. Porém, um “dossiê” montado pelo bacharel e seus correligionários<br />

não só ilustra que àqueles pólos conflitantes sujeitos outros estavam associados,<br />

como, também, revela a manobra política utilizada para comprovar os traços temperamentais<br />

e os abusos praticados por João Luis Gomes, inclusive contra alguns de<br />

seus pares na pirâmide social. Conforme observou o juiz na queixa crime, constava<br />

no currículo do “odioso homem que tem por norma habitual e costume insultar<br />

impulsivamente a quase todos”, a forma desrespeitosa com que tratou “os restos<br />

mortais do infeliz Major João Manoel de Lima e Silva, então general dos dissidentes,<br />

durante a desgraçada revolução que assolou esta leal e valorosa província”. Contando<br />

com o auxilio de Andrade Neves, então comandante do Estado Maior da Guarda<br />

Nacional de Rio Pardo e Encruzilhada, Rangel teve acesso a cópia da ordem do dia<br />

na qual constava o relaxamento da prisão do à época capitão João Luis Gomes 33 .<br />

Mas Andrade Neves fez mais. Demonstrando efetiva solidariedade política a<br />

Rangel “rogou” ao Tenente-Coronel Manoel Assumpção Vianna para que o militar<br />

dissesse “quem foi o oficial que foi à Vila e desmanchou o túmulo ou catacumba do<br />

falecido Major João Manuel de Lima e Silva, então general dos rebeldes”; solicitou<br />

ainda que fosse informado por escrito sobre a “maneira por que foi desmancha-<br />

32 APERS – Comarca de Rio Pardo, Júri, Maço: 02, Processo Crime, n.º 47, 1859. fls. 29 e 30.<br />

33 “Exmo. Senhor Barão de Caxias, presidente e comandante em chefe do Exército, [...] manda publicar para que<br />

se cumpra o seguinte: Seja relaxado da prisão em que se acha o Sr. Capitão do 11º Corpo de Cavalaria de Guardas<br />

Nacionais João Luis Gomes da Silva e repreendido pela falta de subordinação com que se houve para com seu Major,<br />

como se acha provado no conselho de investigação que se procedeu sobre a parte dada pelo senhor dito Major.<br />

Sua Exa. está convencida de que a simples cerceação [sic] que tem sofrido o dito capitão Gomes da Silva será mais<br />

do que suficiente para por termo as suas maneiras pouco atenciosas para com seus superiores”. Quartel General<br />

do Comando em chefe do Exército, nesta leal cidade de Porto Alegre. 30 de dezembro de 1842. Ordem do dia n.º<br />

11.Documento anexo à queixa crime. APERS – Comarca de Rio Pardo, Júri, Maço: 02, Processo Crime, n.º 47, 1859.<br />

34 Carta de José Joaquim e Andrade Neves a Manoel Assumpção Vianna. Rio Pardo, 8 de fevereiro de 1859. Documento<br />

anexo à queixa crime. APERS – Comarca de Rio Pardo, Júri, Maço: 02, Processo Crime, n.º 47, 1859.<br />

292


do”. Finalizou o pedido reiterando ao seu sectário para que não se negasse de dizer<br />

a verdade, assim como “considerar-me a apresentar a resposta disto quando seja<br />

preciso” 34 . Andrade Neves obteve a reposta de Manoel Vianna tão logo às suas<br />

mãos chegou a correspondência. Sem titubear e “com estima e particular amizade”<br />

considerou que em 1841, quando marchava com 2º Batalhão de Caçadores de<br />

Linha, encontrou uma “força de Cavalaria a pé” na Vila de Caçapava; não ocasião,<br />

“disseram-lhe que iam arrasar o Túmulo do General dos Farrapos o Major João<br />

Manoel de Lima e Silva debaixo do comando do capitão então seu ajudante de nome<br />

João Luis Gomes”. 35<br />

Não obstante o desejo de oferecer outras notícias sobre os meandros do atentado<br />

praticado contra os restos mortais do farroupilha João Manoel de Lima e Silva,<br />

acredito não ser o caso de fazê-lo neste momento. Outrossim, parece claro que independentemente<br />

do lado em que “rebeldes” ou “valorosos legalistas” estavam, alguns<br />

códigos de conduta se impunham aos contemporâneos daquela sociedade. O episódio<br />

ficou registrado na memória regional, pois, como lembrou Juvêncio Rangel,<br />

representou um “feito estranho e horroroso nos anais da história das nações cultas”.<br />

Quanto aos documentos propriamente ditos, José Joaquim de Andrade Neves não<br />

deixou de observar ao juiz Rangel que o mesmo poderia “fazer o uso que desta quiser<br />

fazer”. De forma astuta, também informou seu sectário que possuía mais duas<br />

cartas com o mesmo teor emitidas por “dois cidadãos distintos, sendo um General<br />

que me escreveu”. Blefe ou não, o futuro Barão do Triunfo registrou que não as<br />

mandaria por cópia em virtude de não tê-las em “[seu] poder nesta Vila”, contudo,<br />

“para o que convier asseguro a VSa serem do mesmo teor do que diz esta” 36 .<br />

Circunstancialmente em desvantagem, o coronel João Luis Gomes acabou<br />

condenado “a quatro meses e meio de prisão e multa correspondente a metade do<br />

tempo de reclusão” 37 . Mas valendo-se do direito de recurso, apelou da sentença ao<br />

juiz de direito da Comarca de Rio Pardo, o Dr. Antônio Cerqueira Lima Júnior. Sem<br />

poder, contudo, contar diretamente com os “préstimos” do recém conhecido magistrado,<br />

visto ter se afastado temporariamente do cargo sob a justificativa de “atacar<br />

35 Carta de Manoel Assumpção Vianna a José Joaquim e Andrade Neves. Rio Pardo, sem data. Documento anexo à<br />

queixa crime. APERS – Comarca de Rio Pardo, Júri, Maço: 02, Processo Crime, n.º 47, 1859<br />

36 Correspondência emitida por José Joaquim e Andrade Neves a Juvêncio Rangel. Rio Pardo, 28/04/1859. Documento<br />

anexo à queixa crime. APERS – Comarca de Rio Pardo, Júri, Maço: 02, Processo Crime, n.º 47, 1859<br />

37 Sentença pronunciada pelo juiz municipal suplente Joaquim Manoel de Assumpção Vianna, 23/05/1859. APERS<br />

– Comarca de Rio Pardo, Júri, Maço: 02, Processo Crime, n.º 47, 1859, fl. 30.<br />

38 Carta emitida por João Luis Gomes a Pedro Rodrigues Chaves. Rio Pardo, 23 de maio de 1859. AINSPRP -Borrador<br />

de correspondências de João Luis Gomes.<br />

293


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

a moléstia que lhe acometia o peito” 38 , João Luis Gomes apresentou o recurso ao<br />

segundo suplente Dr. Júlio Armando de Castro, então juiz municipal de Cachoeira.<br />

Ao poucos, o embate travado na justiça foi oferecendo novas pistas sobre as<br />

redes de relações que aqueles sujeitos entretinham. Juvêncio Rangel era “amigo íntimo”<br />

de Armando de Castro, havia sido inclusive “testemunha” de seu casamento.<br />

O elo de amizade entre aqueles bacharéis foi observado por João Luis Gomes como<br />

um impedimento legal para que o juiz de Cachoeira apreciasse sua apelação. 39 Nestes<br />

termos, o julgamento ficou aos encargos de João Thomaz de Menezes, substituto<br />

imediato do compadre de Rangel.<br />

Até onde foi possível saber, não há elementos suficientes para deduzir que<br />

o juiz de direito suplente da comarca de Rio Pardo tivesse algum tipo de laço mais<br />

sólido (parental ou não) com o coronel João Luis Gomes. Nesse sentido, também<br />

fica a dúvida quanto ao tipo de relação que Menezes e Rangel poderiam ter e se é<br />

que tiveram alguma. De qualquer forma, o fato é que, apesar do esforço mobilizado<br />

em torno da condenação de João Luis Gomes, a sentença foi reformada no dia 25<br />

de junho de 1859. Thomaz de Menezes considerou que o processo não obedeceu<br />

às aplicações ordinárias da lei. No seu entender, a circunstância exigia que antes da<br />

efetiva pronúncia criminal, a parte acusatória “pedisse explicações” ao acusado “em<br />

juízo ou fora dele, como exige o artigo 240” do Código Criminal do Império. 40 Não<br />

tendo Rangel “satisfeito a este preceito da lei para que se pudesse verificar a existência<br />

do delito”, o juiz observou que a “causa” correu a revelia de Gomes, “ficando ele<br />

inibido de defender-se no juízo de primeira instância”. Além das questões de ordem<br />

prática que a lei impunha, o “meritíssimo julgador” sublinhou a subjetividade inerente<br />

aos termos “insolente”, “insolência” e “orgulho”. Segundo o juiz, as diversas<br />

acepções, “umas inofensivas e outras injuriosas”, impunham e ao mesmo tempo<br />

reforçavam a caráter duvidoso do sentido que foram empregados nos documentos.<br />

Diante disso, considerou infundada a acusação e a respectiva sentença 41 .<br />

É elementar a assertiva de que o historiador não pode se deixar contagiar pelo<br />

conteúdo da informação instantaneamente oferecida pela fonte. Todavia, indepen-<br />

39 Auto de protesto apresentado pelo coronel João Luis Gomes da Silva, 11/06/1859. APERS – Comarca de Rio<br />

Pardo, Júri, Maço: 02, Processo Crime, n.º 47, 1859, fl. 36.<br />

40 O coronel João Luis Gomes havia sido pronunciado pelo crime de injúrias verbais e a ele imputado “o grau máximo<br />

das penas do art. 237 § 2º do Código Crime, combinado com art. 238 do mesmo código”.<br />

41 Auto de julgamento de segunda instância. Cachoeira, 27/06/1959. APERS – Comarca de Rio Pardo, Júri, Maço:<br />

02, Processo Crime, n.º 47, 1859. fls 56-57.<br />

42 SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Língua Portuguesa. Tomo 2, Lisboa, Tipografia Lacerdina, 1813, p. 173<br />

294


dentemente do acesso às pistas pontuais sobre as motivações que levaram Thomaz<br />

de Menezes a absolver João Luis Gomes, aparentemente não foi a quebra da rotina<br />

jurídica exigida pelo Código de Processo Crime, tampouco a ambigüidade dos termos<br />

utilizados pelo coronel os elementos determinantes no julgamento do magistrado<br />

de Cachoeira. Resta bastante claro que o termo “insolente” utilizado pelo coronel<br />

torna-se sinônimo acusatório de um suposto “crime de grande escândalo” 42 público<br />

a que Rangel havia se prestado. Também não resta incerteza quanto ao qualificativo<br />

utilizado para contrapor pessoalmente os despachos efetuados por Rangel. Ao afirmar<br />

que o juiz presidente do Conselho de Recursos não sabia “respeitar a honra de<br />

seus semelhantes, caindo no mesmo vício de seus algozes e irrogando ao apelante<br />

as mais atrozes injúrias”, fica claro que o coronel interpretou o ato de seu desafeto<br />

como uma “insolência” no sentido de um “desaforo, atrevimento, arrogância, arrojamento<br />

extraordinário” 43 ; no seu entendimento, algo que feriu o “orgulho” 44 de um<br />

homem de alma elevada que se tinha como “nobre”, “pessoa egrégia, condecorada”<br />

e que deveria ser tratada “com toda a urbanidade”.<br />

O caso foi encerrado no âmbito da justiça e o senhor da Fazenda das Ouveiras<br />

demonstrou sua capacidade de firmar oposição ao bando político liderado por<br />

Andrade Neves. Contudo, não seria muito difícil supor que aqueles homens ainda<br />

iriam protagonizar novos reboliços na Rio Pardo dos tempos de Pedro II, ainda mais<br />

se considerarmos que o episódio se desenvolveu no rastro de tensões animadas por<br />

acirradas disputas em torno do controle político local. Essas possibilidades de fato<br />

viraram realidade, pois, como vimos, a correspondência do Tenente Coronel Pinto<br />

Porto, assim como a prisão de Francisco Cardoso e os embates entre João Luis<br />

Gomes e Juvêncio Rangel são alguns dos eventos que nos ajudam a refletir sobre<br />

aqueles jogos de disputas políticas locais e ainda se encontram a espera de análises<br />

que ampliem o microscópio de observação para além do recorrente estudo das elites<br />

como principais agenciadores das tramas do social. Em proximidade com homens<br />

de elite, os populares em geral (livres ou cativos) também eram agentes reais de<br />

histórias aparentemente fragmentadas, porém constituídas a partir de expectativas<br />

levadas a efeito na senda de uma deferência instrumental. Portanto, seus comportamentos<br />

e formas de interação social também denotavam protagonismo político.<br />

43 SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Língua Portuguesa... p. 174.<br />

44 “Orgulho: ufania; soberba, elevação da alma, nobre ou repreensível segundo os motivos [...]”. SILVA, Antonio<br />

de Moraes. Diccionario da Língua Portuguesa... p. 369.<br />

295


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

296<br />

PALAVRAS FINAIS<br />

Em tempos que a historiografia volta-se cada vez mais para as dimensões<br />

políticas das tramas do social, parece possível falarmos numa história social das culturas<br />

políticas decididamente voltada para o enfoque dos comportamentos, sentidos<br />

e ações dos atores sociais. Focada na idéia de que por trás da ação social existem<br />

repertórios culturais com os quais, e em relação aos quais, os atores se movem, a<br />

recente historiografia tem demonstrado que as ações individuais e/ou coletivas não<br />

se situam em nível superficial, mas que possuem um determinado sentido anterior,<br />

um sentido que é adquirido e ressignificado de forma gradual pelos atores sociais.<br />

Sob essa perspectiva, amplia-se o espectro de análise em relação ao comportamento<br />

individual, aos mecanismos de consciência e aos significados atribuídos pelo atores<br />

em relação a uma dada realidade e forma de ação. Em outras palavras, significa dizer<br />

que toda a ação individual pode ser considerada uma ação social e política ao mesmo<br />

tempo, pois se origina de uma acumulação de conhecimentos e de interações concretas<br />

entre os atores implicados numa dada configuração relacional.<br />

De um modo geral, poderíamos considerar que não faltam motivos para que o<br />

social seja interrogado sob novas lentes. Do ponto de vista da história social, destaca-se<br />

o interesse cada vez maior pelos grupos e suas dinâmicas sociais; no amplo espectro<br />

de abordagem do social não interessa apenas quem são os indivíduos (se senhores,<br />

populares, comerciantes, militares, escravos ou trabalhadores em geral), mas o que<br />

esses indivíduos fazem, suas práticas sociais (com quem casam, com quem comerciam,<br />

com quem se aliam ou quem se enfrentam). Convertida em história do poder e suas<br />

práticas, a nova historiografia da política tem buscado indagar com maior precisão que<br />

tipos de poderes existem numa dada formação social, sobre suas bases legitimadoras,<br />

suas formas de exercício, linguagens e conteúdos convertidos em ação política 45 .<br />

Assim sendo, perseguir respostas em torno do processo de formação de<br />

clientelas, da prática política paternalista de integração e de dominação exige que o<br />

pesquisador leve em conta os aspectos concernentes às interações sociais efetivas<br />

que ligam sujeitos com recurso (materiais e imateriais) desiguais. Quando nos deparamos<br />

com um emaranhado de ligações entre sujeitos imersos em relações de poder<br />

como as que fundamentam as redes de ordem clientelar e paternalistas, nos damos<br />

conta de que seus comportamentos não podem ser considerados como decorrentes<br />

de um simples “agregado de relações sociais”. Talvez, mais proveitoso possa ser buscar<br />

compreendê-las a partir de uma concepção de rede de relações sociais que seja<br />

capaz de privilegiar as interações contínuas das diferentes estratégias individuais 46 .<br />

45 PILAR, Ponce Leiva; ARRIGO, Amadori. Historiografía sobre élites en la América Hispana: 1992-2005. Chronica<br />

Nova. n.º32. Granada, 2006.<br />

46 BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro/RJ: Contra Capa Livraria, 2000.<br />

p. 170.


Nesse sentido, a ênfase de observação recai sobre os vínculos (temporários ou duradores)<br />

que se estabelecem entre os indivíduos suas formas de ação social baseadas<br />

nesses vínculos.<br />

Assim pensadas, as relações interpessoais passam a ser interpretadas como<br />

um espaço de interação política que articula diferentes esferas da sociabilidade. Todavia,<br />

as unidades sociais (sujeitos, famílias ou facções) não podem ser consideradas<br />

de modo isolado, como links relacionados às normas que definem um conjunto<br />

de práticas e expectativas recíprocas, mas como um espaço de interação que liga o<br />

poder, a cooperação e o conflito em uma determinada configuração social 47 . Talvez<br />

não seja demasiado considerar que a análise das relações interpessoais pode nos<br />

oferecer possibilidades para descrevermos os comportamentos e ações sociais de<br />

sujeitos singulares diante das limitações de uma realidade normativa intrínseca à<br />

sociedade (ou sistema social) estudada, pois, como observou Giovanni Levi, “toda<br />

ação social é vista como resultado de uma constante negociação, manipulação, escolhas<br />

e decisões do indivíduo, diante de uma realidade normativa que, embora difusa,<br />

não obstante oferece muitas possibilidades de interpretações e liberdade pessoais”.<br />

Portanto, a questão conforme Levi, passa a ser a de “como definir as margens – por<br />

mais estreitas que possam ser – da liberdade garantida a um indivíduo pelas brechas<br />

e contradições dos sistemas normativos” 48 .<br />

Definir empiricamente essas interações, assim como as margens de liberdade<br />

e de ação dos atores sociais não resta tarefa simples. Ainda mais se tratando de formas<br />

relacionais configuradas entre sujeitos que viveram num tempo relativamente<br />

distante do nosso e que infelizmente não temos como entrevistá-los como fazem os<br />

antropólogos ou cientistas políticos. Enquanto historiadores nos restam apenas possibilidades<br />

de acessar fragmentos, restos, vestígios instantâneos daquelas interações<br />

sociais. Giovanni Levi já observou que “los hombres son todos iguales y, en teoría,<br />

todos tienen la razón, aunque producen comportamientos y actuaciones distintas,<br />

dependiendo de la cantidad de información que poseen” 49 . Nesse sentido, para além<br />

dos limites impostos pela distância temporal parece ser a utilização criativa dos fragmentos<br />

que nos chegam através de papéis envelhecidos depositados em diferentes<br />

fundos documentais as ferramentas que poderão nos auxiliar a detectar não apenas<br />

como operavam as interconexões sociais, senão, como essas se convertiam em vínculos,<br />

informações, recursos através do quais se efetivava distintas racionalidades.<br />

47 MOUTOUKIAS, Z; DEDIEU, J. P.. Introduction. In: CASTELLANO, J. L.; DEDIEU, J. P. Réseaux, familles et<br />

pouvoirs dans le monde ibérique à la fin de l’Ancien Régime. Paris: CNRS Éditions. 2002. p. 09.<br />

48 LEVI, Giovanni. Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter. A escrita da História: novas perspectivas. Trad. Magda<br />

Lopes. São Paulo: UNESP. 1992. p. 135<br />

49 LEVI, Giovanni. Antropologia y microhistoria... In: Revista Manuscrits, Barcelona nº 1, Enero,1993, p.24.<br />

297


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Portanto, podemos concluir que no campo de reflexão no qual se encontra<br />

o debate sobre redes sociais e sua aplicabilidade na pesquisa histórica, os vínculos<br />

sociais situam-se como elementos fundamentais da análise. Pois o que interessa ao<br />

pesquisador são as formas como eles operam na constituição de um corpo político,<br />

nas redes de poder e no modo como são transmitidos e/ou redistribuídos recursos,<br />

serviços e saberes; em fim, como essas articulações colocam os atores sociais em<br />

dinâmicas e processos históricos.<br />

Assim observadas, as sociedades do passado poderão ser compreendidas de<br />

um modo mais próximo da realidade vivida. Estudar os atores sociais a partir de uma<br />

perspectiva mais abrangente e dedicada a compreender os diálogos sociais efetivos,<br />

exige que se leve em conta a globalidade dos elementos que constituem os atores<br />

sociais e que sobre suas relações convergem: os contextos e os processos sociais.<br />

Conforme observou José Maria Imízcoz, será deste modo que a história de homens<br />

e mulheres como atores históricos poderá ser uma historia social da política, das instituições,<br />

da economia, da sociedade e da cultura. Em síntese, sob o ponto da vista<br />

dos estudos históricos, os modelos de análise focados nos atores sociais e em suas<br />

redes deve atentar para tudo o que os historiadores e cientistas sociais tem aprendido<br />

com o tempo:<br />

la relación entre acção racional y habitus, la relacipon entre decisión<br />

individual y sistemas normativos; la relacipon entre redes de indivíduos<br />

e instituiciones politicas y sociales; la relación entre las realidades<br />

económicas materiales y las visiones de los actores sociales; las experiencias<br />

productivas, laborales, societarias y la generación de formas<br />

de conciencia, de ideología y de acción social y política; la historia diferencial<br />

de grupos con dinámicas y endogamias diferentes que puedem<br />

convivir tangencialmente, sin encontrarse apenas, hasta que se intersectan<br />

y entran em conflicto abierto o en procesos revolucionarios50 .<br />

Certamente não seria nos espaço deste texto o momento para oferecermos<br />

resultados finais de uma pesquisa em andamento. Antes, nossa expectativa é a de<br />

apenas abrir espaço para o debate sobre as potencialidades que o recurso analítico<br />

das redes pode oferecer para a análise dos vínculos sociais entre os quais entram<br />

os de amizade e camaradagem, assim como sobre seus desdobramentos no campo<br />

das disputas políticas locais. Por meio de correspondências e de processos criminais<br />

buscamos oferecer indícios sobre eventos que envolveram sujeitos com diferentes<br />

gradações sociais. Com essa perspectiva tentamos oferecer vestígios de relações de<br />

50 IMíZCOZ, José Maria. Introducción: Actores sociales y redes de relaciones: reflexiones para una historia global.<br />

________(dir.). Redes familiares y patronazgo. Aproximación al entramado social del País Vasco y Navarra en el Antiguo Régimen<br />

(siglos XV-XIX). Bilbao: Universidad del País Vasco, 2001, p. 29.<br />

298


poder imersas em relações pessoais nas quais se negociavam lealdades por proteção<br />

social, como a que envolveu João Luis Gomes da Silva e seu camarada Francisco<br />

Cardoso; sobre os intercâmbios recíprocos entre indivíduos com recursos e necessidades<br />

similares dentro de um contexto de sociabilidade e de confiança, como foi<br />

o caso do apoio oferecido por Joaquim José de Brito, Patrício Falkenback e José<br />

Joaquim de Andrade Neves à causa de Juvêncio Rangel. Na senda dessas dinâmicas<br />

relacionais também pensamos ter consegui desvelar alguns fragmentos do jogo de<br />

poder e influência que atravessava e, ao mesmo tempo, interconectava as facções<br />

políticas locais no campo das disputas por facilidades de acesso aos intercâmbios de<br />

serviços entre poderosos e seus dependentes.<br />

299


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

300<br />

SiglaS<br />

AHRS - Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul<br />

APERS - Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul<br />

Acervo da Irmandade de Nosso Senhor dos Passos – Rio Pardo<br />

C.Cav. - Corpo de Cavalaria<br />

GN - Guarda Nacional<br />

FONTES PESQUISADAS<br />

Correspondência 22º C.Cav. maço n.º 97. Guarda Nacional - Rio Pardo – AHRS<br />

Processo Crime n.º 4704, maço 94, ano 1860. Cível e Crime, Comarca de Rio Pardo<br />

– APERS.<br />

Processo Crime, n.º 47, maço 02, ano 1859. Júri, Comarca de Rio Pardo - – APERS.<br />

Borrador de correspondências de João Luis Gomes (sem especificação) – AINS-<br />

PRP<br />

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301


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SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Língua Portuguesa. Tomo 1, Lisboa, Tipografia<br />

Lacerdina, 1813.<br />

______. Diccionario da Língua Portuguesa. Tomo 2, Lisboa, Tipografia Lacerdina, 1813.<br />

THOMPSON, E.P. Costumes em Comum. Estudos sobre a Cultura Popular Tradicional. São<br />

Paulo: Companhia das Letras, 2005.<br />

VARGAS, Jonas Moreira. Entre a paróquia e a Corte: Uma análise da elite política do Rio<br />

Grande do Sul (1868-1889). Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul.<br />

Dissertação de Mestrado, PPGH, 2007.<br />

302


do Provedor à rede de soCiAbilidAde<br />

Paula Andrea Dombkowitsch Arpini<br />

Resumo: O artigo busca analisar algumas redes de sociabilidade de Inácio Osório Vieira, que<br />

foi provedor da Capitania do Rio Grande de São Pedro, subalterna do Rio de Janeiro, durante mais<br />

de 30 anos, no período que se entende aproximadamente de 1765 até 1799. O recorte temporal da<br />

pesquisa será de 1760, com a chegada de Inácio Osório a Capitania de São Pedro, até 1798, com o fim<br />

definitivo da Provedoria da Fazenda Real. Mediante a trajetória individual de Inácio Osório Vieira, buscaremos<br />

evidenciar como as práticas individuais deste oficial régio podem revelar aspectos importantes<br />

da trama social, contribuindo para entendermos como ele foi tecendo suas relações sociais, em constantes<br />

negociações com as elites locais e seus subalternos para viabilizar sua administração enquanto<br />

provedor da Fazenda Real.<br />

Palavras-chave: Provedor – Espaços de Interação – Redes de Sociabilidade<br />

INTRODUçãO<br />

O<br />

presente artigo tem por objetivo contribuir com algumas<br />

considerações sobre as redes de sociabilidade existentes na<br />

configuração do Império Ultramarino Português. O trabalho versa<br />

especialmente sobre o provedor Inácio Osório Vieira e as redes de sociabilidade nas<br />

quais esteve envolvido, enfocando suas relações de compadrio e sua participação das<br />

Confrarias Religiosas.<br />

A escolha de Inácio Osório se fez pelos atributos que definiam esse personagem,<br />

tais como as suas relações de poder, seus compadrios, seu status de provedor,<br />

além da reflexão que podemos fazer acerca do mando da Coroa no ultramar, as<br />

práticas da monarquia corporativa, como a concessão de dons e mercês e as tensões<br />

entre o público e o privado, típicas de sociedades de Antigo Regime. Sua trajetória,<br />

só interessa na medida em que foi provedor da fazenda, pois as opções de Osório<br />

estavam disponíveis a outros sujeitos desde que ocupassem seu cargo.<br />

O PROVEDOR<br />

Natural da cidade de Lamego, em Portugal, Inácio Osório Vieira era um homem<br />

de origem nobre que veio para Brasil, ao que tudo indica, com sua mãe, suas<br />

303


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

duas irmãs e um irmão, após a morte de seu pai, na tentativa de obter algum meio de<br />

sobrevivência. Ao vir para a América, Inácio Osório detinha consigo a possibilidade<br />

de alargamento de seu cabedal material. Numa percepção de mundo de sociedade<br />

hierarquizada Osório veio buscar meios para sobreviver mais conducentes “ao sangue<br />

de seus progenitores”¹.<br />

Já na colônia, Osório consegue ocupar alguns cargos em Santo Antonio de Sá<br />

no Rio de Janeiro² e na Ilha do Desterro de Santa Catarina³. Vem então para o Rio<br />

Grande de São Pedro onde se estabelece como Juiz de órfãos4 , Escrivão da Câmara5 e, posteriormente, provedor da Fazenda Real. 6<br />

órgão administrativo muito importante, a provedoria7 proporcionava inúmeros<br />

privilégios8 , bem como detinha uma determinada autonomia, podendo recorrer,<br />

em suas decisões, diretamente ao Vice-rei do Brasil. Segundo Cunha9 , o atributo<br />

central da função de um provedor “era em boa medida relacionada com sua posição<br />

econômica privilegiada e o crédito que gozava entre os outros homens de negócio”.<br />

Desta maneira, o cargo de provedor da Fazenda era muito valorizado, tanto devido<br />

às honras e liberdades de que dispunha, quanto pelo status social que proporcionava.<br />

A imagem de Inácio Osório como Provedor da Real Fazenda é a de um funcionário<br />

cumpridor e atento às determinações régias, dedicado, zeloso e honesto.<br />

No momento em que defendia os interesses da Coroa, Osório defendia, portanto,<br />

¹ AHU- Rio de Janeiro, Cx 67, doc. 15.784, Requerimento 14 de Abril de 1752.<br />

² AHRS Códice 1244, p. 121r-121v.<br />

³ AHU, Rio de Janeiro Caixa 58 doc. 13573. Requerimento, 15 de julho de 1748.<br />

4 Carta do ouvidor da Comarca Duarte de Almeida Sampaio, em que faz referência ao Juiz de órfãos Inácio Osório<br />

Vieira. ANRJ. Fundo Vice-Reinado. caixa 749, pct. 03, fl.41-52. Material fornecido pelo meu orientador professor<br />

Fábio Kühn.<br />

5 Registro de uma Provisão. AHRS. Códice F1243, p. 36, 36v, 37.<br />

6 AHPAMV. Códice 1.26, p. 60- 61v.<br />

7 A Provedoria da Fazenda Real do Rio Grande de São Pedro foi criada em 1748, juntamente com as Provedorias<br />

da Colônia do Sacramento e Santa Catarina. Um dos órgãos que viabilizaram o mando português na América foi<br />

o responsável por tudo que dissesse respeito aos contratos e rendas reais, como pagamento de côngruas e pelo<br />

recebimento do valor relativo à arrematação dos contratos de cobrança dos dízimos eclesiásticos. Além disso, ficava<br />

com um terço do valor recolhido pela Câmara do arrendamento do direito de exploração de seus bens e serviços<br />

públicos. Era responsável também pelo pagamento e munício de tropas, pagamento de clérigos, auxílio de povoadores<br />

e arrecadação de recursos para as despesas na manutenção do território. MIRANDA, Márcia Eckert. Continente<br />

do Rio Grande de São Pedro: a administração pública no período colonial. Porto Alegre: Assembléia Legislativa do Estado do<br />

Rio Grande do Sul. Ministério Público do Estado do RS/ CORAG, 2000, p. 89.<br />

8 Privilégios políticos, sociais ou mesmo mercantis. In: FRAGOSO, João. BICALHO, Maria Fernanda e GOUVêA,<br />

Maria de Fátima (Org.). O Antigo Regime nos Trópicos: A dinâmica imperial portuguesa. (Séculos XVI – XVIII). Civilização<br />

Brasileira: Rio de Janeiro, 2001, p. 44.<br />

9 CUNHA, Alexandre Mendes. Minas Gerais, da capitania à província: elites políticas e a administração fazendária em um espaço<br />

em transformação.Tese de Doutorado. UFF: Niterói, 2007, p. 263.<br />

304


o bem comum 10 . Na maioria dos documentos, além de expor seu zelo em relação<br />

ao Rei, coloca sua apurada “limpeza de mãos” 11 , denunciando os comércios ilícitos<br />

na Capitania, como o contrabando de mulas. Nesse sentido, era muito importante o<br />

“zelo” pelos assuntos régios, bem como o “desinteresse” diante de possíveis ambições<br />

particulares. O Rei, por ser justo, deve ter um bom vassalo, e este, por sua vez,<br />

deve responsabilidade com seu monarca.<br />

Esses dirigentes administrativos, como o provedor, obedeciam às determinações<br />

emanadas do poder central, e, ao mesmo tempo, teciam relações que recriavam<br />

o contexto político da prática cotidiana. Por isso, é necessário entendermos como<br />

funcionava essa monarquia corporativa e como essas redes sociais e políticas atravessavam<br />

variados espaços de interação.<br />

OS ESPAçOS DE INTERAçãO DA MONARQUIA<br />

CORPORATIVA<br />

Em uma monarquia corporativa como a do Antigo Regime era necessário que<br />

a Coroa tivesse capacidade de lidar e negociar com as elites coloniais, seja por distribuição<br />

de honrarias, títulos, concessão de privilégios ou mercês. Segundo Maria<br />

Fernanda Martins 12 essas estratégias de ação “não devem ser vistas como um projeto<br />

predeterminado, como um conjunto de ações coerentes e homogêneas por parte<br />

das elites”, mas sim como um movimento baseado em relações sociais em constante<br />

tensão. A concessão de mercês no ultramar - sistema de benesses – ou Economia de<br />

Serviços é uma prática comum que se estabelece a partir de redes de reciprocidade. A<br />

elite, então constituída por beneficiários do rei, monopolizava os principais cargos,<br />

em troca de serem bons súditos, ou vassalos. Nesse paradigma corporativista, o Rei é<br />

patrono e a sociedade é vista como um todo, onde as partes têm funções específicas<br />

e dependem umas das outras.<br />

10 A economia de bem comum pode ser entendida como um tipo de economia de serviços em que a elite monopolizava<br />

os principais cargos e ofícios. A partir do século XV, essa prática começou a ser transmitida no ultramar.<br />

A Coroa portuguesa concedia então postos administrativos ou militares, que proporcionavam além de ordenados,<br />

privilégios, isenções alfandegárias e honras. Essa prática de concessão de dons e mercês era muito comum na<br />

monarquia corporativa. FRAGOSO, João. A nobreza da República: nota sobre a origem da primeira elite senhorial do Rio de<br />

Janeiro (séculos XVI e XVII), Topi, número 1, Rio de Janeiro: 7Letras, 2000, pp. 94-101. FRAGOSO, 2001, pp. 43-50.<br />

11 AHRS. Códice F1244 , p.147.<br />

12 MARTINS, Maria Fernanda. Os tempos da Mudança: elites, poder e redes familiares no Brasil, séculos XVIII e<br />

XIX. In: FRAGOSO, João. CARVALHO de ALMEIDA, Carla Maria e SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de (org.).<br />

Conquistadores e Negociantes. : História de elites no Antigo Regime dos Trópicos. América Lusa, Séculos XVI a XVIII. Rio de<br />

Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 430.<br />

305


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

A intricada rede de cargos e jurisdições que viabilizavam a presença da<br />

autoridade régia, identificando o bom governo à aplicação da justiça,<br />

constituía-se numa extensa rede de clientela cujo patrono era o próprio<br />

rei, pessoalmente ou na figura de seus conselhos ou tribunais. [...]<br />

é a partir dessa relação que se pode caracterizar a lógica comum que<br />

informava as estratégias dos diferentes agentes na disputa por ganhos<br />

materiais ou simbólicos13 .<br />

Percebemos assim, que as redes clientelares se estabelecem nas práticas desse<br />

universo político do Antigo Regime, perpassando inclusive a sua dimensão política<br />

(formal), na flexibilidade da economia de favores (informal). Essa economia reforçava<br />

e legitimava a hierarquia social, na medida em que colaborava para o processo de<br />

constituição e reprodução das redes clientelares. Nessa perspectiva, existia a disputa<br />

de cargos, que possibilitava para os vassalos uma determinada mobilidade social,<br />

com ganhos simbólicos ou/e materiais. O Rei ou benfeitor tinha flexibilidade para<br />

se fazer valer disso, mantendo um determinado poder sobre as ações de restituição<br />

e redistribuição de mercês. “Mais do que um rei acima das disputas, tem-se um rei<br />

imerso nelas” 14 .<br />

Em vista disso, esses benfeitores poderiam ser intermediários, como o Vice-<br />

Rei do Brasil, ou o governador, o provedor, um agente da Câmara, ou até mesmo<br />

um estancieiro. A questão é que, em relação ao rei, sempre serão intermediários15 . A<br />

política então, não era algo descolado da sociedade, mas estava imersa nas próprias<br />

relações sociais. As redes de poder não pressupunham apenas relações políticas, pois<br />

antes de estruturar a política elas se organizavam no próprio tecido social.<br />

Desta forma, as práticas clientelares e as redes que estas alimentaram exerceram<br />

papel fundamental no próprio processo de centralização. Como poderes paralelos,<br />

poderiam funcionar como obstáculos à expansão do poder real, mas paradoxalmente,<br />

uma vez controlados, abriam caminho para um maior domínio da política e<br />

para o próprio reforço da unidade central16 .<br />

Nesse sentido, a concentração de poderes não ficava apenas nas mãos do monarca,<br />

mas abarcava todos seus súditos. Essa “identidade corporativa” atravessava o<br />

âmbito público e se ressignificava em outras associações, como redes de parentesco,<br />

compadrio ou alianças políticas e religiosas.<br />

13 BARROS, Edval de Souza. Redes de Clientela, Funcionários Régios e Apropriação de renda no Império Português<br />

(séculos XVI- XVIII). In: Revista de Sociologia e Política. nº 17. 2001, p. 135.<br />

14 “Ao dar, o benfeitor ou patrono confirmava sua posição social, e tais atos deveriam ser marcados pela liberalidade,<br />

e magnificência, garantindo o impacto político desejado.” Ibid., p. 132.<br />

15 XAVIER & HAESPANHA, XAVIER & HESPANHA, Antônio Manuel. In: MATTOSO, José (dir.). História de<br />

Portugal. O Antigo Regime. Lisboa: Ed. Estampa, vol. 4, 1993, p. 381-389.<br />

16 MARTINS, 2007, p. 421.<br />

306


Nesse contexto, podemos pensar a trajetória de Inácio Osório Vieira nos diversos<br />

cargos que ocupou até se tornar provedor. A concessão de pequenos cargos,<br />

como o tabelião de notas e escrivão da Câmara, demonstra que esses administradores<br />

régios realizavam um determinado percurso, passando por cargos mais modestos<br />

até chegarem aos cargos mais disputados. Por outro lado, esses cargos menores eram<br />

concedidos por um tempo mais curto, geralmente três anos, e, embora muitas vezes<br />

não tivessem nenhum ordenado, ou ganhos materiais imediatos, colaboravam para<br />

arrecadação de emolumentos 17 . Já o posto de Capitão da Ordenança, graça recebida<br />

em 1764 pelo futuro provedor, 18 significou não apenas ganhos simbólicos, mas também<br />

privilégios, honras e isenções. Portanto, esses pequenos e médios cargos eram<br />

estratégicos, na medida em que serviam de elo para posições mais distintas. Mesmo<br />

o Rio Grande de São Pedro não ser uma região de muita atração, tendo em vista que<br />

era uma Capitania subalterna do Brasil, tornar-se provedor da Fazenda Real significava<br />

uma posição de preeminência. Esse posto de maior prestígio, junto com todo<br />

seu percurso, possibilitou Osório não apenas acumular relações, mas estabelecer<br />

vínculos permanentes com muitos membros da elite na Capitania.<br />

OS COMPADRES DE INÁCIO OSóRIO VIEIRA<br />

Ao detectarmos os compadres de Inácio Osório pudemos verificar melhor o<br />

quão importante são esses laços numa rede de reciprocidade. Analisando essas relações<br />

compreendemos melhor a dimensão desses vínculos, além da sólida estratégia<br />

de manutenção nos estatutos sociais. Segundo Fábio Kühn, o compadrio pode ter<br />

uma dupla função:<br />

Por um lado, ele reforça os vínculos prévios existentes entre as pessoas<br />

[o caso dos cunhados que também eram compadres, por exemplo],<br />

por outro ele cria laços entre as famílias de elite e indivíduos de prestígio<br />

naquela sociedade19 .<br />

17 Para João Fragoso, nesse sistema de benesses na forma de ofícios, o que estava em jogo não eram tanto os salários<br />

pagos pela Fazenda Real, mas sim, e principalmente, os emolumentos que deles, entre outras possibilidades,<br />

poderiam auferir. FRAGOSO, 2001, p. 45. Entretanto, verificamos em um documento sobre rendimentos públicos,<br />

que o ordenado do provedor da Real Fazenda regulava-se m 640 mil réis, enquanto os emolumentos eram em torno<br />

de 50 mil réis. Isso significa que os emolumentos, no caso do cargo de provedor da fazenda, equivalia a menos de<br />

10% do valor do ordenado. ANRJ. Códice 68. Vol. 5. [1782]. Correspondência dos Vice-Reis para Corte. Material<br />

concedido por Adriano Comissoli.<br />

18 Este cargo não recebe soldo algum, mas goza de graças, privilégios, liberdades e isenções. A pessoa que assume<br />

o posto também fica obrigada a residir na Vila ou no distrito solicitado. Registro de patente. AHPA. Códice 1.26<br />

p. 27v- 28v.<br />

19 KÜHN, Fábio. Gente da fronteira: família, sociedade e poder no sul da América Portuguesa - século XVIII. UFF. Tese de<br />

Doutorado em História. 2006, p. 236.<br />

307


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

No caso de Osório, acreditamos que suas relações se estabeleceram de forma<br />

a aproximar os vínculos existentes com outros indivíduos. Ao total, encontramos<br />

nos registros de batismos 45 afilhados20 , o que demonstra que ser afilhado de um<br />

provedor, cargo de prestígio e distinção social tinha grande significado. Para além<br />

disso, ao batizar alguém, Inácio Osório Vieira estabelecia relações que poderiam<br />

reforçar laços já existentes ou que estavam para ser cultivados. Nesse sentido, o<br />

compadrio aparece como uma prática que colaborava para o provedor cercear-se de<br />

uma rede de reciprocidade e até mesmo estruturá-la. Era uma forma de reforço no<br />

seu círculo relacional, que garantia sua própria lógica de governação.<br />

Apesar de ter vindo para o Brasil com as irmãs, o irmão e a mãe, não encontramos<br />

nenhum documento referente a possíveis casamentos das irmãs e irmão e,<br />

sendo assim, nenhum laço com cunhados. Ao que tudo indica, Osório Vieira era<br />

solteiro21 e não se casou, bem como não aparece morando com familiares. Tal constatação<br />

sugere que o provedor não tenha tido filhos, e, portanto, sua grande lista<br />

de afilhados pode nos levar a crer que o provedor estivesse querendo formar uma<br />

clientela. Desta forma, sua presença freqüente nos livros de batismo, e o quadro de<br />

relacionamentos que a partir disso se cria, podem sugerir uma estratégia de garantir<br />

apoio, decorrentes de contatos, para manter sua governabilidade.<br />

Nesse sentido, podemos acrescentar que no compadrio de Osório se estabeleceram<br />

relações horizontais, entre seus pares da elite, e verticais, quando se formava<br />

uma clientela. Evidentemente, os laços verticais podem sugerir o quão poderoso era<br />

o provedor, que acabava por estabelecer esses laços de dependência pessoal, e um<br />

séqüito de subordinados, como coloca o governador José Marcelino de Figueiredo22 .<br />

Esse séqüito, como bem expõe Kuhn, “talvez não servisse para ampliar seu poderio, mas<br />

tinha um significado simbólico importante naquela sociedade, tão impregnada pelos conceitos de<br />

distinção e valorizadora do prestígio decorrente desses marcadores sociais”. 23<br />

Analisando seus batismos, verificamos que dos 45 afilhados Osório tinha 37<br />

compadres, pois, em alguns casos, batizava mais de um filho do respectivo, como<br />

foi o caso de Domingos de Lima e Veiga, José Francisco de Faria, Leandro José da<br />

Costa e Manuel Fernandes Vieira. Outro ponto importante é que, pelo que podemos<br />

20 KÜHN, Fábio; NEUMANN, Eduardo (org). Projeto Regate de Fontes Paroquiais. Porto Alegre – Viamão (século<br />

XVIII). Porto Alegre: UFRGS, 2009. CD-ROM. Livro 1º de batismos de Porto Alegre (1772 – 1797); 2° Livro de<br />

Batismos de Porto Alegre (1792-1799) Livro 2º de batismos de Viamão (1759 – 1765), Livro 3º batismos de Viamão<br />

(1769- 1782) ,Livro 4º batismos de Viamão (1782-1799).<br />

21 Na maioria dos batismos, Osório aparecia como solteiro.<br />

22 Carta de José Marcelino para o Vice-Rei Marques do Lavradio, Porto Alegre 06/02/1775. BNL. Divisão dos<br />

Reservados. Cód. 10854.<br />

23 KÜHN, op. cit, p. 245.<br />

308


verificar, em torno de 70% dos afilhados de Osório são de estratos sociais inferiores<br />

ao provedor, estabelecendo, assim, relações assimétricas (verticais). Essa extensa<br />

rede de protegidos nos leva a pensar como Osório Vieira conseguia influenciar não<br />

apenas em âmbito público, mas perpassando também em âmbito privado, a partir de<br />

relações sociais estabelecidas com subalternos, que se subordinavam em função da<br />

hierarquia social. Da mesma forma, não nos parece coincidência o fato de que 14,<br />

de seus 45 afilhados, chamavam-se Inácio ou Inácia, nos levando a supor a homenagem<br />

do nome ao padrinho provedor.<br />

(...) a noção de ‘prestígio’ vinculava-se à capacidade de dispor de recursos<br />

(fossem eles pessoais ou do aparelho de Estado), gerando assim<br />

uma ‘economia de favores’, de dom e contra-dom; em outras palavras,<br />

de reciprocidade social envolvendo desiguais. Ao benfeitor cabia conceder<br />

e ao beneficiado cabia ser fiel, não sendo esse gesto visto como<br />

um desvio da ‘norma’, mas sim como sua corporificação. 24<br />

Já entre seus pares, encontramos nomes como o de Domingos de Lima Veiga25<br />

, que foi escrivão da Fazenda Real durante muitos anos, o Capitão e oficial da<br />

Câmara Manuel Fernandes Vieira26 , o Capitão José Francisco da Silveira Casado27 ,<br />

Antônio José de Alencastro28 , André Pereira Maciel29 , José Francisco de Faria30 , o Tenente<br />

de Dragões João Carneiro da Fontoura, entre outros. Nesse período, Osório<br />

Vieira também apadrinhou, por procuração, afilhados de Sebastião Xavier da Veiga<br />

Cabral, um dos governadores da Capitania, o Tenente João Alberto de Miranda,<br />

José Gomes de Faria, o Coronel Gaspar José de Matos Ferreira31 , João Alberto de<br />

Miranda, Antônio Guedes da Silva e Domingos Borges Freire32 . Da mesma forma,<br />

24 VENÂNCIO, Renato Pinto, SOUSA, José Ferro, PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves. O Compadre Governador:<br />

redes de compadrio em Vila Rica de fins do século XVIII. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 26, nº 52, 2006,<br />

p. 273-294.<br />

25 Domingos de Lima Veiga foi nomeado escrivão da fazenda real em 1770. F1243 p. 224-224v. Registro de um<br />

provimento.<br />

26 Manuel Fernandes Vieira ocupou diversos cargos: Tabelião e Escrivão de órfãos da Vila de Rio Grande em 1752,<br />

vereador, juiz e almotacé nas décadas de 1770 e 1780. Era cunhado de Francisco Pires Casado e Manuel Bento da<br />

Rocha. Foi Contratador dos dízimos e arrematante do contrato do munício de carne para as tropas. COMISSOLI,<br />

2008, p. 86-87 e 178. OSóRIO, 1990, p. 200.<br />

27 Francisco da Silveira Casado também era um homem de governança. Foi Vereador; juiz, procurador, almotacé,<br />

tesoureiro da Santa Casa, almoxarife da Fazenda Real, Juiz de órfãos, entre outros cargos. Era sócio de Manuel Bento<br />

da Rocha e irmão de Francisco Pires Casado. COMISSOLI, op. cit. , p. 87-88 e 91.<br />

28 Oficial da Câmara. Ibid, p. 175.<br />

29 Maciel foi Guarda-mor, procurador. Almotacé. Ibid, p. 175. AHRS. F1198.<br />

30 Oficial da Câmara. Ibid., p. 176.<br />

31 Gaspar era mesmo homem de confiança do Vice-Rei Lavradio e serviu sob suas ordens no regimento de Cascais,<br />

em Portugal. Veio para o Brasil junto com o Marquês e no Rio de Janeiro se tornou inspetor da guarda vice-reinal.<br />

Veio posteriormente para o Rio Grande de São Pedro em 1774. Entre 1780 e 1796 serviu como coronel do Regimento<br />

de Dragões do Rio Grande. ALDEN, Dauril. Royal Government in Colonial Brazil. Berkeley: University of<br />

Califórnia Press, 1968, p. 451-452, nota 17.<br />

32 Oficial da Câmara. COMISSOLI, op. cit., p. 176.<br />

309


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

deu procuração para Antonio José de Alencastro, também seu compadre, para que<br />

este batizasse um de seus afilhados. Ao se formalizar um batismo por via de procuração,<br />

automaticamente se estabelece uma relação de confiança entre o padrinho e a<br />

pessoa que vai substituí-lo. Isso significa dizer que é provável que Osório detivesse<br />

com esses últimos, um certo vínculo relacional.<br />

Outro ponto bastante importante das relações políticas e sociais formalizadas<br />

através dos batismos do provedor é a data que ele começa a apadrinhar: partir de<br />

1765, ano em que assumiu o posto de Provedor da Fazenda. Antes disso, não se<br />

tem nenhum registro de batismo de Osório 33 . Isso pode significar que muitas vezes<br />

o compadrio não se fazia apenas no convívio social, mas pelo posto assumido do<br />

padrinho, de distinção social. Assim, a própria escolha da figura de Inácio Osório<br />

se faz nas circunstâncias políticas do momento. O prestígio do provedor se faz na<br />

medida em que é capaz de dispensar ou retribuir benefícios 34 .<br />

Dentro do período, que engloba seus mais de trinta anos no poder, verificamos<br />

que o provedor manteve-se com uma média de pelo menos um batismo anual.<br />

Além disso, podemos dizer que o maior número de apadrinhamentos se faz nesses<br />

primeiros vinte anos, que aqui consideramos como um momento em que Osório se<br />

estabelece enquanto um homem de grande importância na sociedade do Rio Grande.<br />

Após seu afastamento definitivo do cargo, verificamos que Osório não estabelece<br />

mais relações de compadrio, comprovando a hipótese de que a escolha da figura do<br />

provedor como padrinho se faz nas circunstancias das relações de poder e prestígio<br />

social.<br />

310<br />

PARTICIPAçãO NAS CONFRARIAS RELIGIOSAS<br />

Inácio Osório Vieira era membro de duas importantes confrarias religioas: A<br />

Ordem Terceira de São Francisco em Viamão e a Irmandade do Santíssimo Sacramento.<br />

A Ordem Terceira era uma associação religiosa que congregava boa parte da<br />

elite do Continente e tinha critérios rígidos de seleção e, por isso, seus membros<br />

gozavam de um estatuto mais elevado em relação às demais irmandades. 35<br />

33 Não verificamos os Livros de Batismos da Vila do Rio Grande. Somente a partir da ida de Osório para Viamão.<br />

34 XAVIER & HESPANHA, 1993, p. 340.<br />

35 KÜNH, Fábio. Um corpo, ainda que particular: Irmandades legais e Ordens Terceiras no Rio Grande do Sul Colonial. 2009,<br />

p. 15. No prelo.


Não por acaso, muitos dos mais destacados membros da elite colonial<br />

pediam para ser sepultados no hábito do “seráfico padre São Francisco”,<br />

prova contundente da sua distinção social e abastança. Sabe-se<br />

que “a profissão nas ordens terceiras era sinônimo de status e privilégios<br />

das classes dominantes. 36<br />

Pertencentes às camadas superiores da sociedade, os integrantes de uma Ordem<br />

Terceira gozavam de elevada distinção social que os sustentavam como membros<br />

da elite.<br />

No Rio Grande de São Pedro existiu uma única Ordem Terceira de São Francisco<br />

atuante, com filiais estabelecidas em Viamão, Rio Grande e Rio Pardo. Inácio<br />

Osório Vieira, não apenas era membro da Ordem Terceira, como também Ministro<br />

dela, sendo forte seu controle na mesa diretora. Sua rede de relações novamente se<br />

faz presente, e entre os membros da Ordem encontramos Manuel Bento da Rocha,<br />

poderoso homem de negócios do Continente, além de outros membros do bando<br />

dos cunhados37 .<br />

As irmandades, assim como a Ordem Terceira, eram espaços de sociabilidade<br />

de diferentes sujeitos sociais e colaborava, assim como o compadrio, para manutenção<br />

de relações.<br />

Ser membro de uma irmandade do Santíssimo Sacramento era não<br />

só pertencer a uma organização social. Significava também ter acesso<br />

ao interior dos estratos superiores de uma sociedade, evidenciando<br />

assim, status aos seus membros, status esse que vinha acompanhado<br />

de privilégios e graças. Independente de a irmandade ser de negros<br />

ou da elite local, cada uma, dentro de suas possibilidades, dava essas<br />

facilidades aos seus membros38 .<br />

Inácio Osório Vieira era um dos integrantes da Irmandade do Santíssimo<br />

Sacramento da freguesia de Porto Alegre. Com isso, verificamos que alguns de seus<br />

compadres também eram membros da Irmandade do Santíssimo como João Carneiro<br />

da Fontoura, Manuel Fernandes Vieira, capitão Francisco Pires Casado, Manuel<br />

Marques de Sampaio e Patrício José Correia da Câmara. Compartilhavam desse mesmo<br />

espaço de sociabilidade Manuel Bento da Rocha, bem como Sebastião Xavier da<br />

Veiga Cabral, que também mantinham boas relações com o provedor.<br />

36 Ibid., p. 15.<br />

37 Manuel Bento da Rocha era o líder e um dos integrantes do chamado bando dos cunhados, uma facção política<br />

composta pelos mais importantes homens de negócio do Rio Grande de São Pedro, cujos membros tinham ampla<br />

participação na Câmara. COMISSOLI, 2008, p.86-95.<br />

38 MONTEMEZZO, Laura Ferrari. A Irmandade do Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora Madre Deus de Porto Alegre e<br />

seus membros: um estudo prosopográfico. (1774-1780). Monografia. 2007.<br />

311


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Observamos, desta forma, que o estreitamento dos vínculos se fazia na ajuda<br />

mútua entre seus membros, nos apadrinhamentos e nos laços de amizade. Essa<br />

prática relacional colaborava para a própria ascensão social, ou, pelo menos, para<br />

manutenção da escala social, pois era tida “como uma atividade dignificante e enobrecedora”.<br />

39<br />

A própria seleção desses laços se fazia presente no caráter seletivo de inserção<br />

na Irmandade, como o pagamento de admissão e ser de origem nobre, com a exclusão<br />

dos indivíduos que não tivessem a devida “limpeza de sangue” 40 . Desta maneira,<br />

a maioria dos homens da Irmandade do Santíssimo eram homens proeminentes,<br />

como oficiais camarários, militares, dirigentes administrativos, homens de negócios<br />

e estancieiros.<br />

Assim, podemos dizer que tanto os compadrios, como as confrarias religiosas<br />

em que Osório estava inserido, faziam parte das esferas da sociedade colonial do Rio<br />

Grande de São Pedro. Observar a dinâmica dessas redes é importante na medida<br />

em que não se estabeleciam apenas a partir de relações políticas e econômicas, mas<br />

de relações sociais, que buscavam naquilo a extensão de laços, para a conservação<br />

daquela sociedade hierarquizada de Antigo Regime.<br />

312<br />

CONSIDERAçõES FINAIS<br />

Ao concluirmos esse artigo, podemos dizer que homens como Inácio Osório<br />

Vieira detinham em suas mãos poderes administrativos relativamente autônomos,<br />

para sobrepujar a imensa distância existente entre as colônias e a Metrópole. Era<br />

um “viver em colônia”, repleto de estranhamentos e pertencimentos, que fazia com<br />

que exercessem essa prática governativa cotidiana constituindo redes de alianças<br />

e sociabilidade. A questão não era apenas governar, mas governar com as pessoas<br />

existentes nas capitanias, saber lidar com a elite colonial e também com os possíveis<br />

inimigos internos 41 , utilizando os instrumentos que tinha a sua disposição diante<br />

da distância do poder real 42 . Ou seja, a própria heterogeneidade de laços políticos<br />

39 KÜNH, 2009, p. 7.<br />

40 Ibid., p.5.<br />

41 No caso de Inácio Osório, sua relação conturbada com o governador da capitania, José Marcelino de Figueiredo<br />

e o ouvidor da Comarca Duarte de Almeida Sampaio, devido, principalmente, à ausência de linhas hierárquicas e de<br />

jurisdição claras, gerando conflitos (diretos e indiretos) constantes entre as autoridades locais.<br />

42 Aqui nos referimos tanto a distância da metrópole lusa, Portugal, quando da sede do vice-reinado, Rio de Janeiro.


nos vários níveis do aparelho ultramarino impedia o estabelecimento de uma regra<br />

uniforme de governo, estabelecendo assim, limites entre o poder da Coroa e seus<br />

administradores periféricos. 43<br />

Entender isso significa pensar o quanto esses sujeitos, como Osório, dependiam<br />

fortemente de seu conjunto de relações sociais. Dentro de uma pluralidade<br />

de campos e possibilidades, foi alternando progressivamente de cargos e regiões,<br />

criando diversas teias de relações sociais, formando uma “engenharia” política que<br />

garantia sua função administrativa régia. Os mecanismos de formação de redes de<br />

poder nos demonstram a questão não era apenas subir nos degraus do topo social,<br />

mas manter-se nessa posição. Dessa maneira, tão importante quanto o status e autoridade<br />

que a instituição fazendária possibilitava a Osório era a manutenção dessas<br />

redes de sociabilidade não-oficiais.<br />

Nessa perspectiva, sua longa permanência no exercício do cargo de provedor,<br />

como seu percurso nos dizem muito sobre os homens a quem cabia a administração<br />

fazendária e sobre as próprias Juntas da Fazenda Real. Inácio Osório estava inserido<br />

tanto no aparelho burocrático do Império ultramarino, com seu cargo de provedor<br />

, como também buscava apoio através de relações sociais, como os compadrios, sua<br />

relação com os homens bons e governadores, a inserção na Irmandade e na Ordem<br />

Terceira, entre outros. As redes clientelares auxiliam para entendermos o funcionamento<br />

da máquina administrativa em um período em que o público e o privado<br />

misturavam-se dentro de relações personalistas. Estas constituíam uma trama que<br />

atravessavam as instituições e orientavam seu próprio funcionamento44 .<br />

43 HESPANHA, Antônio Manuel. In: FRAGOSO, 2001, p. 166.<br />

44 MOUTOUKIAS, Zacharias. Redes personales y autoridad colonial: los comerciantes de Buenos Aires en el siglo<br />

XVIII. Revista Annales Histoire. Sciences Sociales. Paris: 1992,p. 6.<br />

313


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Documentos Manuscritos<br />

314<br />

REFERêNCIAS DOCUMENTAIS<br />

AHPAMV (Arquivo Histórico Moysés Velhinho)<br />

Fundo: Câmara. Códice 1.26 - Registros diversos (1765-1777)<br />

AHRS (Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul)<br />

Livro de Registro Geral da Fazenda Real do Rio Grande de São Pedro<br />

Códices F1243, F1244, F1249, F1250<br />

Livro de Registro de Alvarás e Provisões<br />

Códice B.2.001<br />

ANRJ (Arquivo Nacional do Rio de Janeiro)<br />

Secretaria de Estado do Brasil. Correspondência dos Vice-Reis para Corte. Códice<br />

68. Vol. 5. [1782].<br />

Fundo Vice-Reinado. caixa 749, pct. 03. fl.41-52.<br />

BNL (Biblioteca Nacional de Lisboa)<br />

Códice 10854. Coleção de Correspondência de José Marcelino de Figueiredo, governador<br />

do Rio Grande do Sul, para o Marquês do Lavradio, Vice-rei do Brasil.<br />

Originais 1773 – 1778. Biblioteca Nacional de Lisboa [ca. 345 fls.]<br />

AHU ( Arquivo Histórico Ultramarino)<br />

Projeto Resgate<br />

Rio de Janeiro - AHU–RJ. Cx. 58, 67.<br />

Rio Grande do Sul - AHU-RS. Cx. 8.<br />

Documentos impressos<br />

KÜHN, Fábio; NEUMANN, Eduardo (org). Projeto Regate de Fontes Paroquiais.<br />

Porto Alegre – Viamão (século XVIII). Porto Alegre: UFRGS, 2009. CD-ROM.


REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ALDEN, Dauril. Royal Government in Colonial Brazil. Berkeley: University of Califórnia<br />

Press, 1968.<br />

BARROS, Edval de Souza. Redes de Clientela, Funcionários Régios e Apropriação<br />

de renda no Império Português (séculos XVI- XVIII). In: Revista de Sociologia e Política.<br />

nº 17. 2001.<br />

BOXER,Charles. O império marítimo português 1415- 1825. São Paulo: Cia das Letras,<br />

2002.<br />

COMISSOLI, Adriano. Os homens-bons e a Câmara Municipal de Porto Alegre (1767-<br />

1808). Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008.<br />

CUNHA, Alexandre Mendes. Minas Gerais, da capitania à província: elites políticas e a administração<br />

fazendária em um espaço em transformação.Tese de Doutorado. UFF: Niterói, 2007.<br />

FRAGOSO, João. A nobreza da República: nota sobre a origem da primeira elite senhorial do<br />

Rio de Janeiro (séculos XVI e XVII), Topi, número 1, Rio de Janeiro: 7Letras, 2000, p.<br />

94.<br />

______, João. BICALHO, Maria Fernanda e GOUVêA, Maria de Fátima (Org.). O<br />

Antigo Regime nos Trópicos: A dinâmica imperial portuguesa. (Séculos XVI – XVIII). Civilização<br />

Brasileira: Rio de Janeiro, 2001.<br />

HESPANHA, Antonio Manuel. In: FRAGOSO, João. BICALHO, Maria Fernanda<br />

e GOUVêA, Maria de Fátima (Org.). O Antigo Regime nos Trópicos: A dinâmica imperial<br />

portuguesa. (Séculos XVI – XVIII). Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2001.<br />

KÜHN, Fábio. Gente da fronteira: família, sociedade e poder no sul da América Portuguesa -<br />

século XVIII. UFF. Tese de Doutorado em História. 2006.<br />

______, Fábio. Paper apresentado no Congreso Internacional Familia y organización<br />

social en Europa y América, siglos XV-XX. Murcia, Espanha, 2007. No prelo.<br />

______, Fábio. Um corpo, ainda que particular: Irmandades legais e Ordens Terceiras no Rio<br />

grande do Sul Colonial. 2009. No prelo.<br />

MARTINS, Maria Fernanda. Os tempos da Mudança: elites, poder e redes familiares<br />

no Brasil, séculos XVIII e XIX. In: FRAGOSO, João. CARVALHO de ALMEIDA,<br />

Carla Maria e SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de (org.). Conquistadores e Negociantes.<br />

: História de elites no Antigo Regime dos Trópicos. América Lusa, Séculos XVI a XVIII. Rio<br />

de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.<br />

MIRANDA, Márcia Eckert. Continente do Rio Grande de São Pedro: a administração pública<br />

no período colonial. Porto Alegre: Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande<br />

do Sul. Ministério Público do Estado do RS/ CORAG, 2000.<br />

315


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

MONTEMEZZO, Laura Ferrari. A Irmandade do Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora<br />

Madre Deus de Porto Alegre e seus membros: um estudo prosopográfico. (1774-1780). Monografia<br />

de Técnica de Pesquisa. 2007.<br />

MOUTOUKIAS, Zacharias. Redes personales y autoridad colonial: los comerciantes<br />

de Buenos Aires en el siglo XVIII. Revista Annales Histoire. Sciences Sociales.<br />

Paris: 1992.<br />

OSóRIO, Helen. Apropriação da terra no Rio Grande de São Pedro e a formação do espaço<br />

platino. Dissertação de Mestrado. UFRGS. Porto Alegre, 1990.<br />

______, Helen, BERWANGER, Ana Regina e SOUZA, Susana Bleil de. Catálogo<br />

de Documentos Manuscritos Avulsos referentes à Capitania do Rio Grande do Sul existentes no<br />

Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa. IFCH/UFRGS: CORAG, Porto Alegre, 2001.<br />

VENÂNCIO, Renato Pinto, SOUSA, José Ferro, PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves.<br />

O Compadre Governador: redes de compadrio em Vila Rica de fins do século<br />

XVIII Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 26, nº 52, 2006.<br />

XAVIER & HESPANHA, XAVIER & HESPANHA, Antônio Manuel. In: MAT-<br />

TOSO, José (dir.). História de Portugal. O Antigo Regime. Lisboa: Ed. Estampa, vol.<br />

4, 1993.<br />

316


5<br />

históriA e eConoMiA<br />

no séCulo xix


fortunAs, bens e investiMentos: A CArACterizAção<br />

eConôMiCA de uMA elite PolítiCA MuniCiPAl A PArtir dos<br />

inventários Post-MorteM (finAl do séCulo xix)<br />

Carina Martiny¹<br />

Resumo: Os inventários post-mortem constituem importante fonte de pesquisa quando o<br />

intento do historiador é analisar características econômicas de um indivíduo ou grupo específico, uma<br />

vez que fornecem importantes e, muitas vezes, detalhadas informações acerca dos bens que os inventariados<br />

possuíam. Entretanto, se esta fonte apresenta inúmeras possibilidades de análise econômica<br />

e social, também possui alguns limites que precisam ser levados em conta. Assim, este artigo busca<br />

explorar algumas possibilidades de análise histórica a partir dos inventários post-mortem de membros da<br />

elite política do município de São Sebastião do Caí (RS), atentando também para algumas problemáticas<br />

intrínsecas à utilização desta fonte documental.<br />

Palavras-chave: Inventários post-mortem – Elite política municipal – Perfil econômico<br />

INTRODUçãO: OS CAMINHOS DA PESQUISA<br />

Aescolha do método a ser utilizado na análise documental está diretamente<br />

dependente dos objetivos da pesquisa e do conjunto documental<br />

trabalhado. Maria Yedda Leite Linhares bem observou que “ao<br />

historiador cabe elaborar suas técnicas de forma criativa, de acordo com o universo<br />

histórico de sua análise e segundo as fontes de que dispõe”². Este artigo constitui<br />

uma reflexão sobre alguns caminhos trilhados ao longo da pesquisa realizada para a<br />

elaboração da Dissertação de Mestrado. Nesta, analisamos uma parcela da sociedade<br />

do município de São Sebastião do Caí³: a elite política.<br />

¹ Mestre História pelo Programa de Pós-Graduação em História da UNISINOS. Este artigo constitui parte da análise<br />

desenvolvida no segundo capítulo de nossa Dissertação de Mestrado “Os seus serviços públicos e políticos estão de certo modo ligados<br />

à prosperidade do município” Constituindo redes e consolidando o poder: uma elite política local (São Sebastião do Caí, 1875-1900).<br />

² LINHARES, Maria Yedda Leite. Metodologia da história quantitativa: balanço e perspectivas. In: BOTELHO, Tarcísio<br />

Rodrigues et al. (Org.). História quantitativa e serial no Brasil: um balanço. Goiânia: ANPUH-MG, 2001. p. 17.<br />

³ O município de São Sebastião do Caí, localizado à margem esquerda do rio Caí, na zona colonial do Rio Grande<br />

do Sul, foi criado em 1875, através da lei provincial nº 995 de 1º de maio. O povoado de Porto do Guimarães – ou<br />

São Sebastião do Caí, como então já era conhecido em alusão ao padroeiro da paróquia – e as freguesias de São José<br />

do Hortêncio e Santana do Rio dos Sinos passaram a constituir o novo município, desanexado do de São Leopoldo,<br />

ao qual haviam pertencido desde 1846.<br />

319


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Baseados em José Murilo de Carvalho, para quem os membros de uma elite<br />

política são aqueles que tomam decisões políticas e que fazem, portanto, escolhas<br />

entre alternativas 4 consideramos que a partir do momento em que o novo município<br />

passou a contar com uma Câmara Municipal própria para administrar seus negócios,<br />

delineou-se, claramente, um grupo especial na sociedade local – uma elite política<br />

– constituído pelos vereadores, ou seja, pelos indivíduos que ocuparam os postos<br />

da Câmara Municipal. Assim, a análise que realizamos centra-se nos indivíduos que<br />

entre os anos de 1877 – ano em que assume a primeira Câmara Municipal – e 1900<br />

exerceram o cargo de vereador em São Sebastião do Caí, compreendendo este período,<br />

portanto, as primeiras sete primeiras formações camarárias de São Sebastião do<br />

Caí (1877 a 1880; 1881 a 1882; 1883 a 1886; 1887 a 1890; 1890; 1892 a 1896; e 1896-<br />

1900). 5 Analisamos, entre eleitos e suplentes que assumiram a tarefa de administrar<br />

o município, um total de 55 vereadores, que correspondem a 38 indivíduos, dado o<br />

fato de que alguns estiveram presentes em mais de uma formação camarária. 6 Temos<br />

assim, um grupo de elite a ser trabalhado.<br />

Ao definir elite, Fábio Kühn afirma que “De fato, uma elite se define por três<br />

atributos essenciais: riqueza, status e poder” 7 . Acerca do primeiro atributo o mesmo<br />

historiador destaca que “O primeiro aspecto é o mais óbvio de todos, condição preliminar<br />

para a própria existência do grupo” 8 . De fato, a riqueza criava condições favoráveis,<br />

ao permitir o acesso facilitado, por exemplo, a meios diversos de sociabilidade 9 ,<br />

4 CARVALHO, José Murilo de. A Construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de Sombras: a política<br />

imperial. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 19-20.<br />

5 As quatro primeiras composições camarárias correspondem às Câmaras Municipais do período imperial. A composição<br />

de 1890 refere-se à Junta Municipal nomeada pelo governo do Estado, com a instituição da República,<br />

para administrar provisoriamente o município. Desta, acompanhamos seus trabalhos até o dia 28 de junho do<br />

mesmo ano, uma vez que o livro de registros das sessões subseqüentes não foi localizado. O mesmo motivo explica<br />

a exclusão da análise da administração municipal entre os anos de 1891 e 1892, que também carecem de registros<br />

administrativos. Já as duas últimas composições analisadas, a de 1892 a 1896 e a de 1896 a 1900, correspondem aos<br />

Conselhos Municipais do período republicano.<br />

6 Contabilizamos apenas os vereadores que participaram, em cada composição analisada, de pelo menos cinco<br />

sessões da Câmara Municipal.<br />

7 O conceito de elite que apresenta Fábio Kühn está baseado na definição de Peter Burke, presente na obra Veneza<br />

e Amsterdã: um estudo das elites do século XVII (1991), para quem elites são grupos superiores definidos por três<br />

critérios: status, poder e riqueza (BURKE, Peter. Veneza e Amsterdã: um estudo das elites do século XVII. São<br />

Paulo: Brasiliense, 1991. p. 16). Kühn identifica estes três atributos na sociedade sul-rio-grandense do século XVIII<br />

(KÜHN, Fábio. Gente da fronteira: sociedade e família no sul da América portuguesa – século XVIII. In: GRIJó,<br />

Luiz Alberto et al. (Org.). Capítulos de História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2004. p. 62).<br />

8 KÜHN, Fábio. A prática do dom: família, dote e sucessão. In: GOLIN, Tau; BOEIRA, Nelson (Org.). CAMAR-<br />

GO, Fernando; GUTFREIND, Ieda; REICHEL, Heloisa (Coord.). Colônia. Passo Fundo: Méritos, 2006a. p. 226.<br />

9 Entendemos sociabilidade no sentido dado por Agulhon: “la aptitud de vivir en grupos y consolidar los grupos mediante la constituición<br />

de asociaciones voluntarias”, sendo necessário considerar tanto as formas de associação formal (que estão reguladas,<br />

como o são as associações) quanto informal (baseadas em relações tecidas pelos indivíduos no cotidiano) (AGULHON,<br />

Maurice. Historia vagabunda: etnologia y política en la Francia Contemporánea. México: Instituto Mora, 1994. p. 55).<br />

320


dava condições maiores de distribuição de favores, de possuir um maior número de<br />

dependentes e, assim, participar mais ativamente do caráter clientelista das relações<br />

políticas.<br />

Mas, como apreender a riqueza destes indivíduos? A que fontes recorrer?<br />

As fontes utilizadas na pesquisa, que buscou atentar para a ação e para as relações<br />

tecidas pela elite municipal de São Sebastião do Caí, foram essencialmente fontes<br />

oficiais, como atas da Câmara Municipal, suas correspondências e registros orçamentários,<br />

listas de qualificação de votantes, mapas de população e inventários. Juntos,<br />

estes documentos forneceram importantes informações acerca do perfil tanto<br />

dos indivíduos que compunham o grupo analisado quanto das instituições próprias<br />

da estrutura do Estado imperial e republicano na esfera municipal. Foram, porém,<br />

os inventários que nos forneceram importantes indícios sobre as condições econômicas<br />

e o modo de vida da elite caiense e é acerca das possibilidades, dos limites e da<br />

utilização desta fonte documental que está centrado o presente artigo.<br />

OS INVENTÁRIOS COMO FONTE DE PESQUISA:<br />

LIMITES E POSSIBILIDADES<br />

Ao utilizar os inventários post-mortem como fonte para a pesquisa histórica o<br />

historiador deve estar ciente não somente das possibilidades de trabalho que estes<br />

oferecem, como também dos limites a eles intrínsecos. O inventário nada mais é do<br />

que uma fotografia da fortuna de um indivíduo em um dado momento – o momento<br />

de seu falecimento -, o que nos priva de saber o que este possa ter feito antes, de que<br />

forma administrou ou mesmo distribuiu previamente seus bens. Sabemos que muitas<br />

práticas e estratégias de concentração de riqueza poderiam ser levadas a cabo por<br />

famílias que desejavam manter intactos seus patrimônios, ou mesmo como forma<br />

de ampliá-los. Como já demonstrado por Farinatti, mesmo que a legislação previsse<br />

uma divisão igualitária dos bens entre os herdeiros – a metade (“meação”) para o (a)<br />

viúvo(a) e a outra metade dividida “entre seus herdeiros necessários (descendentes e,<br />

se estes não existissem, os ascendentes)” -, muitos chefes de famílias buscavam, antes<br />

mesmo de morrer, beneficiar um ou outro filho para garantir a continuidade do<br />

poder econômico da família. Práticas de antecipação de herança são apontadas pelo<br />

historiador como muito comuns 10 . Também Marcos Witt observou que imigrantes<br />

10 FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na Fronteira Sul<br />

do Brasil (1825-1865). 2007. Tese (Doutorado em História) --Programa de Pós-Graduação em História. Universidade<br />

Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, 2007.<br />

321


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

alemães fizeram uso de “mecanismos de transmissão e concentração de bens na figura<br />

de uma só pessoa” com o intuito de assegurar “o status de ‘exponencial’”¹¹. Ao<br />

que parece, a família Trein, uma das famílias por nós analisadas – uma vez que dois<br />

de seus membros foram vereadores em São Sebastião do Caí no período analisado:<br />

Christiano Jacob Trein e Felipe Carlos Trein – fez uso de uma destas estratégias de<br />

antecipação de herança visando preservar a unidade do patrimônio.<br />

Sabemos que Francisco Trein, imigrante, pai dos vereadores em questão,<br />

abriu, em 1847, uma casa de negócios em São José do Hortêncio, e uma filial, em<br />

1869, junto à povoação de Porto do Guimarães. Com seu falecimento a 8 de janeiro<br />

de 1883, seguiu-se a abertura do processo de seu inventário, no qual, porém, não<br />

consta nem a casa de negócios de São José do Hortêncio, nem a localizada em Porto<br />

do Guimarães, então Vila de São Sebastião do Caí. O inventário faz referência<br />

apenas a armários e balcões da casa de negócio, a uma balança decimal com pesos e<br />

a latas, sacos e 125 kg de banha, provavelmente pertencentes à casa de negócios de<br />

São José do Hortêncio 12 . E as demais mercadorias, porque não foram arroladas? E a<br />

casa de negócio existente na Vila? Tudo nos leva a supor que Francisco Trein tivesse<br />

passado, ainda em vida, tais propriedades a seus filhos. De acordo com Jean Roche,<br />

à frente da filial de Porto do Guimarães estava o filho Christiano Jacob Trein 13 . No<br />

que diz respeito à casa comercial de São José do Hortêncio, é possível que Frederico<br />

Guilherme Trein ou João Jacob Trein, ou ainda ambos, tivessem passado a administrar<br />

os negócios, já que esses dois filhos de Francisco Trein aparecem no alistamento<br />

eleitoral de 1890 como sendo negociantes moradores de São José do Hortêncio 14 .<br />

O mesmo podem ter feito os vereadores Carlos Berto Círio, Pedro Franzen Filho e<br />

Guilherme Zirbes, todos negociantes, mas que não têm arrolado em seus inventários<br />

o valor de bens referentes à casa comercial, o que nos leva a crer que estes tenham<br />

feito a transferência desta, ainda em vida, para algum filho ou herdeiro.<br />

11 WITT, Marcos Antônio. Em busca de um lugar ao sol: estratégias políticas, imigração alemã, Rio Grande do<br />

Sul, Século XIX. São Leopoldo: Oikos, 2008. p.116-117. p. 130. Ao analisar os inventários das famílias Voges e<br />

Grassmann, Witt constatou um “redirecionamento dos bens”, de modo que as propriedades se concentrassem nas<br />

mãos de poucos, não sendo divididas, mantendo assim o poder econômico e simbólico da família (WITT, 2008, p.<br />

130-135).<br />

12 TREIN, Francisco (Inventariado); TREIN, Catharina (Inventariante). [inventário]. São Sebastião do Caí, 1883<br />

[Manuscrito]. Localização: Cartório órfãos e Ausentes, Auto n. 150, Maço n. 6, Ano 1883, APERS.<br />

13 ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora Globo, 1969. p. 435.<br />

14 SãO SEBASTIãO DO CAí. Junta Municipal de São Sebastião do Caí. Alistamento dos eleitores do Município<br />

de São Sebastião do Caí. 1890 jun. 20 [Manuscrito]. Localização: AHMBM. f. 27v - 29.<br />

322


Outro problema com o qual o historiador pode se deparar ao trabalhar com<br />

inventários diz respeito à deturpação que pode ser realizada quando do arrolamento<br />

e avaliação dos bens inventariados. Em muitos casos, como pudemos observar, fica<br />

evidente a tentativa de subestimá-los, descrevendo-os de forma a desvalorizá-los,<br />

como se pode constatar no uso de alguns termos na descrição realizada, como “velho”,<br />

“em mau estado”, “usado” ou mesmo “em estado de ruína”, a eles atribuídos.<br />

Desta maneira, eram descritos tanto bens imóveis, quanto os móveis. Assim, tanto<br />

o não-arrolamento de alguns bens 15 quanto a subestimação de outros foram estratégias<br />

levadas a cabo por algumas famílias para diminuir o valor dos impostos a serem<br />

pagos por ocasião do processo de inventário.<br />

Entretanto, apesar das limitações que os inventários impõem à análise histórica,<br />

estes ainda constituem uma importante fonte documental. Mesmo que os protagonistas<br />

dos inventários (os inventariados) tenham utilizado diversos mecanismos<br />

que resultaram em um reagrupamento da fortuna de suas famílias de diferentes maneiras,<br />

o que dificilmente pode ser captado a partir dos inventários, as informações,<br />

mesmo que parciais ou deturpadas que esta fonte oferece permitem-nos traçar, ao<br />

menos aproximadamente, um padrão econômico de vida do grupo analisado, identificando<br />

alguns dos bens que possuíam e tendências de investimentos.<br />

Apesar de todas as problemáticas que uma análise baseada em inventários<br />

possa apresentar, no nosso caso, eles são fundamentais para demonstrar que a elite<br />

política de que tratamos faz parte de uma outra fração da elite municipal, que é a<br />

elite econômica. Ela é composta pelos indivíduos que detêm significativas fortunas<br />

e que ocupam e controlam os postos-chave da vida econômica local – no caso de<br />

São Sebastião do Caí, os que controlam a produção e comercialização de produtos<br />

agrícolas e bens agro-manufaturados e importam outros bens de consumo então<br />

vendidos à população local. Considerando que “os inventários post mortem são uma<br />

fonte que tende a sobre-representar as camadas mais favorecidas da sociedade” 16 ,e<br />

15 Nos inventários de Antônio Otto Rühee e de Guilherme Zirbes, por exemplo, não há qualquer bem móvel<br />

arrolado, fato que, supomos, possa ser atribuído a uma distribuição – feita previamente ao inventário – entre os<br />

herdeiros. RÜHEE, Antônio Otto (Inventariado); RÜHEE, Maria Júlia L. e outros (Inventariante). [inventário].<br />

São Sebastião do Caí, 1921 [Manuscrito]. Localização: Cartório do Cível, Auto n. 434, Maço n. 8, Ano 1921, APERS;<br />

e ZIRBES, Guilherme (Inventariado); ZIRBES, Margaria; e outros (Inventariante). [inventário]. São Sebastião do<br />

Caí, 1915 [Manuscrito]. Localização: Cartório do Cível, Auto n. 325, Maço n. 7, Ano 1915, APERS.<br />

16 FARINATTI, 2007, p. 91.<br />

323


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

levando em conta que tivemos acesso aos inventários de 23 dos 38 vereadores, podemos<br />

afirmar – com boa margem de acerto – que a elite econômica de São Sebastião<br />

do Caí, ao final do século XIX, era também uma elite política. 17<br />

324<br />

UMA ELITE POLíTICA QUE ERA<br />

TAMBÉM ELITE ECONÔMICA<br />

Uma vez cientes das limitações dos inventários enquanto fonte documental<br />

e acreditando que estes possam nos oferecer parâmetros gerais acerca do acúmulo<br />

de riquezas do grupo em estudo, passamos a analisar, a partir do arrolamento dos<br />

bens pertencentes ao inventariado e sua família e da avaliação destes no momento<br />

de elaboração do inventário, o perfil econômico da elite política de São Sebastião do<br />

Caí e alguns indícios de seu modo de vida.<br />

Infelizmente, não conseguimos localizar os inventários de todos os 38 vereadores<br />

em questão. Localizamos os inventários de 23 vereadores, sendo que em<br />

alguns casos encontramos o seu inventário, outras vezes apenas o de sua esposa e,<br />

em alguns casos, o de ambos. 18 No caso em que possuímos o inventário de ambos,<br />

adotamos o critério de utilizar, para a análise quantitativa, aquele que apresentava<br />

o maior capital, ou seja, o maior valor na soma total de bens avaliados somadas as<br />

dívidas ativas e deduzidas suas dívidas passivas.<br />

No Gráfico 1 agrupamos os vereadores por nível de fortuna, permitindo assim<br />

uma avaliação geral da fortuna da elite política.<br />

17 Esclarecemos que nossa busca se restringiu aos cartórios de São Sebastião do Caí, considerando que nosso<br />

objetivo foi o de evidenciar a atuação política de determinados indivíduos neste município, no quartel final dos Oitocentos.<br />

Acreditamos que alguns dos indivíduos, cujos inventários não localizamos, possam ter mudado de cidade<br />

ao longo das primeiras décadas do século XX, razão pela qual o processo de inventário pode não ter ocorrido em<br />

São Sebastião do Caí.<br />

18 Assim, trabalhamos com um total de 27 inventários.


Gráfico 1 - Níveis de fortunas dos vereadores de acordo com o total de bens<br />

arrolados nos inventários post-mortem (em nº)<br />

Elaborado pela autora com base nos Inventários post-mortem, São Sebastião do Caí (1868 a 1935)<br />

localizados no APERS.<br />

De acordo com o gráfico, a análise dos inventários post-mortem revelou que o<br />

grupo com o qual trabalhamos era, em boa medida, bastante heterogêneo economicamente.<br />

Ou seja, entre os vereadores encontramos alguns que possuíam pequenas<br />

fortunas, como Antônio Otto Rühee, cuja soma de bens em seu inventário era de<br />

4:500$000 (4 contos e 500 mil-réis) 19 e César Augusto Góes Pinto, cuja soma dos<br />

bens em 1890, era de 3:004$850 (3 contos, 4 mil e 850 réis) 20 . Outros, entretanto,<br />

possuíam um capital superior a 100 contos de réis, como Pedro Noll, que tem arrolado<br />

em seu inventário, datado de 1899, 210:899$500 (210 contos, 899 mil e 500<br />

réis)²¹. Mas, o gráfico também é revelador da boa condição econômica da elite política<br />

analisada, afinal, possuir um capital de 3 contos correspondia, na época, a uma<br />

considerável fortuna, como observou Roche.²²<br />

A tabela que segue nos permite analisar o perfil econômico da elite caiense<br />

com base em critérios como profissão e origem étnica.<br />

19 RÜHEE; RÜHEE, 1921.<br />

20 PINTO, César Augusto Góes (Inventariado); PINTO, Modestina Coutinho dos Santos (Inventariante). [Inventário].<br />

São Sebastião do Caí, 1890 [Manuscrito]. Localização: Cartório órfãos e Ausentes, Auto n. 308, Maço n. 11,<br />

Ano 1890, APERS.<br />

21 NOLL, Pedro (Inventariado); NOLL, Elisabetha (Inventariante). [inventário]. São Sebastião do Caí, 1899 [Manuscrito].<br />

Localização: Cartório órfãos e Ausentes, Auto n. 561, Maço n. 18, Ano 1899, APERS.<br />

²² ROCHE, 1969, p. 561- 562.<br />

325


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

TABELA 1 – Perfil econômico da elite política caiense com base no total de<br />

bens constante nos inventários post-mortem por profissão e origem étnica<br />

326<br />

Valor total de bens Fazendeiros e<br />

proprietários<br />

Menos de 10 contos<br />

de réis<br />

Mais de 10 e menos<br />

de 50 contos de réis<br />

Mais de 50 e menos<br />

de 100 contos de réis<br />

Mais de 100 contos<br />

de réis<br />

Negociantes Outros (ativ.<br />

mecânicas, náuticas<br />

e liberais)<br />

TOTAL<br />

Luso Teuto Luso Teuto Luso Teuto<br />

4 1 1 4 - 1 11<br />

2 1 - 3 - 2 8<br />

- - 1 1 - - 2<br />

- - - 2 - - 2<br />

Total parcial por<br />

origem étnica<br />

6 2 2 10 - 3<br />

Total por profissão 8 12 3 23<br />

Elaborado pela autora com base nos Inventários Post-Mortem (APERS).<br />

Uma primeira constatação é a de que dos 23 vereadores dos quais localizamos<br />

algum inventário, 12 (52,17%) eram negociantes, o que já sinaliza para a importância<br />

deste grupo na economia local, sendo que destes, 10 eram negociantes de origem<br />

teuta, indicando o sucesso que imigrantes e descendentes tiveram ao atuarem no comércio,<br />

sucesso econômico que muito possivelmente foi reconvertido para o campo<br />

político. No tocante à origem étnica, chama a atenção que 15 dos 23 vereadores dos<br />

quais temos inventários (ou 65,22%) eram teuto-brasileiros, o que demonstra que,<br />

não raro, imigrantes ou seus descendentes conseguiram alcançar sucesso econômico.<br />

Se utilizarmos como padrão de análise os critérios de Jean Roche, que classificou<br />

os colonos imigrantes em duas categorias, a dos pobres e a dos abastados – sendo<br />

que os primeiros eram os que possuíam um patrimônio inferior a 2 contos de réis,<br />

enquanto os abastados eram os que tinham um patrimônio superior a tal quantia –<br />

constataremos que a elite política caiense era formada por homens de muitas posses,<br />

constituindo-se, efetivamente, numa elite econômica. Se levarmos em conta o cálculo<br />

feito por Roche de que, em 1870, o valor médio dos patrimônios dos colonos<br />

abastados girava em torno de 3 contos de réis, então a análise dos inventários dos<br />

vereadores caienses demonstra que, tanto no caso de teuto-brasileiros quanto de<br />

luso-brasileiros, a fortuna ultrapassava, e muito, na maior parte dos casos, os 3 contos<br />

de réis aos quais Roche se refere.²³<br />

23 ROCHE, 1969, p. 561- 562.


Mas, do que se constituía a fortuna destes indivíduos? Mais uma vez os inventários<br />

nos servem de fonte. 24 Através do arrolamento e da avaliação dos bens constantes<br />

nestes processos podemos ter acesso a importantes informações de como<br />

vivia e o que possuía esta elite política. Através da listagem dos bens constantes nos<br />

inventários podemos também tecer algumas considerações acerca da tendência de<br />

investimentos da elite em análise.<br />

A NATUREZA DOS INVESTIMENTOS<br />

Certamente, as perspectivas surgidas com a criação do município e a possibilidade<br />

de um maior envolvimento com a administração municipal, levaram a<br />

um enraizamento dos indivíduos analisados no próprio município, refletindo-se em<br />

investimentos locais, assim como na aquisição de bens que lhes garantissem uma<br />

diferenciação social capaz de manter seu pretendido status de “elite” 25 . A análise dos<br />

inventários de alguns dos membros da elite caiense revela, por exemplo, que grande<br />

parte dos investimentos esteve concentrada em imóveis. Apesar da dificuldade que<br />

encontramos em identificar o percentual de riqueza que investiram em terras, uma<br />

vez que estas apareciam, na grande maioria das vezes, avaliadas de forma conjunta<br />

com as casas de moradia e outras benfeitorias, ainda assim é possível afirmar que,<br />

diante do altíssimo percentual de riqueza concentrada em imóveis e da constatação<br />

de que, em muitos casos, entre estes imóveis havia terras cultiváveis, terras de mato e<br />

campos, boa parte das fortunas estava concentrada em bens rurais. Tal constatação é<br />

compreensível se levarmos em conta que, no contexto do século XIX, a propriedade<br />

rural era um importante elemento de distinção social. Mesmo entre os negociantes,<br />

que representam pouco mais de 52% do total de inventários analisados, o investi-<br />

24 Em sua Tese, Fábio Kuhn faz uso dos inventários para determinar a fortuna do grupo em análise, mas também<br />

para desvendar seus bens materiais e seus hábitos, assim como para entender o funcionamento da prática costumeira<br />

do dote no Rio Grande do Sul do século XVIII (KÜHN, Fábio. Gente de fronteira: família, sociedade e poder no<br />

sul da América Portuguesa – século XVIII. 2006. Tese (Doutorado em História) -- Programa de Pós Graduação<br />

em História. Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, RJ, 2006b). Também Marcos Ferreira de Andrade se<br />

vale dos inventários para “destacar alguns aspectos do cotidiano das famílias da elite do sul de Minas, seguindo os<br />

passos do que antropólogos e arqueólogos definem como cultura material” (ANDRADE, Marcos Ferreira de. Elites<br />

regionais e a formação do Estado imperial brasileiro: Minas Gerais – Campanha da Princesa (1799-1850). Rio<br />

de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008. p. 115, grifo do autor).<br />

25 Afirmar que estes indivíduos buscaram manter um status compatível com o de uma “elite” é atribuir-lhes consciência<br />

de que constituíam a elite de São Sebastião do Caí. E é exatamente esta a hipótese que sustentamos: de que os<br />

homens envolvidos com a política municipal não somente tinham consciência do status diferenciado que possuíam<br />

e desfrutavam, como também empregaram meios diversos para mantê-lo, meios estes que se refletiram também na<br />

composição de suas fortunas.<br />

327


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

mento em imóveis é bastante significativo. Dos 12 negociantes, somente um não tinha<br />

a maior parte da riqueza investida em imóveis. Era Felipe Carlos Trein que, entre<br />

todos os analisados, possuía a menor parte de bens investida em imóveis (19,31%)<br />

e a maior parte investida na sua casa de negócios (62,17%) 26 . É interessante notar,<br />

também, que os demais negociantes – sobre os quais se tem informações a partir dos<br />

inventários – tinham uma percentagem bastante pequena da riqueza correspondente<br />

aos seus negócios. É o caso de João Stoffels, negociante de Kronenthal, no distrito<br />

de Santa Catarina da Feliz que, ao falecer, em 1903, tinha apenas 1% do total de bens<br />

referidos correspondente à casa de negócios que mantinha, enquanto 93,82% do<br />

total de seus bens aparecem convertidos em imóveis. 27 Assim, é possível supor que<br />

os negociantes, em sua maioria, convertiam o capital que adquiriam no comércio<br />

na aquisição de imóveis, entre terras rurais, terrenos urbanos, prédios residenciais e<br />

benfeitorias.<br />

A análise mais detalhada da composição das fortunas destes homens leva a<br />

crer que o investimento em novas terras, sobretudo lotes coloniais, tornou-se uma<br />

estratégia de aumento de riqueza. Witt observou que, a expansão dos núcleos iniciais<br />

de colonização e o surgimento de companhias particulares de colonização, associados<br />

à própria “pressão demográfica e a procura de novas terras, ampliaram e valorizaram<br />

o mercado imobiliário” 28 . Possivelmente, muitos dos indivíduos dentre os que<br />

analisamos compravam lotes coloniais com a finalidade de uma posterior revenda,<br />

mesmo porque a terra continuava sendo encarada como aquela capaz de gerar mais<br />

riquezas, razão pela qual procuraram aproveitar-se do processo de colonização para<br />

aplicar e multiplicar seu patrimônio. É este o caso de pelo menos seis dos vereadores<br />

analisados. Carlos Eckert possuía duas colônias no fim da linha São Salvador e meia<br />

colônia em Santo Amaro, no Termo de Taquari. 29 Já Frederico Arnoldo Engel era<br />

proprietário de 3 e meia colônias de terra cultivada no primeiro distrito do município<br />

de Taquara do Mundo Novo. 30 Reinhold Feix, aparece, no seu inventário, como<br />

dono de um quarto do lote colonial nº 9 da ex-colônia de Santa Maria da Soledade,<br />

no município de Montenegro. 31 Mais interessante nos parece ser o caso de Pedro<br />

26 TREIN; TREIN, 1899.<br />

27 STOFFELS, João (Inventariado); STOFFELS, Catharina (Inventariante). [inventário]. São Sebastião do Caí,<br />

1903 [Manuscrito]. Localização: Cartório órfãos e Ausentes, Auto n. 693, Maço n. 22, Ano 1903, APERS.<br />

28 WITT, 2008. p.116-117.<br />

29 ECKERT, Luiza (Inventariado); ECKERT, Carlos (Inventariante). [inventário]. São Sebastião do Caí, 1878 [Manuscrito].<br />

Localização: Cartório órfãos e Ausentes, Auto n. 57, Maço n. 2, Ano 1878, APERS. p. 11v-12.<br />

30 ENGEL, Frederico Arnoldo (Inventariado); ENGEL, Júlia Carolina (Inventariante). [inventário]. São Sebastião<br />

do Caí, 1904 [Manuscrito]. Localização: Cartório órfãos e Ausentes, Auto n. 719, Maço n. 23, Ano 1904, APERS.<br />

p. 4v.<br />

³¹ FEIX, Reinhold (Inventariado); FEIX, Anna Maria (Inventariante). [inventário]. São Sebastião do Caí, 1906<br />

[Manuscrito]. Localização: Cartório órfãos e Ausentes, Auto n. 808, Maço n. 25, Ano 1906, APERS. p. 3v-4.<br />

328


Noll que, além de um elevado número de colônias em Taquara do Mundo Novo –<br />

16 no total –, era proprietário de um pedaço de terra em São Vincenzo, na primeira<br />

légua de Caxias, portanto, em território de imigração italiana. 32<br />

Entretanto, esse negócio nem sempre resultava em lucros. Em alguns casos,<br />

tornou-se um grande prejuízo, como revelam os inventários de João Weissheimer<br />

e Felipe Carlos Trein. Weissheimer havia comprado 3 colônias em Lajeado, tendo<br />

descoberto, posteriormente, que tais colônias não existiam, como esclarece seu inventário:<br />

“O finado foi como muitos outros victima de uma cavalheiro de industria<br />

que, na qualidade de procurador de pessoa que talvez nem exista vendeu lhes tres<br />

colonias que dizia sitas no municipio de Lageado, mas cuja existência é igualmente<br />

problemática”. 33 Já a casa comercial que Felipe Carlos Trein tinha em sociedade com<br />

Adolfo Oderich adquiriu, em 6 de março de 1899, 30 colônias de Ernesto Mehring,<br />

situadas na Barra Funda, segundo distrito de Lajeado, pelo significativo valor de 8<br />

contos de réis. Tais colônias, entretanto, eram fictícias. Segundo Guilhermina Trein,<br />

viúva de Felipe Carlos Trein, o mesmo ocorrera com “muitos outros que compraram<br />

terras deste indivíduo, que não existem” 34 .<br />

De todo modo, lucrativos ou não, os negócios de compra de lotes coloniais<br />

realizados por alguns dos vereadores de São Sebastião do Caí os inserem num contexto<br />

de expansão do mercado imobiliário, em função da constante chegada e instalação<br />

de imigrantes europeus.<br />

Se o investimento em terras foi comum entre a elite, pudemos constatar, por<br />

outro lado, que poucos foram os indivíduos que possuíam capital em espécie arrolado<br />

nos inventários, pois encontramos referência a capital em conta corrente em apenas<br />

dois dos 23 vereadores com inventários. Eram eles, Pedro Noll e Felipe Carlos<br />

Trein, ambos negociantes. Noll possuía 7 contos de réis, o que representava 3,32%<br />

do total de seu patrimônio, depositado no Banco da Província. 35 Já Trein, possuía<br />

uma quantia bem maior, 21:443$490 réis, correspondentes a 12,84% de seus bens,<br />

depositados em conta corrente com Edmundo Dreher & Cia, de Porto Alegre, a 6%<br />

de juros ao ano. 36 O interessante é que nos dois únicos casos em que há referência a<br />

³² NOLL; NOLL, 1899, f. 10-10v.<br />

³³ WEISSHEIMER, João (Inventariado); WEISSHEIMER, Elisabetha (Inventariante). [inventário]. São Sebastião<br />

do Caí, 1900 [Manuscrito]. Localização: Cartório do Cível, Auto n. 92, Maço n. 3, Ano 1900, APERS. f. 14v.<br />

34 TREIN; TREIN, 1899, f. 14.<br />

35 NOLL; NOLL, 1900, f. 52.<br />

36 TREIN; TREIN, 1899, f. 54.<br />

329


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

dinheiro depositado em contas correntes, ambos eram negociantes, apontando para<br />

uma diferenciação importante quanto ao poder econômico e ao espírito investidor<br />

destes. Segundo Witt, tal procedimento [o depósito em dinheiro em conta corrente],<br />

“não estava ao alcance da maioria dos colonos em virtude das exigências e do conhecimento<br />

que o futuro cliente deveria ter para abrir a sua conta”. Witt completa que<br />

“Essa dificuldade ou temerosidade – de abrir conta bancária – chegou até a década<br />

de 1990” quando muitos, ao invés de o fazerem optavam por confiar quantias de<br />

dinheiro “aos donos da venda mais forte do lugarejo”, que então abatia da quantia as<br />

compras que o colono fazia na venda. 37<br />

Mas os inventários informam, também, que pelo menos quatro vereadores<br />

(10,53% do total de vereadores ou 17,39% dos vereadores com inventários) possuíam<br />

algum capital investido em ações. A natureza das ações variava. César Augusto<br />

Góes Pinto possuía uma ação da Estrada de Ferro de São Leopoldo, desvalorizada<br />

em 1890 a 100 mil réis. 38 Já Carlos Eckert, possuía 2 ações do Vapor Barão do Cahy,<br />

que juntas valiam 200 mil réis. 39 Mas quem investiu o maior capital em ações foram<br />

Pedro Noll e João Weissheimer, ambos comerciantes no distrito de Santa Catarina<br />

da Feliz. Weissheimer possuía 4 ações na Companhia de Navegação Cahy, que juntas<br />

somavam 800$000 réis e 2 ações na Sociedade Irmãos Corrêa & Cia, no valor total<br />

de 400$000 réis, sociedade esta que tinha por objetivo construir uma ponte junto ao<br />

passo existente naquele distrito. 40 Já Pedro Noll possuía 5 ações na Companhia de<br />

Navegação Cahy, totalizando 1:250$000 réis; 4 ações na mesma Sociedade Irmãos<br />

Corrêa & Cia, a 800 mil-réis; e 20 ações na Sociedade de Atiradores de Feliz, com<br />

valor total de 1 conto de réis. Além destas, possuía ainda 5 ações na Companhia de<br />

Melhoramentos Cahy – cuja finalidade era melhorar as condições do rio Caí, para<br />

facilitar a navegação –, e 3 ações na Estrada de Ferro Novo Hamburgo, todas estas<br />

sem valor em 1899, quando da abertura dos autos do inventário de Pedro Noll. 41 A<br />

natureza das ações revela o espírito investidor destes homens. Os dois negociantes<br />

em questão investiram diretamente em ações relacionadas a sua atividade, como é<br />

o caso das ações na Sociedade Irmãos Corrêa & Cia., na Companhia de Navegação<br />

Cahy e na Companhia de Melhoramentos Cahy, todas relacionadas ao transporte de<br />

37 WITT, 2008, p. 122, grifo do autor.<br />

38 PINTO; PINTO, 1890, f.3.<br />

39 ECKERT; ECKERT, 1878, f. 12.<br />

40 WEISSHEIMER; WEISSHEIMER, 1900, f. 13-13v.<br />

41 NOLL; NOLL, 1899, f. 15-15v.<br />

330


mercadorias pelo rio Caí. A aquisição de ações de estradas de ferro, no caso da estrada<br />

de ferro Novo Hamburgo e da estrada de ferro São Leopoldo, revelam, segundo<br />

observado por Marcos Witt, “a importância desse novo veículo de comunicação<br />

entre a capital da província e a Colônia-Mãe [São Leopoldo], já expandida até Novo<br />

Hamburgo”. 42<br />

Para além de uma possível orientação dos investimentos para o benefício do<br />

município, a aquisição destas ações deve ter sido feita, muito provavelmente, para<br />

gerar lucros, o que efetivamente nem sempre ocorreu, como se percebe pelos inventários<br />

de César Augusto Góes Pinto, em que a ação da estrada de ferro São Leopoldo<br />

aparece desvalorizada, e no de Pedro Noll, em que constam que suas três ações na<br />

estrada de ferro Novo Hamburgo não possuíam qualquer valor. Talvez nas ações<br />

que Pedro Noll e João Weissheimer tinham na Sociedade Irmãos Correa & Cia.<br />

possamos encontrar mais nitidamente esse espírito colaborador a que se refere Witt.<br />

Conforme foi possível acompanhar através de correspondências, relatórios e atas<br />

da Câmara Municipal de São Sebastião do Caí era premente a necessidade de uma<br />

ponte junto ao Passo da Boa Esperança, na povoação de Picada Feliz. Por diversas<br />

vezes, moradores locais – em especial, negociantes – e a Câmara Municipal solicitaram<br />

a construção de tal ponte ao governo provincial, sem que tal empreendimento<br />

fosse realizado. Assim, ao que parece, a construção de tal ponte deu-se por volta<br />

de final do século XIX e início do XX, através de uma sociedade da qual tomaram<br />

parte muitos moradores locais, interessados na realização da obra, como é o caso<br />

de Weissheimer e Noll, que, como negociantes locais, dependiam desta para melhor<br />

transportar suas mercadorias. 43<br />

Foi a partir do arrolamento e avaliação dos bens constantes nos inventários<br />

que nos foi possível traçar esse quadro de investimentos feitos pela elite caiense de<br />

final do século XIX. Mas os inventários podem também ser importante fonte para<br />

perscrutarmos aspectos do modo de vida da elite caiense, sobretudo de seu espaço<br />

privado, como a seguir demonstramos. 44<br />

42 Witt, ao observar os investimentos feitos por Jacob Diefenthäler na aquisição de papéis de estrada de ferro,<br />

deduziu que este pudesse ter “vislumbrado o crescimento econômico que a nova forma de deslocamento poderia<br />

proporcionar ao mundo colonial em que estava inserido”, já que até então o rio constituía a via principal de transporte<br />

de mercadorias, concluindo então que “Portanto, adquirir ações e títulos poderia ser uma forma de contribuir<br />

e garantir a conclusão da obra ferroviária” (WITT, 2008, p. 116).<br />

43 É preciso ainda destacar que as ações que Pedro Noll possuía junto à Sociedade de Atiradores de Feliz podem ser<br />

reveladores de uma faceta da sociabilidade desta elite.<br />

44 Procedimento semelhante foi adotado por Jurandir Malerba, para “observar ‘esses índices de civilidade’, constituídos<br />

por objetos de uso cotidiano” da elite imperial no Rio de Janeiro no início do século XIX (MALERBA, Jurandir.<br />

A corte no exílio: civilização e poder no Brasil às vésperas da Independência (1808-1821). São Paulo: Companhia<br />

das Letras, 2000. p. 148); por Fábio Kühn (2006b), com a finalidade de desvendar aspectos do modo de vida nos<br />

Campos de Viamão no século XVIII; e por Marcos Ferreira de Andrade (2008), para caracterizar a vida material da<br />

elite de Campanha da Princesa, Minas Gerais, na primeira metade do século XIX.<br />

331


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

332<br />

A AVALIAçãO DOS BENS:<br />

INDíCIOS DE UM MODO DE VIDA<br />

Nos inventários encontramos, muitas vezes, além da menção aos bens de propriedade<br />

do inventariado, a descrição – algumas vezes bem detalhada – destes bens,<br />

de modo que podemos ter uma noção não somente dos bens que possuíam como<br />

também de características mais específicas destes.<br />

A descrição realizada em muitos inventários, por exemplo, pode revelar como<br />

eram as casas habitadas pelos membros da elite analisada. Em alguns casos encontramos<br />

uma descrição bastante detalhada das casas de moradia dos inventariados,<br />

revelando, então, mais detalhadamente, o padrão de vida da elite analisada e os meios<br />

materiais que esta utilizava para expressar o status elevado que a diferenciava do<br />

restante da população.<br />

O contexto de desenvolvimento da região colonial ao longo do século XIX<br />

ajuda a explicar a significativa melhoria nos padrões de moradia da elite caiense<br />

constatada em nossa pesquisa. O fato de o povoamento da região do vale do rio Caí,<br />

ao longo do século XIX, ter-se inserido em um projeto maior de colonização, encabeçado<br />

pelo governo imperial, e o desenvolvimento alcançado ao longo da segunda<br />

metade do século, sobretudo demográfico e econômico, conferiram maior confiança<br />

na prosperidade do povoado, derivando desta condição, maiores investimento, por<br />

parte da elite local, em bens imóveis como terras rurais e terrenos urbanos, benfeitorias<br />

e casas de moradia de melhor padrão.<br />

Ao analisarmos as características das casas da elite política caiense, percebemos<br />

que tais possuíam um bom padrão de moradia, apesar de que há uma clara<br />

diferenciação interna ao grupo. Algumas das residências aparecem descritas como<br />

construídas de pedra. É o caso da casa de moradia de Pedro Noll, no distrito de Santa<br />

Catarina da Feliz: “construída de pedra, coberta com telhas de barro e de zinco,<br />

forrada e assoalhada com 20m de frente e 13,2m de fundo; com 2 portas e 6 janellas<br />

na frente”. Tal construção constitui um imóvel típico de um indivíduo de significativas<br />

posses, afinal, foi avaliado em 15 contos de réis. 45 Mas, muito comuns, neste final<br />

do século XIX e início do XX eram as casas construídas de tijolos. Assim era a casa<br />

de Alberto Thomaz Scherer, na Vila de São Sebastião do Caí e a de Justino Antônio<br />

da Silva, em Costa da Serra, no distrito de Santana do Rio dos Sinos. A cobertura das<br />

45 NOLL; NOLL, 1899, f. 8.


casas ou era feita de telhas de barro ou então de zinco. Algumas, inclusive, combinavam<br />

estes dois tipos de cobertura em um mesmo imóvel. 46<br />

Nos inventários que analisamos, a maioria das residências é descrita como sendo<br />

“forradas e assoalhadas”, denotando que tais condições constituíam um diferencial<br />

em relação à construção de outras. Para o caso de São Leopoldo e Litoral Norte<br />

do Rio Grande do Sul, Marcos Witt também constatou que três itens – ser construída<br />

“de pedra, forrada e assoalhada” – identificavam que se tratava de uma residência<br />

que estava acima dos padrões da maioria das ocupadas pelos colonos. 47 Dos inventários<br />

em que constam descrições dos imóveis, somente em três deles encontramos<br />

referências a sobrados, que, definitivamente, eram os mais bem avaliados. É o caso<br />

das residências de Frederico Arnoldo Engel, Pedro Franzen Filho e Felipe Carlos<br />

Trein, ambos na Vila de São Sebastião do Caí. Engel possuía um sobrado avaliado<br />

em 15 contos de réis, enquanto Trein era proprietário de dois sobrados, adquiridos<br />

após o falecimento de sua primeira esposa, Henriqueta Trein, em 1878. 48 Juntos, os<br />

dois sobrados de Trein valiam 27 contos de réis, ou seja, 16,17% de todos os bens<br />

de Trein. Entretanto, a avaliação do sobrado de Pedro Franzen Filho destoa da dos<br />

demais, pois este foi avaliado em apenas 1 conto e 200 mil-réis, o que pode denotar<br />

uma considerável diferença entre as condições da construção em relação aos demais<br />

sobrados, ou estar diretamente relacionado à não incomum prática de sub-avaliação<br />

do valor dos bens com vistas ao pagamento de taxas de impostos menores49 .<br />

A grandiosidade de algumas residências pode ser constatada pelo número de<br />

portas e janelas descritas. De acordo com Mara Regina Kramer Silva, que analisa o<br />

simbolismo dos traços arquitetônicos das residências da elite republicana nos Campos<br />

de Cima da Serra (RS), a concentração de aberturas na fachada principal “conota<br />

receptividade para com os visitantes”. 50 Um dos sobrados de Felipe Carlos Trein<br />

46 Essa maior incidência de casas feitas de paredes de tijolos e cobertas com telhas de barro podem ser representativas<br />

da existência de um número significativo de olarias no município. Somente no primeiro trimestre de 1885, cinco<br />

impostos sobre olaria foram pagos à Câmara Municipal. SãO SEBASTIãO DO CAí. Câmara Municipal. Livro<br />

para Lançamento das Receitas e Despesas da Câmara Municipal da Vila de São Sebastião do Caí. São Sebastião do<br />

Caí: 1876-1885 [Manuscrito]. Localização: AHMBM.<br />

47 WITT, 2008, p. 115.<br />

48 Não sabemos precisar a forma de aquisição destes imóveis por Felipe Carlos Trein, pois trabalhamos apenas com<br />

os cruzamentos de informações entre o inventário de Henriqueta Trein, sua primeira esposa, datado de 1878, quando<br />

então os sobrados não são arrolados entre os bens, e o inventário do próprio Felipe Carlos Trein, que data de<br />

1899 e no qual constam entre seus bens dois sobrados, que se comunicavam entre si, na Vila de São Sebastião do Caí.<br />

49 Muito possivelmente, essa segunda opção – a de subavaliação dos bens – é o que pode explicar o valor menor<br />

com que é avaliada a casa assobradada de Franzen, pois no inventário deste constam acusações de que tal prática<br />

teria ocorrido.<br />

50 SILVA, Mara Regina Kramer. Linguagem simbólica de poder: arquitetura rural gaúcha. 1996. Dissertação<br />

(Mestrado em História) -- Programa de Pós-Graduação em História. Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São<br />

Leopoldo, RS, 1996. p. 118.<br />

333


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

possuía 1 porta e cinco janelas de frente. O sobrado de Frederico Engel possuía uma<br />

porta que fazia ângulo com a esquina da rua Tiradentes com a rua General Câmara<br />

e 4 janelas em cada frente, segundo informações do inventário do próprio Engel, e<br />

que podem ser confirmadas pela fotografia do sobrado. 51 Se considerarmos a perspectiva<br />

de análise proposta por Silva, então as duas fachadas principais do sobrado<br />

de Engel apontam para a sua condição de homem público, vereador e figura ativa na<br />

comunidade evangélica de São Sebastião do Caí.<br />

Ainda acerca da casa de Engel é interessante notar que sua residência possuía<br />

traços característicos da arquitetura luso-açoriana, como as janelas retangulares emolduradas<br />

externamente por um friso, denotando assim a assimilação de valores da nova<br />

sociedade em que este imigrante alemão se inseriu. 52 O porão alto existente no sobrado,<br />

como se pode constatar pela fotografia abaixo, constitui, segundo Reis Filho, uma<br />

característica de casas abastadas típicas da primeira metade do século XIX. 53<br />

51 Para além do caráter simbólico das aberturas, é preciso considerar que estas tinham a função de garantir a incidência<br />

do sol e a ventilação no interior das edificações, sobretudo em regiões marcadas por um inverno mais rigoroso,<br />

havendo, inclusive, prescrições fixadas no Código de Posturas do município em relação às medidas que deveriam ser<br />

observadas nas portas e janelas das construções localizadas na Vila. (SILVA, 1996. p. 116).<br />

52 Se foi possível observar traços da arquitetura lusitana nas residências do município, não podemos deixar de referir<br />

a influência da arquitetura germânica em muitas delas, mesmo porque muitos dos vereadores eram imigrantes ou<br />

descendentes de alemães. Este é o caso da residência de Georg Henrique Ritter, pai do vereador Henrique Ritter<br />

Filho, construída em Linha Nova, então pertencente à freguesia de São José do Hortêncio, dotada do característico<br />

estilo enxaimel, herança da arquitetura westfaliana (WEIMER, Günter. A arquitetura rural da imigração alemã. In:<br />

BERTUSSI, Paulo Iroquez et al. A arquitetura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983. p.<br />

110).<br />

53 REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da arquitetura no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1970. p. 40.<br />

334


Figura 1 - Sobrado de Frederico Arnoldo Engel na Vila de São Sebastião do Caí 54<br />

Fonte: Acervo AHMBM<br />

Mas, como se pode constatar pela análise dos inventários, as grandes e imponentes<br />

residências não se restringiam à vila, já que casa de Antônio José da Rocha<br />

Júnior, em Santana do Rio dos Sinos, possuía 7 janelas de frente, e a de Justino Antônio<br />

da Silva, no mesmo distrito, possuía 4 portas de frente e 3 janelas.<br />

Poucos são os inventários que descrevem e realizam a avaliação das casas<br />

de moradia em separado dos terrenos em que estas estavam construídas, o que,<br />

então, dificulta a determinação do valor destas residências. O que se pode observar,<br />

entretanto, é que as casas construídas no Termo da Vila eram melhor avaliadas em<br />

comparação à maioria das residências construídas em distritos do interior, em zona<br />

propriamente rural. A casa de Paulino Ignácio Teixeira, no distrito de Santana do<br />

Rio dos Sinos, mesmo sendo uma ampla casa, composta de diversas peças e avaliada<br />

conjuntamente ao terreno e mais benfeitorias, não ultrapassou o valor de 4 contos de<br />

réis, valor bastante inferior se comparado aos sobrados de Trein e ao de Engel localizados<br />

na Vila, termo-sede do município. Apesar desta diferenciação, é importante<br />

ressaltar que muitas das residências destes vereadores, mesmo que muito distintas<br />

dos pesados e sólidos sobrados patriarcais descritos por Freyre 55 denotavam, pois,<br />

sua melhor condição econômica. Quer se localizassem no meio rural, quer no meio<br />

54 Fotografia sem data.<br />

55 FREYRE, Gilberto. Casa grande & sensala. 18. Ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1977. p. 77.<br />

335


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

urbano, destacavam-se no conjunto de residências do município, aspecto este que<br />

foi também constatado por Silva quando esta observou, inclusive, a existência de<br />

distinções significativas entre as residências de membros da própria elite republicana<br />

por ela estudada. 56<br />

Mas também os móveis – funcionais ou decorativos – existentes nas residências<br />

podem revelar os padrões de vida desta elite que buscamos caracterizar, apesar<br />

de muitas vezes serem subestimados na avaliação ou nem sequer constarem nesta.<br />

A análise que realizamos dos bens móveis constantes nos inventários permite-nos<br />

afirmar que a elite caiense não possuía muitos bens de conforto, afinal, apenas uma<br />

pequena parte da fortuna destes indivíduos estava aplicada em bens móveis. Em<br />

nenhum dos inventários a percentagem de bens móveis ultrapassou 5% do total dos<br />

bens avaliados.<br />

Além disso, muitos dos bens arrolados, que se repetiam constantemente nos<br />

diversos inventários, eram bens que poderíamos denominar de “primeira necessidade”,<br />

tais como utensílios de cozinha, camas, mesas e cadeiras. Entretanto, em alguns<br />

casos foi possível identificar a presença de objetos mais sofisticados, denotando um<br />

maior poder aquisitivo, bem como um status social mais elevado. Cômodas, marquesas,<br />

aparadores e mobílias apareceram em muitos dos arrolamentos de bens dos<br />

inventários. Essa presença, em uma mesma residência, de artigos muito simples e de<br />

bens de luxo foi percebida e descrita por Malerba que, ao analisar os bens da elite<br />

carioca, nas primeiras décadas dos oitocentos, no contexto da transferência da Corte<br />

portuguesa para o Brasil, constatou que: “Mas se há, mesas com tampo de pedra ou<br />

colunas torneadas, é significativo constarem ao lado de referências singelas, como<br />

‘caixas’ ou ‘dois barris’, ou ‘duas gamelas pequenas’”. 57<br />

Assim, a heterogeneidade econômica desta elite política local, apontada anteriormente<br />

no Gráfico 1, é referendada pela composição dos bens móveis destes<br />

indivíduos, nas quais pode-se perceber distintos padrões de vida, já que algumas<br />

56 Em sua Dissertação, Mara Silva analisou duas fazendas na região dos Campos de Cima da Serra (RS) – a Fazenda<br />

Estrela, do Coronel Libório Rodrigues, e a Fazenda Branca, de propriedade do Coronel Avelino Paim – com o intuito<br />

de “decifrar a linguagem simbólica relativa à construção, manutenção e legitimação do poder de seus proprietários<br />

junto a seus subordinados, objetivando verificar a interferência da arquitetura nas relações de força” (SILVA, 1996,<br />

p. 99). Ao analisar a cobertura das duas casas-sede, Silva constatou a existência de um padrão nos dois casos analisados<br />

– ambas seguem o modelo de telhado quatro águas, característico do sobrado na arquitetura colonial brasileira<br />

– que as distingue das edificações de outros membros da elite econômica da região: “A grande maioria das demais<br />

residências rurais contemporâneas, por nós trabalhadas, embora também pertencentes à oligarquia rural, exibem<br />

uma cobertura de duas águas com inclinações laterais” (SILVA, 1996, p. 113-114).<br />

57 MALERBA, 2000, p.149.<br />

336


esidências aparecem mais sofisticadas que outras. Alguns inventários chamam a<br />

atenção por apresentarem os bens móveis avaliados em mais de 2 contos de réis,<br />

diferenciando-se de outros que possuíam apenas 22 ou 100 mil-réis em bens móveis.<br />

Felipe Carlos Trein, por exemplo, possuía 2:816$000 em bens móveis. Sua casa na<br />

vila de São Sebastião do Caí era bem localizada e, com certeza, chamava a atenção<br />

dada a sua imponência, pois se tratava de uma casa assobradada, tendo à frente uma<br />

porta e cinco janelas, localizada à rua Tiradentes esquina com a Praça Ramiro Barcelos.<br />

Em seu interior, podiam ser encontradas duas mobílias estofadas – que juntas<br />

valiam 750 mil-réis –, camas, bidê, armários – inclusive, armário para livros! –, guarda-roupas,<br />

mesa e cadeiras. Além da mobília, a casa contava com artigos decorativos,<br />

como relógios, quadros, tapetes e cortinas que encobriam as janelas (no inventário<br />

estão listadas 4 pares de cortinas que juntas foram avaliadas em 210 mil-réis). 58<br />

Já a casa de Carlos Berto Círio, em Santana do Rio dos Sinos, era bem mais<br />

modesta. Podiam ser encontradas nela mesas, cadeiras de pau, uma cadeira de balanço,<br />

baús, armário para louças e uma velha cômoda. 59 Entretanto, nenhum artigo de<br />

decoração como as cortinas, os quadros e tapetes existentes na casa de Felipe Trein.<br />

E, se acaso existiram, não constaram no arrolamento, provavelmente por não possuírem<br />

valor monetário significativo.<br />

Se na casa de Trein que morava na Vila de São Sebastião do Caí existiam<br />

artigos de luxo, o fato de residir em um distrito do interior do município não significava<br />

que alguns dos membros da elite abrissem mão de possuir bens mais luxuosos.<br />

Paulino Ignácio Teixeira, residente em Santana do Rio dos Sinos, não se furtou de<br />

ter artigos de luxo em sua casa. Teixeira possuía uma casa térrea, bastante ampla –<br />

com sala, alcovas, varanda e cozinha – feita de paredes de pedra e coberta de telha,<br />

sendo a edificação forrada e assoalhada. Junto à casa, que ficava em terreno cercado,<br />

encontravam-se algumas benfeitorias, como casa de atafona, paiol e um galpão<br />

para guardar as carretas. Dentre a mobília, destacavam-se um sofá feito de madeira<br />

e palhinha, duas cadeiras de braço e duas de encosto feitas de palhinha, uma mesa<br />

redonda, dois consolos com pedra de mármore e dois grandes espelhos. Castiçais,<br />

tapete, caixinha de música e piano, artigos estes de luxo, completavam a decoração.<br />

60 A presença de tais objetos pode ser representativo do processo de aumento<br />

58 TREI; TREIN, 1899, f. 21-22v.<br />

59 CIRIO, Narcisa Amélia (Inventariado); CIRIO, Carlos Berto (Inventariante). [inventário]. São Sebastião do Caí,<br />

1888 [Manuscrito]. Localização: Cartório órfãos e Ausentes, Auto n. 278, Maço n. 10, Ano 1888, APERS. f. 12.<br />

60 TEIXEIRA, Isolina Lopes Mariante (Inventariado); TEIXEIRA, paulino Ignácio (Inventariante). [inventário].<br />

São Sebastião do Caí, 1891 [Manuscrito]. Localização: Cartório órfãos e Ausentes, Auto n. 343, Maço n. 12, Ano<br />

1891, APERS. p. 24-26.<br />

337


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

das importações de bens de consumo destinados a consumidores endinheirados –<br />

semiduráveis, duráveis, supérfluos – descrito por Luiz Felipe de Alencastro como<br />

característico da segunda metade do século XIX. Assim, jóias, objetos de ouro e<br />

prata, relógios de algibeira e piano se tornaram mais comuns, segundo Alencastro,<br />

nas residências da elite imperial. 61<br />

Mas não eram somente imóveis e bens móveis que podiam traduzir o status superior<br />

da elite caiense. Não se deve desconsiderar o fato de que esta elite, mesmo vivendo<br />

em uma zona colonial – o que, muitas vezes, foi utilizado pela historiografia como motivo<br />

para que fosse negada a posse de escravos por colonos imigrantes –, encontrava-se<br />

inserida em uma lógica social escravista. Isto foi demonstrado por Witt que, ao analisar<br />

o caso da família Voges, de São Leopoldo, constatou que, a exemplo de muitas outras<br />

estabelecidas na região colonial, os Voges compravam e mantinham escravos em suas<br />

propriedades. 62 Raul Róiz Shefer Cardoso, detendo-se especificamente sobre a região do<br />

vale do rio Caí, observou que a presença escrava foi significativa nesta região:<br />

Localizamos, no Vale do Caí, a presença de várias fazendas, algumas das quais<br />

destacaram-se pela sua extensão ou pela representatividade de seus proprietários na região,<br />

pelos bens arrolados nos inventários ou pelo expressivo número de escravos encontrados<br />

na matrícula de registro ou na partilha dos bens inventariados. Sobressaíram-se<br />

na nossa pesquisa as fazendas: Carioca, Demanda, Morretes, Boa Vista, Estrela, Rio dos<br />

Sinos, das Palmas. 63<br />

Esta presença pôde ser confirmada em dois inventários da amostra de 27 que analisamos,<br />

sendo estes de dois vereadores de origem luso-brasileira. Como as informações<br />

de inventários eram bastante escassas, recorremos a outras fontes documentais que demonstram<br />

a presença de escravos no município entre as propriedades da elite local64 : nas<br />

61 ALENCASTRO, 1997, p. 36-37.<br />

62 WITT, 2008, p. 43.<br />

63 CARDOSO, Raul Róis Schefer. Capítulos de formação de um território negro: a escravidão rural no Vale<br />

do Caí (RS- 1870/1888). 2005. Dissertação (Mestrado em História) -- Programa de Pós-Graduação em História.<br />

Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, 2005. p. 40.<br />

64 Os inventários em que constam escravos arrolados entre os bens são os de Emília Angélica Loureiro, esposa<br />

de Agostinho de Souza Loureiro, e o de Antônio José da Rocha Júnior. Quando da morte de sua esposa Emília<br />

Angélica Loureiro, em 1876, Agostinho de Souza Loureiro possuía 4 escravos. Jorge, “preto velho” e Manoel, também<br />

descrito como “preto velho”, avaliados em 600 mil-réis cada; o “criolo moço” Marcos, que valia 1:200$000 e<br />

o “Crioulinho” Olimpio, de 600 mil-réis (LOUREIRO, Emília Angélica (Inventariado); LOUREIRO, Agostinho<br />

de Souza (Inventariante). [inventário]. São Sebastião do Caí, 1876 [Manuscrito]. Localização: Cartório órfãos e<br />

Ausentes, Auto n. 23, Maço n. 1, Ano 1876, APERS). Já no inventário de Antônio José da Rocha Júnior, datado de<br />

1884, consta como sendo de sua propriedade a preta Luiza, que lhe prestava serviços e fora avaliada em 100 mil-réis<br />

(ROCHA JÚNIOR, Antônio José da (Inventariado); ROCHA, Fausta Corte Real da (Inventariante). [Inventário].<br />

São Sebastião do Caí, 1884 [Manuscrito]. Localização: Cartório órfãos e Ausentes, Auto n. 165, Maço n. 6, Ano<br />

1884, APERS).<br />

338


eceitas da Câmara Municipal, encontramos arrolados como compradores de escravos<br />

– e, portanto, pagantes de 2% do valor do escravo em imposto – Antônio Pires<br />

Cerveira e Paulino Ignácio Teixeira. Cerveira comprou em 1880, de José Fernandes<br />

Vieira, a escrava Leopoldina, por quem pagou a quantia de 1:200$000. Já Paulino<br />

Ignácio Teixeira comprou em 1883 de Joaquim Pires da Cruz a escrava Izabel pelo<br />

valor de 500 mil-réis. 65 Se todas as fontes até agora referidas trazem luso-brasileiros<br />

como proprietários de escravos, o Mapa de População do primeiro quarteirão de<br />

Porto do Guimarães demonstra que imigrantes e descendentes teutos também possuíam<br />

bens de tal natureza. De acordo com o Mapa de População, datado, provavelmente,<br />

de 1868, Guilherme Zirbes era proprietário de um escravo, de naturalidade<br />

brasileira, 24 anos, chamado Gregório. 66 No mesmo documento, encontramos dados<br />

sobre a família de Cristiano Sauer. Nele, além da menção ao pardo Panciano Francisco<br />

Santos – que, acreditamos possa ter sido uma espécie de agregado da família<br />

Sauer, já que não está arrolado como escravo – encontramos a informação de que<br />

Cristiano Sauer era proprietário do escravo Stefânio, preto, brasileiro de 18 anos. 67<br />

Como evidenciamos, o fato de esta elite residir em um município que não<br />

possuía traços de um grande centro urbano – uma vez que, no máximo, podia ser<br />

considerado um entreposto comercial – não impediu que ela buscasse, através da<br />

aquisição de bens móveis, mais do que conforto, a garantia de prestígio. Esta mes-<br />

65 SãO SEBASTIãO DO CAí. Câmara Municipal. Livro para Lançamento das Receitas e Despesas da Câmara Municipal<br />

da Vila de São Sebastião do Caí. São Sebastião do Caí: 1876-1885 [Manuscrito]. Localização: AHMBM. f. 30v.<br />

66 JUNG, J. Pedro (Inspetor de Quarteirão). Mappa da população do Quarteirão de Porto Guimarães n. 1.<br />

[Manuscrito]. Localização: Fundo Polícia, Maço 40, São Leopoldo, 1º Quarteirão do 5º Distrito de São Leopoldo,<br />

[1868?], AHRGS.<br />

67 Assim, valendo-nos de diferentes fontes documentais, podemos afirmar que, dos 38 vereadores, temos informações<br />

de que pelo menos 6 foram donos de escravos. Entretanto, acreditamos que este número possa ter sido muito<br />

mais elevado, já que as fontes de que nos valemos – listas de população, receitas da Câmara Municipal e inventários<br />

– não são propriamente as mais adequadas para isso. Os últimos, por si só, não são suficientes, afinal, a grande<br />

maioria dos inventários é do período pós-abolição, de modo que não podemos saber se, antes disto, o indivíduo<br />

possuía ou não escravos. Já no caso das receitas da Câmara, estas só nos revelam a propriedade de escravos no caso<br />

de uma transação comercial, ocasião em que o comprador tinha que, necessariamente, pagar uma taxa aos cofres<br />

públicos. Obviamente, não encontramos nenhuma escravaria como as existentes em outras regiões do Brasil e mesmo<br />

em outras regiões do Rio Grande do Sul, como foi observado também por Cardoso: “[...] A opção dos grandes<br />

proprietários de terras da freguesia de Santana do Rio dos Sinos foi a de utilizar-se da mão-de-obra escrava. Para<br />

os parâmetros das Charqueadas do Rio Grande do Sul, o contingente escravo não era tão significativo. Contudo,<br />

foi o escravo o personagem que ocupou, em maior número, essas grandes fazendas, trabalhando como cozinheiro,<br />

lavrador, campeiro e costureira, entre outras atividades” (CARDOSO, 2005, p. 31-32). O maior número de escravos<br />

que localizamos – 28, no total – eram de propriedade de Antônio José da Silva Guimarães Júnior, pai do vereador<br />

Pedro de Alencastro Guimarães. JUNG, J. Pedro (Inspetor de Quarteirão). Mappa da população do Quarteirão<br />

de Porto Guimarães n. 1. [Manuscrito]. Localização: Fundo Polícia, Maço 40, São Leopoldo, 1º Quarteirão do 5º<br />

Distrito de São Leopoldo, [1868?], AHRGS.<br />

339


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

ma constatação foi feita por Mariana Muaze que, ao analisar a relação dos objetos<br />

comprados pela família Ribeiro de Avellar, quando de sua transferência da Corte<br />

para a fazenda Pau Grande, no interior do Rio de Janeiro, percebeu que “apesar de<br />

abrir mão da vida na cidade [...], a família Ribeiro de Avellar não pretendia fazer o<br />

mesmo no que se referia a sua vida material e ao cultivo de objetos de prestígio que<br />

correspondessem ao seu lugar social diferenciado”. 68<br />

340<br />

CONCLUSãO<br />

A utilização de inventários post-mortem, associados a outras fontes documentais,<br />

revela-nos facetas do modo de vida da elite política caiense e aponta para características<br />

que garantiam a este grupo diferenciação em relação aos demais setores sociais,<br />

denotando seu status superior de “elite”. A partir da análise do perfil econômico da<br />

elite política caiense acreditamos que, de fato, a riqueza criou condições favoráveis<br />

aos indivíduos que estavam à frente de cargos de poder político, uma vez que lhes<br />

dava maiores condições de distribuir favores, angariar aliados, e sustentar seu status<br />

diferenciado na sociedade local. Se, por um lado, muitos aspectos diferenciam os<br />

membros da elite política de São Sebastião do Caí, que então se revela um grupo<br />

heterogêneo em função da origem étnica, da profissão e do local de residência, 69 por<br />

outro lado sua privilegiada condição econômica garante-lhe certa homogeneidade.<br />

Foi, pois, esta privilegiada condição econômica dos indivíduos analisados – revelada,<br />

sobretudo, a partir da análise dos inventários post-mortem – que possibilitou, em boa<br />

medida, o acesso e a manutenção destes indivíduos ao grupo minoritário da elite<br />

política municipal.<br />

68 MUAZE, Mariana de Aguiar Ferreira. O Império do Retrato: família, riqueza e representação social no Brasil oitocentista<br />

(1840-1889). 2006. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História. Universidade<br />

Federal Fluminense, Rio de Janeiro, RJ, 2006. p. 164.<br />

69 Dos 38 vereadores, 13 eram luso-brasileiros e 25 eram teuto-brasileiros. Quanto ao perfil profissional, temos 20<br />

negociantes, 10 fazendeiros, 2 proprietários, 2 ferreiros, 1 marceneiro, 1 serreiro, 1 maquinista/náutico e 1 professor<br />

público. Quanto ao local de residência, 18 moravam na Vila de São Sebastião do Caí, termo-sede do município. Os<br />

demais residiam em distritos do interior do município: 11 em Santana do Rio dos Sinos, 5 em São José do Hortêncio<br />

e 4 em Santa Catarina da Feliz.


FONTES PESQUISADAS<br />

Alistamento dos eleitores do Município de São Sebastião do Caí. 1890 jun. 20 [Manuscrito].<br />

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Livro para Lançamento das Receitas e Despesas da Câmara Municipal da Vila de São<br />

Sebastião do Caí. São Sebastião do Caí: 1876-1885 [Manuscrito]. Arquivo Histórico<br />

Municipal Bernardo Mateus (AHMBM).<br />

Mappa da população do Quarteirão de Porto Guimarães n. 1. [Manuscrito]. Localização:<br />

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e serial no Brasil: um balanço. Goiânia: ANPUH-MG, 2001.<br />

MALERBA, Jurandir. A corte no exílio: civilização e poder no Brasil às vésperas da<br />

Independência (1808-1821). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.<br />

MUAZE, Mariana de Aguiar Ferreira. O império do Retrato: família, riqueza e<br />

representação social no Brasil oitocentista (1840-1889). 2006. Tese (Doutorado em<br />

História) – Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal Fluminense,<br />

Rio de Janeiro, RJ, 2006.<br />

REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da arquitetura no Brasil. São Paulo: Perspectiva,<br />

1970.<br />

ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora<br />

Globo, 1969.<br />

SILVA, Mara Regina Kramer. Linguagem simbólica de poder: arquitetura rural<br />

gaúcha. 1996. Dissertação (Mestrado em História) -- Programa de Pós-Graduação<br />

em História. Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, 1996.<br />

WEIMER, Günter. A arquitetura rural da imigração alemã. In: BERTUSSI, Paulo<br />

Iroquez et al. A arquitetura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto,<br />

1983. p. 95-119.<br />

WITT, Marcos Antônio. Em busca de um lugar ao sol: estratégias políticas, imigração<br />

alemã, Rio Grande do Sul, Século XIX. São Leopoldo: Oikos, 2008.<br />

342


A AtividAde eConôMiCA rio-grAndense eM teMPos de<br />

guerrA (vilA de rio grAnde, 1811-1850)<br />

Gabriel Santos Berute*<br />

Resumo: É plausível supor que os períodos de guerra nos quais o Rio Grande do Sul esteve<br />

envolvido durante a primeira metade dos oitocentos – as Guerras Cisplatinas, 1811-28, e a Guerra dos<br />

Farrapos, 1835-40 – tenham influenciado o ritmo da sua atividade econômica. Nesta comunicação<br />

tenho como objetivo investigar o impacto que estas tiveram na economia da região. A principal fonte<br />

utilizada são as escrituras públicas de venda, crédito e sociedade registradas em Rio Grande entre 1811-<br />

50. A documentação permitiu observar que os bens rurais apresentaram uma redução no número de<br />

transações e quedas importantes no seu valor, especialmente nos primeiros anos da Guerra dos Farrapos,<br />

concomitante a valorização dos bens urbanos.<br />

Palavras-chave: Rio Grande do Sul – escrituras públicas – comércio – guerra – agentes mercantis<br />

Opadrão de investimento observado na economia rio-grandense, especialmente<br />

no que diz respeito ao impacto econômico das Guerras<br />

Cisplatinas (1811-28) e da Guerra dos Farrapos (1835-40) é o tema<br />

abordado nesta comunicação. Para tanto utilizei as escrituras públicas registradas em<br />

Rio Grande entre 1811 e 1850¹.<br />

Juridicamente, as escrituras são instrumentos destinados a registrar formalmente<br />

todas as condições de um determinado contrato, “seja para assumir uma<br />

obrigação ou seja para determinar a execução de outro ato qualquer”. Estas podem<br />

ser tanto privadas, restritas aos nela interessados, quanto públicas, lavradas por um<br />

funcionário ou oficial público e de acordo com “as solenidades previstas em lei”.<br />

No caso das particulares, estavam restritas àquelas transações que a lei não obrigava<br />

registrar em documento público. “E para que opere em relação a terceiros, [é] necessário<br />

que seja transcrito no registro público”². Na documentação por mim analisada,<br />

pude verificar a ocorrência de escrituras particulares que posteriormente foram re-<br />

* Aluno do curso de doutorado do PPG-História/UFRGS. Bolsista CAPES.<br />

¹ ARQUIVO PÚBLICO DO EESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Transmissões e Notas. Rio Grande, 2º<br />

Tabelionato, Livro 2-21 (1811-1850). Doravante: APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L, fl.<br />

² SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 1975. Volume II, p. 616-17.<br />

343


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

gistradas nos livros do Tabelionato. Em 12 de janeiro de 1843, por exemplo, Vicente<br />

Manuel de Espíndola e sua esposa, constam com outorgantes de uma escritura de<br />

ratificação referente à venda de um terreno de 100$000 réis (2.581 libras) feita por<br />

documento particular em outubro de 1842 para José Gomes Madeira³.<br />

Jucá de Sampaio observou que as Ordenações Filipinas determinavam que<br />

era necessário o registro público de contratos, compras e vendas, empréstimos, permutas,<br />

dotes, entre outros. Assim, todas as transações envolvendo bens de raiz de<br />

valor acima de 4$000 réis, bens móveis e dívidas com valor superior a 60$000 réis<br />

deveriam ser registradas em escrituras públicas 4 . Portanto, estas não dizem respeito<br />

à totalidade das transações efetuadas em uma sociedade. Acrescenta-se ainda que<br />

muitas negociações podem ter permanecido no âmbito particular, ainda que seu<br />

registro fosse obrigatório.<br />

Apesar destas limitações, os registros notariais permitem conhecer, mesmo<br />

que parcialmente, o padrão dos investimentos econômicos vigentes em uma sociedade.<br />

Estudos como os de João Fragoso e Jucá de Sampaio, e mais recentes como os<br />

de Fábio Pesavento e Alexandre Vieira Ribeiro, têm demonstrado a pertinência desta<br />

fonte para a investigação histórica 5 . Sendo assim, as escrituras públicas lavradas em<br />

Rio Grande constituem-se na principal fonte deste trabalho.<br />

Nos livros de Transmissões e Notas de Rio Grande para o período considerado,<br />

foram registradas 1.949 escrituras no valor total de 162.592.182 libras esterlinas 6 .<br />

Nesta comunicação selecionei as escrituras reunidas sob os títulos de Venda, Crédito<br />

e Sociedade que somam 1.096 escrituras, correspondentes a 56% do total de<br />

³ APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L17, fl. 67v.<br />

4 SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas<br />

no Rio de Janeiro (c. 1650-c. 1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 54. Ver também CÓDiGO<br />

FiLiPiNO, OU, ORDENAÇÕES E LEiS DO REiNO DE PORTUGAL: RECOPiLADAS POR MAN-<br />

DADO D’EL-REi D. FiLiPE i. Brasília: Senado Federal, Conselho editorial, 2004, Livro Terceiro, 2º Tomo,<br />

Título LIX, p. 651-52.<br />

5 FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil<br />

do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de.<br />

Na encruzilhada do império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c. 1650-c.<br />

1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003; PESAVENTO, Fábio. Um pouco antes da Corte: a economia<br />

do Rio de Janeiro na segunda metade do Setecentos. Niterói: Centro de Ciências Sociais Aplicadas-Faculdade<br />

de Economia/UFF, 2009 [tese de doutorado]; RIBEIRO, Alexandre Vieira. A cidade de Salvador: estrutura<br />

economia, comércio de escravos, grupo mercantil Salvador (c.1750 c.1800). Rio de Janeiro: PPGHIS-UFRJ,<br />

2009 [tese de doutorado].<br />

6 Para obter uma avaliação mais precisa dos valores dos bens negociados e sua evolução ao longo período em questão<br />

optou-se por considerar os valores em libras. Para a conversão foi utilizada a tabela IPEA. Taxa de câmbio<br />

média anual da libra esterlina (réis por pence) na praça do Rio de Janeiro (RJ). Disponível em: . Acesso em 11 jan. 2009.<br />

344


egistros e 72% (116.820.910 libras) do valor total das mesmas. Para melhor análise<br />

dos dados, as escrituras selecionadas foram organizadas nas seguintes categorias,<br />

conforme o tipo de escritura e dos bens negociados: Bens urbanos; Bens rurais;<br />

Crédito; Embarcações, Sociedades e Outras.<br />

Assim, foi possível construir o Gráfico 1, mostrando a quantidade de escrituras<br />

e seus valores, de acordo com as categorias estabelecidas. A categoria Urbano<br />

possui 497 escrituras (45%), o correspondente a 25% do valor (29.676.245 libras).<br />

As escrituras reunidas sob o título Rural, embora reúnam pouco mais da metade das<br />

escrituras de bens urbanos (23%), concentram 30% do valor (35.497.480 libras) das<br />

mesmas. Apesar de reduzidas no que diz respeito ao número de registros, as escrituras<br />

das categorias Embarcações e Crédito são responsáveis por parcelas significativas<br />

dos valores transacionados: 23.093.763 libras (20%) e 22.679.858 libras (19%), respectivamente.<br />

No caso das poucas escrituras de Sociedade, chama a atenção o montante<br />

considerável que elas alcançaram (4.006.218 libras ou 3% do total), sugerindo<br />

que tinham valores individuais elevados. O peso dos negócios ligados à atividade<br />

mercantil fica mais evidente ao se somar as escrituras de bens urbanos e as embarcações.<br />

Juntas, as duas categorias reúnem 61% das escrituras e 45% do valor total<br />

envolvido.<br />

Gráfico 1 – Número e valor total das escrituras por categoria, 1811-1850<br />

(Libras esterlinas)<br />

Fonte: APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L 2-21, 1811-50<br />

A análise da distribuição das escrituras de acordo com suas categorias e faixas<br />

de valor permite perceber a grandeza das transações registradas nos livros de<br />

“Transmissões e Notas” de Rio Grande. Na Tabela 1, que apresenta os valores das<br />

diferentes categorias de escrituras, é possível observar que a maior parte das escrituras<br />

valia menos de 100 mil libras, com valor médio de 33.333 libras. Apenas 30<br />

345


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

escrituras (cerca de 3%) encontram-se entre aquelas cujos valores foram superiores a<br />

500 mil libras esterlinas, mas concentram um terço do montante total das escrituras<br />

selecionadas.<br />

346<br />

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Considerando cada uma das categorias, percebe-se que em todas elas a maioria<br />

das escrituras encontra-se na faixa de menos de 100 mil libras. A maior parte do<br />

valor das transações de bens rurais encontra-se nas faixas de 100 a 499 mil libras e<br />

mais de 1 milhão de libras (66%). Em ambas as faixas, os bens rurais concentram 53<br />

e 50% do valor total, seguidas dos urbanos, com 23,5% das escrituras com valores<br />

entre 100 e 499 mil libras e dos créditos com 29% da faixa de mais de 1 milhão de<br />

libras em apenas 4 escrituras.<br />

Quanto às escrituras da categoria urbano, percebe-se que 472 das 497 escrituras<br />

valiam no máximo 499 mil libras. Nas faixas de menos de 100 mil e de 100 a<br />

499 mil libras estão distribuídas 87% do valor destas escrituras. Entre as de menor<br />

valor (menos de 100 mil libras) as urbanas são predominantes, seguidas das rurais.<br />

Na faixa de valor entre 100 e 499 mil libras há certo equilíbrio na distribuição das<br />

escrituras entre as categorias: rural, urbano, embarcações e crédito.<br />

Quase todas as escrituras de venda de embarcações estão nas duas primeiras<br />

faixas de valor. Dois terços do valor destas escrituras estão na faixa de 100 a 499<br />

mil libras. Destaca-se que a única embarcação com valor maior que 1 milhão de libras<br />

esterlinas concentra quase 6% dos 26.481.772 de libras acumuladas nesta faixa.<br />

Quanto ao crédito, embora a maior parte destas escrituras fosse de menos de 100 mil<br />

libras, aproximadamente a metade dos 35.497.480 de libras estava concentrada nas<br />

escrituras com valore entre 100 e 499 mil libras esterlinas.<br />

Constata-se, portanto, que os bens urbanos mesmo sendo mais numerosos<br />

são individualmente menos valiosos em relação aos bens rurais que, por sua vez, concentram<br />

as escrituras com os bens de valor mais avultado. Considerando os valores<br />

médios, os bens urbanos são mais valiosos apenas entre os bens da terceira faixa de<br />

valor (500 a 999 mil libras). Quanto às embarcações, destaca-se que elas possuem valor<br />

médio mais elevado do que as escrituras rurais e urbanas da primeira faixa de valor.<br />

Na Tabela 2, apresento a distribuição qüinqüenal das escrituras e seus valores<br />

a fim de observar sua evolução ao longo do período investigado. As escrituras de<br />

venda de bens rurais concentram a maior parcela do valor total negociado (39%),<br />

embora mais da metade das escrituras registradas fossem urbanas que acumulavam<br />

33% do valor total das vendas. Percebe-se que até o início da rebelião contra o domínio<br />

da Banda Oriental pelo Império do Brasil (1825) o investimento em bens rurais<br />

superava amplamente o montante aplicado nos bens rurais e nas embarcações 7 .<br />

Ao analisar escrituras de compra e venda registradas no Rio de Janeiro entre 1800<br />

e 1816, João Fragoso observou que os negócios rurais eram a segunda opção em<br />

7 Avaliando a participação dos bens de produção no patrimônio produtivo total da capitania rio-grandense a partir<br />

de inventários post-mortem para os anos entre 1765 e 1825, Helen Osório constatou que nos períodos de guerra<br />

(1765-85 e 1815-25) os animais compunham a maior parte do patrimônio. Entre 1815-25, os animais e as terras<br />

representavam, respectivamente, 37,9 e 37,3% do patrimônio total. A autora afirma que “os preços do gado vacum<br />

aumentavam mais, e rapidamente, em tempos de guerra, enquanto as terras aumentavam lenta e progressivamente,<br />

347


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

número de escrituras, mas não acumulavam parcela correspondente no valor total<br />

negociado, pois eram bens de baixo valor. Estes negócios representavam no mínimo<br />

11,68% e no máximo 34,8% do valor negociado 8 . Na cidade de Salvador, Alexandre<br />

Ribeiro constatou que os bens rurais correspondiam a uma parcela entre 33,2 e<br />

54,6% do valor das vendas registradas entre 1751 e 1800 9 . No caso de Rio Grande,<br />

as escrituras rurais deixaram de ser as mais valiosas apenas no qüinqüênio 1826-30<br />

quando as embarcações concentraram cerca de 35% e as rurais 29% dos 8.947.941<br />

de libras acumulados por todas as vendas deste período. Nos qüinqüênios seguintes,<br />

os recursos investidos no setor agrário foram sempre superiores a 26%, exceto no<br />

lustro de 1836-40, quando a conjuntura de guerra contribuiu para uma queda bastante<br />

acentuada no número de escrituras e, principalmente, no valor. No primeiro<br />

lustro da série, dentro da conjuntura analisada por Fragoso, as escrituras rurais representavam<br />

74% do valor negociado. Em 1816-20, elas alcançaram o seu máximo,<br />

quase 79%. Percebe-se assim, que ao contrário da Corte e da capital soteropolitana,<br />

em Rio Grande os investimentos rurais ainda concentravam parcelas consideráveis<br />

dos recursos envolvidos nestas transações 10 .<br />

refletindo-se esse movimento na composição do patrimônio produtivo”. Osório ressalta que “A guerra configuravase<br />

como um momento propício para arrear e roubar gado e, simultaneamente, como uma ocasião em que o consumo<br />

desse bem crescia muito, tanto por se a base da alimentação das tropas, como por se apresentar como o butim<br />

passível a ser conquistado”. OSóRIO, Helen. O império português no sul da América: estancieiros, lavradores<br />

e comerciantes. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007, p. 67-75; a citação é da p. 72-3.<br />

8 FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do<br />

Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p. 336-37.<br />

9 RIBEIRO, Alexandre Vieira. A cidade de Salvador: estrutura economia, comércio de escravos, grupo mercantil<br />

Salvador (c.1750 c.1800). Rio de Janeiro: PPGHIS-UFRJ, 2009 [tese de doutorado], p. 88.<br />

10 Neste ponto, os resultados são semelhantes ao observado por Jucá de Sampaio para o período entre a segunda<br />

metade do século XVII e a primeira metade do século seguinte, quando o investimento nos “negócios rurais” era<br />

preponderante em termos de valor (mas não preponderavam no número de escrituras registradas) e concentraram<br />

parcelas entre 32,47 e 79,45% do valor total das escrituras de compra e venda. SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de.<br />

Na encruzilhada do império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c. 1650-c.<br />

1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 68-9.<br />

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VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

A queda verificada no percentual correspondente às escrituras de bens rurais<br />

a partir do lustro de 1826-30 foi acompanhada por uma elevação do investimento<br />

em bens urbanos. Cabe observar que este é um período crítico da disputa pela Banda<br />

Oriental, que teve do desdobramento a perda da Província Cisplatina e a criação do<br />

Uruguai como nação independente (1828). Apesar de algumas variações, há uma<br />

tendência de crescimento no total de escrituras realizadas e nos seus respectivos<br />

valores. Os primeiros anos do conflito farroupilha foram justamente os que apresentaram<br />

a maior representatividade das escrituras urbanas: 66% das escrituras e 52%<br />

do valor total das vendas do qüinqüênio 1836-40. A partir da segunda metade do<br />

conflito há indícios de uma recuperação dos valores dos bens rurais, uma vez que o<br />

percentual do montante investido em bens urbanos e em embarcações foi reduzido<br />

em favor dos bens rurais.<br />

A participação das escrituras envolvendo a negociação de embarcações oscilou<br />

bastante entre 1811-50. Ao longo da primeira metade dos oitocentos, constatou-se<br />

crescimentos significativos no total de escrituras nos qüinqüênios de 1816-20, 1826-<br />

30 e 1846-50. Quanto aos valores, os percentuais acumulados foram baixos até 1816-<br />

20 e verificou-se um crescimento bastante acentuado nos lustros 1826-30 e 1836-40,<br />

na primeira metade da década de conflito entre farroupilhas e imperiais.<br />

Percebe-se, portanto, que as duas conjunturas de guerra enfrentadas pela província<br />

exerceram influência importante no padrão de investimento verificado através<br />

das escrituras de venda. O fim da ocupação da Banda Oriental e o início da Guerra<br />

dos Farrapos representaram momentos cruciais para a economia da província<br />

rio-grandense, pois a partir de 1826-30 parte do investimento antes direcionado<br />

majoritariamente nos bens rurais passou a ser aplicado nas negociações envolvendo<br />

bens urbanos e embarcações. Somados, os recursos acumulados nestas escrituras<br />

representavam 59% dos 90.134.834 libras esterlinas negociados entre 1811 e 1850.<br />

Apesar da tendência de recuperação do valor aplicado na aquisição de bens rurais a<br />

partir de 1841-45, este tipo de investimento não retomou os patamares verificados<br />

antes de 1826, demonstrando que os investimentos em bens ligados a atividade mercantil<br />

(urbanos e embarcações) estavam em processo de crescimento na sociedade<br />

rio-grandense a partir de meados da década de 1820, indicando que também crescia<br />

o nível de urbanização. Helen Osório constatou que entre 1765 e 1825 as aglomerações<br />

urbanas eram muito incipientes nesta região. Apenas 26% dos inventários<br />

post-mortem da capitania eram exclusivamente urbanos e que os bens rurais oscilavam<br />

entre 25,7 e 56% do total do patrimônio declarado, enquanto os bens urbanos atingiram<br />

no máximo 18,8%¹¹. Sendo assim, o padrão verificado nas escrituras indica uma<br />

alteração significativa em relação ao período analisado pela autora.<br />

¹¹ OSóRIO, Helen. O império português no sul da América: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto<br />

Alegre: Editora da UFRGS, 2007, p. 259-61.<br />

350


Em termos numéricos, as sociedades não permitem grandes considerações. Foram<br />

localizadas apenas nove escrituras de sociedades registradas no tabelionato. Tal<br />

característica não deve levar a uma conclusão precipitada quanto à importância das<br />

mesmas, pois é possível que parte delas tenha sido formalizada através de documentos<br />

particulares, portanto estritos aos diretamente interessados. Naquelas que<br />

mereceram o registro nos livros notariais de Rio Grande, destaca-se que em apenas<br />

uma escritura lavrada em 1824, no valor de 3.167.500 libras, concentrava 79% do valor<br />

total representado pelas escrituras de sociedade. Tratava-se da ratificação de um<br />

documento particular de sociedade feito em 1821 referente ao Campo do Serro Alegre<br />

(campos e gados). A sociedade era composta por Ismael Soares de Paiva da Cidade<br />

de Porto Alegre e o casal de José Antonio de Freitas, residente em Serro Alegre,<br />

Distrito da Vila do Rio Pardo, onde se localizava a propriedade. A duração prevista<br />

era de nove anos e Paiva era definido como caixa enquanto Freitas ficava responsável<br />

pela administração da mesma¹².<br />

As escrituras de crédito concentram o equivalente a um quarto do valor investido<br />

nas vendas. O melhor resultado foi verificado no lustro 1821-25, quando<br />

as 3.127.480 libras negociadas representaram quase 65% do valor das escrituras de<br />

venda no mesmo período, enquanto o menor percentual foi de 8%. Em relação ao<br />

número de escrituras, em todo o período considerado os percentuais foram menores<br />

em relação às de venda e apresentou a parcela mais significativa em 1846-50 (29%<br />

das escrituras de venda) 13 .<br />

Considerando a distribuição dos 22.679.857 de libras, percebe-se que a maior<br />

parte do valor das escrituras de crédito concentra-se nos três últimos qüinqüênios.<br />

É possível que tal característica tenha relação com a Guerra dos Farrapos, pois as<br />

dificuldades impostas pelo conflito à plena realização das atividades econômicas da<br />

província podem ter dificultado a manutenção das unidades produtivas por parte de<br />

seus proprietários. Os interessados em adquiri-las, por sua vez, não possuiriam os<br />

recursos suficientes para a realização dos negócios, tornando necessário o parcelamento<br />

das dívidas ou a tomada de recursos monetários para saldar suas obrigações.<br />

O conjunto dos dados apresentados na Tabela 2 indica, portanto, que as<br />

conjunturas de guerra foram marcantes para o padrão de investimento verificado<br />

12 APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L10, fl.168.<br />

¹³ Alexandre Ribeiro demonstra que nos anos entre 1751 e 1800 (tomados por décadas), os “empréstimos” representavam<br />

de 48,4 a 86,5% do total investido nas vendas em Salvador. RIBEIRO, Alexandre Vieira. A cidade<br />

de Salvador: estrutura economia, comércio de escravos, grupo mercantil Salvador (c.1750 c.1800). Rio de<br />

Janeiro: PPGHIS-UFRJ, 2009 [tese de doutorado], p. 88.<br />

351


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

na província rio-grandense ao longo da primeira metade do século XIX. Além disso,<br />

percebe-se um incremento no investimento direcionado aos bens urbanos e às<br />

embarcações, que podem ser considerados como indicativo da importância que as<br />

atividades mercantis tinham naquele momento.<br />

A análise mais específica das categorias permite considerações mais detalhadas<br />

a respeito da evolução dos valores dos bens reunidos em cada uma delas ao<br />

longo do período estudado. Na Tabela 3 observa-se que a média 14 dos bens urbanos<br />

negociados alternou altas e baixas ao longo dos anos considerados e apresentou uma<br />

queda significativa entre 1831-35, enquanto no último qüinqüênio houve um aumento<br />

importante no valor médio e total dos bens. Em termos gerais, chama a atenção<br />

que estas médias são inferiores em relação às médias verificadas nas vendas de bens<br />

rurais, embarcações e nos créditos. Apesar disso, com exceção do lustro 1816-20,<br />

o valor total acumulado nas escrituras apresentou uma tendência de crescimento<br />

constante a partir da anexação da Província Cisplatina (1821), atingindo o montante<br />

mais elevado no último qüinqüênio da série. O mesmo padrão pôde ser observado<br />

no número de escrituras registradas a partir de 1816-25.<br />

352<br />

Tabela 3 – Evolução qüinqüenal do valor total e médio dos bens urbanos<br />

(Libras esterlinas)<br />

VT: Valor Total; VM: Valor Médio; N.E: Número de Escrituras<br />

Fonte: Fonte: APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L 2-21, 1811-50<br />

Para avaliar a evolução individual dos bens que compõem a categoria urbano,<br />

elaborei a Tabela 4 que reúne os principais tipos de bens reunidos nesta categoria.<br />

Destaca-se o alto valor dos sobrados, apesar da pouca ocorrência deles ao longo do<br />

período. Com a exceção dos qüinqüênios 1831-35 e 1841-45, esta edificação teve<br />

valor médio superior a 200.000 libras.<br />

14 Há escrituras referentes à venda de partes dos bens nas quais, na maioria das vezes, foi registrada a parte exata<br />

que estava sendo negociada. Para o cálculo das médias foram corrigidos os valores de parcelas claramente indicadas<br />

(metade, dois terços, etc) e desconsideradas aquelas escrituras que indicam a parcela negociada com expressões<br />

genéricas como “parte que tem em uma propriedade de Casas” ou “maior parte de umas Casas”. No caso dos bens<br />

rurais foram consideradas as expressões como “pedaço de campo”, “porção de terras“ e “sorte de estância”


Tabela 4 – Valor médio dos bens urbanos (Libras esterlinas)<br />

VM: Valor Médio; N.E: Número de Escrituras<br />

Fonte: APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L 2-21, 1811-50<br />

As casas foram os bens urbanos com maior número de escrituras registradas.<br />

O período da segunda metade da Guerra dos Farrapos foi o que apresentou o maior<br />

número de transações enquanto a maior média foi verificada no último qüinqüênio<br />

analisado. Os terrenos urbanos, por sua vez, apesar do total de escrituras ser grande,<br />

apresentaram as menores médias.<br />

Os dados referentes aos bens rurais (Tabela 5) apresentaram valores médios<br />

em decréscimo entre os qüinqüênios 1821-25 e 1836-40. O mesmo ocorre com o<br />

valor total, que apresentou o montante mais baixo no último lustro da década de<br />

1830. Este padrão indica novamente que o início da guerra que perduraria por dez<br />

anos teve impacto significativo nos negócios rurais de uma das principais praças da<br />

província rio-grandense. Naturalmente, a existência de um conflito dentro de seu<br />

território interferia na economia da região tanto pelo recrutamento de homens para<br />

os combates, como também pelas requisições de animais, farinha e demais provisões<br />

necessárias às tropas combatentes.<br />

353


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

354<br />

Tabela 5 – Evolução qüinqüenal do valor total e médio dos bens rurais<br />

(Libras esterlinas)<br />

VT: Valor Total; VM: Valor Médio; N.E: Número de Escrituras<br />

Fonte: APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L 2-21, 1811-50<br />

Para a construção da Tabela 6 considerei apenas os bens rurais mais estatisticamente<br />

representativos ou importantes para os objetivos da análise. É possível<br />

perceber que as escrituras de venda de terras são as de menor valor médio apesar de<br />

relativamente presentes ao longo do período e ser o segundo maior montante total.<br />

Observa-se uma desvalorização bastante acentuada entre 1831-35 e o qüinqüênio<br />

seguinte (no início da guerra, quando foi registrada apenas uma negociação de terras.<br />

As chácaras apresentam um comportamento oscilante, sendo o momento de maior<br />

desvalorização observado no lustro de 1836-40, enquanto a menor média ocorreu<br />

entre 1826 e 1830.<br />

Já as charqueadas apresentam poucas transações, mas com valor médio elevado.<br />

Em geral, estas unidades produtivas eram compostas pelas terras, suas edificações e<br />

benfeitorias, escravos e embarcações (geralmente canoas). Por exemplo, o “estabelecimento<br />

de charqueada com edifícios, benfeitorias e toda qualidade de serviços nele<br />

encontrados” localizado na Costa do Rio Pelotas que foi vendido em julho de 1825<br />

por José Gonçalves da Silva & Companhia (os irmãos José Gonçalves da Silva e<br />

Manuel Gonçalves da Silva) ao negociante de grosso trato de Rio Grande, o Capitão-<br />

Mor Antonio José Afonso Guimarães. Esta foi negociada juntamente com seus 31<br />

escravos, 50 cavalos, equipamentos como guindastes, caldeiras, forno de secar sal,<br />

atafona, carretão e demais utensílios. O valor total da propriedade alcançou 661.406<br />

libras, sendo 440.938 libras pagas à vista e o restante no prazo de um ano 15 .<br />

15 APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L11, fl.50. O Capitão-Mor Antonio José Afonso Guimarães era<br />

“Negociante de grosso trato da Praça do Rio Grande de São Pedro do Sul” matriculado na Junta do Comércio (Rio<br />

de Janeiro), desde 07/09/1813. ARQUIVO NACIONAL, RIO DE JANEIRO. REAL JUNTA DO COMÉRCIO,<br />

AGRICULTURA, FÁBRICAS E NAVEGAçãO. Matrícula dos Negociantes de grosso trato e seus Guarda<br />

Livros e Caixeiros. Códice 170, v. 1 (1809-1826), fl. 100v.


Tabela 6 – Valor médio dos bens rurais (Libras esterlinas)<br />

VT: Valor Total; VM: Valor Médio; N.E: Número de Escrituras; 1 Inclusive 1 “rincão”; 2 Inclusive 1<br />

“sítio”<br />

Fonte: APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L 2-21, 1811-50<br />

Os bens reunidos no título estância/fazenda/campo apresentaram os maiores<br />

valores médios e concentraram a 77% dos 35.467.480 de libras esterlinas investidos<br />

nos bens rurais. Tal como ocorria com as charqueadas, estas unidades produtivas,<br />

principalmente as estâncias e fazendas, em muitos casos foram negociadas com<br />

todas as suas terras, edificações, benfeitorias, escravos e, principalmente com seus<br />

animais. Este é o caso da transação que envolveu a venda da mais valiosa destas propriedades.<br />

Em agosto de 1813, o Tenente Manuel Pinto de Moraes e sua esposa venderam<br />

a Estância São José da Boa Vista, com suas edificações, cavalos e animais vacuns<br />

e cavalares para José da Rosa Machado, pela quantia de 2.177.000 libras esterlinas.<br />

A estância localizava-se em uma “sesmaria cedida pelo vice-Rei Conde de Rezende,<br />

antes era do Brigadeiro Rafael Pinto Bandeira que (...) havia comprado do falecido<br />

José Carneiro Gonçalves” 16 .<br />

16 APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L3, fl. 127.<br />

355


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

É possível observar que a maior parte do valor destes bens concentrava-se<br />

nos dois primeiros e no último qüinqüênio. Apesar da coincidência com as duas<br />

conjunturas de guerra do período, deve-se acrescentar que entre 1811 e 1820 foram<br />

negociadas 7 estâncias e 1 fazenda que contribuíram para a elevação do montante<br />

acumulado nestes lustros. As duas estâncias negociadas em 1811-15 custaram, em<br />

média, 1.604.500 libras, enquanto as 3 estâncias e a fazenda vendida entre 1816-20<br />

valiam aproximadamente 1.757.795 libras cada uma 17 . A partir de 1841-45, verificase<br />

um aumento no número de escrituras, no valor investido e nas médias verificadas,<br />

conforme a tendência anteriormente observada a partir da análise da Tabela 2.<br />

Assim, corroborando o que já havia sido constatado na apreciação do conjunto<br />

dos bens rurais, a análise individual das principais propriedades deste tipo também<br />

demonstrou que no período entre 1826-30 e 1836-40 ocorreu uma tendência de<br />

redução dos investimentos em bens rurais e apesar da recuperação iniciada a partir<br />

da metade da Guerra dos Farrapos, o volume investido nestes bens não recuperou<br />

os níveis verificados até a década de 1820.<br />

As negociações envolvendo embarcações (Tabela 7) eram poucas nos primeiros<br />

anos da série e apresentou um crescimento importante a partir de 1826-30. Apesar<br />

das oscilações nos dois lustros seguintes, o número de negociações ficou em patamares<br />

superiores aos verificados no início da série.<br />

356<br />

Tabela 7 – Evolução qüinqüenal do valor total e médio das embarcações<br />

(Libras esterlinas)<br />

VT: Valor Total; VM: Valor Médio; N.E: Número de Escrituras<br />

Fonte: APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L 2-21, 1811-50<br />

17 APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L3, fl. 127; L5, fl. 230v; L6, fl.163v; L7 158v; L8, fl. 164; L9, fl. 32v.<br />

Em 1829 e em 1840, foram vendidas mais duas estâncias que custaram 590.760 e 99.200 libras, respectivamente.<br />

Este última refere-se a metade da Estância denominada “Conventos”. APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG,<br />

L13, fl. 33v; L16, fl. 41v.


Quanto aos valores médios das embarcações transacionadas, percebe-se que<br />

tal como o ocorrido com os valores totais, apresentam-se em queda até 1821-25.<br />

Este foi o momento no qual as três variáveis analisadas apresentaram os níveis mais<br />

baixos. A partir do lustro seguinte houve oscilações até o final da série. Entre 1841 e<br />

1845, apesar do aumento do total negociado, houve uma nova redução no seu valor<br />

médio em relação ao lustro anterior. O último qüinqüênio analisado foi aquele no<br />

qual foi contabilizado o maior número de escrituras e o maior valor total negociado,<br />

aproximadamente 39% do montante acumulado nas vendas de embarcações. No<br />

mesmo período foi verificada a terceira maior média (162.983 libras). Em comparação<br />

com os bens urbanos, observa-se que os preços médios das embarcações eram<br />

muito superiores. O maior preço médio daqueles foi verificado em 1846-50 (89.900<br />

libras) só é superior ao alcançado pelas embarcações em 1821-25 (68.092 libras).<br />

Contudo, as oscilações verificadas nas embarcações foram mais acentuadas.<br />

Em relação ao conjunto dos dados, o que se percebe é um movimento oposto<br />

ao dos bens rurais, pois o momento de diminuição dos investimentos no setor agrário<br />

coincide com o de valorização das embarcações e do montante acumulado nas<br />

transações envolvendo este tipo de propriedade, principalmente a partir de 1826-30.<br />

Em relação aos bens urbanos, observa-se que em ambos os tipos de bens os qüinqüênios<br />

entre 1826 e 1845 foram marcados pelo crescimento do investimento total<br />

e no número de escrituras registradas (Tabela 5). Trata-se conseqüentemente de um<br />

indício de valorização dos bens ligados ao exercício das atividades mercantis – destacadamente,<br />

sobrados e embarcações. Cabe sublinhar que aparentemente os bens<br />

urbanos concentraram uma fatia maior em relação às embarcações dos investimentos<br />

anteriormente direcionados aos bens rurais.<br />

Na Tabela 8 estão dispostas as embarcações negociadas de acordo com o<br />

seu tipo. Os iates, bergantins, escunas, sumacas e patachos reuniam 85% das embarcações<br />

e aproximadamente 69% do seu valor. Os dois primeiros tipos reuniram cerca de 34<br />

e 20% delas, mas os bergantins foram os de maior valor negociado: 4.896.988 libras<br />

(21%). Apesar disso, o valor médio não era o mais elevado: 175.108 libras.<br />

Os iates eram as embarcações mais negociadas, mas apresentaram o segundo<br />

menor valor médio: 73.004 libras. Tratava-se de um navio de dois mastros latinos<br />

ao qual era dada uma utilização recreativa e para o transporte de pessoas distintas 18 .<br />

Na província rio-grandense, todavia, eram intensamente utilizados no transporte de<br />

18 GODOY, José Eduardo Pimentel de. Naus da colônia. Brasília: Senado Federal, 2007, p. 672.<br />

357


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

mercadorias, conforme corrobora a observação dos registros de entrada e saída de<br />

embarcações de seu porto marítimo 19 . Além disso, ao menos até 1823, quando a dragagem<br />

do cais e a construção do porto melhoraram as condições de navegabilidade,<br />

permitindo a entrada de embarcações de maior calado no porto de Rio Grande 20 , os<br />

iates cumpriam um importante papel para a atividade mercantil rio-grandense.<br />

Tabela 8 – Tipos de embarcações: valor médio e mediano (Libras esterlinas)<br />

358<br />

VT: Valor Total; VM: Valor Médio; N.E: Número de Escrituras<br />

¹ Foi incluído um “caíque armado a iate” ² Um Bergantim e um Patacho vendidos na mesma<br />

escritura; ³ Duas metades de duas embarcações diferentes; 4 Uma “canoa” e uma “canoa latina”<br />

Fonte: APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L 2-21, 1811-50<br />

A pequena profundidade da barra de Rio Grande oferecia grandes dificuldades<br />

para a navegação de embarcações de grande porte. Estas precisavam ir até o<br />

19 ARQUIVO HISTóRICO DO RIO GRANDE DO SUL. Autoridades Militares. Maços: 14, 16, 18, 22, 27, 46,<br />

51. Marinha – “Praticagem da Barra”: Maços: 22, 23, 24; 27 e 28; “Diversos”: maço 72.<br />

20 QUEIROZ, Maria Luiza Bertulini. A Vila do Rio Grande de São Pedro, 1737-1822. Rio Grande: FURG, 1987,<br />

p. 157.


porto da vizinha povoação de São José do Norte para desembarcar as mercadorias.<br />

Como era necessário registrar a entrada das mesmas na Alfândega de Rio Grande,<br />

depois de desembarcadas na “aldeia do Norte”, as mercadorias eram então transportadas<br />

até a vila através de iates, as únicas embarcações em condições de ancorar no<br />

seu porto, segundo registrou Saint-Hilaire em 1820. O mesmo afirmava ainda que<br />

este deslocamento entre São José do Norte e Rio Grande facilitava a ocorrência das<br />

atividades de contrabando 21 .<br />

Os bergantins, por sua vez, eram embarcações a remo de pequeno porte e muito<br />

velozes que contavam com um ou dois mastros e velas redondas ou latinas. Eram<br />

utilizados no comércio e para transporte, preferencialmente em pequenas rotas. José<br />

Virgílio Amaro Pissarra afirma tratar-se do “mais subtil e veloz dos navios de remo<br />

de traça européia utilizados pelos portugueses”²². José de Godoy lembra que os<br />

brigues se assemelhavam aos bergantins e que no século XIX essas denominações<br />

passaram a ser equivalentes e confundiram-se. Quanto às sumacas, o mesmo autor<br />

sublinha que estas possuíam dois mastros e eram muito utilizadas em toda a América<br />

do Sul, especialmente no Brasil e na região do Rio da Prata²³.<br />

Embora fossem apenas três, as barcas a vapor apresentaram a maior média<br />

(773.438 libras) e concentraram 10% do total negociado. De acordo com Francisco<br />

Contente Domingues, o termo “barca” era bastante comum na documentação<br />

portuguesa dos séculos XVI ao XIX e não caracterizava um tipo específico de embarcação,<br />

sendo considerado sinônimo de “navio”. Apesar disso, também podia ser<br />

utilizado como forma de designação das embarcações de menor porte, enquanto o<br />

termo “navio” era utilizado para as de maior porte 24 .<br />

A navegação a vapor no Rio Grande de São Pedro, de acordo com Alvarino<br />

Marques, foi inaugurada por Antonio José Marques, Domingos José de Almeida,<br />

Antonio José Gonçalves Chaves e José Vieira Viana. Estes financiaram a constru-<br />

²¹ SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal/Conselho Editorial,<br />

2002, p. 89; 97; 106. Luccock também faz considerações a respeito da necessidade de ancorar em São José do Norte<br />

e das dificuldades que as embarcações de grande porte tinham para transpor o canal da barra de Rio Grande. LUC-<br />

COCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. São Paulo: Livraria Martins, 1942, p.<br />

115.-16. Sobre a barra de Rio Grande, ver também NEVES, Hugo Alberto Pereira. Estudo do porto e da barra do<br />

Rio Grande. In: ALVES, Francisco das Neves; TORRES, Luiz Henrique (Orgs.). A Cidade do Rio Grande: estudos<br />

históricos. Rio Grande: Universidade do Rio Grande: Secretaria Municipal de Educação e Cultura, 1995, p. 91-106.<br />

²² PISSARRA, José Virgílio Amaro. Navegações Portuguesas. Lisboa: Instituto Camões Portugal/Ministério dos<br />

Negócios Estrangeiros, 2005. Verbete “Bergantim”. Disponível em: . Acesso em: 31 mar. 2009.<br />

23 GODOY, José Eduardo Pimentel de. Naus da colônia. Brasília: Senado Federal, 2007, p. 663-64; 679.<br />

24 DOMINGUES, Francisco Contente. Navegações Portuguesas. Lisboa: Instituto Camões Portugal/Ministério<br />

dos Negócios Estrangeiros, 2005. Verbete “Barca”. Disponível em: . Acesso em: 31 mar. 2009.<br />

359


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

ção de uma embarcação a vapor Liberal, que passou a fazer viagens regulares entre<br />

Pelotas e Rio Grande a partir de 1832. Poucos anos depois, já se contava com linhas<br />

regulares a vapor entre Porto Alegre, Rio Grande e Rio Pardo 25 .<br />

A transação de maior valor presente nas escrituras de embarcações foi a da<br />

barca a vapor Porto-alegrense, em março de 1850. O Coronel Tomás José de Campos<br />

e seu sócio Carlos W. Dichl venderam a embarcação para a Companhia de Vapores<br />

Porto-alegrense, por 1.293.750 libras. Todos os sócios estavam estabelecidos em Rio<br />

Grande: Hugentobler & Doutey, Holland Davis & Companhia, Carruthers Souza<br />

& Companhia, Law Irmãos & Companhia, Comendador José de Souza Gomes, e<br />

Proudfoot Meira & Moffat 26 . Destaca-se o fato de serem quase todos estrangeiros,<br />

indicando o aumento da concorrência enfrentada pelos luso-brasileiros envolvidos<br />

na atividade mercantil na primeira metade dos oitocentos.<br />

Ressalta-se ainda que Hugentobler & Douley, Holland Davis & Companhia<br />

estavam envolvidos no comércio marítimo e de cabotagem da província, especialmente<br />

nas exportações de couros e na importação de sal 27 . Já Proudfoot Meira &<br />

Moffat, segundo informa Riopardense de Macedo, era a firma comercial sob a qual<br />

atuava o britânico, nascido em Glasgow, John Proudfoot. O abastado homem de<br />

negócio chegou a Buenos Aires (1835) e em seguida estabeleceu-se em Rio Grande.<br />

Atuava nos principais negócios da província: teve fazendas onde cultivava algodão,<br />

construiu o cabo submarino ligando Buenos Aires e Montevidéu, em 1864, e foi<br />

o responsável pelo estabelecimento das linhas de barco a vapor que ligavam Porto<br />

Alegre e Rio Grande (1873). Investiu ainda em estradas de ferro e companhias de<br />

gás 28 . Acrescenta-se, por fim, que Proudfoot Meira & Moffat e todos os demais representantes<br />

da Companhia de Vapores Porto-alegrense estavam entre os setenta sócios<br />

da Praça do Comércio de Rio Grande, fundada em 1844 29 , que em 15 de dezembro<br />

de 1849 fizeram doações em dinheiro para a edificação do prédio que serviria como<br />

sede da mesma 30 .<br />

25 MARQUES, Alvarino da Fontoura. Evolução das charqueadas rio-grandenses. Porto Alegre: Martins Livreiro<br />

Editor, 1990, p. 133-35.<br />

26 APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L20, fl.106v.<br />

27 ARQUIVO HISTóRICO DO RIO GRANDE DO SUL. Autoridades Militares. Maços: 14, 16, 18, 22, 27, 46,<br />

51. Marinha – “Praticagem da Barra”: Maços: 22, 23, 24; 27 e 28; “Diversos”: maço 72..<br />

28 Proudfoot faleceu em 1875, na cidade de Lisboa, e sua fortuna ficou para um sobrinho. MACEDO, Francisco<br />

Riopardense de. ingleses no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: A Nação, 1975, p. 61-2.<br />

29 MACEDO, Francisco Riopardense de. ingleses no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: A Nação, 1975, p. 58.<br />

Sobre a Praça do Comércio de Rio Grande, ver também MUNHOZ, Cláudia Simone de Freitas. A Associação Comercial<br />

do Rio Grande de 1844 a 1852: interesses e atuação representativa do setor mercantil. São Leopoldo:<br />

PPG-História/UNISINOS, 2003.<br />

30 APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L21, fl. 39v.<br />

360


A comparação do preço desta embarcação com o das estâncias (bens rurais de<br />

maior valor médio) permite avaliar melhor a dimensão deste investimento. Em 1819,<br />

a Estância São Lourenço foi vendida por 6.146.052 libras esterlinas com todos seus animais,<br />

escravos, gêneros e uma embarcação. Somente as 6 “sesmarias incompletas” e<br />

as casas de vivenda e benfeitorias foram avaliadas em 1.548.999 libras³¹. A metade da<br />

Estância Conventos (no Uruguai) com alguns animais e sua sede, por sua vez, foi vendida<br />

em 1840 por 99.200 libras³². Assim, além da valorização das embarcações frente<br />

aos bens rurais, fica sugerido que os 1.293.750 libras pagos pelo “vapor” Porto-alegrense<br />

tratava-se de um investimento bastante pesado para um único negociante, justificandose<br />

assim a sua aquisição por uma companhia comercial constituída por importantes<br />

agentes mercantis estabelecidos em Rio Grande, principalmente estrangeiros.<br />

A rubrica crédito concentra aproximadamente um quarto do valor investido<br />

nas vendas entre 1811 e 1850, ou 19% dos 116.820.610 de libras esterlinas reunidos<br />

nas escrituras analisadas nesta comunicação. Quanto ao número de escrituras registradas,<br />

os percentuais são de 15,5% em relação às vendas e de 13% das 1.096 escrituras<br />

selecionadas. A maior parte das 146 escrituras da categoria crédito é de “dívida<br />

e hipoteca” (108) que representam 59%% do valor total concentrado nos créditos<br />

(22.679.854 libras).<br />

Os valores médios destes créditos apresentaram grandes oscilações (Tabela<br />

9). O período entre 1831 e 1835 apresenta a menor média (71.829 libras). O número<br />

de transações realizadas é o segundo menor, assim como seu valor total (502.854<br />

libras). A partir daí as médias foram crescentes até 1841-45, quando alcançou as<br />

302.399 libras. O lustro 1846-50 concentra a maior parcela do valor total e do número<br />

de registros, mas o valor médio das escrituras diminuiu consideravelmente em<br />

relação ao período anterior.<br />

Tabela 9 – Evolução qüinqüenal do valor total e médio dos créditos<br />

(Libras esterlinas)<br />

VT: Valor Total; VM: Valor Médio; N.E: Número de Escrituras<br />

Fonte: APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L 2-21, 1811-50<br />

31 APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L9, fl.32v.<br />

³² APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L16, fl.41v.<br />

361


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Nota-se que o valor total concentrado nas escrituras de crédito foi crescente<br />

até 1821-25 e decrescente entre o fim da ocupação da Banda Oriental e o primeiro<br />

qüinqüênio da Guerra dos Farrapos, quando voltou a crescer até o final do período<br />

analisado. As conjunturas de guerra (1811-25 e 1835-45), portanto, foram momentos<br />

importantes para a realização de transações envolvendo crédito e concentraram<br />

quase a metade dos recursos destinados a este tipo de negócio e 37% do total das<br />

escrituras. Quanto ao qüinqüênio 1846-50, é provável que o elevado número de escrituras<br />

de crédito e o alto valor verificado neste momento estivessem relacionados<br />

às necessidades advindas do encerramento dos combates entre farroupilhas e imperiais.<br />

Considerando que a guerra gerou prejuízos para a atividade produtiva, se fez<br />

necessário a reorganização da economia e para a retomada da normalidade produtiva<br />

foi preciso recorrer aos empréstimos. Comparando a distribuição do valor total dos<br />

créditos com a observada nas demais categorias de escrituras analisadas (tabelas 3,<br />

5 e 7), constata-se que em todas elas a passagem do lustro 1841-45 para o seguinte<br />

caracteriza-se pela elevação expressiva no valor investido nos bens rurais e urbanos,<br />

nas embarcações e nos créditos.<br />

Após a análise das escrituras aqui apresentadas, conclui-se que o período final<br />

da ocupação luso-brasileira no território do Uruguai e a primeira metade da Guerra<br />

dos Farrapos constituíram-se em pontos chaves para a economia rio-grandense.<br />

Neste intervalo, os bens ligados ao setor produtivo (rurais) sofreram grande desvalorização,<br />

concomitante à valorização dos bens urbanos e das embarcações, indicando<br />

que a província passava por um processo de crescente desenvolvimento urbano.<br />

O resultado final da distribuição do valor investimento em bens rurais, urbanos e<br />

embarcações indicam que estes concentravam, respectivamente, 39, 33 e 18,6% dos<br />

recursos. Assim, mesmo que os bens rurais respondessem pela maior parcela, fica<br />

evidenciado o incremento da atividade mercantil ao longo do período considerado.<br />

362


FONTES<br />

ARQUIVO HISTóRICO DO RIO GRANDE DO SUL. Autoridades Militares.<br />

Maços: 14, 16, 18, 22, 27, 46, 51. Marinha – “Praticagem da Barra”: Maços: 22, 23,<br />

24; 27 e 28; “Diversos”: maço 72.<br />

ARQUIVO NACIONAL, RIO DE JANEIRO. REAL JUNTA DO COMÉRCIO,<br />

AGRICULTURA, FÁBRICAS E NAVEGAçãO. Matrícula dos Negociantes de<br />

grosso trato e seus Guarda Livros e Caixeiros. Códice 170, v. 1 (1809-1826).<br />

ARQUIVO PÚBLICO DO EESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Transmissões<br />

e Notas. Rio Grande, 2º Tabelionato, Livro 2-21 (1811-1850).<br />

CóDIGO FILIPINO, OU, ORDENAçõES E LEIS DO REINO DE PORTU-<br />

GAL: RECOPILADAS POR MANDADO D’EL-REI D. FILIPE I. Brasília: Senado<br />

Federal, Conselho editorial, 2004, Livro Terceiro, 2º Tomo.<br />

IPEA. Taxa de câmbio média anual da libra esterlina (réis por pence) na praça<br />

do Rio de Janeiro (RJ). Disponível em: http://www.ipeadata.gov.br. Acesso em<br />

11 jan. 2009.<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

DOMINGUES, Francisco Contente. Navegações Portuguesas. Lisboa: Instituto Camões<br />

Portugal/Ministério dos Negócios Estrangeiros, 2005. Verbete “Barca”. Disponível<br />

em: . Acesso em: 31 mar. 2009.<br />

FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia<br />

na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização<br />

Brasileira, 1998.<br />

GODOY, José Eduardo Pimentel de. Naus da colônia. Brasília: Senado Federal,<br />

2007.<br />

363


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil.<br />

São Paulo: Livraria Martins, 1942.<br />

MACEDO, Francisco Riopardense de. ingleses no Rio Grande do Sul. Porto Alegre:<br />

A Nação, 1975.<br />

MARQUES, Alvarino da Fontoura. Evolução das charqueadas rio-grandenses.<br />

Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1990.<br />

MUNHOZ, Cláudia Simone de Freitas. A Associação Comercial do Rio Grande<br />

de 1844 a 1852: interesses e atuação representativa do setor mercantil. São Leopoldo:<br />

PPG-História/UNISINOS, 2003.<br />

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ALVES, Francisco das Neves; TORRES, Luiz Henrique (Orgs.). A Cidade do Rio<br />

Grande: estudos históricos. Rio Grande: Universidade do Rio Grande: Secretaria<br />

Municipal de Educação e Cultura, 1995.<br />

OSóRIO, Helen. O império português no sul da América: estancieiros, lavradores<br />

e comerciantes. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007.<br />

PESAVENTO, Fábio. Um pouco antes da Corte: a economia do Rio de Janeiro<br />

na segunda metade do Setecentos. Niterói: Centro de Ciências Sociais Aplicadas-<br />

Faculdade de Economia/UFF, 2009 [tese de doutorado].<br />

PISSARRA, José Virgílio Amaro. Navegações Portuguesas. Lisboa: Instituto Camões<br />

Portugal/Ministério dos Negócios Estrangeiros, 2005. Verbete “Bergantim”.<br />

Disponível em: . Acesso<br />

em: 31 mar. 2009.<br />

364


ContrAtos Conflituosos: ArrendAMentos,<br />

ArrendAtários e litígios judiCiAis eM uruguAiAnA,<br />

segundA MetAde do séCulo xix¹<br />

Guinter Tlaija Leipnitz*<br />

Resumo: Na segunda metade do século XIX, o meio rural brasileiro passava por transformações,<br />

no âmbito das relações socioeconômicas, principalmente com o advento da Lei Eusébio de<br />

Queiroz (proibição do tráfico de escravos) e da “Lei de Terras” (discriminação entre terras públicas e<br />

privadas). Na Campanha rio-grandense, a relação dos produtores com a terra se modificava gradualmente:<br />

produtores sem a propriedade jurídica da terra, que criavam e plantavam em campos alheios,<br />

eram cada vez menos tolerados pelos proprietários. Nesse contexto, os arrendamentos cresciam como<br />

alternativa de acesso à terra. Contudo, os contratos e as relações concernentes aos mesmos foram<br />

alvos de disputas entre os contratantes, chegando algumas vezes à arena judicial. Através de alguns<br />

litígios produzidos em Uruguaiana e localizados no Acervo Judicial do Arquivo Público do Estado do<br />

Rio Grande do Sul, pudemos analisar alguns aspectos desses conflitos, referentes ao cumprimento de<br />

cláusulas contratuais e aos direitos de propriedade implicados pelos arrendamentos.<br />

Palavras-chave: arrendamentos – conflitos agrários – relações de propriedade – direitos de<br />

propriedade – história agrária do Rio Grande do Sul<br />

INTRODUçãO<br />

As relações socioeconômicas estavam se redefinindo no Brasil da segunda<br />

metade do século XIX. A Lei Eusébio de Queiroz - que proibia<br />

o tráfico de escravos -, e a Lei nº 601, mais conhecida como “Lei<br />

de Terras” - que impunha uma discriminação entre terras públicas e privadas -, promulgadas<br />

em 1850, trouxeram novos elementos à realidade do meio rural brasileiro.<br />

Na Campanha rio-grandense, onde a pecuária era a atividade econômica predominante,<br />

ocorria um processo gradual importante. As relações de propriedade<br />

* Endereço eletrônico: guintertl@yahoo.com.br . Licenciado e bacharel em História pela UFRGS – mestrando com<br />

bolsa do CNPQ pelo Programa de Pós-graduação em História da UFRGS<br />

¹ Este artigo corresponde a discussões que integram o terceiro capítulo de minha dissertação de mestrado, ainda<br />

em elaboração.<br />

365


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

estavam sendo transformadas: o “livre” acesso à terra estava sendo obstaculizado, e<br />

a existência de muitos produtores que viviam e desempenhavam suas atividades de<br />

subsistência em campos alheios, não possuindo a propriedade jurídica desses campos,<br />

era cada vez menos toleradas pelos proprietários.²<br />

Em Uruguaiana, município localizado nessa paisagem agrária, o arrendamento<br />

– uma prática já exercida na região – se constituiu em uma das alternativas de acesso<br />

à terra para muitos produtores que ficaram desprovidos desse bem, mas também<br />

para aqueles que desejavam ampliar seus empreendimentos pecuários, reproduzindo<br />

a criação de gado extensiva através da incorporação de novas frações de campo.<br />

Porém, algumas cláusulas e circunstâncias sob as quais contratos de arrendamento<br />

eram realizados poderiam fomentar conflitos entre as partes envolvidas. E de<br />

fato, entre o início da segunda metade do século XIX e a primeira década do século<br />

XX, algumas vezes esses conflitos se transformaram em litígios judiciais.<br />

Dos 113 processos judiciais preeminentemente rurais³ abertos em Uruguaiana<br />

(98 ações possessórias e 15 processos de despejo), entre os anos de 1847 e 1910,<br />

16 envolviam arrendatários como autores ou réus da causa que era movida. Analisando-os<br />

conjuntamente, vemos que estes processos compõem um quadro bastante<br />

heterogêneo, conquanto os casos em particular guardem alguns aspectos semelhantes<br />

entre si. Começando pela variedade do tipo de ação proposta, percebemos que<br />

situações diversas eram geradoras de tensões que acabavam sendo mediadas pelas<br />

vias judiciais. A maior parte dos litígios se dava em torno de disputas a respeito de<br />

direitos de propriedade, e em segundo lugar, do cumprimento de condições contratuais.<br />

Entretanto, essas motivações, abrigadas sob essas duas égides, escondiam<br />

situações concretas distintas entre si, como a definição dos limites físicos de um<br />

campo, o levantamento de uma cerca, a indenização por benfeitorias, dentre outros.<br />

Cada um desses casos instiga discussões sobre relações e direitos de propriedade e<br />

relações contratuais entre os agentes históricos da Campanha de Uruguaiana. Em<br />

outras palavras, são reveladoras da dinâmica das relações sociais que se estabeleciam<br />

naquele contexto.<br />

Como os conflitos judiciais envolvendo arrendatários iluminam esses aspectos?<br />

Ocuparemos-nos neste artigo de responder esta questão, trabalhando somente<br />

² A respeito desse processo, ver GARCIA, Graciela. O domínio da terra: conflitos e estrutura agrária na Campanha<br />

rio-grandense oitocentista. Porto Alegre: UFRGS, 2005. Dissertação de mestrado, e FARINATTI, Luís Augusto<br />

Ebling. Confins meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na Fronteira Sul do Brasil (1825-1865). Rio de Janeiro:<br />

UFRJ, 2007. Tese de doutorado.<br />

³ Consideramos como “rurais” os processos que envolviam disputas sobre bens como campo (inclusive chácaras<br />

situadas fora do espaço urbano) e gado.<br />

366


com 6 desses litígios: em primeiro lugar, com aqueles que versavam acerca do cumprimento<br />

de condições contratuais (3 processos), pelos quais podemos perceber de<br />

que maneiras os litigiosos procuravam validar suas posições por meio do confronto<br />

de documentos públicos e privados, e em segundo lugar, com litígios cujas disputas<br />

principais se davam em torno da propriedade (3 processos), que fornecem indícios<br />

de como o reconhecimento da condição de arrendatário poderia ou não ser interessante<br />

em conflitos que colocavam em jogo direitos de propriedade distintos.<br />

DOCUMENTOS PÚBLICOS VERSUS DOCUMENTOS<br />

PRIVADOS NO RIGOR DO CUMPRIMENTO DE<br />

CONDIçõES CONTRATUAIS<br />

Um aspecto importante dos arrendamentos é o fato de conformarem contratos;<br />

logo, eles traziam em si uma série de condições que implicavam obrigações<br />

mútuas entre os contratantes.<br />

A respeito disto, firmá-los por meio de escrituras públicas não devia ser uma<br />

opção aleatória para aqueles neles envolvidos. Procurando a mediação do Estado, os<br />

contratantes fortaleciam o rigor das cláusulas, pois as submetiam à legitimidade do<br />

arbítrio legal. Este, caso alguma das partes infringisse as prévias combinações contratuais,<br />

faria valer a “sacralidade” do teor da escritura, decidindo em favor do escrito<br />

original do contrato, com a devida imparcialidade esperada, ao menos teoricamente.<br />

Assim, os contratos de arrendamento se configuravam como obrigações recíprocas,<br />

e as escrituras públicas pelas quais tomavam forma, a garantia legal do seu<br />

cumprimento. Contudo, o que acontecia quando eles eram de fato “quebrados”, e<br />

um dos seus pólos sentia-se lesado? O que era firmado no texto das escrituras públicas<br />

era inquestionável?<br />

Vejamos alguns casos. O primeiro trata de um arrendamento de gado. Joaquina<br />

Ferreira da Fonseca apresentou, em fevereiro de 1866, uma petição na qual<br />

demandava que Antônio José Dornelles recebesse as 800 reses arrendadas por seu finado<br />

marido Silvano Rodrigues Soares em 1859, contrato que deveria durar por seis<br />

anos. 4 O réu se recusava em receber o gado mesmo tendo assinado com o procurador<br />

da autora – o irmão da mesma, Ignacio Manoel da Fonseca, que se encarregava<br />

“particularmente dos negócios da [Suplicante] que não pode andar à testa deles”<br />

4 Uruguaiana. Possessórias, 1º Cartório de Cível e Crime (daqui em diante, CC), maço (daqui em diante, m).20,<br />

nº465, 1866. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (daqui em diante, APERS).<br />

367


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

- um recibo comprovando ter recebido a quantia do último ano do arrendamento,<br />

além de sua obrigação de receber o casco das 800 reses.<br />

Dornelles, por sua vez, oferecia embargos à ação de preceito cominatório,<br />

na qual declarava que o contrato original previa a compra do gado por parte dos arrendatários,<br />

e que só assinou o “ajuste extrajudicial” – o recibo - com o procurador<br />

da autora porque era “um rústico e quase analfabeto, ao passo que o Advogado da<br />

[autora] é um homem de letras, formado em Direito, inteligente e sagaz; pelo que<br />

teve de ser vítima o [réu] embargante da sua própria ignorância”, tendo depois se<br />

reportado “do que havia levianamente prometido, logo que, consultando suas filhas,<br />

donas de parte desse gado arrendado, achou nelas inteira desaprovação do referido<br />

ajuste por ser um negócio inviável, prejudicial”, e<br />

[...] que se por ventura viesse a prevalecer esse incurial convênio, teria<br />

[ele] de sofrer mais do que enorme lesão, atendendo-se à redução dos<br />

preços feita já na ocasião do contrato de arrendamento e venda a que<br />

agora se propunha fazer [a autora] entregando em espécie pelo valor<br />

de 4 [...] que devia ser satisfeito em Dinheiro pelo valor de 8, e só por<br />

causa dessa lesão substancialmente viciado se torna esse ajuste por ser<br />

de pleno direito nulo e de nenhum efeito.<br />

Para contestar o recibo apresentado pela autora, Dornelles anexou aos autos<br />

uma escritura pública de hipoteca, com a qual os arrendatários hipotecavam sua<br />

fazenda de légua e meia para cobrir todos os seis anos de contrato mais o valor de<br />

venda do gado. Este documento fazia referência à escritura pública de arrendamento<br />

original, mas por algum motivo ela não foi anexada, embora existisse. Nas linhas<br />

desta, estava claramente expresso que Antônio José Dornelles e o marido da autora<br />

Silvano José Rodrigues se obrigavam “reciprocamente por suas livres e espontâneas<br />

vontades, o primeiro proprietário a vender, e o segundo arrendatário a comprar as<br />

referidas oitocentas reses de criar no fim do prazo de seis anos que há de durar este<br />

arrendamento”. 5<br />

Depois de quase um mês e meio de litígio, as partes, por meio de petição<br />

conjunta, diziam ter se harmonizado, fechando um acordo para por fim ao conflito:<br />

o réu aceitava reduzir de 8$000 para 6$500 réis o preço de venda do gado arrendado,<br />

em troca da efetuação da compra do mesmo pela autora, por meio de uma parcela<br />

de entrada mais duas letras de dívida firmadas em seu favor. Desse modo, o juiz<br />

sentenciou a desistência e o acordo, ordenando que tanto a autora quanto o réu<br />

arcassem com as custas.<br />

5 Uruguaiana, 1° Tabelionato. Livro de Transmissões e Notas volume 3, 1858-1860, f.62-62v. APERS.<br />

368


Relatado o caso, é interessante perceber como a exigência do cumprimento<br />

de condições previstas no contrato dependeu do interesse particular de cada um.<br />

Assim, na petição de abertura a autora não mencionou a existência de obrigação de<br />

compra do gado arrendado; por seu turno, o réu, que não obstante tivesse admitido<br />

sua aquiescência em relação ao documento apresentado pela autora, justificou esse<br />

consentimento por sua ignorância, conforme sua fala reproduzida nos parágrafos<br />

anteriores.<br />

E é justamente na fala de Dornelles que emana a questão do peso dos documentos<br />

públicos em relação aos particulares, exemplificado na contestação do<br />

“ajuste extrajudicial” firmado entre o réu e o procurador da autora: “[...] esse ajuste<br />

extrajudicial feito meramente de palavra entre o [réu] e o Advogado da [autora] não<br />

pode prevalecer contra o ajustado e tratado em escritura pública, mesmo abstraindo e deixando<br />

à margem a falta de formalidade com que foi celebrado”, sendo “corrente em Direito<br />

ser a escritura pública essencial para o distrato quando o contrato foi celebrado por escritura<br />

pública; e por isso não pode a combinação em que entrou o [réu] com o Advogado da<br />

[autora] desfazer o contrato preexistente”. 6 Em outras palavras, o réu argumentava<br />

em sua defesa que mesmo tendo assinado uma modificação em relação ao contrato<br />

original, esta não podia valer devido à circunstância em que fora firmada – o “ludibrio”<br />

do advogado “culto” sobre o homem “rústico e ingênuo” - mas principalmente<br />

por ser contrário ao Direito, uma vez que o documento particular não poderia<br />

desfazer ou modificar um acordo firmado publicamente.<br />

Infelizmente para nossos propósitos, por ser encerrado pela desistência mútua,<br />

o processo não teve o fôlego suficiente a ponto de o juiz analisá-lo a luz do<br />

embate entre os documentos públicos e os documentos privados. Apesar disso, é<br />

notável que o réu procurasse legitimar sua reivindicação através do peso do documento<br />

público.<br />

Da mesma maneira procederia o réu de um outro processo, uma ação ordinária,<br />

iniciada quase trinta anos depois, em agosto de 1894. Joaquim Máximo da Silva<br />

requeria que Antônio dos Santos Moraes fosse intimado a pagar as quantias referentes<br />

à indenização de duas benfeitorias – açude e aramado de invernada, no valor de<br />

150 pesos – que havia construído no campo arrendado ao mesmo réu, localizado<br />

na República Oriental do Uruguai, por sete anos desde 1887. 7 Segundo o autor, o<br />

contrato havia terminado uma vez que o réu vendera o campo ao governo daquele<br />

país sem ressalvar o arrendamento.<br />

6 Grifos nossos.<br />

7 Uruguaiana. Embargos, 2º CC, m.62, nº1725, 1894. APERS<br />

369


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Defendendo-se, Antônio Moraes contestava a ação, ao alegar que o autor não<br />

havia provado ter realizado tais benfeitorias, e que considerava nulo o contrato firmado<br />

ante escritura pública depois que vendido o campo, pois Joaquim Máximo estabelecera<br />

um novo contrato com o novo dono. Logo, o contrato particular assinado<br />

por ambos acordando as condições da construção dessas benfeitorias não mais tinha<br />

validade, e mesmo que tivesse, não anularia o que constava da escritura pública, na<br />

qual estava expressamente declarado que quaisquer benfeitorias realizadas ficariam<br />

em benefício do proprietário.<br />

O contrato particular mencionado por Moraes referia-se a um documento<br />

que o autor apresentou. Do seu teor constava que o proprietário Antônio dos Santos<br />

Moraes contratava com o arrendatário Joaquim Máximo da Silva a construção de<br />

um açude e de um aramado, adiantando este o capital e sendo indenizado no fim do<br />

contrato pelo proprietário. Além deste documento, que foi o cerne dos principais<br />

debates dos advogados, o autor anexou aos autos a escritura pública do arrendamento<br />

em questão, além de outros documentos particulares.<br />

Para embasar a sua versão, o réu juntou ao processo um documento em espanhol,<br />

o qual expressava um acordo entre Joaquim Máximo e o novo proprietário<br />

do campo, o uruguaio Allende, que havia comprado o mesmo junto ao governo de<br />

seu país. Com esse acordo, o autor dissolveria o contrato que havia firmado com o<br />

réu, além de se obrigar a despejar o campo em troca do arrendamento de um outro<br />

campo do mesmo Allende. Moraes também anexou cartas trocadas entre ele e<br />

Joaquim Máximo, que expressavam a quitação dos pagamentos do arrendamento, e<br />

uma carta assinada pelo uruguaio cujo teor relatava que o autor só se comprometia<br />

em desalojar o campo caso Allende comprasse o açude e o aramado construídos, e<br />

que essa condição teria de fato se realizado, trocando Joaquim Máximo as benfeitorias<br />

pelo acréscimo de uma parcela de terras no contrato de arrendamento que havia<br />

firmado com Allende.<br />

O primeiro artigo da contestação do réu – “que o Autor não provou ter<br />

feito o açude e a invernada de que trata a presente ação nos campos que lhe foram<br />

arrendados” - foi rechaçado por uma testemunha do autor, que declarou ter trabalhado<br />

junto com o mesmo em sua construção, e admitido pelo próprio réu em seu<br />

depoimento, quando disse “que o autor deu cumprimento ao contrato, mas que ele<br />

réu nunca foi ver o açude”. Restava a ele então tentar invalidar o contrato particular<br />

para a construção daquelas benfeitorias. Assim, constava no arrazoado articulado<br />

por seu advogado:<br />

[...] ao autor não cabe direito algum de cobrar-se de açudes e invernadas,<br />

que tenha feito, porque são benfeitorias no campo arrendado, em<br />

face da cláusula final do contrato [público de arrendamento], que não<br />

pode ser nulo pelo [particular, de combinação da construção do açude e aramado].<br />

370


Diz a escritura [pública] infine: “quaisquer benfeitorias que o outorgado<br />

arrendatário aumentar no Estabelecimento ou campo ficarão a benefício<br />

dos outorgantes proprietários, sem que estes sejam obrigados<br />

ao pagamento ou indenização alguma.” O documento citado é uma<br />

escritura pública e assinada também pela mulher do réu outorgante, e<br />

o documento [acerca do levantamento das benfeitorias] é uma escritura<br />

particular assinada somente pelo réu! 8<br />

O advogado segue, citando Teixeira de Freitas, e recupera a mesma noção<br />

utilizada pelo advogado do réu do caso anterior: “o que se dispõe sobre os contratos<br />

procede também nos distratos; e sempre que o contrato for feito por escritura<br />

pública o distrato não se pode provar se não por outra escritura pública”. Como se<br />

vê, a base do argumento do réu era estabelecer uma prioridade de importância entre<br />

os documentos, que eram de natureza diferente: um público, que deveria prevalecer<br />

sobre o outro, privado.<br />

O julgador da causa, contudo, não se satisfez com esse argumento, no momento<br />

em que embasou sua sentença. Ele, mesmo considerando<br />

[...] que uma modificação a um contrato de locação rural feito por<br />

escritura pública deverá ser também por escritura pública feita, ainda<br />

assim o contrato [particular] é em direito equiparado a esse instrumento porquanto<br />

[no seu depoimento] o Réu reconhece judicialmente a sua validade e a obrigação<br />

que ele estipula, e o “escrito particular que for reconhecido em juízo<br />

pela parte que o passou e assinou, ou que o assinou somente, será<br />

atendido como se fora escritura pública”. Teixeira de Freitas obra cit.<br />

Art.º 373. 9<br />

O réu Antônio dos Santos Moraes fora traído mais uma vez por suas próprias<br />

palavras, fornecendo ferramentas judiciais decisivas para a vitória do autor: primeiro,<br />

produziu prova contra si mesmo ao reconhecer que o acertado no documento<br />

particular – a construção do açude e do aramado – fora realizado pelo arrendatário<br />

Joaquim Máximo da Silva, e segundo, involuntariamente, equiparou esse mesmo<br />

documento – a principal prova do autor – à escritura pública de arrendamento, que<br />

garantia teoricamente seu direito de não ser obrigado a indenizar benfeitorias, no<br />

momento em que admitiu em juízo tê-lo firmado.<br />

Ocorrências como esta demonstram que os contratos de arrendamento firmados<br />

por escritura pública, não obstante sua importância legal, não eram estanques,<br />

nem garantias plenas da realização das cláusulas estabelecidas em seu conteúdo.<br />

Foi nisso que apostou a defesa do autor ao elaborar a estratégia para provar a<br />

8 Grifos nossos (em itálico).<br />

9 Grifos nossos (em itálico).<br />

371


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

pertinência da ação que movia. A efetivação dos documentos – fossem públicos ou<br />

particulares – enquanto provas, dependiam sempre das circunstâncias em que eram<br />

firmados, e obviamente, da interpretação das autoridades a respeito de seu encadeamento<br />

hierárquico.<br />

Uma outra ação ordinária, cuja abertura aconteceu em agosto de 1897, ilustra<br />

bem como a letra escrita do contrato poderia ser flexibilizada por situações concretas<br />

vivenciadas pelos contratantes. Nesta ação, Clara da Cunha Alfaro requeria<br />

que Cândido da Rosa Freitas restituísse-lhe a “fração de três quadras de sesmaria de<br />

campo” que a ele havia arrendado por seis anos desde julho de 1891. 10 Conforme a<br />

solicitação da autora, a restituição deveria ser feita “nos termos da escritura do contrato”,<br />

ou seja, conforme o arrendatário havia recebido a parcela arrendada: segundo<br />

a reclamante, “toda cercada de arame com postes de inhanduraí”.<br />

O réu, por sua vez, afirmava que nunca havia se recusado a entregar o campo,<br />

tanto que assim havia procedido quando do término do contrato em julho do<br />

mesmo ano. Ele contestava que o recebera no estado descrito pela autora, estando<br />

o campo, por suas palavras, parcialmente cercado com postes de angico. Entretanto,<br />

como principal argumento em sua defesa, Cândido Freitas alegava que durante o<br />

“período revolucionário” – correspondente à Revolução Federalista, ocorrida entre<br />

1893 e 1895 no território rio-grandense - as forças haviam nele acampado e queimado<br />

postes, inutilizando parcelas do aramado, “não sendo [ele] responsável por esses<br />

atos de força maior, impostos pela necessidade da guerra”.<br />

Os advogados da autora insistiram em fundamentar a pertinência da ação no<br />

cumprimento rigoroso da cláusula “entrega dos bens no estado em que recebeu”,<br />

tão comum nos contratos de arrendamento de Uruguaiana firmados por escritura<br />

pública. O caso da autora não dizia respeito a uma falta de entrega “de fato” do campo<br />

arrendado por parte do arrendatário, isto é, o impedimento de que ela entrasse<br />

novamente na posse de suas terras ou a relutância do arrendatário em desalojar a<br />

referida propriedade. Na verdade, o único sentido que ela dava a uma suposta recusa<br />

de entrega do seu bem era justamente que esta não havia sido conforme o estabelecido<br />

originalmente no contrato, isto é, “no mesmo estado em que recebeu” o<br />

arrendatário. Isso fica bastante evidente em inúmeras passagens das falas produzidas<br />

por sua defesa. Por exemplo, perguntado Salvador de Lima, que depôs em favor da<br />

autora, “porque calcula que o réu não tenha feito a entrega da invernada?”, respondeu<br />

que ela ainda não havia recebido “porque se a tivesse [...] ela estaria em bom<br />

10 Uruguaiana. Possessórias, 2º CC, m.5, nº1730, 1897. APERS<br />

372


estado. Perguntado porque calcula que a autora não tivesse recebido a invernada no<br />

estado em que estava ao tempo do vencimento do arrendamento? Respondeu que<br />

porque a invernada estava em aberto”.¹¹ Neste ponto insistiu o advogado de Clara<br />

Alfaro no seu arrazoado final:<br />

[...] a prova de que o réu não restituiu o campo é o estado em que ele está, e que não<br />

podia, não devia ser recebido senão nas condições estipuladas na escritura [pública<br />

de arrendamento]. E tanta consciência tinha o réu de que a autora não<br />

o receberia senão nas condições em que arrendou, que não cogitou<br />

de entregá-lo nem mesmo de explicar-se nesse sentido, fazendo antes<br />

convencer a autora que a demora na entrega era para pô-lo no estado<br />

em que o recebeu.<br />

[...]<br />

O fato de não ter o réu entregado a dita invernada à sua proprietária<br />

também está provado pelas testemunhas, e mais cabalmente pela<br />

presunção de que a autora não a reconhecia senão nas condições em<br />

que a entregou e mediante as quais pela escritura era o réu obrigado<br />

a entregar-lhe.¹²<br />

Ao insistir nessa interpretação da “entrega” do bem arrendado, os letrados<br />

encarregados do caso de Dona Clara da Cunha Alfaro queriam ratificar a rigidez que<br />

algumas linhas da escritura impunham – ou deveriam impor – à efetivação do seu<br />

cumprimento na realidade prática da relação contratual. A insistência era tamanha<br />

que chegava a ser redundante: “O réu obrigou-se expressamente por cláusula expressa<br />

a entregar o bem arrendado no estado em que recebeu, chamou a si todas as<br />

eventualidades, não pode agora sob fúteis pretextos, contrariar a verdade e ao direito,<br />

fugir ao cumprimento da obrigação”.¹³<br />

Respondendo a essa ofensiva da autora, que anexou ao processo a escritura<br />

pública de arrendamento, na qual constava a obrigação do arrendatário em “entregar<br />

o campo, que é cercado de arame e postes de Inhanduraí, no mesmo estado em<br />

que receber”, o réu juntou dois recibos de quitação, referentes ao pagamento dos<br />

dois últimos anos de arrendamento. O último recibo, na visão do advogado do réu,<br />

constituía prova de que o campo havia sido entregue, argumento que era contestado<br />

pela defesa da autora. A essa contestação, a defesa de Cândido Freitas replicava<br />

sarcasticamente:<br />

Diz sobre este ponto [a validade do recibo enquanto prova] o ilustrado<br />

patrono ex-adverso: a entrega do preço do arrendamento não<br />

induz a verificação da entrega do bem arrendado. Sim, se fora um<br />

¹¹ Grifos nossos.<br />

¹² Grifos nossos.<br />

¹³ Grifos nossos.<br />

373


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

bem móvel, um bem semovente, era natural que a parte arrendatária o<br />

recebesse, mas mesmo assim clandestina ou velhacamente podia dizer<br />

que não recebeu.<br />

Sabe, entretanto, de vantagem, quando o arrendamento versa sobre<br />

bens de raiz, porque compreende o mais vulgar dos beócios, que não<br />

se agarram três quartos de sesmaria de campo, para colocar sobre o<br />

colo de uma senhora.<br />

Dificilmente o tom ácido da fala do advogado do réu levou o juiz da primeira<br />

instância a proferir sua sentença. Todavia, muito menos a estratégia da autora de bater<br />

repetidamente na mesma tecla foi suficiente para convencer ele ou os julgadores<br />

do Tribunal de Relação. As autoridades judiciais pareciam ver menos rigor nas obrigações,<br />

atenuadas pelas circunstâncias. A sentença decretou Clara da Cunha Alfaro<br />

carecedora da ação, uma vez que, recaindo a ela o ônus da prova, não conseguiu<br />

cumprir tal quesito. Não obstante assim o fizesse, o fato de o réu não ter entregue o<br />

campo no estado em que recebeu havia sido motivada por um caso fortuito, provado<br />

pelos depoimentos das testemunhas, inclusive daquelas produzidas pela autora – a<br />

destruição causada pela ocupação dos campos pelas “tropas revolucionárias” – e que<br />

pelos termos das “Ordenações Filipinas, Liv. 4 Tit. 53 § 3”, versava sobre a questão<br />

de “casos de força maior”: a responsabilidade somente deveria recair sobre o locatário,<br />

“salvo quando no dito caso fortuito interviesse culpa sua... ou se foi em mora de<br />

tomar [...] à coisa emprestada a seu tempo... Teixeira de Freitas Consol. Art.º 657”.<br />

Não estando o réu em mora, conforme provavam os recibos anexados ao processo,<br />

então não se aplicava a disposição citada.<br />

A exemplo do litígio motivado pela falta de indenização de benfeitorias, este<br />

processo ilumina a forma pela qual se efetivavam (ou não) as obrigações que os contratantes<br />

firmavam mutuamente, e de que maneira procediam na busca pela garantia<br />

dos direitos decorrentes desses contratos perante a esfera judicial.<br />

374<br />

SER OU NãO SER ARRENDATÁRIO<br />

Os arrendamentos, apesar de algumas especificidades, estavam integrados a<br />

uma estrutura socioeconômica mais ampla, da Campanha rio-grandense, e por isso,<br />

refletiam sob diferentes ângulos características desta estrutura. Os contratos reproduziam<br />

elementos da atividade econômica tradicional dali – a pecuária. Além disso,<br />

implicavam diferentes facetas das relações de propriedade que se constituíam no seio<br />

daquela sociedade. Sendo assim, os arrendatários compartilhavam, em grande medida,<br />

das mesmas práticas econômicas, e de relações de propriedade similares com<br />

indivíduos não-arrendatários.


No entanto, a opção pela formalização de uma relação social através de um<br />

contrato escrito tinha outras conseqüências. O arrendamento implicava um vínculo<br />

formal; ao tornar-se arrendatário, um indivíduo reconhecia explicitamente ocupar<br />

uma posição específica em uma relação desigual com aquele que lhe cedia um bem<br />

em arrendamento. Na expressão “ser arrendatário”, conjugamos o verbo transitivamente<br />

– “ser arrendatário de...”; além disso, o objeto da oração, muito mais do que<br />

“algo”, é “alguém”: em outras palavras, o indivíduo que contraía um arrendamento<br />

se tornava arrendatário não apenas de um bem (campo, estabelecimento, rebanho),<br />

mas principalmente, de um outro indivíduo. Logo, uma vez que A toma em arrendamento<br />

algum bem de B, A torna-se arrendatário de B, ou seja, cristaliza uma relação<br />

de dependência com B.<br />

Assim, declarar-se ou ser declarado como arrendatário, a exemplo do termo<br />

“agregado”, evidenciava a existência de uma relação preestabelecida entre aquele<br />

assim declarado e uma outra pessoa. Analisando-se sob a ótica de uma relação de<br />

propriedade, isso implicava – ao menos juridicamente – reconhecer que o desfrute<br />

do bem arrendado era concedido pelo proprietário, em troca de uma compensação<br />

financeira, isto é, que o bem não pertencia ao arrendatário.<br />

O que queremos dizer por meio desta linha de raciocínio é que, sob este aspecto,<br />

em um conflito judicial cujo objeto de disputa fosse algum elemento referente<br />

a direitos de propriedade, o fato de ser arrendatário imprimia de antemão um diferencial<br />

em relação a outros conflitos de mesma natureza que não envolvessem arrendatários.<br />

Havia claramente o reconhecimento do consentimento de outrem para<br />

o desfrute do bem em questão.<br />

Porém, o rumo que os conflitos tomariam, e as expectativas daqueles declarados<br />

como arrendatários não estavam predeterminados, a começar pela própria<br />

questão da transferência de direitos prevista pelo arrendamento. De acordo com o<br />

Alvará de 3 de novembro de 1757, promulgado quando o território brasileiro ainda<br />

pertencia à Coroa portuguesa,<br />

[...] todos os contratos que não forem de aforamento em Fatiota ou<br />

em Vidas, com inteira transação do útil domínio, ou para sempre, ou<br />

pelo menos, pelas referidas três vidas; se julguem de simples locação<br />

ordinária; sem que seja visto transferir-se por eles domínio algum a favor dos<br />

Locatários para lhes dar direito de excluírem os outros inquilinos, ou Rendeiros<br />

anteriores, senão nos outros casos, em que por Direito é permitido aos<br />

Locadores despedirem os seus respectivos Locatários. 14<br />

14 Aditamentos ao Livro IV. In: ALMEIDA, Cândido Mendes de. Código Philippino ou ordenações e Leis do Reino de Portugal<br />

anotadas. Rio de Janeiro: Typografhia do Instituto Philimathico, 1870, p.1023. Grifos nossos<br />

375


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Isso não impediu que, em 1869, Cândido José de Camargo promovesse um<br />

embargo de obra nova contra Cândida Alves dos Santos pela construção de um<br />

rancho no campo em que o primeiro era arrendatário da segunda. 15 O autor apresentou<br />

uma escritura particular de arrendamento na qual constava que a ré arrendava<br />

a ele todo o campo de sua meação, mais o gado que viria a receber de herança, e<br />

considerava, na sua petição inicial, que o levantamento do rancho ordenado pela<br />

arrendadora era um verdadeiro “esbulho”, causando-lhe “grave prejuízo no costeio<br />

dos seus animais”, um ato cometido “sem que a suplicada [proprietária] tenha mais campo<br />

algum, pois o arrendou todo”. 16 No seu entendimento, a cessão do campo em arrendamento<br />

lhe transferia todo o direito de sua exploração, e quaisquer tipos de violações<br />

no exercício da mesma, ainda que proviesse da proprietária da terra arrendada, eram<br />

compreendidos como “atos arbitrários, violentos e criminosos”, que manifestavam<br />

um desrespeito “a si própria e aos direitos alheios”.<br />

Os litigantes, em petição conjunta, acabariam acordando que o autor desistiria<br />

do embargo e do contrato em troca da indenização da ré pelos pagamentos adiantados<br />

e pelas benfeitorias realizadas (que somava ao todo 292$000 réis). Embora curto<br />

(decorreu cerca de todo o mês de julho de 1869), este caso é revelador da complexidade<br />

das relações de propriedade que poderiam estar imbricadas em um contrato<br />

de arrendamento. O arrendatário Cândido Camargo não estava excluindo “outros<br />

inquilinos, ou Rendeiros anteriores” mencionados no texto do alvará, mas a proprietária<br />

em pessoa! Essa exclusão não era absoluta, ou seja, ele não desejava que Dona<br />

Cândida despejasse o campo em que ela era proprietária arrendadora; ainda assim, se<br />

constituía como uma limitação no direito de desfrute do mesmo: ela não tinha mais<br />

“campo algum”, uma vez que “o arrendou todo”. Este ousado arrendatário desejava<br />

um desfrute exclusivo do campo.<br />

Não temos como saber se seu embargo seria competente aos olhos da sentença<br />

do juiz caso o processo não fosse interrompido, mas o simples fato de Cândido<br />

José de Camargo ter recorrido à Justiça para buscar legitimidade em sua reivindicação<br />

não pode ser desprezado. Mesmo sendo seu arrendatário, ele compreendia que<br />

poderia dispor de direitos suficientes para ousar desafiar Cândida Alves dos Santos<br />

em relação ao usufruto da propriedade arrendada junto a ela. Dessa forma, ele se<br />

via também como um proprietário, no sentido utilizado por Congost, como alguém<br />

que possui um direito de uso sobre algo; 17 o seu era apenas mais uma das diferentes<br />

formas de manifestação desse direito.<br />

15 Uruguaiana. Possessórias, 1º CC, m.20, nº467, 1869. APERS.<br />

16 Grifos nossos.<br />

17 CONGOST, Rosa. Tierras, leyes, historia: estudios sobre “la gran obra de la propiedad”. Barcelona: Crítica, 2007,<br />

p.15.<br />

376


Este foi um caso limite, a única ação movida por um arrendatário de terra<br />

contra o proprietário do bem arrendado. Portanto, não obstante a ousadia desse<br />

arrendatário permitir-nos refletir sobre a amplitude de interpretação dos sujeitos<br />

acerca de seus direitos, mesmo quando sua posição relacional era – pelo contrato de<br />

arrendamento – formalmente inferior, ela não devia ter uma ocorrência muito freqüente<br />

entre os conflitos sobre direitos de propriedade. Certamente não teve entre<br />

as contendas mediadas pela Justiça civil de Uruguaiana.<br />

O estabelecimento de um contrato de arrendamento poderia servir como<br />

uma formalização ou cristalização de uma relação de propriedade preexistente. Em<br />

Alegrete, o maior município da Campanha, vizinho de Uruguaiana, uma das estratégias<br />

mais utilizadas nos litígios agrários “foi a apresentação de documentos que<br />

comprovavam, ou tinham a intenção de comprovar que o réu reconhecia o domínio<br />

do autor, [e] escrituras de arrendamento foram utilizadas nesse sentido”. 18 E em<br />

Uruguaiana, poderiam ter sido utilizados com os mesmos propósitos?<br />

Em dezembro de 1858, Valentim Moraes de Palma e sua mulher, juntamente<br />

com seus irmãos, irmãs, cunhados e cunhadas, foram ao 1º Cartório de Cível e Crime<br />

de Uruguaiana para abrir um processo de libelo de força nova e esbulho contra<br />

Felisberto dos Santos e sua mulher. 19 Os autores exigiam que os réus restituíssemlhes<br />

um pedaço da sesmaria de campo que diziam ser de sua propriedade. Pelo<br />

histórico por eles apresentado, Felisberto e sua mulher foram primeiro agregados<br />

de seu pai José Maria de Moraes Palma, porquanto este “consentiu que em um dos<br />

extremos divisórios da sesmaria” aqueles se arranchassem. Mais tarde, tendo falecido<br />

seu pai, sua mãe Dona Dorothea Muniz da Câmara havia ordenado “a seu filho<br />

e administrador da fazenda Valentim [...], que fizesse o sobredito Felisberto dos<br />

Santos despejar o campo que ocupava, ou pagar um módico arrendamento, [e] este<br />

sujeitou-se a pagar um exíguo arrendamento de ¼ de alqueire de trigo por ano e pelo<br />

prazo de seis anos”; o arrendamento principiou-se no dia 1º de outubro de 1847,<br />

tendo terminado na mesma data em 1853. Vencido este contrato, a sesmaria foi arrendada<br />

a Manoel Rodrigues de Cardoso, tornando-se os réus seus agregados, por<br />

consentimento do novo arrendatário. Com a morte da mãe dos autores, terminava o<br />

contrato de arrendamento de Rodrigues. Em virtude disto, este<br />

18 GARCIA, O domínio da terra..., op. cit., p.127.<br />

19 Uruguaiana. Possessórias, 1º CC, m.19, nº428, 1858. APERS.<br />

377


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

[...] despejou o campo, casa e mais acessórios, sem opor a menor dúvida<br />

obstáculo ou relutância; mas o contrário praticou o precitado<br />

Felisberto dos Santos o qual sendo lhe ordenado pelos [suplicantes] a<br />

evacuação do campo reluta ao despejo, fazendo nisso força aos [suplicantes],<br />

e esbulhando-os da posse em que estavam seus progenitores,<br />

de quem são legítimos herdeiros.<br />

Os réus Felisberto e sua mulher narraram uma outra versão em sua defesa.<br />

Segundo os artigos de sua contrariedade, entre os anos de 1827 e 1829 eles haviam<br />

estabelecido e fundado “uma posse em campos que não estavam ocupados, e dos<br />

quais ninguém se chamava senhor, [...] sem que sofressem [...] a menor oposição,<br />

nem necessitassem de consentimento de pessoa alguma”. Alegavam que, por terem<br />

na posse se “mantido, em diuturna e constante ocupação têm adquirido o direito de<br />

propriedade no campo em que fundaram sua posse”, apoiando-se na a lei de 18 de<br />

setembro de 1850, garantidora da “posse mansa e pacífica em toda sua plenitude”.<br />

Por fim, afirmavam explicitamente que nunca haviam reconhecido os pais e sogros<br />

dos autores como donos dessa posse, nem se obrigado a nada com José Maria da<br />

Palma, ocupante de campos vizinhos aos seus.<br />

Iniciada a guerra de versões, igualmente iniciado estava o embate de documentos.<br />

Os autores apresentaram carta de sesmaria, escrituras de transferência de<br />

terras, e documentos particulares, inclusive um papel de arrendamento, cujo teor<br />

expressava que o réu reconhecia-se como um antigo agregado, e naquele momento,<br />

arrendatário da parcela de campo dos autores. Este papel foi duramente rechaçado<br />

pelos réus, denunciando ter o mesmo aparecido “depois de 19 anos de posse, e quando<br />

já não existia José Maria da Palma”, fruto de “um procedimento menos digno, e<br />

também criminoso”, pois eles em nenhum momento pretérito haviam “consentido<br />

em que fosse a posse dos campos pertencentes aos [autores]”, e portanto, “nenhum<br />

merecimento e valor” poderia receber o referido documento. De fato, o réu não sabia<br />

ler nem escrever, tendo sido o papel de arrendamento assinado por outra pessoa<br />

a seu rogo; além do mais, conforme duas de suas testemunhas, os autores teriam<br />

embriagado Felisberto para que ele consentisse com o contrato. Os autores também<br />

anexaram um documento na qual o arrendatário Manoel Rodrigues de Cardoso dava<br />

seu consentimento para que os réus fossem seus agregados durante o período de seu<br />

arrendamento. É curioso que Cardoso afirmasse em sua resposta que consentira na<br />

permanência dos réus “a pedido do Sr. João Palma”.<br />

Por sua vez, os réus apresentaram documentos particulares com os quais tentavam<br />

provar, por meio de respostas de moradores há muito estabelecidos na região,<br />

a antigüidade e legitimidade de sua posse, embora as respostas não certificassem que<br />

a ocupação do campo fosse feita sem o consentimento de alguém.<br />

378


Depois de um longo processo (mais de dois anos, contando com o período de<br />

apelação), no qual foram ouvidas oito testemunhas produzidas pelos autores e seis<br />

produzidas pelos réus, sendo inclusive realizada uma vistoria no campo em litígio, o<br />

juiz proferiu sua sentença:<br />

Do exame de todas as provas se patenteia, que os [autores] com os<br />

depoimentos contestes de suas testemunhas provaram: terem sido os<br />

[réus] agregados de seu finado Pai José Maria de Moraes: que depois<br />

pelo contrato de arrendamento [...] passou a ser arrendatário; cujo<br />

contrato de arrendamento está perfeitamente provado pelos depoimentos<br />

das 2ª, 3ª e 4ª testemunhas [dos autores] sendo as duas últimas<br />

presentes ao contrato. Provaram mais, e ficou patente pela vistoria que<br />

o terreno ocupado pelos [réus] está dentro dos limites dos campos<br />

dos [autores].<br />

Entretanto as provas apresentadas pelos [réus], além de limitar-se ao<br />

fato de terem os mesmos residido nesse terreno, é elidida pelas dos<br />

[autores] em tudo o mais.<br />

Para Feliciano Ribeiro d’Almeida, Juiz Municipal substituto, estava provado o<br />

consentimento de Felisberto dos Santos acerca do contrato de arrendamento, e logo,<br />

o reconhecimento de que aquele campo no qual alegava ter posse mansa e pacífica<br />

não era seu. Os réus foram condenados a restituírem aos autores o campo com seus<br />

rendimentos, além de arcarem com as custas do processo. Sua tentativa de embargo<br />

da sentença foi impugnada, e a ação terminou com uma certidão de execução do<br />

mandado de despejo realizado pelo oficial de justiça.<br />

Tomado por inteiro, este litígio induz-nos a pensar as relações de propriedade<br />

como relações de hierarquia, na qual se tencionam a todo momento o controle e a<br />

autonomia (o primeiro personificado pelos autores e o segundo pelos réus), ou seja,<br />

a prova da existência ou não do consentimento dos autores para que os réus ocupassem<br />

aquele campo implicava conseqüências significativas para essa relação.<br />

Este aspecto fica demonstrado em vários momentos nas falas dos litigantes<br />

(intermediadas pelos seus advogados e procuradores), fundamentalmente dos autores:<br />

assim, por exemplo, o seu procurador afirmava, ao contestar o depoimento de<br />

uma das testemunhas dos réus sobre o histórico de ocupação do campo em contenda,<br />

que entre 1828 e 1829, o pai dos autores, que havia fugido do exército que<br />

invadiu a região, voltou à mesma,<br />

[...] de novo povoou sua Fazenda [e] por amizade e compaixão chamou<br />

aos Réus para virem povoar uma das divisas da Fazenda em questão;<br />

como agregado[s] ali se [conservaram] até o falecimento de José Maria<br />

da Palma, Pai dos Autores, e depois julgando sua viúva e filhos, fracos para<br />

resistir-lhe à sua ambição, começou de propalar que estava em campos de<br />

sobras, e conseqüentemente devoluto; chegando a notícia da finada<br />

Mãe dos Autores de que ele se inculcava já possuidor desse campo que<br />

379


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

ocupa, o convidou o seu administrador para lhe passar um escrito de<br />

arrendamento [...] sem força de coação ou constrangimento. 20<br />

Em outras palavras, a “ingratidão” dos réus para com a “benevolência” de<br />

seus senhores teria os levado à ambição de usurpar-lhes sua propriedade, e o contrato<br />

de arrendamento, cujos valores eram nada mais que “simbólicos”, serviria somente<br />

como um corretivo para lembrar os réus de seu lugar na hierarquia social.<br />

Nas alegações finais dos autores, esse sentimento de “quebra” na relação de<br />

dependência fica ainda mais evidente:<br />

[os réus] existiam contentes como agregados até que o Gênio do Mal<br />

lhes sugeriu a idéia de locupletarem-se com as terras que ocuparam [...].<br />

[Desse modo, cometiam fraude os réus] querendo locupletar-se nas terras<br />

dos Autores, daqueles que lhes [...] estenderam uma mão piedosa, daqueles<br />

que condoídos do seu isolamento e desamparo os chamaram para dar-lhes um asilo,<br />

campo para pastagem de seus gados, terras de uberdade para agricultar, pagando<br />

um módico foro por ano esse mesmo exíguo foro, somente para que jamais deixasse<br />

de reconhecer o domínio, e Senhorio em tais terras de seus benfeitorias, ou por sua<br />

cobiça e ingratidão ou dos seus herdeiros, e conjuntos; [...] já arrancaram<br />

a máscara, e mostraram patentemente a monstruosa ingratidão querendo<br />

perfaz ou punifaz [?] apropriarem-se de campos dos Autores [...]. ²¹<br />

O texto terminava com um alerta a outros senhores e possuidores de terras<br />

que abrigavam agregados: “[...] porém servirá este iníquo procedimento de proveitosa<br />

lição a todos que quiserem asilar a desgraçados.”<br />

A “insolência” dos réus parecia advir de sua condição de “desgraçados”, condição<br />

essa tão extrema a ponto de ser ressaltada por seu advogado – “todos que os<br />

conhecem [os réus], sabem que sua cor os coloca na última escala da sociedade, [e]<br />

que os mesmos não têm bens da fortuna” -, obrigando-o a solicitar “ao Meritíssimo<br />

Julgador sua proteção, em favor do fraco, do ignorante e do pobre sem proteção”.<br />

No entanto, sob sua própria perspectiva, e de seus apoiadores, sua resistência e disposição<br />

ao litígio era motivada por seu anseio de autonomia, isto é, de se afirmarem<br />

como seus próprios senhores, independentemente do consentimento alheio. É isso<br />

que permeava a fala de uma de suas testemunhas, quando afirmou que<br />

[...] nunca lhe constou e nem soubera que os ditos réus fossem agregados<br />

da Estância da Palma, e que pelo contrário sabe e sempre observou<br />

que os réus têm se conservado em sua posse como verdadeiros senhores,<br />

fazendo o serviço próprio de estabelecimento de criação de gado inteiramente<br />

independente daquela Estância [pertencente aos autores].²²<br />

20 Grifos nossos.<br />

²¹ Grifos nossos.<br />

²² Grifos nossos.<br />

380


Em vista disso, serem reconhecidos como agregados ou arrendatários não<br />

era de interesse dos réus, pois o seu enquadramento dentro de uma dessas situações<br />

implicava justamente a perda de sua situação autônoma, a aceitação de sua posição<br />

de dependência, em outras palavras, a ausência da condição de senhores de si mesmos.<br />

Por isso que alegavam insistentemente em sua defesa a nulidade do contrato<br />

de arrendamento em questão: até o fim, negavam veementemente terem consentido<br />

com o mesmo. A confirmação de ter Felisberto sido “arrendatário”, pelo papel de<br />

arrendamento e por boa parte dos depoimentos em favor dos autores, determinou<br />

seu insucesso na defesa dos direitos que acreditava possuir sobre o pedaço do campo<br />

em disputa.<br />

Cerca de trinta anos mais tarde, era a vez de um arrendatário propor uma ação<br />

judicial. Em fevereiro de 1886, Marcelino Antônio Pereira promovia ação de força<br />

nova turbativa contra Orlando da Silva Genro.²³ O autor declarava-se “possuidor,<br />

como arrendatário, [...] do estabelecimento denominado Destino, de propriedade de<br />

Joaquim da Silva Genro”, acusando que os réus mantinham “nos campos do dito<br />

estabelecimento grande quantidade de gado vacum, cavalar e lanar, os quais não têm<br />

querido retirar pelos meios suasórios”, e pelo fato de por meio do arrendamento<br />

transferir o arrendador, “por certo tempo ao arrendatário, os seus direitos de uso e<br />

gozo exclusivo da coisa arrendada, e juntamente com esses direitos as ações, que os<br />

defendam contra os ataques de terceiros”, recorria aos meios judiciais para ver seu<br />

direito restabelecido.<br />

Por seu lado, os réus alegavam que o autor estava “desforçado”, que por serem<br />

os campos abertos tanto os seus animais quanto os do autor passavam de um<br />

lado ao outro das parcelas que cada um ocupava, e questionava a validade do contrato<br />

de arrendamento do autor, ao afirmarem “que a posse que, pela escritura que<br />

junta o [autor], tem jus, é fundada em contrato expressamente nulo: que o campo<br />

arrendado pelo [autor] não é nem pode ser da propriedade do arrendante, Joaquim<br />

da Silva Genro”, pai do réu.<br />

O questionamento direto de Orlando Genro a respeito do campo em litígio<br />

como propriedade legítima de seu pai Joaquim estava baseado em uma série de documentos.<br />

O primeiro era um traslado dos autos de inventário de sua mãe, de 1854<br />

(morta em 1847) no qual se afirmava que seu pai, o inventariante, havia adquirido<br />

uma sesmaria (a mesma que envolvia a parcela disputada) depois da morte de sua<br />

esposa, deixando de declará-la entre os bens inventariados justamente por achar<br />

que não o devia por não ser parte do patrimônio de seu casal. Mais tarde, Joaquim<br />

²³ Uruguaiana. Possessórias, 1º CC, m.5, nº54, 1886. APERS<br />

381


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

da Silva Genro decidiu solicitar a sobrepartilha do campo, que, no entanto, não foi<br />

realizada, pois, voltando atrás, alegava o inventariante que, precisando saldar dívidas<br />

que somavam mais de quatro contos (dívidas questionadas pelo réu, que duvidava da<br />

existência desses credores), teve que reter o campo, avaliado por essa quantia. O réu<br />

igualmente apresentou uma carta de sentença formal da partilha dos bens legados<br />

por seu avô materno em 1848, entre os quais ficava de herança ao réu 120$000 réis<br />

da sesmaria avaliada em seis contos, situada exatamente entre Pindaí e Toropasso,<br />

lugar correspondente ao campo mencionado no traslado de inventário, o que estava<br />

em disputa. Por fim, apresentou uma certidão de casamento do autor com a sua<br />

mulher, neta de Joaquim Genro, pai do réu e arrendador do autor.<br />

Já Marcelino Pereira, para legitimar sua causa, anexou aos autos uma escritura<br />

pública de arrendamento, na qual Joaquim Genro o cedia uma parte de campo por<br />

cinco anos, três documentos particulares assinados pelo mesmo que lhe concederiam<br />

o desfrute daqueles campos, e uma escritura particular de arrendamento do<br />

potreiro lá existente entre Joaquim Genro e seu filho, o réu Orlando.<br />

Bem como no caso anterior, é interessante perceber aqui o enquadramento<br />

dos litigantes em categorias de exercício do direito de propriedade, e os modos pelo<br />

quais eles jogavam com essas categorias a seu favor. O autor Marcelino Pereira apresentava-se<br />

como arrendatário, e o réu Orlando Genro como herdeiro de um mesmo<br />

campo. Há uma terceira pessoa, Joaquim da Silva Genro, que cedeu o campo em arrendamento<br />

ao primeiro, ao mesmo tempo em que era pai do segundo. Orlando não<br />

reconhecia seu pai como proprietário do campo em questão, porquanto este havia<br />

dissuadido as autoridades para conservar o campo como propriedade sua. Em virtude<br />

disto, por diversos momentos do processo, a defesa do réu atacou a legalidade do<br />

contrato de arrendamento firmado entre o autor e Joaquim Genro, principalmente<br />

na inquirição de suas testemunhas, procurando desqualificar Marcelino Pereira enquanto<br />

arrendatário ao afirmar que ele morava “a favor” de Joaquim Genro. Em<br />

contrapartida, o autor, igualmente através dos depoimentos dos que testemunharam<br />

por sua escolha, intentava por diversas vezes legitimar-se como arrendatário:<br />

Perguntado há quanto tempo e em que categoria ocupa Marcelino Pereira<br />

o campo descrito? Respondeu que faz mais de seis anos e que ocupa<br />

esse campo como arrendatário, tendo reformado esse respectivo contrato, o que sabe<br />

por ouvir dizer pelo mesmo Marcelino. 24<br />

Ou seja, o próprio autor se auto-declarava diante de seus conhecidos como<br />

arrendatário dos campos de Joaquim Genro. Então, ser enquadrado enquanto tal lhe<br />

era bastante interessante para as circunstâncias que envolviam o litígio. Conforme o<br />

24 Grifos nossos.<br />

382


que já referimos, desde sua petição inicial ele fazia questão de explicitar seu arrendamento<br />

e os direitos que este contrato lhe imbuía. Simultaneamente, dizia que era<br />

o réu quem morava “a favor” de seu pai, e que a posse que este alegava conservar<br />

em dita sesmaria se reduzia ao potreiro próximo à divisa da parcela que arrendava.<br />

Assim, Marcelino Pereira apostava na força do contrato para vencer a causa que se<br />

processava.<br />

De fato, o julgador em primeira instância do caso não pensava muito diferente<br />

quando pesou os argumentos em favor do autor, à medida que, em sua sentença,<br />

qualificava o ato cometido pelos réus como “flagrante violação do direito a que este<br />

[o autor] assiste por força do referido contrato”, e “que o direito [que] têm os [réus]<br />

sobre os ditos campos, em face do documento [de carta de sentença formal de partilha]<br />

todavia não se pode admitir que seja ele tão extensivo que lhes faculte o uso<br />

e gozo de maneira ampla porque o exercem”. A decisão deixava claro, no entendimento<br />

do juiz, que o arrendatário era desrespeitado em seu direito de propriedade,<br />

ao mesmo tempo em que explicitava que o direito de herança possuído pelo réu<br />

em relação ao campo não o imputava um melhor direito de propriedade em relação<br />

àquele produzido pelos efeitos legais do contrato de arrendamento.<br />

Nos processos judiciais produzidos em Paraíba do Sul, município fluminense,<br />

Márcia Motta observou que essa aparente “confusão” entre termos como “agregado”<br />

e “arrendatário” não era incomum.<br />

As diferenças na denominação entre estes sujeitos sociais talvez sejam<br />

uma pista capaz de elucidar as possibilidades abertas de ascensão<br />

social de alguns agregados, no seu esforço de se verem reconhecidos<br />

como arrendatários. Neste sentido, ao se autodenominarem arrendatários,<br />

os trabalhadores estariam procurando garantir a sua autonomia<br />

em relação ao senhor de terras. Os fazendeiros, ao contrário, ao<br />

reconhecê-los como agregados, estariam enfatizando a sua relação de<br />

dependência. 25<br />

Assim como o conflito ocorrido entre 1859 e 1861, envolvendo Felisberto<br />

dos Santos e sua mulher, sustenta o uso das escrituras de arrendamento como prova<br />

de reconhecimento de domínio pelos proprietários, este litígio confirma a outra<br />

hipótese que havíamos levantado na seção 2.3 do capítulo anterior, isto é, que as<br />

escrituras poderiam servir aos interesses não apenas dos proprietários, mas também<br />

aos anseios dos próprios arrendatários. No primeiro litígio, a luta dos réus era por<br />

não serem classificados como arrendatários – como queriam aqueles que lhes moviam<br />

a ação -, e sim, proprietários das terras que ocupavam; quase trinta anos depois,<br />

25 MOTTA, Márcia Maria Menendes. Nas fronteiras do poder. Conflito e direito à terra no Brasil do século XIX. 2ª<br />

edição revista e ampliada. Niterói: EDUFF, 2008, p.79. Grifos do original.<br />

383


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

o mesmo tipo de qualificação que aqueles réus evitavam foi decisiva em favor de<br />

Marcelino Pereira. Portanto, o fato de ser arrendatário não necessariamente colocava<br />

um litigante em desvantagem em relação ao seu adversário judicial. Desejar ser assim<br />

reconhecido dependia sempre da circunstância da disputa, e contra quem se litigava.<br />

384<br />

CONCLUSãO<br />

Arrendatários colocaram uns e foram colocados por outros no banco dos<br />

réus dos tribunais de Uruguaiana. Seus adversários foram novos proprietários, velhos<br />

agregados, posseiros, e algumas vezes, até mesmo os arrendadores de seus bens.<br />

No cerne dos conflitos estiveram quase sempre discussões a respeito de relações<br />

e direitos de propriedade que se constituíam sobre os bens arrendados. Essas<br />

discussões, em alguns casos, estavam perpassadas por tensões entre controle e autonomia<br />

e a garantia do cumprimento de cláusulas contratuais, elementos próprios<br />

a uma relação de arrendamento. Em outros, espelhavam problemas mais amplos,<br />

próprios ao embate de direitos coletivos e individuais e ao choque entre velhas práticas<br />

de propriedade e novas percepções acerca do uso e do acesso aos recursos<br />

produtivos como terra e gado. Havia situações em que essa dupla perspectiva sobre<br />

os conflitos poderia estar até mesmo combinada em litígios ricos em detalhes de argumentação<br />

jurídica, de debate de concepções sobre direitos e de estratégias variadas<br />

para fazer prevalecer os respectivos interesses.<br />

Enfim, os litígios agrários de Uruguaiana que levaram arrendatários a juízo<br />

integravam uma gama maior de conflitos judiciais e extrajudiciais que ocorreram<br />

no município. As disputas nos quais os mesmos estavam imbricados manifestavam<br />

as transformações que aconteciam na Campanha rio-grandense desde meados<br />

do século XIX até as primeiras décadas do século XX. E como salienta Graciela<br />

Garcia, apoiando-se em Fradkin, esses conflitos devem ser levados em conta como<br />

condicionantes dessas mudanças, não apenas seus meros reflexos. 26 Trocando-se os<br />

termos, elementos que sinalizavam uma transformação, como a alta valorização da<br />

terra, a mercantilização e as mudanças no estatuto jurídico deste bem de produção,<br />

e em torno do qual se estabeleciam as principais relações sociais daquele contexto,<br />

constituíram um processo em que os próprios agentes sociohistóricos tiveram atuação<br />

decisiva. Assim, os arrendatários, tais quais outras categorias de produtores<br />

existentes no universo rural da Campanha, ao mesmo tempo em que produziam<br />

conflitos, produziam sua própria realidade. As respostas que davam às situações que<br />

se apresentavam diante de si ajudaram a construir o complexo cenário desse período<br />

da história brasileira.<br />

26 GARCIA, G., O domínio da terra..., op. cit., pp.174-177.


FONTES PESQUISADAS<br />

Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul<br />

Ações possessórias:<br />

Uruguaiana. Possessórias, 1º CC, m.20, nº465, 1866.<br />

Uruguaiana. Embargos, 2º CC, m.62, nº1725, 1894.<br />

Uruguaiana. Possessórias, 2º CC, m.5, nº1730, 1897<br />

Uruguaiana. Possessórias, 1º CC, m.20, nº467, 1869<br />

Uruguaiana. Possessórias, 1º CC, m.19, nº428, 1858<br />

Uruguaiana. Possessórias, 1º CC, m.5, nº54, 1886.<br />

Escritura pública de arrendamento:<br />

Uruguaiana, 1° Tabelionato. Livro de Transmissões e Notas volume.3, 1858-1860,<br />

f.62-62v.<br />

REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ALMEIDA, Cândido Mendes de. Código Philippino ou ordenações e Leis do Reino de Portugal<br />

anotadas. Rio de Janeiro: Typografhia do Instituto Philimathico, 1870.<br />

CONGOST, Rosa. Tierras, leyes, historia: estudios sobre “la gran obra de la propiedad”.<br />

Barcelona: Crítica, 2007.<br />

FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Confins meridionais: famílias de elite e sociedade<br />

agrária na Fronteira Sul do Brasil (1825-1865). Rio de Janeiro: UFRJ, 2007. Tese de<br />

doutorado.<br />

GARCIA, Graciela. O domínio da terra: conflitos e estrutura agrária na Campanha<br />

rio-grandense oitocentista. Porto Alegre: UFRGS, 2005. Dissertação de mestrado.<br />

MOTTA, Márcia Maria Menendes. Nas fronteiras do poder. Conflito e direito à terra no<br />

Brasil do século XIX. 2ª edição revista e ampliada. Niterói: EDUFF, 2008.<br />

385


6<br />

A AtuAção do sAnto ofíCio<br />

e dos jesuítAs no brAsil<br />

ColoniAl


As CrôniCAs jesuítiCAs CoMo fonte de PesquisA:<br />

o iníCio dAs Missões de MAynAs<br />

Fernanda Girotto¹<br />

Fernanda Wisniewski ²<br />

Resumo: O presente artigo visa analisar o início da ação jesuítica e sua importância na região<br />

do Alto Amazonas durante o século XVII. Para tanto, valemo-nos de documentos de natureza primária<br />

como fontes de pesquisa, a saber, algumas crônicas escritas por jesuítas que estiveram na região durante<br />

o referido período. Uma reflexão sobre a utilização deste tipo de fonte para compreender-se como os<br />

sujeitos envolvidos viveram esta dinâmica, também é objetivo deste trabalho. Vale salientar que este<br />

texto é fruto de um projeto de pesquisa maior: “Cartografias da Floresta: as crônicas coloniais e o espaço<br />

amazônico”, desenvolvida por um grupo de pesquisa³ vinculado ao programa de Pós Graduação<br />

em História da Unisinos.<br />

Palavras-chave: Jesuítas – Missões de Maynas – Crônicas Coloniais<br />

As crônicas que narram as primeiras incursões feitas pelos europeus na<br />

região amazônica ilustram o imaginário dos pioneiros nestas aventuras.<br />

Um imaginário que era povoado de mitos e histórias fantásticas.<br />

Com a descoberta da América ansiou-se por encontrar as riquezas e mistérios nestas<br />

terras, que para eles, eram completamente desconhecidas. É justamente a partir deste<br />

imaginário e da necessidade de conhecer e dominar as “dilatadíssimas terras não<br />

conquistadas” 4 (Rodríguez, 1684, p.5) que diversas expedições foram organizadas<br />

durante o século XVI.<br />

Estamos compreendendo aqui o conceito de imaginário segundo Baczo<br />

(1985) para quem o imaginário social faz parte do sistema simbólico que os grupos<br />

produzem a partir de suas experiências. Isto é, ele:<br />

¹ Graduanda do curso de História e bolsista UNIBIC – Unisinos. Contatos: fe_girotto@hotmail.com; 3591-2100.<br />

² Graduada em História, Graduanda em Ciências Sócias e bolsista FAPERGS – Unisinos. Contatos: fe.wisniewski@<br />

gmail.com; 3591-2100.<br />

³ O grupo é atualmente composto por: Deise Cristina Schell (mestranda e bolsista CNPq), Fernanda Wisniewski<br />

(Graduada em História, graduanda em Ciências Sociais e bolsista FAPERGS), Fernanda Girotto (bolsista UNIBIC);<br />

Ismael Calvi Silveira (Bolsista PIBIC), Juliana Camilo (graduanda da Licenciatura de História) sob orientação de<br />

Maria Cristina Bohn Martins (Dra em História, Bolsista Produtividade CNPq).<br />

4 No original: “dilatadífsimas tierras no conquiftadas”. Tradução das autoras<br />

389


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

informa acerca da realidade, ao mesmo tempo que constitui um apelo<br />

à acção, um apelo a comportar-se de determinada maneira. Esquema<br />

de interpretação mas também de valorização, o dispositivo<br />

imaginário suscita a adesão a um sistema de valores e intervém eficazmente<br />

nos processos de sua interiorização pelos indivíduos, modelando<br />

os comportamentos, capturando as energias e, em caso de<br />

necessidade,arrastando os indivíduos para uma acção comum. 5<br />

Uma das primeiras incursões que trazem à tona a Amazônia aos olhos dos<br />

espanhóis é aquela liderada por Gonzalo Pizarro. Esta foi uma grande expedição,<br />

que mobilizou mais de duzentos espanhóis, em torno de cem cavalos e muitas<br />

esperanças. Mesmo assim, foi marcada pelas dificuldades impostas pelo ambiente e<br />

pelos conflitos entre os que dela participaram. Nesta expedição encontram o rio que<br />

chamaram de Marañón, uma vez que possuía tantos afluentes que a paisagem mais<br />

parecia um “emaranhado” de cursos de água. As notícias desta viagem alimentaram<br />

as fantasias e expectativas sobre o que o ambiente amazônico e suas populações<br />

guardavam. Exemplo disto seriam as portentosas terras de Omágua, o El Dorado, o<br />

País da Canela, o reino das amazonas, entre outras histórias.<br />

Esta expedição incentivou outras e, assim, com o tempo, alguns destes espanhóis<br />

decidem fixar-se em pontos estratégicos para explorar o potencial de riquezas<br />

da região, extraindo os produtos encontrados a fim de comercializá-los. Além disso,<br />

a descobertas de populações que poderiam servir como mão-de-obra para o trabalho<br />

foi também fator de grande influência na fixação dos espanhóis na região.<br />

5 BACZO, 1985, p. 309<br />

6 CYPRIANO, 2005, p. 127<br />

390<br />

As origens destas ações apresadoras, nas margens do rio Amazonas e<br />

seus afluentes, estavam vinculadas ao desenvolvimento das empresas<br />

coloniais sob dois aspectos. Os primeiro se refere à demanda pala<br />

mão-de-obra indígena para erigir construções, trabalhar na agricultura<br />

e pecuária, abastecendo a sociedade colonial de gêneros de primeira<br />

necessidade. O segundo ponto, que reforçava o interesse no apresamento<br />

de mão-de-obra indígena, diz respeito aos empreendimentos<br />

de exploração das riquezas da América: o trabalho nas minas, a coleta<br />

de canela, salsaparrilha, cacau e outras drogas que, na Europa,<br />

eram extremamente valorizadas, consolidando uma atividade lucrativa.<br />

Como as informações das viagens de exploração eram muito otimistas<br />

a respeito das possibilidades oferecidas, o interesse econômico<br />

em extrair lucros da área era crescente, assim como a expectativa de<br />

conduzir grandes populações à doutrina cristã. 6


1. A FUNDAçãO DE BORJA<br />

No final do século XVI a extração aurífera é que ganha maior destaque na<br />

região. A demanda de mão-de-obra é crescente, o que faz com que os indígenas<br />

sintam os efeitos da presença espanhola de forma cada vez mais penosa. A captura<br />

de nativos se fazia em diversas regiões para suprir as necessidades da mineração,<br />

principalmente. O contexto, para os europeus de fins do século XVI e início do<br />

XVII, pode ser descrito a partir otimismo dos colonizadores que, ao perceberem<br />

o potencial da região, passam a praticar as chamadas correrias para explorar o que<br />

encontraram. Mesmo que este otimismo fosse um tanto utópico, a persistência regeu<br />

os desejos de permanecer no local e explorar tudo o que fosse possível.<br />

Em uma destas expedições em busca de mão-de-obra, os espanhóis entraram<br />

em contato com uma população indígena, os maynas, com os quais os primeiros<br />

contatos foram amistosos, o que permitiu a fixação na região sob o sistema de encomiendas.<br />

O nome “Maynas” mais tarde vem originar o nome das missões jesuíticas.<br />

Conforme Figueroa [1661] (1986):<br />

En 1616 entraron algunos soldados españoles en tierras de los Maynas,<br />

y D. Francisco de Borja, Príncipe de Esquilache, Virrey Del Perú,<br />

dió á D. Diego de Vaca y Vega la gobernación de aquellos indios quienes<br />

lo recibieron benévolamente: con objeto de afirmar la dominación<br />

española, fundó éste, cerca del famoso canal del Pongo, la villa de San<br />

Francisco de Borja. 7<br />

Podemos perceber que a fundação da vila tem por objetivo legitimar a presença<br />

espanhola, de acordo com as práticas de colonização que foram empregadas<br />

em diversos locais. Trata-se, em outras palavras, de uma forma de demarcar seu<br />

domínio. Lembremos que, mesmo no período da União Ibérica8 , a disputa entre<br />

espanhóis e portugueses por territórios americanos jamais foi totalmente afastada,<br />

e a presença e o interesse tanto português quanto espanhol no Marañón geravam<br />

diversos atritos e turbulências.<br />

Como afirmado anteriormente, o primeiro contato com a sociedade dos<br />

maynas se dá em 1616, momento em que D. Diego de Vaca y Vega solicita ao rei<br />

permissão para ali fundar uma cidade. Esta cidade seria povoada por espanhóis e<br />

por estes indígenas “amigos”, com a finalidade de extrair o ouro da região, além de<br />

7 FIGUEROA [1661],1986, p. 145-146<br />

8 Entre 1580 e 1640 acontece o que a historiografia denomina de União Ibérica, período em que Portugal e Espanha<br />

são governados pelo mesmo rei. Isso ocorre devido à morte de Dom Sebastião, que deixa o trono sem herdeiro<br />

direto, o que permite a Dom Felipe II, seu tio, reivindicar o título.<br />

391


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

outras drogas típicas do local. Desta forma, em 1619 é feita a concessão. O nome da<br />

vila é uma homenagem ao vice-rei que permitiu sua fundação: San Francisco de Borja.<br />

Os indígenas aliados logo foram distribuídos para iniciar o trabalho e consolidar o<br />

sistema de encomiendas.<br />

Como é característico do sistema colonial, o trabalho indígena era demasiado<br />

penoso e insalubre. As mortes causadas pelos abusos cometidos nas encomiendas atingiram<br />

proporções altas e cada vez mais se aprisionavam indígenas para explorar sua<br />

força de trabalho. Como forma de resistência a isto, as atitudes mais comuns eram<br />

a fuga ou as rebeliões, que começam a tomar sempre mais violentas, ameaçando a<br />

estabilidade da vila. No ano de 1635 ocorre uma grande rebelião, que mudaria o<br />

destino de muitos indígenas da região e que daria início às missões que hoje são alvo<br />

de nossos estudos.<br />

Sucedió el año de 35, en que mataron hasta trienta y quatro personas,<br />

lãs veinte y nuve españolas, lãs más de cuenta, encomenderos, y de<br />

oficio, capitanes, alférezes, sargentos, que exercitaban unos y otros reformados<br />

en estas tierras, cogiéndolos en suspueblos y repartimientos<br />

descuydados y dormidos, y aonmetieron a la ciudad de San Francisco<br />

de Borja, única frontera y cabeza en este Govierno, pretendiendo<br />

acabar con todo; pero fueron rechazados de los pocos españoles que<br />

havia al presente en ella, que se havian hecho fuertes em la yglesia con<br />

lãs mugeres, quienes tambien se mostraron animosas, previendo la<br />

cuerda, pólvora y otros menesteres, com que acudian á los soldados. 9<br />

A revolta mostrará aos espanhóis que os meios de repressão e controle empregados<br />

contra os indígenas, não eram suficientes para permitir sua estabilidade no<br />

local. Desta forma, Pedro Vaca de la Cadena (filho e sucessor do governador anterior)<br />

lança a proposta de tentar a pacificação dos nativos através de catequese. Em<br />

virtude disto, a Companhia de Jesus é chamada para enviar religiosos com o intuito<br />

de pacificar e cristianizar os nativos, de maneira a não prejudicar a estabilidade da<br />

empresa colonial.<br />

392<br />

2. AS CRÔNICAS JESUíTICAS COMO FONTE<br />

A presença jesuítica na região amazônica é que gerou as crônicas estudadas<br />

no presente artigo. Antes de qualquer outra reflexão, seria interessante definir a que<br />

estamos nos referindo quanto utilizamos o termo “crônicas”. Esta expressão abran-<br />

9 FIGUEROA [1661], 1986, p. 154


ge, em nossa pesquisa, um conjunto de registros escritos que descrevem aspectos da<br />

conquista e colonização espanhola, segundo a produziram os contemporâneos. Encontramos,<br />

naqueles textos que dizem respeito a este trabalho, informações sobre a<br />

Amazônia no que tange à cultura das populações locais, à natureza, ao contato entre<br />

europeus e americanos, entre outras informações. Diversos tipos de documentos<br />

primários se encaixam nesta perspectiva: cartas, livros, informes, mapas, diários, etc.<br />

Para o presente artigo exploramos especialmente duas crônicas: um Informe, escrito<br />

por Francisco Figueroa em 1661, e uma “História”, tal qual a denominou seu autor,<br />

Manuel Rodríguez em 1684.<br />

A compreensão mais correta destes escritos do XVII deve levar em consideração<br />

o contexto em que foram gestados. Aqueles que foram deixados pelos jesuítas<br />

são testemunhos valiosos dos tempos coloniais e da evangelização de diversos povos.<br />

A riqueza destas crônicas se dá pelo valor que os inacianos atribuíam à troca de<br />

informações entre os missionários. Através desta prática, era possível acompanhar<br />

a situação da ação jesuíta em diversos lugares do mundo. Para além das prestações<br />

de contas, era possível ter um panorama de como se dava a catequese, de quais eram<br />

os métodos utilizados com cada população, de como era a região em que estavam e<br />

etc. Esta escrita contribuía para que os jesuítas pudessem não somente trocar experiências,<br />

como trocar sugestões, solicitar auxílio, fazer críticas, apontar dificuldades,<br />

sugerir soluções, entre tantas outras facetas esta comunicação deveras complexa.<br />

Vale salientar que a Companhia de Jesus é uma instituição hierarquizada, onde<br />

os superiores fazem um controle centralizado das atividades de todos os integrantes<br />

da Ordem. Havia, por exemplo, correspondências regulares que deveriam prestar<br />

contas dos acontecimentos sob um modelo padrão de carta (Cartas Ânuas), ou modelos<br />

especiais para descrever determinados locais (Informes); bem como, existia<br />

a correspondência informal, que tinha por objetivo dar e receber notícias entre os<br />

padres que missionavam em locais relativamente próximos ou distantes.<br />

Segundo Franzen, Fleck e Martins (2007, p. 9-10), as cartas ânuas, ou litterae annuae:<br />

são constituídas por informes que o Superior da Província (...) remetia<br />

periodicamente ao Geral da Companhia de Jesus em Roma, com uma<br />

ampla informação dos acontecimentos observados na sua área de<br />

jurisdição durante o lapso de um ou vários anos. Estas Cartas “gerais”<br />

eram produzidas a partir de informações de duas naturezas. Por um<br />

lado, elas sistematizavam outras Ânuas parciais, provenientes das Missões<br />

ou Reduções, e dos Colégios. De outro, agregavam informações<br />

colhidas pelos Superiores em suas viagens de visita, assim como aquelas<br />

contidas em cartas particulares. 10<br />

10 FRANZEN, FLECK e MARTINS, 2007, p. 9-10<br />

393


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Além disso, a Companhia é portadora de uma consciência história bastante<br />

notável. Para tanto, se empenhou em anotar os feitos realizados por seus membros.<br />

Diversas vezes podemos acompanhar padres historiando acontecimentos considerados<br />

importantes e não somente repassando as informações para os superiores.<br />

Podemos afirmar que estas crônicas além de haverem gozado de um considerável<br />

prestígio quando foram feitas, ainda hoje são dignas desta admiração e respeito. Nas<br />

palavras de Oliveira (2009):<br />

As cartas ainda são as fontes mais ricas para o estudo das culturas<br />

indígenas sob a dominação colonial. Elas testemunham não apenas a<br />

ação evangelizadora e aculturadora, mas também permitem ver, dado<br />

o seu caráter etnográfico, as reações dos índios diante da presença dos<br />

religiosos em suas terras e das mudanças que traziam.<br />

Creio que não somente as cartas, mas todas as crônicas possuem este valor e<br />

esta complexidade. A análise e interpretação do discurso nelas contido nos permitem<br />

refletir até mesmo sobre o protagonismo dos sujeitos indígenas dentro da dinâmica<br />

do contato. Mesmo que nos escritos jesuítas, como é o caso de nosso estudo,<br />

os autores estejam preocupados em narrar os feitos dos europeus, é possível extrair<br />

uma série de informações importantes sobre as culturas americanas. Baptista (2003),<br />

em sua reflexão sobre a análise do discurso das escritas jesuíticas, afirma que isto<br />

ocorre através do que Michel de Certeau chamou de “lapsos no discurso”<br />

... aqueles “instantes” que fogem do “consagrado sistema de interpretação”<br />

ocidental. É aí que os registros deixam transparecer determinadas<br />

informações riquíssimas para um olhar etnohistórico. É onde<br />

possivelmente resida o indígena, sua forma de reagir naquele determinado<br />

período.¹¹<br />

Traduzindo para nossa reflexão, quando o padre descreve o indígena e escreve<br />

sobre este indígena, muitas vezes dá vazão para que ouçamos o discurso do<br />

próprio nativo sobre o padre e sobre o contexto do contato. Em outras palavras,<br />

quando o cronista escreve, deixa transparecer, mesmo que de forma implícita, o que<br />

o sujeito ao qual ele está se referindo, também mostre o que pensa.<br />

Acreditamos, portanto, que a interpretação das crônicas jesuíticas pode trazer<br />

à tona questões importantes a serem analisadas e/ou revisadas. O olhar atento de<br />

um historiador que avalia os discursos contidos em documentos tão valiosos pode<br />

nos aproximar de uma melhor compreensão de como se deu o processo de catequização<br />

e colonização dentro de uma perspectiva cultural.<br />

¹¹ BAPTISTA, 2003, p. 05<br />

394


Além disso, partimos do ponto de vista de que toda escrita tem uma intenção<br />

e um contexto em que é formulada. Sem conhecer estes aspectos de forte influência<br />

sobre o texto, estamos mais propensos a compreender erroneamente as expressões<br />

e pontos de vista dos autores. Para tanto, faremos aqui uma breve apresentação das<br />

crônicas estudadas e de seus respectivos autores.<br />

3. O PADRE FIGUEROA E SEU INFORME.<br />

Francisco Figueroa nasceu no “Nuevo Reino de Granada”, hoje, território<br />

colombiano, em, em 1607, portanto, dentro do contexto colonial americano, em um<br />

local de dominação espanhola. Bastante jovem ingressa no Seminário de São Luis<br />

de Quito, onde desenvolveu diversas faculdades intelectuais. Aos 23 anos de idade<br />

entrou para a Ordem Jesuítica, isso em 1630. Chegou a lecionar, durante algum<br />

tempo, no colégio onde estudara, porém logo é destinado a trabalhar no Colégio de<br />

Cuenca¹², juntamente com o Padre Cristóbal de Acuña, no ano de 1638.<br />

Durante o tempo em que Acuña se ausentou, visto que fora acompanhar Pedro<br />

Teixeira em uma longa e arriscada viagem¹³, Figueroa permanece no Colégio de<br />

Cuenca onde se prepara para missionar na Amazônia. Em seus estudos, aprende inclusive<br />

o que se denominou na época de “lengua del Inga”, ou seja, o quéchua. Devido<br />

à grande quantidade de idiomas diferentes falados na América, os padres entenderam<br />

a comunicação que se tornaria mais fácil em uma “língua geral’, escolhendo-se<br />

o idioma incaico para tanto. Entretanto, isso não significa que não ensinassem para<br />

os indígenas o espanhol também, ou outra língua européia, até mesmo para formar<br />

seus “intérpretes” (“lenguas”).<br />

Em 13 de julho de 1642 Figueroa chegou à região de Maynas, onde dedicou<br />

seu trabalho não somente aos indígenas, mas também aos espanhóis que habitam a<br />

região. Conforme as notas de Regan (1986), ele promoveu o trabalho espiritual na<br />

vila de São Francisco de Borja durante dez anos, quando passou a catequizar indígenas<br />

em regiões mais afastadas.<br />

Entre os anos de 1656 e 1665 foi Superior das Missões de Maynas. Desta<br />

forma, em 1659, o provincial da Companhia de Jesus do Novo Reino e Quito, Padre<br />

¹² Localizado atualmente em território equatoriano.<br />

¹³ Sobre esta expedição, o religioso produziu um documento: ACUÑA, Christóbal de. Novo Descobrimento do<br />

Grande Rio das Amazonas. Pelo padre Christóbal de Acuña, Religioso da Companhia de Jesus e Qualificador da<br />

Suprema Inquisição Geral, ao qual se foi, e se fez por ordem de sua Majestade, no ano de 1639, pela Província de<br />

Quito, nos Reinos do Peru. In: ESTEVES, Antônio R. (ed). Novo Descobrimento do Grande Rio das Amazonas. Montevidéu:<br />

Consejeria de Educación de Embajada de España en Brasil; Oltaver, 1994<br />

395


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Hernando Cavero, solicita a Figueroa um informe sobre os “pueblos” que estavam<br />

sob sua supervisão. O documento é concluído em 1661, levando o títulos de “Ynforme<br />

de las Missiones de el Marañon, Gran Pará ó Río de lãs Amazonas”.<br />

Seus últimos trabalhos espirituais foram realizados no pueblo de “Limpia Concepción<br />

de Jeberos”. O jesuíta foi assassinado durante uma rebelião promovida pelos<br />

índios Cocama, junto com alguns nativos Jeberos, no dia 15 de março de 1666.<br />

Nas crônicas que falam sobre a morte do padre, podemos encontrar algumas explicações<br />

e descrições de sua morte. Um carta de um “capitão Marcos Salazar” lê-se<br />

que Figueroa estava indo ao encontro do Padre Tomás Majano (superior das missões<br />

naquele momento) para aconselhar-se, quando, em um rancho na ribeira do rio encontrou<br />

alguns índios Cocama que:<br />

Llegando a saludarle, como lo acostumbraban, comenzaron algunos<br />

de ellos á coger lo que habia en la canoa del Padre, y á un muchacho<br />

que lo defendia le derribaron de un golpe, á que el Padre les dijo: ¡<br />

Jesús! ¿qué os há hecho esse muchacho que asi lo maltratais? Y volviendo<br />

á los indios les dijo: ¿Que por qué causa le habían hecho aquel<br />

daño? Y los indios le dijeron al Padre: ¿Y hablas? Dándole un golpe<br />

le derribaron. Volvió en si diciéndoles: ¿Este es el pago que me dais<br />

después que He trabajado en enseñaros la ley de Dios? Y los índios<br />

diciéndole: ¿Todavia hablais? Yo haré que no prediqueis, le ataron á<br />

un árbol y le fueron cortando y sacando por las conyunturas todos<br />

los huesos uno por uno, hasta que quedo tronco el cuerpo. Y en todo<br />

este martírio no cesó el dicho mártir de predicar, y alzando los ojos<br />

al cielo, conto, entiéndese que algun himno, y com ello Dio el alma á<br />

su criador.Los índios le asaron el cuerpo para comérsele y se llevarón<br />

la cabeza. 14<br />

Alguns historiadores acreditam que o padre foi assassinado por engano, que<br />

os indígenas rebeldes queriam, na verdade, vingar-se dos espanhóis que tantos males<br />

lhes causavam. Esta possibilidade é válida, pois os padres geralmente defendiam os<br />

nativos dos espanhóis e de outros europeus que os capturavam para realizar trabalhos<br />

forçados nas encomiendas. Muitas vezes os indígenas procuravam as missões<br />

como abrigo da ameaça que representavam os soldados e encomenderos. Preferiam,<br />

muitas vezes, a proteção e assistência dos padres do que a insegurança de continuar<br />

em suas aldeias e serem escravizados pelos europeus.<br />

14 FIGUEROA, 1986, p. 314<br />

396


3.1 O “YNFORME DE LAS MISSIONES DE EL<br />

MARAÑON, GRAN PARÁ ó RíO DE LAS AMAZONAS”<br />

Conforme mencionado anteriormente, o informe solicitado ao Padre Figueroa<br />

pelo Superior Hernando Cavero em 1659 é escrito durante cerca de dois anos;<br />

fica pronto em oito de agosto de 1661. Este Informe, que hoje se tornou nossa<br />

fonte de pesquisa, é um documento de ordem primária riquíssimo em informações,<br />

descrições e detalhes acerca das Missões Jesuítas de Maynas.<br />

As duas principais cópias da obra estão na Espanha: uma na coleção da Biblioteca<br />

Nacional de Madrid; e a outra no colégio jesuíta de Chamartín de la Rosa. A<br />

versão que utilizo é de 1986, resultado do Projeto Monumenta Amazónica, que tem<br />

por objetivo editar ou reeditar as principais obras relacionadas à história da Amazônia<br />

entre os séculos XVI e XX 15 .<br />

A obra de Francisco Figueroa, reeditada por este projeto, foi publicada dentro<br />

de uma coleção de documentos que se refere a um primeiro momento das Missões<br />

de Maynas. Como Figueroa e Cristóbal de Acuña trabalharam em conjunto no Colégio<br />

de Cuenca e ofereceram valiosas descrições do ambiente amazônico, além de<br />

suas obras serem de datas bastante próximas; foram reeditadas em um único volume.<br />

Além dos escritos destes dois cronistas, a coleção de documentos é completada<br />

por algumas cartas e relações que complementam a compreensão e estudo das obras<br />

dos jesuítas.<br />

O informe é um documento que abrange descrições acerca, por exemplo,<br />

do ambiente, das populações nativas e seus costumes, dos idiomas, bem como das<br />

práticas dos missionários e reações dos índios a elas. Registra também os problemas<br />

das missões, como as doenças, etc. Para além destas informações mais descritivas,<br />

podemos utilizarmo-nos delas a fim de aproximarmo-nos do imaginário da época.<br />

O informe de Figueroa nos permite ter acesso não somente às informações<br />

mais explícitas, mas também às questões de caráter mais subjetivo como, por exemplo,<br />

a forma pela qual os padres interpretavam a organização político-social das<br />

populações ribeirinhas; com percebiam a prática do canibalismo; como lidavam com<br />

a “dificuldade” do indígenas em assimilar as “leis de Deus”, entre outros.<br />

15 Pertence a série temática “missionários”, uma vez que as obras editadas por este projeto são classificadas por<br />

temas: conquistadores, missionários, agentes governamentais, cientistas e viajantes, e exploradores. O projeto é resultado<br />

da iniciativa do Centro de Estudos Teológicos da Amazônia (CETA); que através de encontros e pesquisas<br />

pôde definir os títulos a serem publicados e realizar os trabalhos necessários para as edições.<br />

397


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

398<br />

4. O PADRE MANUEL RODRíGUEZ<br />

Manuel Rodriguez estudou no Colégio dos jesuítas de Quito. Em 1678, tornou-se<br />

“Procurador general de las Províncias de índias”. Em função de seu cargo,<br />

vai para a Europa com o intuito de divulgar os trabalhos realizados pelas missões<br />

jesuíticas espanholas,. Além de divulgar as missões, o elogio ao esforço dos padres é<br />

uma estratégia o para conquistar “nuevos operarios” 16 para as missões.<br />

Em sua crônica descreve as primeiras viagens para a área, em especial a de<br />

Gonzalo Pizarro (1539) em busca de terras ainda não conquistadas. A fundação da<br />

Vila de São Francisco de Borja é também narrada por Rodríguez, bem como a chegada<br />

dos primeiros missionários que fundaram o Colégio de Cuenca no ano de 1637:<br />

A fundação da Casa de Cuenca, foi o Padre Cristobal de Acuña, naquele<br />

ano de mil seiscentos e trinta e sete, em que se fundou, ainda<br />

pobremente, e teve como um dos primeitos companheiros o Padre<br />

Francisco de Figueroa, posto como a porta das Missões de Gentis,<br />

que desejava, e empenhado em aperfeiçoar-se na língua geral dos índios<br />

do Perú, nela predicava fervorosaemnte na cidade de Cuenca. 17<br />

Como podemos perceber este livro complementa diversas informações contidas<br />

no informe de Figueroa. Além do mais, ele exalta a atividade não somente de Figueroa,<br />

mas de todos os jesuítas que predicam na região das Missões de Maynas. Termos como<br />

“fervorosamente”, “com amor”, “carinho”, “boas obras”, não são raros de encontrar<br />

nas descrições que faz sobre o trabalho de catequese dos padres com os indígenas.<br />

A potencialidade para a obra catequética que a região às margens do Marañón<br />

possui é um dos enfoques de sua obra. Fernando Torres Londoño (2006), que também<br />

estuda a crônica do jesuíta Manuel Rodríguez afirma que:<br />

Rodríguez redige a crônica sob a idéia de que o Marañón tinha sido<br />

reservado por Deus como campo de ação para a Companhia de Jesus.<br />

Aparece no texto como um espaço distante, desconhecido, de montanhas<br />

impenetráveis e rios perigosos, mas com enorme multidão de<br />

gentio que precisava ser salva, sendo a Companhia de Jesus o melhor<br />

instrumento de que dispunham a Igreja e o Rei para chegar àqueles<br />

confins e neles implantar reduções. 18<br />

16 Neste trabalho estamos nos valendo da edição facsimilar de El Marañon y Amazonas, acessível no site da Biblioteca<br />

Digital de Obras raras e Especiais da USP. http://www.obrasraras.usp.br/obras/001543/.<br />

17 RODRíGUEZ,, 1684, p. 91. Tradução nossa, no original: “A la fundacion de la Cafa de Cuenca, fue el Padre<br />

Christóbal de Acuña, aquel año de feifeienntos , treinta, y fiete, em que se fundo, aunque pobremente, y tubo por<br />

Compañero de los primeros al Padre Francisco de Figueroa, peufto como á la puerta para las Miffiones de Gentiles,<br />

que defeaba, y empleado em perfecionarse em la lengua general de los índios del Peru, em ella predicava fervorofamente<br />

em la Ciudad de Cuenca”<br />

18 LONDOÑO, 2006, p. 19


As notas deste autor vêm reforçar o que eu afirmava anteriormente quanto<br />

ao universo de possibilidades que a região da várzea amazônica representava. Além<br />

do mais, está claro que o missionário percebe a região como um local à espera dos<br />

missionários e suas grandiosas ações.<br />

Sabemos que Rodriguez colheu informações na América, quando aqui atuou.<br />

Continuou o trabalho de busca de informações na Espanha e em Roma, o que finalmente<br />

lhe deu condições de escrever o livro sobre as missões do Marañón. Esta<br />

obra recebeu o título de “El Marañón y Amazonas, Historia de los descubrimientos, entradas<br />

y reducción de naciones, trabajos malogrados de algunos conquistadores y dichosos de otros, así temporales,<br />

como espirituales, en las dilatas montañas y mayores ríos de América, escrita por el padre<br />

Manuel Rodríguez, de la Compañía de Jesús, procurador general de las provincias de Indias en la<br />

corte de Madrid”, que foi publicada pela primeira vez em Madrid em 1684. Em 1990,<br />

novamente em Madrid, pela Editora Alianza o texto foi editado e novamente publicado,<br />

apresentando um prólogo e notas de Angeles Durán, um dos responsáveis<br />

por esta edição.<br />

5. AS MISSõES DE MAYNAS<br />

A região da Missão de Maynas corresponde à área que se estende desde o piemonte<br />

andino até a confluência do rio Negro com o Marañón, hoje, área que pertence<br />

ao Equador, Peru, Colômbia e Brasil (LONDOÑO, 2006). Ela estava ligada à<br />

Província Jesuítica de Quito.<br />

Ao contrário do que se poderia presumir após ler sobre as rebeliões de 1635 e<br />

fundação da Vila de San Francisco de Borja, no Alto Amazonas, o trabalho catequético<br />

na região é anterior a estes fatos. Em três momentos anteriores já haviam sido<br />

enviados religiosos na tentativa de evangelizar as populações amazônicas:<br />

Em 1606, o Padre Rafael Ferrer já tinha visitado o território dos Omagua;<br />

em 1621, os Padres Simon de Rojas, Humberto Coronado e o<br />

irmão coadjutor Petrus Limón haviam permanecido junto ao grupo<br />

e, em 1630, uma nova tentativa havia sido empreendida pelo Padre<br />

Francisco Rugi. Confirme os relatos, estas três tentativas de evangelização<br />

haviam sido efêmeras por enfrentarem as dificuldades comuns<br />

às outras missões, mas, principalmente, por irem contra o interesse da<br />

sociedade colonial em obter indígenas através da encomienda. 19<br />

19 CYPRIANO, 2005, p. 128<br />

399


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Além destas tentativas, em 1633, padres franciscanos também empreenderam<br />

alguns trabalhos na região. A situação desde estas primeiras missões, até o quadro<br />

instaurado com a rebelião de 1635 mudara muito. Agora, os soldados e encomenderos<br />

que estavam instalados na região, desejavam a presença de missionários e, a partir<br />

disso, solicitam junto à Companhia, o envio de padres.<br />

Gaspar de Cugia e Lucas de la Cueva chegam a São Francisco de Borja em<br />

1638. Consta na relação de Francisco Figueroa (escrita, como vimos, em 1661)<br />

que, durante o caminho percorrido até a vila, estes padres já vieram trabalhando<br />

na conversão e batismo de populações indígenas. Contudo, os trabalhos em São<br />

Francisco de Borja foram dedicados, primeiramente, aos próprios espanhóis que lá<br />

se encontravam:<br />

Llegaron los Padres Gaspar de Cujia y Lucas de la Cueva, com el<br />

governador D. Pedro Baca de la Cadena (que los acompañó, ayudó y<br />

fomento en todo el camino y SUS ministérios), á esta ciudad de San<br />

Francisco de Borja á los seis de Febrero del año 1638, quatro meses,<br />

como he dicho, después que salieron del Collegio de Quito (...) Por<br />

ser ya cerca de Quaresma trataron de obrar lo que á la saçon instava,<br />

que eran sermones, exemplos, confessiones y que cumplissen com la<br />

Iglesia, que algunos años no lo avian hecho por falta de sacerdote. 20<br />

Empreenderam seu trabalho, a partir deste dia em vinte e quatro encomiendas.<br />

Além disso, os religiosos participavam de expedições para atender as necessidades<br />

espirituais da tropa e evangelizar os indígenas encontrados.<br />

Conforme vimos anteriormente, para realizar a catequese a comunicação é<br />

essencial. Desta forma, quando um grupo aceitava a presença do padre, muitas vezes<br />

eles solicitavam que se lhes confiassem alguma criança para a qual ensinariam o<br />

espanhol. O pequeno aprendiz., quando estivesse apto, servia de intérprete/tradutor<br />

para que a catequese pudesse ocorrer. Sempre que possível, os próprios padres procuravam<br />

aprender a língua específica de cada tribo. Porém, a presença e participação<br />

dos intérpretes são recorrentes. Em alguns relatos, percebemos que além de intérpretes,<br />

essas estes índios serviam de “embaixadores’, de mediadores para o contato<br />

dos jesuítas com os grupos:<br />

Si no los ay sacan consigo algunos muchachos, que despues de algun<br />

tiempo, hechos ladinos en algun idioma de los nuestros, bolbiendo á<br />

sus tierras sirben de intérpretes para reducir á sus parientes. (FIGUE-<br />

ROA [1661], 1986, p. 248)<br />

20 FIGUEROA, 1986, p. 157<br />

400


A ação missionária levada a cabo através de tradutores e com apoio militar de<br />

soldados, rapidamente permitiria fundar alguns pueblos. Estes pueblos, também chamados<br />

de reduções permitiam um trabalho mais direcionado e intenso do missionário.<br />

Conforme Londoño (2006), desde a primeira redução fundada por Cugia e de la<br />

Cueva em 1638²¹:<br />

(...) outras 152 reduções ou anexos seriam fundados às margens dos<br />

rios Marañón, Amazonas e afluentes, que a partir dos anos quarenta<br />

do século XVII passaram a ser conhecidos como missões de Maynas.<br />

(...) Nessa ampla área os missionários entrariam em contato com um<br />

universo indígena pluriétnico e plurilingüístico. Entre outros, habitavam<br />

a região os grupos Mayna, Andoa, Pinche, Urarina, Jebero, Cocama,<br />

Mayoruna e Omágua, que não formavam uma unidade política,<br />

mas mantinham relações fluidas entre si. ²²<br />

Como o universo lingüístico era variado, intérpretes eram essenciais. Isso<br />

porque seria humanamente impossível assimilar o grande número de línguas necessárias<br />

a catequese dos grupos desta região. Além disso, a diversidade cultural era<br />

um agravante, pois mesmo possuindo traços em comum, as populações amazônicas<br />

possuíam especificidades. Neste ponto, os intérpretes também contribuíam para a<br />

mediação entre o padre e os grupos.<br />

Além da diversidade cultural e lingüística, havia outros fatores que tornavam<br />

a catequese um trabalho delicado e desafiador. A longa distância entre um e outro<br />

grupo e é um exemplo disso. Eles eram dispersos e de difícil acesso. Nas crônicas<br />

estudadas, os padres sempre comentam a necessidade de mais missionários para a<br />

região pelo fato de eles demorarem muito tempo para se locomover de uma redução<br />

à outra, e de necessitarem quem atuasse junto às tribos ainda não convertidas.<br />

A falata de mais missionários, queixam-se eles, fazia com que boa parte do trabalho<br />

fosse perdida, em função do espaço de tempo que os indígenas ficavam sem praticar<br />

os ensinamentos recebidos. Além do mais, a presença do missionário é tida como<br />

de grande importância pois, mesmo doutrinados, os indígenas não se mantêm nas<br />

reduções se o padre se ausentar por muito tempo.<br />

Van saliendo poco á poco, vnos aora, otros despues, y tambien se van<br />

y se vienen, porque no ay modo de apretarlos más para retenerlos en<br />

su poblacion. Lo principal es no tener sacerdote proprio en su pueblo<br />

que los dotrine y mantenga ²³<br />

²¹ Figueroa em seu informe registra existia um contingente populacional tão grande que novas províncias não<br />

paravam de surgir: “De modo que son por todas vnas cuarenta províncias ó naciones las que caen y se contienen<br />

en este contorno y esphera de mission, y puede ser que otras más no ayan llegado á nuestra noticia” (FIGUROA<br />

[1661], 1986, p. 241).<br />

²² LONDOÑO, 2006, p. 02.<br />

²³ FIGUEROA [1661], 1986, p. 219.<br />

401


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Ainda outras dificuldades, além do difícil acesso, faziam parte do cotidiano<br />

dos missionários que estiveram nas missões amazônicas, como o perigo que representavam<br />

os indígenas que não se convertiam e ameaçavam a segurança dos padres.<br />

Já vimos que isto causou, inclusive, a morte do autor do Informe. Comentando<br />

sobre as viagens de Padre Raymundo de Santa Cruz às reduções de Chamicuro, Figueroa<br />

(1986) explica que viajava:<br />

La tierra adentro, tres y quatro dias de camino de á pie, con las incomodidades<br />

y mojaduras destas montañas, con muchas llagas que se<br />

le abrian, y apreturas del pecho hasmático, que llegava casi á caerse<br />

muerto, segun lo que ahogando le apretava. Tomava este travajo y aun<br />

otros riesgos de la vida por que varias vezes le dijeron que le querian<br />

matar y comérselo, con fin de atraherlos á que acaben de salir á poblarse<br />

en partes que se puedan dotrinar. 24<br />

Em outro momento, também é narrada uma situação em que o padre passa<br />

por momentos de medo e insegurança:<br />

Hicímolos assí, y aiendo atravesado, desembarcaron todos, porque<br />

aunque estava inundado el suelo, no tanto, en aquella parte que no<br />

pudiessen hacer pié; fuéronse todos, diciéndome quedasse yo en mi<br />

canoa, en tanto que bolviessen por mí, aviendo visto la disposicion<br />

del camino y estado de la troge. Hícelo assí; pero ellos no bolvieron,<br />

ó porque lo inundadodel camino les emperezó, ó porque, entretenidos<br />

en apagar su hambre y necessidad tan antigua con unas maçocas<br />

de maiz que hallaron, se olvidaron, ó porque el cansacio y sueñoles<br />

rindió. Aguardélos un rato u otro rato, y tanto, que entré en no pequeño<br />

cuydado. Díles voze, no se oian; repetílas muchas veces, pero<br />

sin efecto. En verme solo en medio del mayor riesgode cocamas, me<br />

congojava con demasia: enjambres de mosquitos çancudos plaga la<br />

másinsufrible deste rio, en que hervia me sajaban; la inquietud de la<br />

canoa no me concedia el menor reposo, con que sin coajar cueño y<br />

gritando, passé la noche. 25<br />

Em função deste quadro, era comum que os jesuítas recorressem à “justiça<br />

de Borja”, solicitando que fossem acompanhados por soldados nas expedições, a<br />

fim de obterem um pouco mais de segurança nas tentativas de conversão à fé em<br />

Cristo. Além de trazer mais segurança para os padres, em alguns casos os soldados<br />

eram utilizados para impor a catequese ou para resgatar os indígenas que fugiam dos<br />

pueblo,. Em outras palavras, serviam para capturar os que não estivessem dispostos<br />

a aceitar os ensinamentos dos padres, ou para assegurar a vida do missionário, que<br />

24 Idem, p. 222.<br />

25 Idem, p. 177.<br />

402


eram poucos para a demanda da região, através do respeito que as armas de fogo<br />

impunham aos nativos. “O Padre Gaspar de Cujia, entrava para buscá-los, e recolhêlos,<br />

insistindo sempre, ainda que em vão, para que se povoassem, para insistir em<br />

instruí-los juntos26 ”.<br />

O objetivo, na região de Maynas, era criar uma rede de missões que permitisse<br />

superar as dificuldades de comunicação e controle e que permitisse um melhor<br />

acompanhamento do desenvolvimento espiritual e político-econômico. Lembremos<br />

que a fundação das missões implicava a adoção do modo de vida europeu, inclusive<br />

no que se refere à organização política (pois agora eram vassalos del Rey, além de<br />

servos de Cristo) e no que tange à economia (que passa a ter as características e<br />

utilizar muitos produtos, europeus). Desta forma, o empreendimento missionário<br />

não implicava somente em levar a palavra de Cristo aos nativos americanos, mas em<br />

transformar o modo de vida destes de acordo com o que se acreditava ser a maneira<br />

civilizada de viver; deveriam deixar de ser bárbaros e toscos para se tornarem verdadeiros<br />

filhos de Deus e vassalos do rei da Espanha.<br />

De fato, encontramos com freqüência nas descrições, padres que percebem<br />

os indígenas como bárbaros rústicos, que precisavam ser educados e civilizados urgentemente.<br />

E, mais do que isso, não bastava ensinar-lhes como viver, era preciso<br />

acompanhar de perto suas atitudes porque, segundo entendiam os missionários, eles<br />

logo se desvirtuavam do caminho que lhe fora mostrado. A visão dos missionários<br />

sobre eles, diversas vezes é a do professor sobre uma criança que pouco ou nada<br />

compreende sobre o que lhe falam, o que os leva a necessitar de demasiada paciência<br />

e tempo. Em muitos momentos, nas crônicas, encontramos descrições que minimizam<br />

a capacidade intelectual dos indígenas:<br />

bautizarlos con mucho travajo, por la incomodidad de los caminos y<br />

puestos donde están, y mucho más por la barbaridad é ignorancia de<br />

los indios, su gran rudeza y tosquedad, que se halla principalmente em<br />

los viejos; se cansa y quiebra el Padre la cabeça, como sí pusiera todo<br />

su conato em querer darse á entender y cathequizar vn tronco 27<br />

Podemos perceber o grau de dificuldade que os padres consideravam conter o<br />

trabalho catequético: a dificuldade de fazer os índios compreender os ensinamentos;<br />

25 RODRíGUEZ, 1684, p. 76. Tradução nossa; no original: “El Padre Gafpar de Cuxia, entraba à bufcarlos, y recogerlos,<br />

inftando fiempre, aunque fue en vano, em que fe poblaffen, para infiftir em inftruilos juntos”<br />

26 FIGUEROA [1661], 1987, p.252.<br />

403


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

as distâncias entre os povoados; as dificuldades impostas pela geografia, pelo clima<br />

e pela natureza do lugar; etc 28 .<br />

Uma das principais características das Missões do Alto Amazonas, sem sombra<br />

de dúvida, foi a sua instabilidade. Instabilidade esta, devida não somente aos<br />

obstáculos que vimos descrevendo, mas também às constantes epidemias e rebeliões<br />

que não se extinguiram com a implantação das missões, conforme foi desejado pelos<br />

espanhóis. Muito pelo contrário, quanto maior o contato entre índios e europeus,<br />

maior era a quantidade de nativos que sucumbiam às doenças, às armas de fogo e à<br />

escravidão.<br />

404<br />

CONSIDERAçõES FINAIS<br />

O valor das informações contidas nas crônicas para o trabalho historiográfico<br />

é imenso. Como aprofundado anteriormente, elas variam entre descrições sobre o<br />

ambiente, sobre as populações, sobre os costumes, sobre as relações entre as pessoas<br />

que estavam na região, etc. No caso do Alto Amazonas é possível, através da utilização<br />

destas fontes, por exemplo, dar suporte às teorias arqueológicas que afirmam<br />

que a região ribeirinha, foi cenário de grandes populações humanas, portadoras de<br />

culturas bastante complexas. Sob outra perspectiva, também é possível fazer uma<br />

análise mais etnológica, no sentido de compreender as mudanças e permanências<br />

nas identidades e nas sociedades locais. Devemos ainda ressaltar que essas são fontes<br />

essenciais para podermos também compreender o contexto em que se desenvolveram<br />

as missões jesuíticas na região.<br />

Utilizar fontes primárias nas pesquisas históricas abre um leque de possibilidades<br />

muito grande. Afirmo isso, no sentido de que as representações contidas<br />

nos permitem não somente perceber o que o autor diz, mas porque o está fazendo.<br />

Uma análise crítica cuidadosa e atenta pode trazer à tona uma série de questões que<br />

passaram despercebidas por muito tempo.<br />

Se a história é um relato acerca do passado, os fatos e as mensagens subjetivas<br />

contidas nestes documentos podem enriquecer as reflexões do presente. Por isso, a<br />

ação jesuítica pode nos contar muito sobre um passado ainda pouco estudado e que<br />

precisa ser repensado pela historiografia.<br />

28 É importante pensar que em muitos casos, os padres descreviam as dificuldades encontradas de maneira um tanto<br />

exagerada, como se o trabalho catequético estivesse sempre em processo de desenvolvimento, mas nunca concluído.<br />

Lembremos, portanto, que a Igreja e o corpo social se fundem de modo que a fé determina, também, a categoria<br />

social do indivíduo. Em outras palavras, no momento que o índio fosse reconhecido como cristão ele abandonaria<br />

a categoria que justificava sua inferioridade e, com isso, poria um fim na situação colonial.


FONTES<br />

FIGUEROA, Francisco. Informe de las misiones del Marañon, Gran Pará e río de<br />

las Amazonas [1661]. In: Informes de Jesuitas en el Amazonas, Monumenta Amazónica.<br />

Iquitos: CETA, 1986.<br />

RODRíGUEZ, Manuel. El Marañón y Amazonas, Historia de los descubrimientos, entradas<br />

y reducción de naciones, trabajos malogrados de algunos conquistadores y dichosos de otros, así temporales,<br />

como espirituales, en las dilatas montañas y mayores ríos de América, escrita por el padre<br />

Manuel Rodríguez, de la Compañía de Jesús, procurador general de las provincias de Indias en la<br />

corte de Madrid. Madrid: Impr. de Antonio González de Reyes, 1684.<br />

REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

BACZKO, Bronislaw. Imaginação Social. In: Enciclopedia Einaudi. Antropos-Homem.<br />

Vol. 5.Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985.<br />

BAPTISTA, Jean. Os guarani nos textos dos missionários coloniais: possíveis metodologias<br />

da etnohistória. Revista de História da Unicruz, n. 4, v. 1, 2003.<br />

CYPRIANO, Doris Cristina Castilhos de Araújo. Margens do rio Madeira e Tapajós,<br />

situação de Contato e Dinâmica Social – Séculos XVII e XVIII. São Leopoldo: UNISI-<br />

NOS, 2005.<br />

ESTENSSORO, Juan Carlos. O Símio de Deus. In: NOVAES, Adauto (org.). A outra<br />

Margem do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.<br />

FRANZEN, Beatriz Vasconcelos (org.); FLECK, Eliane D. (org.); MARTINS, Maria<br />

Cristina Bohn. Carta Ânua da Província Jesuítica do Paraguai 1659 – 1662. São Leopoldo,<br />

RS: Oikos; Unisinos; Cuiabá, MT: EdUFMT, 2008.<br />

LESTRINGANT, Frank. O Brasil de Montaigne. São Paulo: Revista de Antropologia<br />

da USP, v. 49, nº2, 2006.<br />

LONDOÑO, Fernando Torres. Trabalho indígena na dinâmica de controle das reduções<br />

de Maynas no Marañón do século XVII. História, v. 25, n. 1, p. 15-43, 2006.<br />

OLIVEIRA, Paulo Rogério Melo de. O encontro entre os guarani e os jesuítas na Província<br />

405


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

jesuítica do Paraguai e o glorioso martírio do venerável padre Roque Gonzáles nas tierras de Ñezu.<br />

Porto Alegre: UFRGS, 2009<br />

POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade. Seguido<br />

de grupos étnicos e suas Fronteiras de Frederik Barth. São Paulo: Editora da<br />

UNESP, 1998.<br />

RODRIGUEIRO, Jane. Tensão e Redução na várzea: as relações de contato entre os cocama e<br />

jesuítas na Amazônia do século XVII (1664 – 1680). São Paulo: PUC, 2007.<br />

406


A inquisição no extreMo sul dA AMériCA PortuguesA:<br />

o Perfil dos fAMiliAres do sAnto ofíCio eM<br />

ColôniA de sACrAMento (séCulo XVIII)<br />

Lucas Maximiliano Monteiro*<br />

Resumo: O Tribunal do Santo Ofício Português tinha por objetivo vigiar as práticas religiosas<br />

não apenas em seu território na Península Ibérica, mas também em seus domínios do além-mar, como<br />

era o caso da América Portuguesa. Uma das formas encontradas para a Inquisição se fazer presente<br />

foi a atuação de funcionários inquisitoriais. Este trabalho visa traçar um perfil dos Familiares do Santo<br />

Ofício em Colônia de Sacramento ao longo do século XVIII. Esta Praça Mercantil contou com estes<br />

agentes inquisitoriais que serviam como os olhos do Tribunal de Lisboa na região. Baseando-se em um<br />

estudo prosopográfico, será realizado um levantamento para identificar a profissão, naturalidade, cabedais<br />

e estado civil com o objetivo de definir o padrão de recrutamento destes funcionários a serviço<br />

da Inquisição.<br />

Palavras-chave: Inquisição – Colônia de Sacramento – Familiares do Santo Ofício<br />

A<br />

Inquisição Portuguesa tinha no Tribunal do Santo Ofício de Lisboa,<br />

criado em 1540, a responsabilidade pelo controle da fé nos territórios<br />

portugueses ultramarinos. Este tribunal exerceu seu poder nas<br />

colônias, primeiramente, através da atuação dos bispos locais. Posteriormente atuou<br />

através das Visitações oficiais. Nos séculos XVI e XVII a América Portuguesa teve a<br />

oportunidade de duas visitas oficiais do Santo Ofício na Bahia e Pernambuco. Nestas<br />

oportunidades, os visitadores recolheram diversas denúncias e confissões dos<br />

moradores das respectivas capitanias do nordeste brasileiro.¹ Já na segunda metade<br />

do século XVIII, uma visitação realizada no Grão-Pará fechou o ciclo deste tipo de<br />

* Graduado em História pela UFRGS. Aluno de Mestrado do Programa de Pós-graduação em História da UFRGS.<br />

Bolsista CAPES.<br />

¹ A este respeito, ver, por exemplo, meu estudo sobre as narrativas dos cristãos-novos no Livro das Confissões da<br />

Bahia. MONTEIRO, Lucas Maximiliano. De frente com o inquisidor: os cristãos-novos e suas narrativas no Livro<br />

das Confissões (Bahia, 1591-1592). In: Mostra de Pesquisa do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do<br />

Sul. Anais: Produzindo história a partir de fontes primárias. Porto Alegre: CORAG, 2009, p. 19- 37.<br />

407


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

atuação do Tribunal de Lisboa no território da América Portuguesa. Lina Gorenstein<br />

ainda demonstra que houve uma quarta visitação, ainda no século XVII, na capitania<br />

do Rio de Janeiro em 1627, e cuja documentação fora perdida no naufrágio do navio<br />

que transportava Isabel Mendes, cristã-nova e processada pela Inquisição.²<br />

Contudo, esta forma de controle exercido pelo tribunal representava uma exceção<br />

dentro da atividade repressiva inquisitorial. De outras maneiras a Inquisição se<br />

fazia presente na realidade e no dia a dia da população colonial. Uma destas formas<br />

era a atuação de um corpo de funcionários inquisitoriais residentes nas capitanias,<br />

convivendo com a população e reportando os desvios de fé encontrados para Lisboa.<br />

Por meio destes agentes, era possível uma maior alcance do braço inquisitorial<br />

sobre as heresias praticadas nos territórios do além-mar. O objetivo do presente<br />

artigo é tratar de um destes funcionários: os Familiares do Santo Ofício. Estes eram<br />

funcionários leigos que habitavam as capitanias e tinham um papel fundamental na<br />

engrenagem de denúncias e prisões por parte do Tribunal de Lisboa. Ao mesmo<br />

tempo, estes agentes também se valiam de seu “título de aliados da Inquisição” como<br />

uma forma de prestígio social. O foco deste trabalho será no estudo prosopográfico<br />

desde grupo social em Colônia de Sacramento, levantando dados para que se possa<br />

traçar o seu perfil social. Com isso, será possível identificar quem eram estes agentes<br />

inquisitoriais e que posição ocupavam na sociedade de Colônia de Sacramento.<br />

408<br />

OS FAMILIARES DO SANTO OFíCIO:<br />

REQUISITOS E DEVERES<br />

Segundo Aldair Carlos Rodrigues, o crescimento do número de familiares,<br />

verificado a partir do século XVII, atesta que foi por meio da atuação destes agentes<br />

que o Tribunal de Lisboa modificou a sua forma de atuação, passando das visitações<br />

para o trabalho dos agentes inquisitoriais.³<br />

Os Familiares do Santo Ofício eram membros da sociedade local que faziam<br />

parte do corpo de funcionários da Inquisição. São agentes “leigos” pois não necessitava<br />

serem eclesiásticos para se candidatarem ao posto, bastava que encaminhassem<br />

uma petição solicitando a habilitação ao Santo Ofício. Esta petição seria endereçada<br />

ao Conselho Geral e deveria conter informações como naturalidade, local de resi-<br />

² A autora encontrou referências desta Visitação no Rio de Janeiro principalmente nos Cadernos do Promotor,<br />

juntamente com outros casos constantes na mesma documentação que atestam a existência deste trabalho do Santo<br />

Ofício em 1627. GORENSTEIN, Lina. A Terceira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil (século XVII). IN:<br />

VAINFAS, Ronaldo, FEITLER, Bruno & LIMA, Lana Lage da Gama. A inquisição em Xeque: temas, controvérsias,<br />

estudos de caso. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2006, p. 25-31.<br />

³ RODRIGUES, Aldair Carlos, Sociedade e inquisição em Minas Colonial: os Familiares do Santo Ofício<br />

(1711-1808). (Dissertação) USP, São Paulo, 2007, p. 27.


dência, e ocupação. Da mesma forma, era necessário conter os nomes dos pais e as<br />

suas naturalidades, exigência estendida também aos avôs paternos e maternos. Estas<br />

informações seriam utilizadas pelo Santo Ofício para apurar e atestar a sua “pureza<br />

de sangue”. Se o candidato fosse casado, deveria constar o mesmo já mencionado<br />

referente a sua esposa, obrigatoriedade dada também em caso de o habilitando possuir<br />

filhos, legítimos ou não.<br />

Nesta petição, o candidato a familiar relatava o motivo pelo qual se candidatava<br />

ao cargo. Antônio de Azevedo Souza, familiar de Colônia do Sacramento<br />

habilitado em 1758, por exemplo, em sua petição disse que desejava servir ao Santo<br />

Ofício “por concorrerem os requisitos necessários”. 4 Após encaminhar o pedido, o<br />

habilitando realizava um depósito em dinheiro o qual cobriria os custos do processo.<br />

Para se candidatar a Familiar, era necessário estar dentro de uma série de requisitos<br />

exigidos pelo Tribunal do Santo Ofício. Estas prerrogativas ao cargo estão<br />

descritas nos Regimentos Inquisitoriais datados de 1640 e 1774. No primeiro regimento,<br />

do período em que o Bispo D. Francisco de Castro era o Inquisidor Geral<br />

de Portugal, constam os seguintes pré-requisitos aos candidatos a familiares: “serão<br />

pessoas de bom procedimento e de confiança e capacidade reconhecida”. Além<br />

disso, deveriam possuir “fazenda de que possam viver abastadamente” e, como os<br />

outros ministros e funcionários da Inquisição, serem<br />

[...] naturais do reino, cristãos-velhos, de limpo sangue, sem raça de mouro,<br />

judeu ou gente novamente convertida à nossa santa fé e sem fama em contrário, que<br />

não tenham incorrido em alguma infâmia pública de feito ou de direito, nem fossem<br />

presos ou penitenciados pela Inquisição, nem sejam descendentes de pessoas que tivessem<br />

algum dos defeitos sobreditos [...] saberão ler e escrever e, se forem casados,<br />

terão a mesma limpeza suas mulheres e filhos que por qualquer via tiverem. 5<br />

O mesmo regimento também estabelecia uma regulamentação na conduta<br />

destes agentes inquisitoriais. Os Familiares do Santo Ofício habilitados tinham de<br />

possuir e guardar o regimento que lhes cabia, manter segredo em todos os assuntos<br />

referentes às atividades inquisitoriais, manter bom comportamento e não abusar em<br />

proveito próprio do título de Familiar. Também não poderiam manter relações com<br />

pessoas que tivessem qualquer assunto em haver com o Santo Ofício e nem contrair<br />

dívidas que pudessem levantar qualquer suspeita de suas qualidades, principalmente<br />

4 ANTT, HSO. Mç. 129, proc. 2167.<br />

5 Os Regimentos Inquisitórias de 1640 e 1774 estão publicados em FRANCO, Eduardo & ASSUNçãO, Paulo de.<br />

As Metamorfoses de um Polvo: religião e política nos Regimentos da inquisição Portuguesa (Séc. XVi-<br />

XiX). Lisboa; Précio, 2004. p. 229-481<br />

409


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

se endividar com as pessoas da nação, ou seja, judeus ou cristãos-novos. Sempre<br />

que chamado, deveriam se apresentar ao Tribunal, assim como no dia de São Pedro<br />

Mártir – santo de invocação dos agentes da Inquisição – utilizando o seu hábito<br />

de familiar. Somente nestes dias e naqueles em que iriam realizar alguma prisão ou<br />

conduzir algum preso da Inquisição e nos Autos-de-fé – nos quais acompanhariam<br />

os penitenciados – é que poderiam fazer uso do seu hábito.<br />

O Regimento de Inquisitorial de 1774, período do Inquisidor Geral Cardeal<br />

da Cunha, foi redigido posteriormente às reformas empreendidas por Pombal nos<br />

assuntos referentes à Inquisição. O Ministro português, que esteve à frente do governo<br />

de D. José I entre 1750 e 1777, a partir de 1769 iniciou uma série de medidas:<br />

acabou com a função do censor de livros e criou a Real Mesa Censória, que teria as<br />

mesmas obrigações, mas que passava para o controle direto do Estado. Em 1769<br />

retirou o poder inquisitorial como tribunal independente e, além disso, ordenou<br />

que os bens confiscados pelo tribunal, que antes ficavam em poder da Inquisição,<br />

passassem a ser direcionados para o Tesouro Real e colocou seu irmão Paulo de<br />

Carvalho como inquisidor-geral. Por fim, acabou com a distinção entre cristão-novo<br />

e cristão velho. 6<br />

Em relação à última medida, o Marquês de Pombal pôs fim a uma distinção<br />

social existente desde o reinado de D. Manuel e seu decreto de conversão dos judeus<br />

em 1497. Assim sendo, no Regimento de 1774 não se encontram mais referências<br />

à pureza de sangue. No que tange aos agentes inquisitoriais, e aos Familiares do<br />

Santo Ofício, não é mais requisitado ser puro de sangue ou qualquer referência em<br />

relação aos cristãos-novos, como no caso da proibição de contrair dívidas com este<br />

grupo social. No restante, os mesmos requisitos já descritos no Regimento de 1640<br />

permanecem.<br />

Há ainda um regimento destinado especificamente aos Familiares. Embora<br />

não possua referências de quando foi publicado, é possível deduzir que seja anterior<br />

ao regimento do Cardeal Cunha. No Regimento dos Familiares há praticamente o<br />

mesmo já exigido nos regimentos anteriores. 7<br />

Todos estes requisitos seriam averiguados no momento do processo de habilitação.<br />

Seriam feitas diligências nas cidades em que os pais do habilitando residiam<br />

a fim de atestar a veracidade em relação à pureza de sangue. Havia também as di-<br />

6 Para Kenneth Maxwell, o objetivo de Pombal era a secularização da Inquisição, tornando-a, assim, diretamente<br />

ligada ao Estado Português. MAXWELL, Kenneth. Marquês do Pombal: o paradoxo do iluminismo. Rio de<br />

Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 99 e 100.<br />

7 O Regimento dos Familiares foi publicado por Luiz Mott em Cadernos de Estudos Baianos, Salvador, n. 140,<br />

1990.<br />

410


ligências voltadas a averiguar as condições econômicas do mesmo, ou seja, se era<br />

pessoa que vivia abastadamente, e se sabia ler e escrever. Após as diligências, e sendo<br />

comprovados os requisitos, o comissário emitia seu parecer.<br />

Os Familiares do Santo Ofício tinham por obrigação prender, realizar denúncias<br />

ou encaminhar aquelas recebidas aos comissários, e acompanhar os presos<br />

e penitenciados até o Santo Ofício. Não poderiam realizar qualquer ação sem que<br />

tivessem recebido ordem direta do Tribunal. Quanto a isso, o regimento é bem claro:<br />

Se nos lugares em que viverem acontecer algum caso que pareça que pertence<br />

à nossa santa fé ou se os penitenciados não cumprirem suas penitências com toda a<br />

brevidade e segredo, darão pessoalmente conta na Mesa do Santo Ofício, sendo na<br />

terra em que assiste o Tribunal, e, fora dela, avisarão ao comissário. E quando o não<br />

haja, avisarão por carta aos inquisidores e nunca por si sós obrarão noutra forma em<br />

matéria que tocar à Inquisição, pelos inconvenientes que podem suceder, se fizerem<br />

o contrário. 8<br />

Ainda segundo o seu regimento, quando estivessem a mando da Inquisição,<br />

receberiam quinhentos réis por dia e poderiam ser acompanhados apenas por um<br />

homem, o qual seria pago “conforme o uso da terra”.<br />

Para Aldair Rodrigues, os Familiares do Santo Ofício eram o meio de comunicação<br />

entre a sociedade local e o Tribunal Lisboeta, principalmente nas ocasiões<br />

de denúncias de heresias, que poderiam ser recolhidas por estes agentes inquisitoriais,<br />

as quais seriam remetidas aos comissários. Em algumas localidades que estavam<br />

muito longe da sede do bispado ou do acesso aos comissários, eram os Familiares os<br />

únicos representantes da Inquisição. Para o autor, estes agentes estavam tão enraizados<br />

e participavam tanto da vida social, que mesmo nos lugares mais distantes da<br />

sede da Comarca, todos os moradores sabiam da sua existência e, principalmente, a<br />

quem procurar. 9<br />

A presença destes funcionários da Inquisição fortalecia a atuação da instituição.<br />

Segundo Daniela Calainho, esta era uma estratégia para o Santo Ofício exercer<br />

o controle da população:<br />

Espionando, prendendo e delatando, esses agentes eram tanto na Colônia<br />

como no Reino um dos mais poderosos tentáculos da Inquisição. [...] Espionavam<br />

8 Regimento de 1640. In: FRANCO, Eduaro & ASSUNçÂO, Paulo de. As Metamorfoses de um Polvo. Op. cit.<br />

Embora com sua atuação delimitada pelos regimentos, não raro foi o caso de familiares que transgrediram as suas<br />

ordens. Daniela Buono Calainho mostra diversos agentes que agiam por si só e abusavam do poder concedido por<br />

meio da carta de Familiar. Agentes da fé: Familiares da inquisição Portuguesa no Brasil Colonial. Bauru, SP:<br />

EDUSC, 2006, p. 147-157.<br />

9 RODRIGES, Aldair Carlos. Op. cit., p. 69 e 72<br />

411


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

prisioneiros nos cárceres; por vezes investigavam a vida de suspeitos; faziam diligências;<br />

prendiam ao menor sinal do Inquisidor. 10<br />

Logo, os Familiares do Santo Ofício eram os olhos da Inquisição. Nas localidades<br />

em que viviam, auxiliavam a instituição a denunciar, prender e manter a presença<br />

inquisitorial mesmo nas menores localidades tanto do Reino como também<br />

na Colônia.<br />

O NÚMERO DE FAMILIARES NA<br />

AMÉRICA PORTUGUESA<br />

O número de Familiares do Santo Ofício foi contabilizado por diversos historiadores<br />

que se ocuparam do tema em suas pesquisas. Seus levantamentos auxiliam<br />

na visualização da distribuição destes agentes no território do Império Português.<br />

José Veiga Torres, em pesquisa na qual consultou cerca de vinte mil processos de<br />

habilitação, constatou que o número total de familiaturas expedidas entre 1580 até<br />

o final da atuação do Tribunal do Santo Ofício de Lisboa em 1820 foi de 19.901. O<br />

período que contou com um maior número de familiares habilitados foi entre o final<br />

do século XVII e até meados da segunda metade do XVIII, com 14168 no período<br />

entre 1671 e 1770, contra 2987 familiares entre 1580 e 1670. Da mesma forma, percebe-se<br />

a influência das Reformas Pombalinas em relação à Inquisição: para o período<br />

posterior a 1770, ou seja, pós-reformas, o número de habilitações caiu para 2746.<br />

FONTE: TORRES, José Veiga. Da repressão religiosa para a promoção social: a Inquisição como<br />

instância legitimadora da promoção social da burguesia mercantil. In: Revista Crítica de Ciências<br />

Sociais. Coimbra, n. 40, outubro de 1994, p. 135.<br />

Em relação à distribuição dos familiares entre Lisboa e Brasil, Veiga Torres<br />

encontrou 3114 familiares habilitados na América Portuguesa. Já o número de agen-<br />

10 CALAINHO, Daniela Buono. Op. cit., p. 129<br />

412


tes em Lisboa era de 5711. Na tabela abaixo se percebe que Lisboa contou com um<br />

número de familiares maior que os seus domínios americanos até o final de 1770,<br />

quando a América Portuguesa passou a contar com 872 familiares contra 363 da capital<br />

lusitana. Ao mesmo tempo, é possível verificar que a procura à carta de familiar<br />

se acentuou nos domínios americanos a partir de 1670, acompanhando o crescimento<br />

significativo de habilitações lisboetas.<br />

Tabela 1: N° de Familiares Habilitados no Brasil e Lisboa (1570-1820)<br />

FONTE: TORRES, José Veiga. Da repressão religiosa para a promoção social: a Inquisição como<br />

instância legitimadora da promoção social da burguesia mercantil. In: Revista Crítica de Ciências<br />

Sociais. Coimbra, n. 40, outubro de 1994, p. 134.<br />

Daniela Calainho encontrou para todo o período de presença da atividade inquisitorial<br />

no Brasil 1708 familiares, sendo que desses, 1546 apenas no século XVIII.<br />

No levantamento realizado por Fábio Kuhn, o número de familiares encontrados<br />

para o período de 1737 e 1789 foi de cerca de 1700. Estes números, em comparação<br />

ao trabalho de Veiga Torres estão próximos uma vez que, para o período de 1721 a<br />

1770, o autor português encontrou 1687 familiares habilitados em solo americano.<br />

O trabalho mais recente acerca do número de familiares é o de Aldair Rodrigues.<br />

Nele, o autor fez um levantamento de 1907 habilitações entre 1713 e 1785. De qualquer<br />

forma, estes dados demonstram que a procura pela carta de familiar foi intensa,<br />

principalmente no século XVIII.<br />

Fazendo uma comparação do número de familiaturas entre as capitanias brasileiras<br />

se percebe que aquela com o maior índice de Familiares do Santo Ofício foi<br />

o Rio de Janeiro. Em seguida vinha a capitania Mineira e, logo atrás, Bahia e Pernambuco<br />

respectivamente. Segundo estes dados – apresentados na tabela n° 2 – é<br />

possível perceber a importância e a distribuição populacional de cada capitania. A<br />

capitania carioca contava com a produção de açúcar desde meados do século XVII.<br />

Além disso, há a presença massiva da elite mercantil – principal grupo a se habilitar<br />

413


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

– a qual estava em processo de ascensão social, ocupando postos nas ordenanças e<br />

espaços na Câmara local.¹¹ Já o número de habilitações em Minas acompanha o processo<br />

de urbanização conduzido pelo surto mineiro. Com a descoberta de ouro no<br />

território houve um fluxo migratório intenso e rápido, a ponto de, em 1711, cálculos<br />

jesuítas darem conta de 30 mil habitantes.¹²<br />

No entanto, qual foi o número de Familiares do Santo Ofício em Colônia do<br />

Sacramento? Esta pesquisa se apóia – sobretudo – nos dados levantados por Fábio<br />

Kuhn que, para o período de 1737 e 1785, encontrou 18 familiares residentes em<br />

Colônia de Sacramento. Segundo Aldair Rodrigues, a Praça Mercantil contou com<br />

19 familiares, pois contabilizou um Familiar habilitado em 1736.¹³<br />

Tabela n° 2: Habilitações do Santo Ofício por Capitanias no Século XViii<br />

FONTE: RODRIGUES, Aldair Carlos, Sociedade e Inquisição em Minas Colonial: os Familiares do<br />

Santo Ofício (1711-1808). (Dissertação) USP, São Paulo, 2007, p. 136-137.¹ 4<br />

Na tabela a seguir estão os Familiares do Santo Ofício residentes em Colônia<br />

de Sacramento.<br />

¹¹ CALAINHO, Daniela Buono. Op. cit., p. 82. KUHN. Fábio. Op. cit., p. 340.<br />

¹² RODRIGUES, Aldair Carlos. Op. cit., p. 126.<br />

¹³ A análise deste trabalho se concentrará nos 18 Familiares do Santo Ofício levantados por Fábio Kuhn Contudo,<br />

até o momento só foi possível acesso a 16 Processos de Habilitação.<br />

¹ 4 No trabalho de Aldair não são contabilizados os Familiares do Rio Grande de São Pedro.<br />

414


Tabela n° 3: Familiares do Santo Ofício em Colônia de Sacramento 15<br />

FONTE: ANTT, HBSO<br />

PERFIL DOS FAMILIARES EM<br />

COLÔNIA DE SACRAMENTO<br />

No momento em que solicitavam a habilitação como Familiar do Santo Ofício,<br />

os candidatos ao cargo inquisitorial deveriam informar a sua naturalidade, filiação,<br />

estado civil, profissão e cabedais. Todas essas informações seriam confirmadas<br />

por meio das inquirições realizadas pelos comissários nas localidades onde os habilitandos<br />

haviam nascido e nas regiões de suas moradias. Logo, os Processos de<br />

Habilitação fornecem dados muito ricos para se traçar um perfil dos Familiares em<br />

Colônia de Sacramento.<br />

15 Até o momento não tive acesso aos Processos de Habilitação de José da Costa Pereira, Bento Martins Ferreira e<br />

João Álvares de Araújo. As datas de habilitação aqui referidas foram levantadas por Fábio Kuhn.<br />

415


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Em relação à naturalidade, os Familiares de Colônia de Sacramento são, em<br />

sua maioria, provenientes do Reino: dentre os 16 processos de habilitação que tive<br />

acesso, 11 são de habilitandos nascidos em Portugal e cinco na da Praça Mercantil.<br />

Sobre o estado civil dos habilitandos no momento da petição, tem-se a seguinte<br />

configuração: 10 são solteiros, enquanto que seis eram casados no momento em que<br />

solicitaram a habilitação. Contudo, alguns Familiares da Praça Mercantil contraíram<br />

casamento após receberem a sua carta de Familiar. Antônio Fernandes Pereira era<br />

solteiro em 1753, ano em que entrou para o quadro de agentes inquisitoriais. Posteriormente,<br />

casou-se com Luiza Máxima Sarmento, irmã de Antônio Ribeiro de Moraes,<br />

futuro Familiar na mesma Praça em 1768. Esta informação consta no próprio processo<br />

de habilitação de Antônio Ribeiro que, na sua petição de 1766, informou ser irmão<br />

mais velho de Luiza e cunhado de Antônio Fernandes. No mesmo processo consta<br />

na informação extrajudicial de 1767 que Luiza era viúva: Segundo o conhecimento<br />

que tenho, por ser o habilitando meu freguês há perto de 26 anos, que o habilitando<br />

Antônio Ribeiro de Moraes é natural desta Praça, filho legítimo do Cirurgião Manuel<br />

Ribeiro e de Antônia de Moraes, já defuntos, e irmão legítimo de Luiza Máxima<br />

Sarmento, viúva de Antônio Fernandes Pereira, Familiar do Santo Ofício; [...]<br />

que vive da ocupação de negócio de fazendas, que é abastado, mas que não sabem que<br />

cabedal terá de seu, que sabe ler e escrever muito bem, que terá 30 anos de idade[...] 16<br />

Logo, Antônio Fernandes faleceu entre 1766 e 1767, enquanto seu cunhado<br />

encaminhava sua petição. Conforme já mencionado, quando um Familiar desejasse<br />

se casar era necessário que sua esposa também fosse habilitada e, logo, passasse pelas<br />

mesmas investigações de linhagem para atestar a sua pureza de sangue. Caso já fosse<br />

casado, as investigações eram feitas no mesmo processo. Não foi o caso de Antônio<br />

Fernandes já que não consta nenhuma informação acerca de Luiza Máxima durante<br />

a sua habilitação que data de 1753. Provavelmente tenha se casado antes de 1766,<br />

data da petição de Antônio Ribeiro. O ponto principal é: como Antônio Ribeiro solicitou<br />

sua Carta de Familiar após ter a sua irmã se casado com um Familiar do Santo<br />

Ofício e, por conseqüência, passado pelas investigações linhagísticas atestando a sua<br />

pureza de sangue, ele, por ser irmão legítimo, teve automaticamente a sua atestada<br />

sem maiores investigações. Aldair Rodrigues afirma que quem possuía algum parente<br />

Familiar acabava tendo menos despesas em sua habilitação uma vez que “nos<br />

casos dos que tinham irmão ou pai habilitados, os avós não eram investigados, fato<br />

que significava menos diligências, papéis e, conseqüentemente, menos despesas”. 17<br />

16 ANTT, HSO, Mç. 163, proc. 2546. O grifo é meu.<br />

17 RODRIGUES, Aldair Carlos. Op. cit., p. 104. Não se teve acesso aos custos dos Processos de Habilitação dos<br />

Familiares de Rio Grande de São Pedro e Colônia de Sacramento<br />

416


Aqueles Familiares que contraíram casamento, assim o fizeram com mulheres<br />

que possuíam alguma distinção social. João da Costa Quintão se casou com Damásia<br />

Maria de São João, filha de Domingos de Siqueira de Araújo, Cavaleiro da Ordem<br />

de Cristo, e Paula Maria de Caldas. 18 Silvestre Ferreira da Silva foi casado com Luisa<br />

Conceição, neta de João Ricardo, também Cavaleiro da Ordem de Cristo. 19 É possível<br />

que estes familiares tenham se casado com filhas de representantes da Ordem<br />

de Cristo como uma forma de ascensão social e também como porta de acesso à<br />

familiatura. O processo para o ingresso como Cavaleiro do Hábito de Cristo era<br />

considerado como o mais rigoroso, assim como o Processo de Habilitação de Familiar<br />

do Santo Ofício, principalmente no que se refere à pureza de sangue. 20 Desta<br />

forma, aqueles candidatos ao cargo inquisitorial, ao se casarem anteriormente com<br />

filhas de Cavaleiros da Ordem de Cristo teriam a certeza da pureza de sangue das<br />

suas esposas, afastando a possibilidade de terem seu pedido à carta de familiar negada<br />

por serem casados com mulheres de sangue impuro.<br />

A faixa etária dos Familiares de Colônia de Sacramento estava entre 23, idade<br />

de Bartolomeu Cesário Nogueira, e 47 anos, idade de Eusébio de Araújo Faria. Contudo,<br />

a maioria dos Familiares da Praça Mercantil se encontrava na faixa dos 30 anos<br />

de idade, no momento de sua habilitação.<br />

No entanto, a informação mais importante para se traçar o perfil desses agentes<br />

inquisitoriais é quanto a sua profissão. Neste caso, leva-se em consideração a<br />

profissão declarada no momento da petição. Assim posto. A tabela a seguir ilustra as<br />

profissões dos Familiares de Colônia do Sacramento:<br />

18 ANTT, HSO, Mç. 72, proc. 1331.<br />

19 ANTT, HSO, Mç. 2, proc. 21.<br />

20 RODRIGUES, Aldair Carlos. Op. cit., p. 203. De fato, para ingressar nas Ordens Militares era necessário “não<br />

descender de mouros, mas sobretudo de judeus”. Elas foram as primeiras instituições a exigirem de seus candidatos<br />

a pureza de sangue, inserindo-se no contexto dos preconceitos existentes contra os de sangue impuro, descrito<br />

anteriormente. Segundo Fernanda Olival, “por todo este contexto, e pela cotação de rigor que tinham as provanças,<br />

que, até 1773, o hábito das Ordens Militares veiculava limpeza. Para grupos sociais podia ser muito importante, se<br />

não decisivo, ostentar uma cruz das Ordens: reiterava um estatuto e uma condição, afugentava rumores”. OLIVAL,<br />

Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno: honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-1789).<br />

Lisboa: Estar Editora, 2001, p. 284-285. Fabio Kuhn levantou no Rio Grande de São Pedro seis integrantes do<br />

Hábito de Cristo, dentre eles o Familiar Manuel de Araújo Gomes. KÜHN, Fabio. Gente da fronteira: família,<br />

sociedade e poder no sul da América portuguesa: século XViii. Tese (Doutorado em História)-UFF, Niterói,<br />

2006., p. 358.<br />

417


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Tabela n° 4: Profissão dos Familiares do Santo Ofício em Colônia do Sacramento²¹<br />

418<br />

FONTE: ANTT, HSO.<br />

Foram contabilizados como “homem de negócio” aqueles que, ao declararem<br />

a sua profissão, incluíram alguma outra ocupação além da primeira. Por meio destes<br />

dados se conclui que a maioria dos Familiares tinha a sua profissão ligada ao comércio.<br />

O Gráfico n° 2, mostra que os homens de negócio ocupam 76% da profissão<br />

declarada pelos habilitandos quando realizaram seu pedido junto com Conselho da<br />

Inquisição.<br />

O grupo dos homens de negócio tem sido considerado pela historiografia<br />

recente como a elite econômica colonial. Sua acumulação de capital se dava por meio<br />

das atividades mercantis de exportação e distribuição de produtos para o mercado<br />

interno. No caso dos comerciantes do Rio de Janeiro, principal grupo mercantil<br />

colonial, essas atividades eram favorecidas pela posição que o porto carioca ocupava<br />

no cenário econômico da América Portuguesa. A produção colonial era distribuída<br />

para o mercado interno via Porto do Rio de Janeiro, o qual abastecia as regiões com<br />

produtos e escravos:<br />

²¹ João Borges de Freitas está contabilizado como “Homem de Negócio” e “Militar”.


[...] a praça do Rio de Janeiro desempenhava um papel fundamental na reprodução,<br />

via mercado interno, da plantation exportadora. O que siginifica dizer também<br />

que tal praça era uma área privilegiada para as operações das produções coloniais de<br />

abastecimento interno. Isso nos ajuda a compreender a preponderância da acumulação<br />

mercantil [...] Em outras palavras, além de porto exportador e importador, o Rio<br />

de Janeiro, no período considerado, surgia como espaço da reprodução, via mercado<br />

interno, da formação econômico-social colonial.²²<br />

É via Praça do Rio de Janeiro que se estabelece o surgimento de um novo grupo<br />

econômico: os comerciantes de grosso trato.²³ Estes são definidos como “negociantes,<br />

em geral, envolvidos simultaneamente no tráfico internacional de escravos,<br />

no abastecimento interno e nas finanças coloniais”. 24 Pela definição de Fragoso se<br />

compreende a principal característica dos comerciantes de grosso trato: a diversificação<br />

de sua atuação. Os homens de negócio tinham por característica atuar não<br />

apenas em um ponto de comércio, possuíam negócios nas mais variadas frentes mercantis,<br />

tanto no comércio interno, quanto no externo, ou seja, “o negociante colonial<br />

nunca o era de um só ramo”:<br />

O fato de a elite mercantil estar simultaneamente envolvida no comércio de<br />

abastecimento e no de exportação e importação, além de aparecer no tráfico de<br />

escravos, por seu turno, nos fornece um outro traço desse grupo, ou seja, o caráter<br />

múltiplo de sua atuação empresarial. 25<br />

Os comerciantes agiam desta forma como uma maneira de se precaverem<br />

das flutuações econômicas. Desta forma, caso um negócio não conseguisse render o<br />

esperado, ainda era possível contar com outros investimentos que poderiam garantir<br />

o valor desejado e, assim, reduzir as perdas. Os negociantes conseguiam diversificar<br />

a sua atuação agindo em outros ramos que não o comércio. É o caso dos arremata-<br />

²² FRAGOSO, João Luís R. Homens de grossa aventura: Acumulação e hierarquia na praça mercantil do<br />

Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p. 307. Grifo do autor. É a partir do século<br />

XVIII que o porto carioca ganha importância no cenário colonial: “A partir do terceiro decênio do século, a praça<br />

do Rio de Janeiro começou a transformar-se no principal centro comercial da América portuguesa – ou, o que é o<br />

mesmo, no mais importante porto receptor de importações de outras partes do Ultramar e das reexportações de<br />

produtos europeus”. FRAGOSO, João Luís R. & FLORENTINO, Manolo. O Arcaísmo como Projeto. Rio de<br />

Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 75.<br />

²³ FRAGOSO & FLORENTINO. Op. cit., p.81.<br />

24 FRAGOSO. Op. cit., p. 92.<br />

25 Ibidem, p. 324 e 325. Em Tese defendida em 2009, Fábio Pesavento mostra que os negociantes cariocas também<br />

agiam como procuradores de negociantes estrangeiros em seus comércios com a América Portuguesa. Esta seria<br />

mais uma forma de diversificação da atuação dos homens de negócios, servindo de “atravessadores” dos produtos<br />

consumidos pela população colonial. PESAVENTO, Fábio. Um pouco antes da Corte: a economia do Rio de<br />

Janeiro na segunda metade do Setecentos. Tese-Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009, p. 104-149.<br />

419


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

dores de impostos, uma forma que, segundo Fragoso, permitia uma ampliação comercial<br />

do homem de negócio e, assim, obtinha o monopólio de determinada região.<br />

Porém, embora diversificassem a sua atuação mercantil, os comerciantes o faziam de<br />

uma forma monopolista. Para isso recorriam a redes de parentesco, o que surtia um<br />

efeito restritivo no número de membros da elite mercantil. 26<br />

A situação dos negociantes em Colônia de Sacramento está diretamente relacionada<br />

com a atuação dos homens de negócio do Rio de Janeiro no comércio<br />

da região. 27 Por se tratar de uma região de escoamento de parte da prata vinda do<br />

Potosi, muitos comerciantes cariocas realizavam comércio permanente, principalmente<br />

com os espanhóis, via contrabando. Aliás, o contrabando foi a principal via<br />

de comércio entre os portugueses de Colônia de Sacramento e os vizinhos sediados<br />

em Buenos Aires.<br />

Os homens de negócio encontravam na Praça Mercantil garantias de lucros<br />

de cerca de 90% do valor das mercadorias, além da vantagem da venda à vista com<br />

os castelhanos em troca da prata peruana. A prática da venda à vista era uma garantia<br />

que o comerciante tinha, devido, principalmente, à característica de contrabando,<br />

constantemente reprimida pelas autoridades. 28<br />

Os negociantes de Sacramento buscavam com seu comércio a prata do Potosí.<br />

Contudo a principal moeda de troca da região era o couro dos colonos espanhóis.<br />

Entre 1721 e 1736 a Praça Mercantil foi responsável por cerca de “75% das exportações<br />

de couro do Rio da Prata. 29 Em troca, os portugueses vendiam tecidos e tabaco:<br />

Embora os tecidos fossem, de longe, o principal produto vendido na Colônia do<br />

Sacramento, outras mercadorias também forneciam elevadas taxas de lucro aos comerciantes.<br />

A principal dessas mercadorias secundárias era o tabaco que, em sua maior parte,<br />

vinha da Bahia. Por volta de 1725, o seu consumo em Colônia, era de uns quarenta<br />

a cinqüenta rolos por ano, vendidos à vara por preços de 240 a 320 réis. Os principais<br />

compradores eram os soldados da guarnição, mas o tabaco também era vendido aos<br />

espanhóis, colonos e, principalmente, aos índios, que o trocavam por gado e couros. 30<br />

26 FRAGOSO, Op. cit., p. 326-330.<br />

27 Segundo Fabrício Pereira Prado, “a comunidade de mercadores do Rio de Janeiro, bastante poderosa e com uma<br />

elite mercantil estruturada na primeira metade do XVIII, mantinha relações com Sacramento”. Colônia de Sacramento:<br />

comércio e sociedade na Fronteira Platina (1716-1753). Dissertação (Mestrado). Porto Alegre: UFRGS,<br />

2002, p. 136.<br />

28 POSSAMAI. Paulo César. Aspectos do Cotidiano dos Mercadores na Colônia de Sacramento durante o Governo<br />

de Antônio Pedro de Vasconcelos (1722-1749). Revista ibero-Americanos. Porto Alegre: PUC-RS, v. XXVIII,<br />

n°2, dezembro de 2002, p. 4.<br />

29 PRADO, Fabrício Pereira. Op. cit., p. 133.<br />

30 Ibidem, p. 7.<br />

420


Embora os comerciantes de Colônia de Sacramento obtivessem lucros com<br />

a venda de suas mercadorias aos espanhóis, eles tinham que encarar a concorrência<br />

britânica na região. Esta concorrência causou diversos conflitos entre portugueses<br />

e ingleses, uma vez que o principal lucro dos primeiros se baseava em recambiar os<br />

produtos europeus, principalmente da Inglaterra. Logo, quando os britânicos passaram<br />

a realizar trocas comerciais diretamente com os espanhóis, os homens de<br />

negócio de Colônia de Sacramento perdiam mercado, pois não conseguiam vender<br />

a preços tão baixos que seus concorrentes. Para Paulo Possamai, “a concorrência<br />

inglesa era diretamente responsável pela situação do comércio na Colônia de Sacramento”³¹.<br />

Esta situação favorável ao comércio vinha do fato da Praça Mercantil estar<br />

em ótima posição geográfica, o que fazia dela um dos pontos principais das rotas<br />

comerciais do atlântico. Porém, segundo Fabrício Prado, mesmo com esta posição<br />

estratégica, devido a se posicionar em região de fronteira, “Colônia de Sacramento<br />

não constituía um centro de poder”:<br />

Podemos perceber um movimento de parte de alguns dos principais homens<br />

de negócio estabelecidos ao longo da primeira metade do século XVIII de mudarem<br />

para centros mais estáveis, e onde a vida econômica e social fosse mais ativa e com<br />

maior potencial. Enfim, muitos buscavam a proximidade com o poder.³²<br />

Enfim, parece que os comerciantes sediados em Colônia de Sacramento, após<br />

acumular capital mercantil suficientemente grande, retiravam-se para os grandes<br />

centros econômicos sediados, geralmente, no Rio de Janeiro.<br />

Ao compararmos os Familiares estudados aqui com os de outras regiões da<br />

Colônia, percebe-se a mesma tendência de ocupação profissional. Em Minas Gerais,<br />

os homens de negócio eram mais de 76% dentre os 436 Familiares do Santo Ofício<br />

estudados por Aldair Rodrigues e no Rio de Janeiro, dentre os 29 aos quais Daniela<br />

Calainho teve acesso, 23 tinham ocupações com negócios. Mas qual era o interesse<br />

dos homens de negócio na Carta de Familiar do Santo Ofício?<br />

Uma resposta pode ser dada por uma das características deste grupo social.<br />

Esta profissão estava muito ligada ao estigma da presença dos cristãos-novos. O<br />

fato de haver presença cristã-nova entre os comerciantes fazia levantar suspeitas<br />

de heresias dentre quaisquer negociantes. Logo, a Carta de Familiar, por realizar<br />

uma investigação da linhagem do habilitando, afastava a dúvida de raça infecta entre<br />

³¹ POSSAMAI, Paulo César. Op. cit., p. 11.<br />

³² PRADO, Fabrício Pereira. Op. cit., p. 141-142.<br />

421


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

aqueles que a obtinham. Isso pode explicar porque o universo de homens de negócio<br />

é tão grande entre os habilitados a familiar. A outra pode ser encontrada pela posição<br />

social deste grupo profissional. Os homens de negócio eram a elite econômica colonial.<br />

No Regimento Inquisitorial, quando são apresentados os requisitos para se habilitar<br />

familiar, constava que os candidatos deviam ter cabedais suficientes para viverem<br />

abastadamente. Além disso, as custas do processo eram onerosas aos habilitandos,<br />

sendo necessário um depósito em dinheiro para custear as diligências para averiguação<br />

da limpeza de sangue e, logo que habilitados, deviam oferecer doações aos cofres<br />

inquisitoriais.³³ Além disso, os privilégios concedidos aos Familiares do Santo Ofício<br />

pareciam atrair os negociantes: dentre eles a isenção de impostos e o porte de armas.<br />

Para Daniela Calainho, este último vinha a qualificar o ofício dos comerciantes, pois<br />

uma de suas características era a grande movimentação entre as regiões:<br />

O ofício de negociante ou mercador tinha por característica o trânsito constante<br />

por muitos lugares e o contato freqüente com muitas pessoas. O privilégio<br />

do porte de armas aos Familiares era importantíssimo, mediante os perigos que a<br />

atividade comercial envolvia. 34<br />

Ainda segundo Calainho a mobilidade dos homens de negócio pode ter influenciado<br />

o Santo Ofício a recrutar este grupo profissional, pois, devido a sua constante<br />

movimentação pelas capitanias, seria possível um controle de diversas localidades,<br />

observando os desvios e atos suspeitos.<br />

Como foi dito, para se tornar Familiar era necessário possuir cabedais suficientes<br />

para viver abastadamente. Dos familiares aos quais obtive informação de<br />

seus cabedais, no caso 10, metade chegava à quantia de 12 contos de réis. A outra<br />

metade se dividia entre os que tinham até quatro contos de réis – Antônio de Azevedo<br />

e Souza e João Roiz de Carvalho – e os de riqueza até os oito contos de réis –<br />

Antônio Fernandes Pereira, Simão da Silva Guimarães e Pedro de Almeida Cardoso.<br />

Observando-se os cabedais dos Familiares de Minas Gerais e Rio de Janeiro,<br />

tem-se o seguinte: para o caso de Mariana estudado por Aldair Rodrigues, dos 111<br />

familiares, 33 deles tinham fortuna até quatro contos de réis; e no Rio de Janeiro,<br />

segundo Calainho, nove de seus 29 habilitados possuíam riqueza no mesmo patamar<br />

que os mineiros. Logo, ao se realizar uma comparação entre as regiões, percebe-se<br />

uma pequena vantagem nos de Colônia de Sacramento, pois metade estava com<br />

riqueza estimada acima dos quatro contos de réis, igualando-se aos grandes homens<br />

de negócio cariocas.<br />

³³ CALAINHO, Daniela Buono. Agentes da Fé. Op. cit., p. 97.<br />

34 Ibidem, p. 98.<br />

422


Tabela n° 5: Cabedais dos Familiares do Santo Ofício em Colônia de Sacramento<br />

em cruzados<br />

FONTE: KÜHN, F. Gente da fronteira: família, sociedade e poder no sul da América<br />

portuguesa: século XViii. 2006. Tese (Doutorado em História)-UFF, Niterói, 2006, p. 345.<br />

Por fim, resta citar o caso do Familiar do Santo Ofício Pedro de Almeida<br />

Cardoso. Sua habilitação é um caso em que os candidatos possuíam parentesco com<br />

outros agentes inquisitoriais. Nascido em Colônia de Sacramento, e filho de pais que<br />

foram povoar a Praça Mercantil, Pedro fez sua petição ao Conselho Inquisitorial<br />

em 1754. Suas inquirições para atestar a sua limpeza de sangue e capacidade foram<br />

realizadas no Rio de Janeiro pelo comissário Francisco Fernandes Simões, o qual<br />

afirmou os motivos de não as terem feito em Colônia de Sacramento:<br />

Fiz esta diligência nesta Cidade, tanto por não ser fácil a Comissão dela para<br />

a Praça da Colônia, por me não ocorrer sujeito a quem encarregar, não sendo ao<br />

Vigário dela, como por saber haviam (sic) aqui pessoas que podiam depor com conhecimento<br />

e verdade, como as que inquiri, as quais assistiram na mesma terra com<br />

negócio e vieram de próximo, e me persuado juraram verdade, pelas boas notícias<br />

que de antes tinha do habilitando[...] 35<br />

Este poderia ser apenas mais um caso bem sucedido de Habilitação do Santo<br />

Oficio, não fosse uma peculiaridade. Pedro de Almeida Cardoso tinha dois irmãos<br />

eclesiásticos, os quais se habilitaram como Comissários do Santo Ofício: João de<br />

Almeida Cardoso e Joaquim de Almeida Cardoso. No processo de habilitação de<br />

Pedro, há informações acerca da data em que João tenha sido habilitado Comissário:<br />

35 ANTT, HSO, Mç. 31, proc. 551.<br />

423


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

Certifico que [no] livro 16 da criação dos Ministros e oficiais desta Inquisição<br />

de Lisboa, nela a fl. 130 se acha cópia de uma Provisão [...], passada em 11 de abril<br />

deste ano, pela qual consta haverem os ditos senhores criado Comissário do Santo<br />

Ofício desta Inquisição de Lisboa ao Padre João de Almeida Cardoso, Vigário Colado<br />

na Igreja Matriz da Praça da Nova Colônia de Sacramento, bispado do Rio de<br />

Janeiro[...] 36<br />

Esta informação anexada ao processo de Pedro é datada de 1755, ou seja, data<br />

de habilitação de João como Comissário do Santo Ofício. 37 O caso dos Comissários<br />

do Santo Ofício eram outros agentes inquisitoriais que serviam nos locais de sua<br />

residência, porém, ao contrário dos Familiares, deveriam ser do corpo eclesiástico.<br />

Dentre outras atribuições, eram eles que conduziam as inquisições sobre a capacidade<br />

e limpeza de sangue nos Processos de Habilitação dos Familiares. João de<br />

Almeida Cardoso foi o responsável pelas diligências de quase todos os Familiares<br />

do Santo Ofício encontrados em Colônia de Sacramento: João Borges de Freitas<br />

(1747); João Francisco Vianna (1753); Tomé Barbosa (1754); Manuel Lopes Marinho<br />

(1756); Luiza Máxima Sarmento, mulher do Familiar Antônio Fernandes Pereira<br />

(1759); Antônio Ribeiro de Moraes (1768); Bartolomeu Cesário Nogueira (1769) e<br />

Antônio Pereira Gonçalves (1773). Já seu irmão Joaquim não aparece em nenhuma<br />

diligência dos Familiares encontrados em Colônia de Sacramento. Observando-se<br />

as datas das diligências realizadas por João, percebe-se que três delas se deram antes<br />

de sua habilitação como Comissário em 1755. Esse dado é importante para atestar<br />

as relações de reciprocidade entre a Inquisição e as autoridades eclesiásticas locais,<br />

pois mesmo antes de se tornar um agente inquisitorial, João já prestava serviços ao<br />

tribunal lisboeta. 38<br />

É possível deduzir que foi estratégia da família Almeida Cardoso, ingressar<br />

no quadro inquisitorial. No caso dos Irmãos Joaquim e João, por fazerem parte do<br />

corpo eclesiástico, a sua alternativa foi habilitarem-se Comissários do Santo Ofício,<br />

sendo responsáveis pelas diligências e pareceres acerca dos candidatos a Familiar. Já<br />

Pedro, por não ser padre e atuar como homem de negócio, restou-lhe o meio que<br />

lhe cabia, assim como geralmente ocorria aos seus colegas de profissão: habilitar-se<br />

Familiar do Santo Ofício.<br />

36 ANTT, HSO, Mç. 31, proc. 551.<br />

37 Até o momento não foi possível o acesso aos processos de habilitação a Comissários dos Irmãos Cardoso. Porém<br />

se sabe que Joaquim se tornou Comissário em 1769.<br />

38 Sobre a ligação da Inquisição e a estrutura eclesiástica local ver: FEITLER, Bruno. Poder episcopal e ação inquisitorial<br />

no Brasil. In: VAINFAS, Ronaldo, FEITLER, Bruno e LIMA, Lana L. G. (Orgs.). A inquisição em Xeque:<br />

temas, controvérsias e estudos de caso. Rio de Janeiro: Eduerj, 2006.<br />

424


Familiares do Santo Ofício tinham importância para o funcionamento da atividade<br />

inquisitorial. Por circularem na sociedade, exercendo suas atividades profissionais,<br />

serviam de olhos para o Tribunal de Lisboa. Como foi possível identificar,<br />

estes agentes inquisitoriais em tinham origem portuguesa, atuação no ramo mercantil<br />

e cabedais em torno de 12 contos de réis. Estes se assemelhavam com seus colegas<br />

inquisitoriais das outras capitanias da América Portuguesa, em relação a sua profissão<br />

e naturalidade, assim como na sua fortuna. Essas suas características os colocam<br />

como pessoas de destaque entre a sociedade presente em Colônia de Sacramento.<br />

425


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

426<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

CALAINHO, Daniela. Agentes de fé: familiares da inquisição portuguesa no<br />

Brasil colonial. Bauru, SP: Edusc, 2006.<br />

FEITLER, Bruno. Poder episcopal e ação inquisitorial no Brasil. IN: VAINFAS,<br />

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Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.<br />

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venalidade em Portugal (1641-1789). Lisboa: Estar Editora, 2001.<br />

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(1715-1735). Tese (Doutorado) Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.<br />

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TORRES, José Veiga. Da repressão religiosa para a promoção social: a Inquisição<br />

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FONTES<br />

Arquivo Nacional da Torre do Tombo<br />

Inquisição de Lisboa<br />

Habilitações do Santo Ofício:<br />

Antônio de Azevedo e Sousa (1758, Mç. 129, Proc. 2167)<br />

Antônio Fernandes Pereira (1753, Mç. 117, Proc. 2021)<br />

Antônio Pereira Gonçalves ( 1776, Mç. 188, Proc. 2783)<br />

Antônio Ribeiro de Moras (1768, Mç. 163, Proc. 2546)<br />

Bartolomeu Cesário Nogueira (1772, Mç. 6, Proc. 105)<br />

Brás Batista de Castro (1754, Mç. 4, Proc. 61)<br />

Eusébio de Araújo Faria (1757, Mç. 1, Proc. 11)<br />

João Borges de Freitas (1749, Mç. 91, Proc. 1562)<br />

João da Costa Quintão (1738, Mç. 72, Proc. 1331)<br />

João Francisco Viana (1772, Mç, 153, Proc. 2229)<br />

João Roiz de Carvalho (1758, Mç. 109, Proc. 1776)<br />

Manuel Lopes Marinho (1757, Mç. 169, Proc. 1790)<br />

Pedro de Almeida Cardoso (1755, Mç. 31, Proc. 551)<br />

Silvestre Ferreira da Silva (1741, Mç. 2, Proc. 21)<br />

Simão da Silva Guimarães (1755, Mç. 10, Proc. 158)<br />

Tomé Barbosa (1760, Mç. 5, Proc. 74)<br />

427


VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />

428<br />

ERRATA<br />

GOMES, Luciano Costa; Estrutura etária e de gênero da população cativa e estrutura<br />

de posse de escravos em Porto Alegre, a partir do rol de confessados de 1782. In:<br />

APERS. VII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Porto<br />

Alegre: Corag, 2009. p. 243-262<br />

1) p. 251, tabela 4<br />

Tabela 4 - Distribuição da propriedade de escravos<br />

entre fogos escravistas por faixas de tamanho de plantel*<br />

Referências: SCHWARTZ, 1988, p. 374; LUNA, 1982, p. 38s; e GUTIÉRREZ, 1991, p. 310.<br />

Fonte: Rol de Confessados de Porto Alegre – 1782. AHCMPA<br />

2) p. 255, linha 16: quando se lê “mediana em 463”, o certo é “mediana em 46”.

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