You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
VIII Mostra de Pesquisa<br />
Produzindo<br />
História<br />
a partir de<br />
fontes primárias<br />
Porto Alegre / RS<br />
CORAG - 2010
Governo do Estado do Rio Grande do Sul<br />
Governadora Yeda Rorato Crusius<br />
Secretaria da Administração e dos Recursos Humanos<br />
Secretário Elói Guimarães<br />
Departamento de Arquivo Público<br />
Diretora Rosani Gorete Feron<br />
Corag - Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas:<br />
Responsável pelos dados técnicos<br />
Maria Helena Bueno Gargioni<br />
Editoração<br />
Ingrid Schuck<br />
Capa<br />
Sid Monza<br />
Ficha Técnica:<br />
Seleção e organização de textos: Comissão de Avaliação e Seleção da VIII MOSTRA DE PESQUISA<br />
- Associação Nacional de História – ANPUH/RS: Elisabete Leal<br />
- Associação dos Arquivistas do Estado do Rio Grande do Sul – AARS: Karine Georg Dressler<br />
- Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul – APERS: Maria Cristina Kneipp Fernandes, Clarissa<br />
de Lourdes Sommer Alves, Gerson Saldanha Costa.<br />
Organização e formatação dos textos:<br />
Clarissa de Lourdes Sommer Alves<br />
M915a Mostra de pesquisa do Arquivo Público do Estado do Rio<br />
Grande do Sul (8. : 2010 : Porto Alegre, RS).<br />
Anais : produzindo história a partir de fontes primárias / 8.<br />
Mostra de Pesquisa do Arquivo Público do Estado do Rio<br />
Grande do Sul, Porto Alegre 14, 21, 28 de agosto e 04 de<br />
setembro de 2010. – Porto Alegre : Companhia Rio-grandense<br />
de Artes Gráficas - CORAG, 2010.<br />
p.428<br />
ISBN: 978-95-7770-115-5<br />
978-85-7770-077-6<br />
1. Pesquisa histórica 2.Fontes primárias 3.História – Brasil 4.<br />
Documentação histórica 5. Fontes históricas<br />
I. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul II. Alves,<br />
Clarissa de Lourdes Sommer III. Título<br />
CDU – 930”2010”(81)<br />
Catalogação elaborada pela Biblioteca da Secretaria da Administração e dos Recursos Humanos<br />
– Bibliotecária responsável: Adriana Arruda Flores, CRB10-1285.
S U M Á R I O<br />
Apresentação ________________________________________________ 5<br />
Introdução __________________________________________________ 11<br />
Apresentação de Pôster<br />
A Revolução Farroupilha e a Igreja de Santa Maria (1838-1840)<br />
Alessandro de Almeida Pereira ___________________________________ 17<br />
Através da voz viva dos seus sócios, para edcidir dos seus próprios destinos. Disputas (políticas?)<br />
no Aero Clube de Pelotas durante o Estado Novo.<br />
Natasha Dias Castelli __________________________________________ 19<br />
1<br />
Valores Sociais e Moralidade no Brasil Moderno<br />
Modernidade e Cidadania em Porto Alegre: o combate à vadiagem e a questão habitacional.<br />
Carlos Eduardo Martins Torcato _________________________________ 23<br />
O Juizado de Órfãos de Porto Alegre: um reflexo da Sociedade<br />
José Carlos da Silva Cardozo ____________________________________ 39<br />
2<br />
Repressão e Protesto na História do Tempro Presente<br />
Coração de Luto: Teixeirinha e o protesto dos esquecidos<br />
Francisco Alcides Cougo Junior __________________________________ 59
A Atuação repressiva da ditadura civil-militar brasileira durante a construção da Anistia<br />
Julio Mangini Fernandes ________________________________________ 73<br />
3<br />
Escravidão: Trabalho, Resistência e Liberdade<br />
A organização do trabalho escravo nas charqueadas pelotenses na segunda metade do século XIX<br />
Bruno Stelmach Pessi __________________________________________ 97<br />
Uma economia escravista? Apontamentos sobre a população e a estrutura de posse de escravos em<br />
Porto Alegre (1779-1792)<br />
Luciano Costa Gomes _________________________________________ 115<br />
Por ter ido ao Estado Oriental: Guerra e Fronteira nas Cartas de Alforria de Alegrete (1832-<br />
1871)<br />
Marcelo Santos Matheus _______________________________________ 139<br />
Firmando (e afrouxando) os laços: compadrio, alforria e expectativas em torno da liberdade – Rio<br />
Pardo/RS, últimas décadas da escravidão.<br />
Melina Kleinert Perussatto ______________________________________ 161<br />
Escravos em Bagé: fugas, quilombos e insurreições<br />
Vinicius Pereira de Oliveira _____________________________________ 177<br />
4<br />
Elites e Redes de Sociabilidade<br />
Valsas, Contradanças e Bailados: espaços de sociabilidade enre agentes da elite no Rio Grande de<br />
São Pedro no século XIX.<br />
Adriano Comissoli ___________________________________________ 201<br />
Pai monarquista, filho republicano: propaganda republicana, eleições e relações familiares a partir<br />
da trajetória de Joaquim Francisco de Assis Brasil (1877-1889)<br />
Jonas Moreira Vargas e Tassiana Maria Parcianello Saccol ______________ 225
Poder e Parentesco nos Confins da América Portuguesa: uma análise sobre a rede de compadrios do<br />
governador Veiga Cabral da Câmara (Porto Alegre, 1774-1798)<br />
Márcio Munhoz Blanco ________________________________________ 251<br />
Em nome de “nossos amigos políticos”: vinculos pessoais, poder e influência ao tempo do Império<br />
do Brasil<br />
Miguel Ângelo Silva da Costa ____________________________________ 275<br />
Do Provedor à Rede de Sociabilidade<br />
Paula Andrea Dombkowitsch Arpini ______________________________ 303<br />
5<br />
História e Economia no Século XiX<br />
Fortunas, Bens e Investimentos: a caracterização econômica de uma elite política municipal a partir<br />
dos inventários post-mortem (final do Século XIX)<br />
Carina Martiny _______________________________________________ 319<br />
A Atividade Econômica Rio-grandense em Tempos de Guerra (Vila de Rio Grande, 1811-1850)<br />
Gabriel Santos Berute _________________________________________ 343<br />
Contratos Conflituosos: arrendamentos, arrendatários e litígios judiciais em Uruguaiana, Segunda<br />
Metade do Século XIX<br />
Guinter Tlaija Leipnitz _________________________________________ 365<br />
6<br />
A Atuação do Santo Ofício e dos Jesuítas no Brasil Colonial<br />
As Crônicas Jesuíticas como Fonte de Pesquisa: o Início das Missões de Maynas<br />
Fernanda Girotto e Fernanda Wisniewski ___________________________ 389<br />
A Inquisição no extremo sul da América Portuguesa: o perfil dos Familiares do Santo Ofício em<br />
Colônia de Sacramento (século XVIII)<br />
Lucas Maximiliano Monteiro ____________________________________ 407<br />
Errata ______________________________________________________ 428
APRESENTAçãO<br />
A PesquisA nos Confins do APERS<br />
Elói Guimarães<br />
Secretário de Estado<br />
O<br />
Projeto levado a cabo anualmente, pelo Arquivo Público, através<br />
da pesquisa a partir de fontes primárias, vem se tornando exitoso<br />
e ganhando qualificação, dado que reúne nesta VIII Mostra um<br />
verdadeiro acervo de valor histórico inestimável, sob qualquer ângulo que se possa<br />
examinar.<br />
Temática relevante é trazida, em diferentes e diversificadas áreas, abrangendo<br />
períodos de tempo, distantes e próximos, com análises que iluminam e destacam<br />
aspectos históricos vivenciados em momentos importantes da historia gaúcha.<br />
Os trabalhos produzidos, com detalhes e riquezas de dados, conferem pela<br />
“pena“ de seus pesquisadores um brilho especial a VIII Mostra de Pesquisa - Produzindo<br />
História a Partir de Fontes Primárias, o que contribui para o desenvolvimento<br />
cultural e para a memória rio-grandense e brasileira.<br />
Só a historia imortalizará o tempo! Bem-aventurados os que pesquisam!
INTRODUçãO<br />
Quantos de nós fomos crianças daquelas que se empolgavam ao assistir<br />
os filmes de Indiana Jones? Quantas vezes associamos alguma<br />
pesquisa realizada nas aulas de História com as atividades do famoso<br />
Sherlock Holmes? E antes que digam que as novas gerações já não se interessam<br />
pela ideia de “desvendar o passado”, não custa lembrar do sucesso que fazem jogos<br />
e filmes como Thomb Rider, em que a personagem principal, Lara Croft, é uma<br />
arqueóloga que vive muitas aventuras em seu ofício. Não é a toa que escritores e cineastas<br />
buscam inspiração na História e no trabalho do historiador para criar, afinal,<br />
o passado é estimulante, capaz de despertar muita curiosidade e interesse.<br />
Sabemos que entre os filmes e realidade existem diferenças. Em geral, o trabalho<br />
dos pesquisadores que se dedicam a conhecer o passado não possui tanto<br />
“glamour”, além de não contar com remunerações tão “espetaculares”. Mas os que<br />
vivem em contato com fontes históricas sabem o quão empolgante pode ser reunir<br />
as peças do enigma da História. Cada nova caixa de documentos, cada entrevista,<br />
imagem ou música, de acordo com as perspectivas de análise empregadas, pode ser<br />
um portal de contato com o passado, que a cada nova informação traz ao pesquisador<br />
mais e mais estímulos para continuar sua busca. Se nosso trabalho não é tão glamouroso,<br />
com certeza não ficamos para trás quando o quesito é emoção. Mergulhar<br />
no ofício da pesquisa histórica também é se aventurar!<br />
Mas, sendo assim, algo parece pouco lógico: se nos interessamos por filmes<br />
de temática histórica, se por muitos anos nos empolgamos com aventuras em busca<br />
do passado, em que momento esta magia se perde? Quando a grande maioria dos<br />
indivíduos passa a ser de adultos que encaram a História com receio e que não conhece<br />
os espaços de memória que os circunda ou as possibilidades reais de escrita da<br />
História? A resposta para estas questões não é simples ou unilateral, mas creio que<br />
uma importante “pista” surge justamente quando analisamos o tratamento e a visibilidade<br />
que nossa sociedade dá aos diversos tipos de documentos que são capazes<br />
de conectar os homens de nosso tempo com o passado.<br />
Quando falo em “tratamento e visibilidade”, quero dizer que de nada adianta<br />
que o ofício do historiador seja “mágico”, ou que as fontes históricas se prestem ainda<br />
a garantir inúmeros direitos dos cidadãos, se tais documentos, que são a matériaprima<br />
do trabalho do historiador e o meio garantidor de direitos, não forem geridos
e preservados por instituições de memória, como o Arquivo Público do Estado do<br />
Rio Grande do Sul, ou se nessas instituições não houver políticas de difusão do<br />
acervo e do conhecimento produzido a partir dele. Quero dizer que quebraremos as<br />
barreiras que separam a História dos filmes e das brincadeiras infantis da História<br />
palpável e real, que é construída por cada um de nós e que serve como instrumento<br />
de transformação social, somente quando a população em geral souber da existência<br />
destes locais e puder apropriar-se deles enquanto espaços públicos de conhecimento<br />
e saber.<br />
Nessa perspectiva é que o APERS vem desenvolvendo o Projeto Cultural<br />
Descobrindo o Arquivo Público. Buscando afastar-se de uma concepção ultrapassada<br />
que percebe os arquivos enquanto espaços destinados apenas ao público técnico,<br />
atualmente procura-se desenvolver ações que, além de facilitar a garantia do<br />
direito constitucional de acesso à informação, promovam a compreensão de que<br />
os arquivos devem ser espaços abertos e democráticos, despertando a sensibilidade<br />
dos cidadãos para com as questões referentes à preservação do patrimônio cultural,<br />
histórico e social.<br />
Entre as ações do Projeto podemos citar as visitas guiadas, que abrem as portas<br />
da instituição para grupos da comunidade que desejem conhecer as dependências<br />
do Arquivo, sua estrutura e organização; as oficinas de Educação Patrimonial voltadas<br />
ao público escolar, em que as turmas conhecem o APERS, lidam de maneira<br />
lúdica e dinâmica com fontes primárias e com as problemáticas que envolvem a<br />
preservação do patrimônio; e a Mostra de Pesquisa, que neste ano de 2010 está em<br />
sua oitava edição e tem como principais objetivos dar visibilidade aos trabalhos de<br />
pesquisa desenvolvidos a partir de fontes primárias arquivísticas, e proporcionar um<br />
espaço rico de debates e trocas de informações entre o público acadêmico e não<br />
acadêmico que se dedica à pesquisa histórica.<br />
A Mostra de Pesquisa vem desenvolvendo-se desde 2003 em um crescente.<br />
Iniciou como um evento destinado a pesquisadores que trabalhassem com fontes<br />
que estivessem sob guarda do APERS, e logo foi ampliada para que pudesse acolher<br />
debates suscitados por pesquisas em fontes primárias arquivadas em diversos locais.<br />
Em 2006 o evento passou a oportunizar a publicação dos trabalhos – que anteriormente<br />
eram apenas apresentados nas mesas de discussão – além de iniciar uma profícua<br />
parceria com a ANPUH-RS e a Associação dos Arquivistas do Estado do Rio<br />
Grande do Sul para a seleção dos trabalhos recebidos. A partir de 2007 o Arquivo<br />
Público passou a disponibilizar a publicação também no formato eletrônico, oportunizando<br />
um acesso ainda maior aos debates e ao conhecimento produzido pelos<br />
pesquisadores participantes. Em 2009 acrescentou-se a modalidade de apresentação<br />
de pôsteres com a publicação de resumos, que segue nesta edição a caminho da consolidação<br />
de mais uma ação.
Nesta edição recebemos trinta inscrições para apresentação de trabalhos com<br />
publicação de artigo e três para apresentação de pôster, sendo escolhidos dezenove<br />
artigos e dois pôsteres. A qualidade das produções, a relevância das problemáticas<br />
levantadas pelos pesquisadores, e a diversidade de suas fontes e metodologias de<br />
análise certificam a importância e a relevância da Mostra de Pesquisa. Todos os trabalhos<br />
que compuseram as mesas de debate, nos dias 14, 21, 28 de Agosto e 04 de<br />
Setembro de 2010, e que hoje compõem esta publicação, contribuem para enriquecer<br />
a historiografia e para que o APERS cumpra seu papel como instituição pública<br />
de memória na contemporaneidade, ampliando os laços que ligam o Arquivo às universidades,<br />
divulgando não apenas o conhecimento, mas as inúmeras possibilidades<br />
de produzi-lo a partir de fontes primárias, e demonstrando para cada cidadão que a<br />
instituição existe em função de suas necessidades e dos seus diretos. Assim, damos<br />
um passo à diante na importante tarefa de instigar em cada indivíduo o gosto pela<br />
História, o interesse pelo saber, o conhecimento de seus direitos e a certeza de que<br />
cada um de nós pode e deve fazer parte da construção de uma nova concepção de<br />
arquivo, de patrimônio, de ensino e aprendizado.<br />
Nas próximas páginas encontramos trabalhos que são o resultado de muita<br />
dedicação à pesquisa, de reflexões variadas que nos transportam a tempos e espaços<br />
diversos, e que são exemplos concretos do quanto pode ser gratificante e emocionante<br />
o trabalho do historiador, que enfim é viabilizado pela existência de espaços<br />
como o APERS e pelo trabalho sério de arquivistas e outros profissionais que se<br />
dedicam a manter o acervo organizado, preservado e disponibilizado ao público. A<br />
todos e todas, uma boa leitura!<br />
Clarissa de Lourdes Sommer Alves<br />
Historiadora, membro da equipe Ação Educativa do APERS
APresentAção de Pôster
A revolução fArrouPilhA e A igrejA de<br />
sAntA MAriA (1838-1840)<br />
Alessandro de Almeida Pereira¹<br />
Acadêmico de História da Universidade Federal de Santa Maria<br />
Bolsista PiBiC/CNPq/UFSM<br />
Contato: alessandro.hist@gmail.com<br />
Resumo: A Revolução Farroupilha e a cidade de Santa Maria integram os resultados das atividades<br />
desenvolvidas como Bolsista PIBIC/CNPq/UFSM vinculado ao projeto de pesquisa O federalismo na<br />
história da América: os processos de construção e de consolidação dos estados nacionais no século XIX e no início do<br />
século XX, que integra o Grupo de Pesquisa CNPq/UFSM e o Comitê História, Fronteira e Região do<br />
Grupo Montevidéu. A partir da concepção de História Política objetivou-se desenvolver a investigação<br />
sobre o período da Revolução Farroupilha (1835-1845), entendida como uma variável dos processos de<br />
construção e de consolidação dos Estados nacionais no século XIX, protagonizada no espaço fronteiriço<br />
platino por personagens de diversos setores da sociedade - entre eles os sacerdotes. Partindo desse<br />
ponto, buscou-se uma bibliografia que abordasse a atuação do clero católico na cidade de Santa Maria<br />
durante a Revolução Farroupilha. Assim, especificamente nesse trabalho, apresentamos os resultados<br />
obtidos da pesquisa em fontes primárias (livros Tombos Paroquiais: Registros de batismos, óbitos e<br />
casamentos), visando à identificação e a comprovação da atuação dos sacerdotes na Capela de Santa<br />
Maria (1838-1840). Através das informações contidas nesses e documentos foi possível contestar a informação<br />
contida no livro História do município de Santa Maria 1797/1933, de João Belém, de que a igreja<br />
matriz de Santa Maria esteve fechada durante o período entre 1837 e 1839, uma vez que foi encontrada<br />
documentação que comprova a atuação eclesiástica nesse povoado durante o determinado período. Ou<br />
seja, tanto a história de Santa Maria como da própria Revolução Farroupilha ainda merecem revisão e<br />
preocupação por parte dos historiadores.<br />
Palavras-chaves: Federalismo - Revolução Farroupilha – Sacerdotes – Santa Maria<br />
¹ Trabalho orientado por Maria Medianeira Padoin, Doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande<br />
do Sul (1999) e professora adjunta da Universidade Federal de Santa Maria. Contatos: mepadoin@terra.com.br e<br />
(55)9166-9307.
AtrAvés dA voz vivA dos seus sóCios, PArA edCidir dos<br />
seus PróPrios destinos. disPutAs (PolítiCAs?)<br />
no Aero Clube de PelotAs durAnte o estAdo novo.<br />
Natasha Dias Castelli<br />
Acadêmica do Curso de Licenciatura em História – UFPel, Pelotas, RS<br />
Contato: natasha.dias.castelli@hotmail.com<br />
Resumo: A presente pesquisa analisa as disputas de poder sobre a administração do Aero<br />
Clube de Pelotas num recorte de 1940-1945, com o objetivo de observar características peculiares dessa<br />
associação voluntária em meio à ditadura do Estado Novo. O tema despertou interesse ao analisar o<br />
material manuscrito e impresso do Aero Clube e observar um relatório, sobre uma assembléia realizada<br />
no ano de 1943 que previa enfaticamente “dar voz aos sócios”, bem como as disputas internas entre<br />
as chapas, que podem possuir caráter partidário e que renderam diversas matérias nos jornais locais.<br />
Para tanto, será feita a analise do relatório em questão comparado a um relatório de outra associação<br />
da mesma época. Posteriormente, serão analisados os nomes correspondentes as duas formações de<br />
chapas à direção do clube buscando vínculos partidários. Ainda serão utilizadas matérias de jornais<br />
locais sobre a disputa e, por fim, anotações pessoais dos membros das chapas. A principal fonte será o<br />
“arquivo” do Aero Clube de Pelotas disponível no Arquivo da Biblioteca Pública de Pelotas e também<br />
os periódicos pelotenses; Diário Popular e Jornal da Manhã de 1943. Não é possível falar ainda em<br />
resultados finais devido à abrangência da pesquisa que está vinculada ao projeto; O Associativismo<br />
no Rio Grande do Sul (1920-1950). Parcialmente, é passível concluir que os nomes indicados para<br />
as chapas que disputavam a administração desta associação têm um “peso” significativo nos âmbitos<br />
social e político do município de Pelotas e região, demonstrados em nomes de escola estadual, avenida,<br />
fundação, entre outros exemplos.<br />
Palavras-chave: Aero Clube – Associativismo – Participação política – Estado Novo.
1<br />
vAlores soCiAis<br />
e MorAlidAde no<br />
brAsil Moderno
ModernidAde e CidAdAniA eM Porto Alegre:<br />
o CoMbAte à vAdiAgeM e A questão hAbitACionAl.<br />
Carlos Eduardo Martins Torcato<br />
Resumo: Este artigo aborda a universalização das concepções de Estado e de cidadania derivadas<br />
do desenvolvimento do capitalismo e da sociedade moderna que foram mundialmente dominantes<br />
a partir do século XIX. No Brasil, as tentativas de implementar tais concepções esbarraram em inúmeras<br />
dificuldades. Em Porto Alegre, a partir da bibliografia e das fontes arquivísticas estudadas, pode-se<br />
perceber que as políticas públicas de combate à vadiagem e à política habitacional eram pensadas de<br />
acordo com o paradigma proibicionista, pois criminalizavam práticas sociais amplamente disseminadas,<br />
especialmente pelas camadas sociais mais vulneráveis, e não promoviam a cidadania. Tais políticas reforçavam<br />
e reproduziam uma estrutura hierarquizada, autoritária e elitista de Estado.<br />
Palavras-chave: modernidade – cidadania – políticas públicas – cultura popular – sociabilidade<br />
moderna.<br />
INTRODUçãO<br />
O<br />
final do século XIX e o início do século XX foram caracterizados<br />
pelo poderio das potências europeias e pela universalização das<br />
concepções de Estado e de cidadania moderna. Fora da Europa,<br />
entretanto, a implementação dessas concepções encontrou enorme resistência nas<br />
populações locais, sendo acolhidas somente por segmentos das elites e de alguns<br />
setores citadinos identificados com ideais de progresso e modernidade.¹<br />
No Brasil, a tentativa de implementação de tais concepções, no sentido de<br />
adequar o país aos parâmetros internacionais de progresso, encontrou também dificuldades.<br />
Esses empecilhos eram, sobretudo, de ordem antropológica, visto que a vivência<br />
moderna envolve uma exigência de ordem cultural/moral. Para que o Estado<br />
moderno se estabeleça, é preciso que as pessoas que fazem parte da sua coletividade<br />
(nação) ajam de forma propícia ao seu funcionamento.²<br />
Este artigo pretende abordar as tensões nascidas a partir da tentativa de implementação<br />
de noções universalistas de humanidade e cidadania e a existência de<br />
1 HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios (1875-1914). São Paulo: Paz e Terra, 2002. p.52-53.<br />
² COOPER, Frederick; HOLT, Thomas C.; SCOTT, Rebecca. Introdução. In: Além da escravidão: Investigação<br />
sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p.62-63.<br />
23
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
concepções sobre as virtudes e as falhas de grupos específicos, assim como seus<br />
modos de agir e de ser. No caso de Porto Alegre, o período entre o final do século<br />
XIX e início do século XX foi caracterizado pelo confronto entre as elites, imbuído<br />
de um ideal modernizador, e os grupos populares da cidade.<br />
As políticas públicas elaboradas pelas elites Porto-Alegrenses, no âmbito de ordenar<br />
o espaço urbano de acordo com os preceitos dominantes de Estado e de cidadania<br />
moderna, encontravam resistências diversas que se manifestavam de várias formas, desde<br />
a resolução privada e violenta de conflitos circunscritos – ligados aos valores androcêntricos<br />
– até o desejo das pessoas, atingidas por elas, em preservar a autonomia do uso do<br />
tempo – ligado à maneira como as pessoas vivem e organizam sua cotidianidade.<br />
Procurar-se-á compreender os efeitos das políticas públicas de combate à vadiagem<br />
e as consequências da política habitacional para os diferentes estratos sociais,<br />
principalmente para aqueles mais pobres, tradicionalmente identificados como<br />
“classes populares”, a partir da análise dos confrontos nascidos de tais políticas na<br />
cidade de Porto Alegre.<br />
24<br />
ESPAçOS DE SOCIABILIDADE, CULTURA POPULAR E<br />
ORDEM ANDROCêNTRICA<br />
A divisão entre um mundo “civilizado” e “atrasado” não pode ser reduzida à<br />
mera divisão da sociedade industrializada e agrícola, embora pareça bastante correto<br />
associar a modernidade à industrialização e à urbanização.³ A modernização e o “ser<br />
civilizado”, por isso, não podem ser reduzidos somente aos aspectos econômicos,<br />
em razão da ampliação das relações assalariadas ou da atividade industrial. Ela precisa<br />
ser percebida também em seus aspectos cotidianos, no contato com as tecnologias,<br />
nos serviços públicos essenciais para a vida moderna e na burocratização.<br />
O que significou para a população de Porto Alegre a possibilidade de desfrutar<br />
de um serviço público de iluminação? Esse serviço propiciou o desfrute do<br />
tempo noturno como espaço de sociabilidade legítimo, fato diretamente relacionado<br />
com a urbanização das sociedades modernas. Em poucos anos, após a inauguração<br />
da luz a gás (1874), os habitantes de Porto Alegre, assim como os habitantes das<br />
principais cidades europeias, também passaram a desfrutar de espaços de sociabilidade<br />
legítimos durante a noite. 4 Até esta data, o que existiam eram alguns poucos<br />
“bordeis” que “ofendiam a moral pública” apesar do toque de recolher 5 .<br />
³ HOBSBAWM, Eric, op. cit, p.38-41.Valores Sociais e Moralidade no Brasil moderno<br />
4 CONSTANTINO, Núncia Santoro. Modernidade, noite e poder: Porto Alegre na virada do século XX. Tempo.<br />
Rio de Janeiro, vol.4, 1997, p.49-50.<br />
5 Ibidem, p.51-52.
Para Constantino (1997), a proliferação dos espaços de sociabilidade, em Porto<br />
Alegre, esteve ligada a diversas práticas sociais inauguradas pelos alemães que<br />
teriam sido responsáveis pela introdução de restaurantes, cafés, livrarias, boliches,<br />
bilhares e diversas agremiações. Era de costume os homens alemães se reunirem ao<br />
entardecer. Tais estabelecimentos se multiplicaram, nas últimas décadas do século<br />
XIX, a ponto de existirem centenas, no início do XX, tanto para setores da elite<br />
quanto para setores pobres. 6<br />
A multiplicação dos espaços de sociabilidade, em Porto Alegre, foi percebida<br />
como uma ameaça à ideologia do trabalho defendida por alguns setores da burocracia.<br />
A valorização do trabalho e a condenação à vadiagem justificaram a implementação<br />
de medidas de controle social durante todo o século XIX. Os negros e os europeus<br />
podiam ser enquadrados como vadios e compelidos ao trabalho. 7 O encontro<br />
de homens, com intuito de beber, jogar cartas e conversar é uma afronta ao esforço<br />
das autoridades no sentido de imposição do hábito do trabalho.<br />
Numa sociedade escravista, a possibilidade de poder usufruir do ócio ou de<br />
usar o tempo em atividades lúdicas é uma forma de dignidade enquanto ser-livre.<br />
Então, é bem provável que, antes da chegada dos alemães, já existissem locais especializados<br />
na sociabilidade daqueles que podiam gozar do seu próprio tempo. As<br />
casas de tavolagem, por exemplo, são locais específicos para esse fim. A proibição<br />
desse tipo de estabelecimento remonta ao Código Filipino do século XVII. 8<br />
A inauguração da iluminação pode ter contribuído para a ineficácia das políticas<br />
de imposição do hábito do trabalho e para a legitimação de espaços de sociabilidades<br />
noturnos, pois tais encontros poderiam ser promotores de vícios sociais<br />
– opostos à ideologia do trabalho e à moralidade das boas famílias. Segundo as elites,<br />
os jogos de azar que ocorriam, especialmente, à noite, estavam associados a diversas<br />
práticas sociais como o alcoolismo, a prostituição, o ócio e a tendência à itinerância,<br />
consideradas devassidões sociais que impediam a incorporação das pessoas à ordem<br />
moderna que se pretendia constituir.<br />
Os limites eram tênues entre o permitido e o não-permitido. Os encontros<br />
entre pessoas, em um café, eram legítimos, no entanto o mesmo não se poderia<br />
afirmar acerca de uma reunião para um jogo de cartas. Portanto, não importava o<br />
6 CONSTANTINO, Nuncia Santoro, op. cit.<br />
7 NEGRO, Antônio Luigi; GOMES, Flávio. Além de senzalas e fábricas: Uma história social do trabalho. Tempo<br />
Social, revista de sociologia da USP. v.18, n.1, 2006, p.288.<br />
8 Era determinado que “em nossos Reinos e Senhorios não se jogue cartas” [...] “dados” [...] nem se mantenha<br />
“tabolagem” (sic). As penas variavam desde o açoite público para os peões, até multa e degradação “para o Brazil<br />
(sic)” durante dez anos para os de “maior condição”. As normas gerais do Código Filipino (como era chamado)<br />
perduraram, no Brasil, até 1824 (ano em que foi outorgada a primeira Carta Imperial), estendendo-se outras normas,<br />
penais e processuais, até 1830 (quando passou a vigorar o Código Criminal do Império). CASTRO, Estefânia Freitas.<br />
et. al. Ordenações filipinas on-line. Disponível em: <br />
Acesso em: 21 abr. 2010.<br />
25
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
espaço em que aconteciam tais devassidões, mas sim se essas práticas eram moralmente<br />
compatíveis com a ideologia do trabalho e a moralidade dominante. No dia<br />
4 de abril de 1897, o Delegado Pereira da Cunha foi informado que estava reunidos<br />
“um avultado numero (sic) de jogadores”, em um estabelecimento “denominado<br />
Café 17 de junho”, localizado na Rua dos Andradas, tradicional rua do centro da<br />
cidade. Acompanhado dos agentes municipais, ele deu batida no referido café, às<br />
dez horas da noite. Foram encontrados diversos indivíduos entregues “ao jogo de<br />
azar denominado ‘primeira’ com cartas de baralho espanhoes (sic)”. Todos foram<br />
multados e liberados. 9<br />
Outro episódio ocorrido em 1901 mostra que as ações policiais podiam desembocar<br />
para a violência física, principalmente se o evento de sociabilidade fosse<br />
praticado por indivíduos em situação de vulnerabilidade civil. Os agentes municipais<br />
foram avisados por menores de idade sobre a existência de um baile, ou maxixe, no<br />
“cortiço conhecido por curral das éguas”. Por isso, eles foram a tal baile “providenciar<br />
a respeital (sic) de tal desordem” e “fazer algumas prisões”. Chegando ao local,<br />
verificaram que se tratava de “um grande ajuntamento de indivíduos e mulheres das<br />
quais a maior parte negros”. Quando a proprietária do local foi falar com os policiais,<br />
ao coro de vaias e assovios dos participantes do baile, acabou esbordoada com<br />
um chicote. 10<br />
O desenvolvimento urbano de Porto Alegre foi acompanhado pela multiplicação<br />
dos espaços de sociabilidades, sejam eles ligados ou não-ligados diretamente<br />
à comunidade alemã. Independente desse possível recorte étnico, este desenvolvimento<br />
permitiu às pessoas, de forma geral, um acesso maior às inúmeras atividades<br />
ligadas aos vícios sociais (jogo, prostituição, ociosidade, itinerância) que eram percebidos<br />
na época como os grandes promotores da vadiagem. Como os exemplos que<br />
se acaba de trazer, a amplitude da ideologia do trabalho e do combate aos vadios não<br />
deixava as autoridades policiais indiferentes a tal cenário, gerando, como resposta,<br />
ações repressivas por parte da Polícia. Entretanto, qual era o alcance efetivo dessa<br />
ação repressiva contra a vadiagem? Em Salvador, por exemplo, as elites alcançaram<br />
muitos êxitos na política de combate à vadiagem, porém a pobreza das ruas era<br />
maior do que a capacidade de o Estado isolar e reprimir. Por isso, a questão da vadiagem<br />
atravessa o período colonial, imperial e republicano como algo não resolvido. 11<br />
9 Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRGS), Códice de Polícia nº2, 04/04/1896. p.9-10v.<br />
10 Apud MAUCH, Cláudia. Vigiando a vizinhança: Policiais, classes populares e violência no sul do Brasil (1896-<br />
1929). IN: PESAVENTO, Sandra; GAYOL, Sandra. Sociabilidades, justiças e violências: Práticas e representações<br />
culturais no Cone Sul (séculos XIX e XX). Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008, p.100-101.<br />
11 FRAGA FILHO, Walter. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do Século XiX. Campinas-Salvador: Hucitec-EdUFBA,<br />
1995, p.180-181.<br />
26
Pode-se avaliar que em Porto Alegre, as políticas públicas elaboradas acerca<br />
da sexualidade e da infância abandonada também não alcançaram a eficácia desejada,<br />
porque os fenômenos de ordem estrutural, como a pobreza generalizada, eram<br />
maiores do que a capacidade do Estado de tutelar as crianças. 12 Analisando-se os<br />
modos de vida e os valores próprios dos trabalhadores ligados ao policiamento da<br />
cidade, percebe-se que os agentes policiais gozavam de um estilo de vida próximo<br />
ao dos trabalhadores pobres. 13 No dia 4 de maio de 1907, por exemplo, durante batida<br />
em casa de tavolagem onde se reuniam indivíduos para jogar “primeira”, foram<br />
presos 14 pessoas e um guarda. 14<br />
O jornalista carioca Vivaldo Coaracy, em visita a Porto Alegre, no ano de<br />
1905, destacou nas suas memórias, a intensa vida dos porto-alegrenses: as ruas eram<br />
movimentadas, existiam inúmeros cafés, confeitarias e casas de jogos. Por outro<br />
lado, espantou-se com a sujeira e imundice da cidade. Como a cidade ainda não<br />
contava com serviços de esgotos, os dejetos corriam em canaletas para grandes caixas<br />
de madeira (revestidas de piche) que eram recolhidas, uma ou duas vezes por<br />
semana, por funcionários da prefeitura. Os jornalistas do jornal Gazeta da Tarde e<br />
Gazetinha, recorrentemente, reclamavam das imundices jogadas nas ruas e nas águas<br />
do Guaíba. 15<br />
Existia, no imaginário político brasileiro de fins do século XIX, a imagem do<br />
perigo social representado pelos “pobres” através da metáfora da doença contagiosa.<br />
A solução defendida para essa “doença social” seria a repressão aos hábitos viciosos<br />
dos pais e a educação das crianças. 16 Em Porto Alegre, os jornalistas da Gazeta<br />
da Tarde e da Gazetinha também se utilizavam de uma linguagem pretensamente<br />
científica baseada em pretextos higienistas. Estes serviam para reativar temores e<br />
preconceitos arraigados contra negros e pobres em geral, associando cortiços, becos<br />
e botequins a focos de irradiação de epidemias. 17<br />
Os discursos jornalísticos apresentavam Porto Alegre como uma cidade tomada<br />
pelo desregramento e pela constante ameaça da “horda” de vagabundos que<br />
existiam nas ruas. 18 Os jornalistas, as elites empresariais, os socialistas vanguardistas,<br />
os políticos, os respeitosos cidadãos e todos aqueles identificados com os ideais de<br />
progresso queriam a expulsão dessas pessoas e de seus hábitos dantescos do centro<br />
12 FLECK, Eliane Cristina Deckmann. Crimes contra a moral: Infância e sexualidade (Porto Alegre, RS - 1880-<br />
1920). Métis: história & cultura. v.6, n.11, 2007, p.208-209.<br />
13 MAUCH, Cláudia. Ordem pública e moralidade: Imprensa e policiamento urbano em Porto Alegre na década<br />
de 1890. Santa Cruz do Sul: EDUNISC/ANPUH-RS, 2004, p.89-90.<br />
14 AHRGS, Códice de Polícia nº 14, 04/05/1908. p.32.<br />
15 Apud MAUCH, Cláudia, op. cit, 2004, p.75-76.<br />
16 CHALHOUB, Sidney. Trabalho lar e botequim: O cotidiano dos trabalhadores no rio de janeiro da belle epoque.<br />
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001, p.29.<br />
17 MAUCH, Cláudia, op. cit, 2004, p.90-92.<br />
18 Ibidem, p.106-107.<br />
27
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
comercial e político da cidade. Vargas (1993), analisando o jornal O Independente,<br />
destaca que os discursos moralistas eram acompanhados de idéias de decadência civilizacional.<br />
19 Elmir (2004), analisando os discursos jornalísticos, literários, políticos<br />
e policiais, destaca a existência de uma ideia pessimista e da projeção de um tempo<br />
passado idealizado onde o “outro” carente de moral não existia. 20<br />
Portanto, apesar dos esforços empenhados pelo poder público, fica a impressão<br />
que a manutenção do problema significa a incapacidade da elite de impor aos<br />
setores populares a ética do trabalho. Problemas de ordem econômica – pobreza<br />
generalizada – seriam um dos maiores obstáculos. Alguns autores também destacam<br />
fatores de ordem cultural.<br />
Kowarick (1994) acredita que não bastaram mudanças nas relações de produção<br />
e no aumento da coerção econômica para o correto desenvolvimento do capitalismo.<br />
Segundo ele, era necessária uma mudança cultural, capaz de alterar o estigma que o<br />
trabalho carrega. 21 Para Fraga Filho (1995), na perspectiva dos homens livres, existia<br />
clareza sobre sua dignidade enquanto livres e uma cultura do trabalho e noções de tempo<br />
próprias. O que transparece nos discursos das elites é que essa cultura do trabalho<br />
popular, identificada como vadiagem, era o principal obstáculo à incorporação do livre<br />
ao trabalho regular. 22 Esta-se diante, enfim, também de uma disputa cultural.<br />
Para alguns autores da historiografia de Porto Alegre, a intenção disciplinadora<br />
e normatizadora das instituições políticas foram vistas como uma arma da elite<br />
contra a “detestável” cultura popular. Segundo Vargas (1993), para os jornalistas do<br />
jornal O Independente, a coexistência de duas culturas antagônicas dentro da sociedade<br />
do período era considerado um fator de desagregação na cidade. Para reverter<br />
tal quadro, eram necessárias medidas autoritárias, principalmente contra determinadas<br />
áreas da cidade (subterrâneos). 23<br />
Para Arend (2001), as ações normatizadoras recaíram sobre os populares, visando<br />
a alterar também as formas de relacionamento afetivo próprias de sua cultura.<br />
Assim, a partir da “descrição densa” de alguns processos-crimes selecionados, seria<br />
possível perceber que os grupos populares de Porto Alegre desenvolveram uma forma<br />
particular de união, similar ao casamento, conhecido pelo nome de amasiamento,<br />
que era moralmente condenado. 24 Segundo essa autora, tal relacionamento ocorria<br />
19 VARGAS, Anderson Zalewski. “Os subterrâneos de Porto Alegre”: Imprensa, ideologia autoritária e reforma<br />
social (1900-1919). Dissertação. (PPGHIS/UFRGS), 1993, p.101-103.<br />
20 ELMIR, C. P. Porto Alegre: A perdida cidade una (Fragmentos de modernidade e exclusão social no sul do Brasil).<br />
Estudos ibero-americanos. PUCRS, v. XXX, n. 2, 2004, p. 107.<br />
21 KOWARICK, Lúcio. Trabalho e vadiagem: A origem do trabalho livre no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 1994,<br />
p. 11-12.<br />
22 FRAGA FILHO, Walter, op. cit, p.175-176.<br />
23 VARGAS, Anderson Zalewski, op. cit, p.308-312.<br />
24 AREND, Silvia Maria Fávero. Amasiar ou casar? A família popular no final do século XIX. Porto Alegre: Editora<br />
da UFRGS, 2001, p.61.<br />
28
quando: o casal se encontrava com certa regularidade, existia responsabilidade mútua<br />
entre o homem e a mulher, além do reconhecimento por parentes, vizinhos e<br />
amigos. O namoro, considerado a etapa anterior ao amasiamento, também possuía<br />
algumas características distintas daquelas da classe dominante: as escolhas dos namorados<br />
eram feitas pelas partes envolvidas, “diferente da família patriarcal e/ou<br />
aristocrática, onde havia uma preocupação com a perpetuação da linhagem para<br />
manutenção do poder político e econômico”. 25 As carícias entre os casais populares<br />
não eram restritas ao espaço privado, sendo sutil a vigilância de pais, de parentes e de<br />
vizinhos. Os populares mantinham relações sexuais durante o período de namoro, o<br />
que era considerado imoral pela moralidade dominante. 26<br />
Dessa forma, “para os populares, estar amasiado era considerado um estado<br />
próprio da sua cultura, equivalente a um estado civil na ordem jurídica”. 27 O Judiciário,<br />
além de não reconhecer essa forma de relacionamento, classificando os pares<br />
desse tipo de relação como solteiros, tentava impor aos envolvidos que se portassem<br />
de acordo com um padrão de comportamento próprio da elite, simbolizado na<br />
instituição do casamento, o que poderia garantir um controle maior do Estado em<br />
relação ao cidadão. Portanto, os grupos populares estavam inseridos num combate<br />
cultural com as elites. 28 É possível pensar os populares como um grupo distinto da<br />
elite devido o compartilhamento de experiências comuns, tais como a pobreza, as<br />
relações violentas no cotidiano e a construção de laços de solidariedade. As instituições<br />
públicas tentavam introduzir a norma familiar burguesa que era contrária<br />
às práticas da família popular como o amasiamento, as relações sexuais durante o<br />
namoro, a circulação de crianças e a construção de parentesco a partir de laços consanguíneos.<br />
29<br />
As conclusões de Arend (2001) influenciaram outros trabalhos sobre as mulheres,<br />
como os de Careli (1997) e, posteriormente, o de Santos (2008) sobre a prostituição.<br />
Talvez nenhum estudo tenha antagonizado mais as diferenças entre cultura<br />
popular e de elite como o de Grosso (2007). Segundo este autor, o final do século<br />
XIX foi caracterizado pelo desenvolvimento de um novo modo de vida das elites<br />
da cidade de acordo com o ideal modernizante. Já os grupos populares e moradores<br />
do centro se destacavam pelo seu comportamento desviante, apresentando-se como<br />
grande obstáculo ao projeto idealizado por uma elite “já desgarrada dos valores e<br />
códigos sociais nativos”. 30<br />
25 AREND, Silvia Maria Fávero, op. cit., p.54.<br />
26 Ibidem, p.54-56.<br />
27 Ibidem, p.61.<br />
28 Ibidem, p.76-78.<br />
29 Ibidem, p.85-86.<br />
30 GROSSO, Carlos Eduardo Millen. Poderiam viver juntos? Identidade e visão de mundo em grupos populares na<br />
Porto Alegre da virada do século XIX (1890-1909). DISSERTAçãO. (PPGHIS-PUCRS), 2007, p.30.<br />
29
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Mais do que negar a existência de uma cultura popular agredida pelo projeto<br />
modernizador, acredita-se que a ênfase demasiada ao antagonismo entre popular e<br />
erudito pode esconder formas generalizadas de dominação calcadas na ordem patriarcal<br />
e masculina. Formas não apenas presentes em todas as classes sociais, como<br />
diversas vezes respeitada pelos agentes burocráticos.<br />
Em todas as esferas, são constituídas formas de inculcação que visam constituir,<br />
por um lado, a virilidade masculina e, por outro, a feminilidade. Ser homem<br />
implica um dever-ser, uma forma de honra/virtude que se impõe por si mesma, sem<br />
discussão. 31 A mulher, por sua vez, é definida “como uma entidade negativa, definida<br />
apenas por falta, suas virtudes mesmas só podem se afirmar em uma dupla negação,<br />
como vício negado e superado, ou como mal menor”. 32 A dominação masculina<br />
e patriarcal precisa ser compreendida a partir de uma perspectiva que relacione o<br />
feminino e o masculino.<br />
No que se refere ao contexto histórico específico da cidade de Porto Alegre<br />
na virada do século XIX para o século XX, a mulher (pobre, principalmente) possuía<br />
uma conjuntura que diminuía traços da dominação. Primeiramente, trata-se de uma<br />
sociedade de enorme desigualdade econômica e de disseminada pobreza, fato que<br />
proporcionava à mulher a possibilidade de acesso ao mercado de trabalho. Não se<br />
criando as condições materiais necessárias para confinar a mulher e, por ventura,<br />
as filhas, no espaço privado, os homens pobres viam-se em posição precária para<br />
controlar a castidade das mulheres sobre sua posse. Isso não significa, entretanto,<br />
que eles não utilizavam suas filhas como objeto de trocas simbólicas, características<br />
do mercado matrimonial. 33 Consoante a isso, Arend (2001) concorda sobre a importância<br />
da construção de parentescos a partir de laços consanguíneos como uma<br />
estratégia de sobrevivência das famílias populares. 34<br />
Outro quesito que influenciava no sentido de diminuir os traços da dominação<br />
era a disparidade no número entre homens e mulheres. Apesar de não existirem<br />
dados demográficos confiáveis para o período, é possível atribuir tal disparidade ao<br />
forte fluxo de imigrantes que chegavam à capital, em geral homens solteiros. O desequilíbrio<br />
entre os sexos, aliado ao fato de as mulheres terem inserção no mercado<br />
de trabalho, ampliava, consideravelmente, a possibilidade de escolha seletiva de seus<br />
companheiros. No entanto, mesmo com todas essas possibilidades, a mulher continuava<br />
reproduzindo a lógica androcêntrica que convinha ao seu gênero, operando<br />
uma escolha seletiva entre homens em troca da exclusividade sexual. 35 A oportunida-<br />
31 BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p.63-64.<br />
32 Ibidem, p.37.<br />
33 Ibidem, p.55.<br />
34 AREND, Silvia Maria Fávero, op. cit, p.61.<br />
35 BOURDIEU, Pierre, op. cit, p.40-41.<br />
30
de representada pelo casamento de sair da tutela paterna não significava, necessariamente,<br />
uma menor sujeição ao poder masculino, vista as inúmeras obrigações morais<br />
e sexuais que as mulheres assumiam, seja com os maridos, seja com os amásios.<br />
Careli (1997), contrapondo os discursos jornalísticos ao das autoridades policiais,<br />
percebe a grande “similaridade que o conjunto de falas apresentam”. 36 Ao lado<br />
do modelo feminino ligado a valorização do matrimônio, da maternidade, da redução<br />
social da mulher ao espaço privado, coexistia um modelo masculino ligado ao<br />
trabalho, à honestidade, à capacidade de zelo e de tutela sobre membros da família. 37<br />
A análise de Careli (1997) se limita, todavia, a destacar os papéis atribuídos<br />
a cada sexo pelos discursos jornalísticos, policiais e judiciais. Neles, existe um “desprezo<br />
ao mundo das jovens populares” 38 , pois os valores eram preconizados em<br />
“preceitos baseadas nos parâmetros associados às classes abastadas”. 39 Os ideais dominantes,<br />
entretanto, não ficavam restritos àquele grupo social, “sendo de diversas<br />
formas incorporados por indivíduos alheios a ele” 40 , apesar dos poucos recursos<br />
materiais existentes. A autora sugere também que os inúmeros artigos veiculados<br />
nos jornais, solicitando que as famílias “decentes” casem suas filhas com jovens<br />
que, apesar de serem pobres, eram honestos e trabalhadores, seria fruto de um fator<br />
demográfico - menor número de homens que mulheres. 41 Mais do que um fator<br />
demográfico, acredita-se que a seletividade dos pretendentes, igualmente, era fruto<br />
de uma estratégia de ascensão social do grupo familiar como um todo, independentemente<br />
de serem populares ou de elite. Por fim, a justiça criminalizava os comportamentos<br />
sociais provenientes dos grupos populares, associando os amasiamentos a<br />
várias imoralidades próprias da cultura popular. 42 Contrariamente, percebe-se que os<br />
valores provenientes da ordem patriarcal e androcêntrica como amplamente disseminados<br />
em toda a sociedade, ultrapassando as divisões raciais, sociais e culturais. A<br />
troca de mulheres entre famílias pode ser considerada um elemento importante nas<br />
estratégias de ascensão social do grupo familiar. Como o valor simbólico construído<br />
sobre as mulheres dependia da sua reputação, ou seja, da sua castidade e da sua<br />
submissão, os homens do grupo familiar (pai e irmãos) despendiam grande preocupação<br />
e controle sobre as mulheres do mesmo núcleo. 43<br />
36 CARELI, Sandra da Silva. Texto e contexto: Virtude e comportamento sexual adequado às mulheres na visão<br />
da imprensa porto-alegrense da segunda metade do século XIX. (Dissertação. (PPGHIS/UFRGS), 1997, p.280.<br />
37 Ibidem, p.76-78.<br />
38 P.277.<br />
39 Ibidem.<br />
40 Ibidem, p.278.<br />
41 Ibidem.<br />
42 Ibidem, p.281-283.<br />
43 BOURDIEU, Pierre, op. cit, p.58-59.<br />
31
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Ao destacar a enorme assimetria instaurada entre homens e mulheres no<br />
terreno das trocas simbólicas existentes no mercado matrimonial, não se pretende<br />
diminuir o papel das mulheres como agente. O acesso ao mercado de trabalho, o<br />
envolvimento com homens fora do círculo familiar e mesmo uma denúncia de defloramento<br />
à Justiça poderia ser parte da estratégia feminina de se desvincular da tutela<br />
masculina do grupo familiar. Ao contrário do que defende Arend (2001), justiça não<br />
é a alternativa preferencial dos pobres para solução de seus conflitos, mas apenas<br />
uma das formas possíveis deles alcançarem seus objetivos. Talvez fosse uma alternativa<br />
dificilmente acionada pelos grupos pobres, pois<br />
o aparelho policial e judicial representa uma perigosa máquina, movimentada<br />
segundo regras que lhe são estranhas. É bastante inibidor<br />
falar diante dela; falar o menos possível parece a tática mais adequada<br />
para fugir às suas garras. 44<br />
Um aspecto dificilmente considerado, quando se analisa o comportamento<br />
popular nas relações entre os sexos, é a representação dominante da masculinidade.<br />
O privilégio masculino também é uma cilada, na medida em que “impõe a todo o<br />
homem o dever de afirmar, em toda e qualquer circunstância, sua virilidade”. 45 É<br />
possível que o controle da sexualidade feminina por parte dos homens populares<br />
também seja uma forma deles afirmarem sua virilidade.<br />
A violência, amplamente difundida nas classes populares, mais do que uma<br />
experiência comum capaz de definir os populares como grupo social distinto, é recurso<br />
exigido pela ordem simbólica ligada a valores patriarcais e androcêntricos.<br />
Mais do que um modelo cultural imposto pelas elites, essa lógica era amplamente<br />
disseminada em diferentes estratos sociais, variando apenas os recursos que os homens<br />
dispunham para sujeitar as mulheres ligadas ao seu grupo familiar.<br />
Os contatos com as tecnologias modernas e a proliferação de espaços de<br />
sociabilidades ampliaram as possibilidades da população em geral de acessar novos<br />
e diferentes tipos de entretenimento. Na visão das autoridades responsáveis pela<br />
organização do espaço urbano, tal contexto era visto como uma ameaça à moralidade<br />
pública, fato que gerou inúmeras ações policiais. Dentro desses espaços, a<br />
lógica androcêntrica, baseada no ideal de virilidade, era amplamente disseminado,<br />
fato que gerava conflitos violentos que fugiam da capacidade dos agentes municipais<br />
de controlá-los efetivamente.<br />
44 FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano. A criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo: Brasilense, 1984,<br />
p.22.<br />
45 BOURDIEU, Pierre, op. cit, p.65.<br />
32
URBANIZAçãO, QUESTãO HABITACIONAL<br />
E CASA PRóPRIA<br />
A partir das observações feitas sobre a amplitude das relações patriarcais no<br />
ordenamento social, é possível perceber, além do desejo das elites de expulsar os<br />
populares do centro, outras dinâmicas e motivações que influenciavam no crescimento<br />
urbano da cidade. O problema da moradia que atingiu diversas cidades do<br />
país e ficou conhecido como “questão habitacional” 46 , possuiu significados diversos,<br />
dependendo da classe e da etnia. Essa questão foi uma das principais demandas enfrentadas<br />
pelos quadros administrativos da prefeitura. A centralidade do problema<br />
pode ser percebida tanto pelo fato de o assunto ter sido posto como uma das principais<br />
reivindicações do Partido Socialista, fundado em 1897, quanto pelas inúmeras<br />
críticas publicadas nos jornais, sobre a ineficiência e a incapacidade dos gestores<br />
públicos de resolverem esse problema. 47<br />
O modo como a elite política encaminhou a questão habitacional parece ser<br />
revelador da própria capacidade da mesma em encaminhar políticas públicas capazes<br />
de promover as mudanças modernizantes tão alardeadas como necessárias no período<br />
em questão. No Rio de Janeiro, durante o início do XX, por exemplo, os tecnocratas<br />
conseguiram impor projetos higienistas e expulsar os populares do centro - foi o famoso<br />
“bota abaixo” da administração Pereira Passos. Durante o Império, as investidas<br />
desses segmentos, mesmo quando contavam com claro apoio governamental, ainda tinham<br />
que enfrentar resistências no Judiciário, graças às atuações dos liberais na defesa<br />
da propriedade. Tal obstáculo foi superado com o advento da República. 48<br />
No Rio Grande do Sul, a saída autoritária para o problema habitacional certamente<br />
encontraria justificativa na influência positivista e na tradição militarizada<br />
e autoritária da sociedade. O grande obstáculo para a higienização do centro foi,<br />
sobretudo, financeiro. Apenas dois anos após a guerra civil, o governo já enfrentava<br />
crise econômica. Sinal emblemático dessa situação foi a aceitação, por parte do Banco<br />
da Província do Rio Grande do Sul, de imóveis para liquidar os débitos de seus<br />
clientes. Essa situação perdura até pelo menos 1907, quando as dificuldades começam<br />
a diminuir. O tempo de crescimento econômico durou pouco, pois, em 1914,<br />
iniciou-se outro período de recessão devido à Guerra Mundial. O governo municipal<br />
só conseguiu articular empréstimo externo depois de 1924. 49<br />
46 BAKOS, M. M. A habitação em Porto Alegre: Problemas e projetos administrativos. (1897-1937). Dissertação.<br />
(PPGHIS/UFRGS), 1988, p.04.<br />
47 Ibidem, p.07.<br />
48 CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: Cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras,<br />
1996, p.44-46.<br />
49 BAKOS, M. M, op. cit, p.07-09.<br />
33
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
A política habitacional promovida pelos agentes políticos se direcionou, sobretudo,<br />
ao aumento progressivo da tributação das áreas do centro e na promulgação<br />
de leis que exigia o cumprimento de medidas higiênicas. Em 1897, o imposto se<br />
estendeu a todas as áreas que contavam com serviço de bonde. No começo dos anos<br />
1900, inúmeras tentativas foram tentadas no intuito de conter a corrupção generalizada<br />
existente entre os funcionários que cobravam impostos, sem muito sucesso.<br />
Em 1914, ocorre a promulgação do “Regulamento Geral de Construções”, estabelecendo<br />
diretrizes básicas com a ampliação das obrigações higiênicas. A tributação incidiu,<br />
do mesmo modo, sobre os terrenos não construídos. Os jornais da época noticiam,<br />
fartamente, a elitização do solo. 50 Ao aumentar as obrigações higiênicas para<br />
regulamentar a propriedade, o governo criava um enorme campo de marginalidade,<br />
visto que a maioria das pessoas não tinha condições financeiras de cumprir a lei.<br />
A consequência mais óbvia da falta de moradias é a superlotação de prédios<br />
habitacionais e a formação de cortiços. No centro, bem próximo aos locais de<br />
moradia dos setores tradicionais da elite, encontram-se inúmeras propriedades que<br />
pagavam impostos como cortiços. Foi essa convivência incômoda que levou alguns<br />
segmentos emergentes da elite a ocupar a região em torno da Av. Independência,<br />
um pouco mais afastado do centro da cidade. 51 A vontade de se isolar dos populares<br />
também levou a elite a buscar alternativas habitacionais fora do centro.<br />
A região da Cidade Baixa, tradicional local de habitação das populações mais<br />
pobres, nas áreas de colonização portuguesa, passou a receber, nas primeiras décadas<br />
do XX, a população italiana que chegava à cidade. Os novos proprietários foram,<br />
gradativamente, melhorando a qualidade das moradias, operando qualificações higiênicas<br />
e arquitetônicas, fatores fundamentais na definição do status social de um local<br />
respeitável, mesmo se inserido em territorialidades marcadamente pobres. Entretanto,<br />
até 1920, ainda era possível detectar a presença de cortiços nessa área. 52<br />
A região do Bom Fim, provavelmente, devido à sua proximidade com a Colônia<br />
Africana, era uma área bastante desprestigiada até o final do século XIX. Em<br />
1910, todavia, já é possível detectar tanto a presença de italianos quanto a proliferações<br />
dos cortiços. Somente em um segundo momento o bairro passou a receber os<br />
imigrantes judeus, que acabaram criando uma nova dinâmica de ocupação para esse<br />
espaço. 53<br />
Em termos de densidade populacional, as áreas em torno da Cidade Baixa e<br />
da Colônia Africana eram as mais importantes depois do centro. A ocupação des-<br />
50 Ibidem, p.07-09.<br />
51 CONSTANTINO, Núncia Santoro de. Espaço urbano e imigrantes: Porto Alegre na virada do século. Estudos<br />
ibero-americanos. PUCRS, v.XXIV, n.1, 1998, p. 156-158.<br />
52 Ibidem, p.160-161.<br />
53 Ibidem, p.161-162.<br />
34
tas áreas ocorreu ao longo do século XIX e estava ligada à dinâmica da sociedade<br />
escravista, na medida em que as primeiras populações dessas áreas eram de etnias<br />
africanas. 54<br />
A principal aposta para o escoamento da população trabalhadora do centro<br />
foi a urbanização do terceiro e quarto distritos, na zona norte da capital. As primeiras<br />
ruas foram traçadas em 1896, porém o serviço de bonde só chegou à região<br />
em 1907. As indústrias se instalavam naquela região tanto pela proximidade com o<br />
centro quanto pela facilidade no escoamento da produção. A relevância econômica,<br />
política e social desse espaço da capital cresceu bastante. Meios de sociabilidade próprios<br />
e diferentes daqueles da “cidade velha” também se desenvolveram nessa área. 55<br />
Em associação com esse processo de expansão, percebe-se o estabelecimento<br />
de comércio ao longo da Av. Voluntários da Pátria56 e de algumas famílias de italianos<br />
e alemães ao longo eixo da Av. Cristovão Colombo. Em 1900, registram-se<br />
inúmeras propriedades para alugar nessas áreas. Fortemente marcada pela presença<br />
estrangeira, a ocupação desses espaços trazia consigo o desejo das pessoas de alcançar<br />
a segurança econômica e o respeito, cujo signo maior era o acesso à casa própria.<br />
Gradativamente, graças às dinâmicas próprias dessa região, alguns espaços foram se<br />
destacando pela ocupação de uma classe média ascendente, como é o caso do bairro<br />
Higienópolis. 57<br />
Em suma, a ida para a periferia, mais do que um plano da elite desejosa por<br />
expulsar os populares do centro, podia fazer parte das estratégias de grupos sociais<br />
para a obtenção da casa própria. Esta, além da segurança econômica, podia representar<br />
o acesso à dignidade civil, que uma unidade familiar estruturada, segundo a<br />
lógica patriarcal, representava. Também podia representar maior qualidade de vida,<br />
pois tais residências eram, sobre o ponto de vista higiênico, mais adequadas que<br />
os cortiços. Portanto, qual o significado dessa política habitacional para as pessoas<br />
que não possuíam as condições materiais para se adequar à legislação? Assim como<br />
em outras regulamentações, entre elas a que combatia os jogos de azar, tal política<br />
criava um enorme campo de criminalidade, ampliando as prerrogativas de atuação<br />
do poder público e vulnerabilizando grande parcela da população. A busca pela casa<br />
própria com condições higiênicas, nestes termos, representava o acesso à dignidade<br />
civil e à segurança econômica.<br />
54 FORTES, Alexandre. Nós do quarto distrito: A classe trabalhadora porto-alegrense e a era Vargas. Caxias do<br />
Sul: Editora da EDUSC, 2004, p.35.<br />
55 Ibidem, p.35-38.<br />
56 Tal avenida começa no centro e dirigi-se a Av. Farrapos, principal via de acesso do 4º e 3º Distrito.<br />
57 CONSTANTINO, Núncia Santoro de, op. cit, 1998, p.158-163.<br />
35
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
36<br />
CONCLUSãO<br />
Durante todo o século XIX e em grande parte do século XX, vários grupos<br />
sociais (mulheres, negros, indígenas, pobres em geral) eram alijados de participação<br />
da vida política por serem considerados pelas elites incapazes de agirem de forma<br />
autônoma. As concepções de Estado e de cidadania, na sua forma universal, implicam<br />
uma condição moral, baseada na agência, não condizente com aquilo que a<br />
alta burocracia porto-alegrense, responsável pelas políticas públicas, pensava sobre a<br />
população de maneira geral, principalmente os pobres.<br />
As políticas públicas de combate à vadiagem e as legislações promulgadas<br />
resultantes da política habitacional implementada eram importantes para reproduzir<br />
as hierarquias sociais ligadas aos valores patriarcais e elitistas. Isso ocorria porque a<br />
criminalização de práticas sociais amplamente disseminadas, como o desemprego,<br />
no caso da vadiagem, ou as obrigações higiênicas, no caso das habitações, vulnerabiliza<br />
civilmente parte da população. Assim, a diminuta parcela da população que<br />
consegue se adequar às normas promulgadas é a única capaz de gozar, plenamente,<br />
de dignidade civil e de segurança econômica, condições fundamentais para o funcionamento<br />
de uma sociedade moderna.<br />
Políticas públicas centradas em uma concepção que a ordenação social deve<br />
ser alcançada, a partir da possibilidade ou ameaça de punição, são tipicamente autoritárias,<br />
pois não estão preocupadas com a promoção da capacidade de agência.<br />
Portanto, políticas públicas baseadas numa perspectiva meramente proibicionista<br />
impedem a burocratização dos conflitos sociais e o estabelecimento de direitos e<br />
princípios válidos universalmente ao conjunto da população.
REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
AREND, Silvia Maria Fávero. Amasiar ou casar? A família popular no final do<br />
século XIX. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2001.<br />
BAKOS, M. M. A habitação em Porto Alegre: Problemas e projetos administrativos.<br />
(1897-1937). Dissertação. (PPGHIS/UFRGS), 1988.<br />
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,<br />
2007<br />
CARELI, Sandra da Silva. Texto e contexto: Virtude e comportamento sexual adequado<br />
às mulheres na visão da imprensa porto-alegrense da segunda metade do<br />
século XIX. (Dissertação. (PPGHIS/UFRGS), 1997.<br />
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: Cortiços e epidemias na corte imperial. São<br />
Paulo: Companhia das Letras, 1996.<br />
CHALHOUB, Sidney. Trabalho lar e botequim: O cotidiano dos trabalhadores no<br />
rio de janeiro da belle epoque. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001.<br />
CONSTANTINO, Núncia Santoro. Modernidade, Noite e Poder: Porto Alegre na<br />
virada do século XX. Tempo. Rio de Janeiro, vol.4, 1997, p.49-64.<br />
CONSTANTINO, Núncia Santoro de. Espaço Urbano e Imigrantes: Porto Alegre<br />
na virada do século. Estudos ibero-americanos. PUCRS, v.XXIV, n.1, 1998, p.<br />
149-164.<br />
COOPER, Frederick; HOLT, Thomas C.; SCOTT, Rebecca. Introdução. In: Além<br />
da escravidão: Investigação sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pósemancipação.<br />
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p.39-88.<br />
ELMIR, C. P. Porto Alegre: A perdida cidade una (Fragmentos de modernidade e<br />
exclusão social no sul do Brasil). Estudos ibero-americanos. PUCRS, v. XXX, n.<br />
2, 2004, p. 105-119.<br />
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano. A criminalidade em São Paulo (1880-1924).<br />
São Paulo: Brasilense, 1984.<br />
FLECK, Eliane Cristina Deckmann. Crimes contra a moral: Infância e sexualidade<br />
(Porto Alegre, RS - 1880-1920). Métis: história & cultura. v.6, n.11, 2007, p.193-213.<br />
FRAGA FILHO, Walter. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século<br />
XiX. Campinas-Salvador: Hucitec-EdUFBA, 1995.<br />
37
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
GROSSO, Carlos Eduardo Millen. Poderiam viver juntos? Identidade e visão de<br />
mundo em grupos populares na Porto Alegre da virada do século XIX (1890-1909).<br />
DISSERTAçãO. (PPGHIS-PUCRS), 2007.<br />
HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios (1875-1914). São Paulo: Paz e Terra, 2002.<br />
MAUCH, Cláudia. Ordem pública e moralidade: Imprensa e policiamento urbano<br />
em Porto Alegre na década de 1890. Santa Cruz do Sul: EDUNISC/ANPUH-RS,<br />
2004.<br />
MAUCH, Cláudia. Vigiando a vizinhança: policiais, classes populares e violência<br />
no sul do Brasil (1896-1929). IN: PESAVENTO, Sandra; GAYOL, Sandra. Sociabilidades,<br />
justiças e violências: Práticas e representações culturais no Cone Sul<br />
(séculos XIX e XX). Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008, p.89-104.<br />
NEGRO, Antônio Luigi; GOMES, Flávio. Além de senzalas e fábricas: Uma história<br />
social do trabalho. Tempo Social, revista de sociologia da USP. v.18, n.1, 2006,<br />
p.217-240.<br />
SANTOS, Fernanda Guedes. O comércio ilícito do prazer e a ação policial e<br />
jurídica em Porto Alegre (1889-1930) Dissertação. (PPGHIS/PUCRS), 2008.<br />
VARGAS, Anderson Zalewski. “Os subterrâneos de Porto Alegre”: Imprensa,<br />
ideologia autoritária e reforma social (1900-1919). Dissertação. (PPGHIS/UFRGS),<br />
1993.<br />
38<br />
FONTES PRIMÁRIAS<br />
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRGS)<br />
Códice de Polícia nº2, 04/04/1896. p.9-10v.<br />
Códice de Polícia nº 14, 04/05/1908. p.32.<br />
Ordenações Filipinas. CASTRO, Estefânia Freitas. et. al. Ordenações filipinas online.<br />
Disponível em: <br />
Acesso em: 21 abr. 2010.
o juizAdo de órfãos de Porto Alegre:<br />
uM reflexo dA soCiedAde<br />
José Carlos da Silva Cardozo*<br />
Resumo: O Juizado de órfãos de Porto Alegre foi uma importante instituição pública, ele<br />
contribuiu para a regularização social das famílias porto-alegrenses que passavam por alguma situação<br />
de desagregação familiar envolvendo menores nos anos iniciais do século XX. A partir dos processos<br />
de Tutela, iniciados no 3º Cartório de Porto Alegre, entre os anos de 1902 a 1925, será apresentado que<br />
os valores sociais e morais possuíam importância nas decisões e desfechos para se tutelar um menor.<br />
Palavras-chave: Porto Alegre – Juízo dos órfãos – Tutela.<br />
O FARMACêUTICO, A MENINA E O JUIZ<br />
José Antônio de Figueiredo Filho, farmacêutico, residente à Rua Garibaldi<br />
número 22, em Porto Alegre, no dia 18 de agosto de 1916, deu entrada<br />
no 3º Cartório do Juizado Distrital da Vara de órfãos de Porto Alegre a<br />
um pedido para tutelar uma menina. Afirmando que a menor Virginia Cardozo de<br />
Lima¹, de 13 anos de idade incompletos, órfã de pai e mãe, trabalhando de aluguel<br />
em sua casa há quase um mês, o procurou declarando, “categoricamente”, que não<br />
desejava mais voltar para a casa onde mora por lá ser maltratada por seus patrões<br />
que a cuidam. A menor possui como parentes apenas um irmão de 11 anos de idade<br />
e duas tias de “vida má” que lhe aconselharam a procurar “uma casa de boa família<br />
para nela servir”.<br />
O Juiz do caso, Sinval Saldanha, com base nas informações prestadas por uma<br />
pessoa íntegra, como um farmacêutico, em apenas 6 dias defere a solicitação de tutela<br />
a favor de José Figueiredo Filho, que, em 24 de agosto de 1916, assina o Termo<br />
de Tutela e Compromisso da menor Virginia Cardozo de Lima.<br />
* Professor do Município de Esteio. Mestrando em História Latino-Americana pela Universidade do Vale do Rio<br />
dos Sinos (UNISINOS). Bolsista CAPES/MEC.<br />
¹ Processo número 623 de 1916 do APERS.<br />
39
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Essa rapidez deve-se ao não esclarecimento dos fatos apresentado pelo suplicante,<br />
por meio da intimação dos envolvidos no caso, os patrões da menina, que não<br />
são identificados no processo, ou das tias de “vida má”, ou mesmo da menor, para<br />
ratificar ou não as afirmações de José. Isso ocorreu pelo suplicante a tutor ter uma<br />
profissão declarada, reconhecida e possuir moradia fixa, pois nem mesmo o Curador<br />
Geral², quando solicitada sua vista³ sobre o caso, pediu maiores detalhes a respeito<br />
das alegações, escrevendo, de forma rápida, as iniciais F.J. (Faça Justiça).<br />
Que sociedade era essa? Em que o simples fato de um suplicante a tutor, ter<br />
uma profissão íntegra, ser pretexto marcante de confiança para receber a tutela de<br />
uma criança e essa ser aceita sem maiores explicações das partes envolvidas?<br />
40<br />
O CENÁRIO<br />
Os anos iniciais do século XX para o Brasil marcaram um período em que se<br />
consolidou o novo regime político-administrativo no país e se incorporou os ideais<br />
europeus de modernização pelo Estado e pela sociedade. Contudo, este não foi um<br />
período de esperança e felicidade para a grande maioria da população que, devido<br />
às políticas de moralização e higienização, promovidas pelo Estado e pela burguesia,<br />
sofreu bruscamente a força estatal na sua ambição de tornar o país, o mais rápido<br />
possível, moderno como os do hemisfério norte.<br />
O fim da escravidão, juntamente com migrações e imigrações, ocasionou o<br />
aumento populacional nas cidades trazendo dificuldades ao novo regime. Esses novos<br />
moradores, saídos das antigas senzalas e das choupanas do interior, juntamente<br />
com os imigrantes vindos de outras nações, chegavam às cidades, em busca de melhores<br />
condições de trabalho e moradia. Desses, muitos não conseguiram alcançar<br />
seus anseios nos centros urbanos, sendo considerados pelo Estado como figuras<br />
ameaçadoras da ordem social. Assim, a “massa de ‘cidadãos’ pobre e perigosa, viciosa,<br />
a qual emergia da multidão de casas térreas, de estalagens e cortiços, de casas<br />
de cômodo, de palafitas e mocambos que eram a vastidão da paisagem das cidades<br />
herdadas do Império” 4 .<br />
Esses pobres começaram a receber especial atenção do Estado, mas não visando<br />
promover a solução para os problemas desses desvalidos e sim os afastando<br />
progressivamente dos centros urbanos. Cobrando altos valores pelos aluguéis, exigências<br />
sanitárias de alto custo e altos impostos, a sociedade burguesa e o Estado<br />
2 Promotor Público do Juízo dos órfãos.<br />
3 Ato de falar ou tomar ciência do conteúdo de um processo.<br />
4 MARINS, Paulo César Garcez. Habitação e Vizinhança: Limites da Privacidade no surgimento da metrópole. In:<br />
NOVAIS, Fernando A. História da Vida Privada no Brasil, 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.133.
dificultaram o habitar dessa população nessas localidades, levando-os a se inserirem<br />
em locais periféricos a estes centros.<br />
Os estudos de Margareth Bakos5 para Porto Alegre mostram esse processo,<br />
indicando que o morar muito custoso foi uma das soluções encontradas pelo Estado<br />
para afastar os pobres para longe do perímetro urbano, levando-os a residir nas periferias<br />
da cidade, onde não eram cobrados impostos ou estes eram mais acessíveis.<br />
Clarice Nunes, para o Rio de Janeiro, refere em relação aos pobres que<br />
a presença incômoda de pobres e miseráveis acentuou-se no centro da<br />
cidade com o crescimento populacional e forçou, ainda nas décadas<br />
anteriores, o seu progressivo deslocamento para as zonas suburbana<br />
e rural. Este deslocamento, fruto de uma política de higienização do<br />
espaço urbano com suas obras de saneamento básico e demolição dos<br />
cortiços, não foi suficiente para ‘limpar’ a pobreza da cidade. Permitiu,<br />
no entanto, redimensioná-la6 .<br />
O Estado aplicava as mesmas estratégias empregadas pelo exemplo maior de<br />
cidade moderna a ser seguida, a cidade de Paris, aonde os pobres foram aos poucos<br />
tendo que se mudar para locais que não eram privilegiados, pela elite, habitando em<br />
bairros que aos poucos foram se tornando bairros operários ou mesmo favelas. Marcando<br />
uma política de modificação centrada não somente na reorganização espacial<br />
do urbano, mas também nas posições dentro do status social.<br />
A elite preocupava-se em influenciar a consciência popular, até mesmo daqueles<br />
que habitavam lugares afastados dos centros urbanos, todos deveriam ter<br />
comportamentos dignos de cidadãos urbanos; tentando evitar que a população se<br />
direcionasse para os locais de jogos de azar e prostituição, pois os jogos de azar eram<br />
mal vistos e, conforme os dirigentes sociais, ameaçavam a formação dos cidadãos<br />
disciplinados e a prostituição ameaçava a integridade da família e da sociedade.<br />
A família nesse período foi então, como na Europa, o centro das atenções<br />
do Estado. Ela era referida pelos setores privilegiados da sociedade como sendo a<br />
protetora dos valores da moral e dos bons costumes.<br />
A família que se desejava nesses anos iniciais do século XX pela República<br />
brasileira era a família burguesa. Quando referimos esse tipo de arranjo familiar<br />
como modelo social, compartilhamos da interpretação de Maria Ângela D’Incao ao<br />
afirmar que a família burguesa é<br />
aquela que nasceu com a burguesia e vai em seguida, com o tempo,<br />
caracterizando-se por um certo conjunto de valores, que são o amor<br />
5 BAKOS, Margaret Marchiori. A habitação em Porto Alegre: Problemas e projetos administrativos (1897-1937). Cadernos<br />
de Estudo: Programa de Pós-Graduação em História, UFRGS. Porto Alegre: UFRGS, n.1, p.1-85. Nov.<br />
1988. BAKOS, Margaret Marchiori. Porto Alegre e seus eternos intendentes. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.<br />
6 NUNES, Clarice. A escola reinventa a cidade. In: HERSCHMANN, Micael; PEREIRA, Carlos A. M. (Org.). A invenção<br />
do Brasil Moderno: medicina, educação e engenharia nos anos 20-30. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p.183.<br />
41
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
entre os cônjuges, a maternidade, o cultivo da mãe como um ser especial<br />
e do pai como um ser responsável pelo bem-estar e educação dos<br />
filhos, presença do amor pelas crianças e a compreensão delas como<br />
seres em formação e necessitados, nas suas dificuldades de crescimento,<br />
de amor e compreensão dos pais. Seria ainda próprio dessa situação<br />
o distanciamento cada vez maior da família em relação à sociedade<br />
circundante, circunscrevendo-se, dessa maneira, uma área doméstica<br />
privada em oposição a área pública; esta última é sentida pela família<br />
como sendo cada vez mais hostil e estranha, não digna de confiança7 .<br />
Ao longo desse período os grupos populares e médios iam tentando se moldar<br />
de acordo com os parâmetros dessa família padronizada e elitizada para poder<br />
usufruir do respeito e da valorização atribuídos a ela.<br />
O Juizado de órfãos de Porto Alegre é um exemplo de como o Poder Judiciário<br />
estava a intervir na uniformização da conduta familiar e, principalmente, preocupado<br />
com a formação do futuro cidadão – o menor. O Juízo dos órfãos foi, desde<br />
o período colonial até o início da República, umas das instituições mais importantes<br />
para a regularização da família e da criança, desempenhando ao longo do tempo<br />
atividades de proteção ao menor. Cuidou, num primeiro momento, dos menores<br />
da elite nas questões envolvendo suas heranças, da relação entre os menores e seus<br />
familiares ou tutores, como também de sua renda e de seus bens para depois, com<br />
a elaboração de políticas reguladoras para a nova sociedade, essa instituição passou<br />
a direcionar uma vigilância distinta para com o cuidado (abandono, saúde, educação<br />
etc.) da criança pobre. O Estado tornou esses indivíduos figuras centrais no espaço<br />
familiar, pois as crianças seriam os futuros cidadãos e cidadãs da República brasileira.<br />
O Juizado de órfãos, dessa forma, era um órgão essencial para se encaminhar e<br />
solucionar questões quanto ao abandono de crianças e a marginalização destas.<br />
Preocupado com o universo infantil, o Juízo dos órfãos mediou as ações<br />
praticadas pela família, pois essa era considerada como espaço gestor dos padrões e<br />
regras de comportamento social.<br />
Assim, a assistência à vida infantil incluía uma constante vigilância<br />
sobre os atos de seus pais. Um deslize, uma ‘falta de moral’ ou um desemprego<br />
eram suficientes para a ‘mão protetora do Estado’ interferir<br />
na vida privada e entregar a posse do menor a outra pessoa. Quando o<br />
juiz ‘comprovava’ as denúncias feitas por terceiros, ele poderia retirar<br />
dos pais a posse da criança, nomeando-lhe um tutor, ou até mesmo<br />
destituir, definitivamente os pais do pátrio poder8 .<br />
7 D’INCAO, Maria Ângela. Introdução. In:______. (Org.). Amor e família no Brasil. São Paulo: Editora Contexto,<br />
1989, p.10-1.<br />
8 AZEVEDO, Gislane Campos. De Sebastianas e Geovannis: o universo do menor nos processos dos juízes<br />
de órfãos da cidade de São Paulo (1871-1917). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1995,<br />
p.107.<br />
42
Dessa forma, a instituição da Tutela foi um dos instrumentos empregados<br />
por este órgão jurídico para regulamentar a família.<br />
Nesta sociedade que desejava ser moderna como as europeias<br />
há toda uma ideia de adestramento dos instintos naturais e de moldagem<br />
de corpos e mentes a uma nova ordem que se impõe. Este princípio<br />
converte, sob certo aspecto, todo ‘homem novo’ a uma situação de<br />
criança: ele é alguém que se intenta conformar as habilidades, inculcar<br />
valores, coibir comportamentos e treinar segundo um parâmetro desejado.<br />
Nesse raciocínio, quanto mais cedo este processo se iniciasse,<br />
maior a probabilidade de êxito teria na obtenção de um ‘tipo ideal’.<br />
Não é de espantar, pois, que esta estratégia formativa se voltasse para<br />
a infância9 .<br />
Assim, a família recebeu atenção, principalmente seus membros mais jovens,<br />
os quais possuíam um Juizado específico para tratar das questões relacionadas a<br />
estes.<br />
OS PROCESSOS DO JUíZO DOS óRFãOS<br />
A primeira pesquisa, que temos conhecimento, que se direcionou sobre este<br />
órgão jurídico foi a da antropóloga Cláudia Fonseca 10 , que buscou apresentar a circulação<br />
das crianças, no início do século XX, por várias casas/famílias, demonstrando<br />
que a prática, hoje tão comum nas famílias populares, de um terceiro (parente<br />
consanguíneo ou não) cuidar de um menor, já era recorrente no início deste século.<br />
Neste estudo, Cláudia Fonseca investigou 149 processos de “Apreensão de<br />
Menores” no município de Porto Alegre. Embora o livro de Cláudia Fonseca, em<br />
que estava incluso este trabalho, tenha sido publicado somente em 1995, a primeira<br />
edição; este estudo já havia sido publicado, com poucas alterações, em 1989. Dessa<br />
forma, faz mais de 20 anos que foi publicado um estudo que utilizou o Juizado dos<br />
órfãos de Porto Alegre como fonte para pesquisar a situação das crianças nesse<br />
município 11 .<br />
Estudos posteriores, realizados em outras localidades, direcionaram sua visão<br />
para os processos de Tutela que igualmente eram produzidos pelo Juizado de<br />
9 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Os trabalhadores do futuro. O emprego do trabalho infantil no Rio Grande do Sul<br />
da República Velha. História. São Paulo, 14, 1995, p.191.<br />
10 FONSECA, Cláudia. Uma Tradição de Gerações. In:______. Caminhos da Adoção. 3ª edição. São Paulo: Cortez,<br />
2006.<br />
11 Cláudia Fonseca publicou em vários períodos os avanços de suas pesquisas baseadas nessa fonte documental; em<br />
1989 o artigo - Pais e Filhos na família popular; em 1995 o livro – Caminhos da Adoção, que teve sua terceira edição em<br />
2006 e, por fim, em 2000 o artigo – Ser mulher, mãe e pobre.<br />
43
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
órfãos. A Tutela era um encargo conferido pelo Juiz de órfãos a uma pessoa (tutor)<br />
para que esta gerenciasse os bens e cuidasse da integridade física do menor 12 ,<br />
representando-o tanto em Juízo como fora deste. Isso ocorria quando uma criança<br />
era órfã de pai, ou quando este era ausente; o Juiz de órfãos nomeava um tutor para<br />
cuidar da criança, exceto quando não houvesse algum nome indicado em testamento.<br />
Acontecendo mesmo que o menor tivesse ou vivesse com a mãe, pois a esta era,<br />
geralmente, dificultada de assumir a responsabilidade jurídica de seus filhos. Esse<br />
fato ocorria por a mulher, nessa época, ser vista com desconfiança pela elite, em<br />
virtude dela possuir a capacidade de desvirtuar a sociedade com seus atos.<br />
A grande maioria dos estudos que utilizaram essa fonte judicial (os processos<br />
de tutela) se deteve mais nas mudanças promovidas pela Lei do Ventre Livre de 1871<br />
até a Abolição em 1888 13 . Esses trabalhos apresentaram as estratégias empregadas<br />
pelos senhores de escravos na manutenção dos serviços, tanto os praticados no<br />
âmbito do público, quanto àqueles realizados no âmbito do doméstico, por meio da<br />
tutela dos filhos das escravas.<br />
Essas pesquisas têm uma problemática muito clara, a qual facilita o trabalho<br />
para pesquisas em outras localidades brasileiras que tiveram esse Juizado no período<br />
de 1871 a 1888. Mas nossa pretensão é justamente avançar no tempo na busca por<br />
novos fragmentos da História. Acreditamos que nosso estudo possa apresentar uma<br />
nova possibilidade de utilização desta fonte para outras questões decorrentes dos<br />
anos iniciais do século XX, buscando compreender como esta instituição judiciária<br />
estava a influenciar a organização das famílias e suas práticas sociais e como esta<br />
zelava pela educação e saúde dos menores dentro do período republicano, período<br />
este de grandes mudanças na sociedade brasileira.<br />
Sabemos em relação aos processos de tutelas que esses “são uma excelente<br />
fonte qualitativa porque permitem recuperar histórias de famílias pobres” 14 , assim,<br />
por meio dessa fonte, considerando o período de análise, verificamos várias modi-<br />
12 No período compreendido nesse texto, o início do século XX, o termo menor referia-se aos indivíduos com até<br />
21 anos de idade, além de, “na passagem do século, menor deixou de ser uma palavra associada [somente] à idade,<br />
quando se queria definir a responsabilidade de um indivíduo perante a lei, para designar principalmente as crianças<br />
pobres abandonadas ou que incorriam em delitos” (LONDOÑO, 1998, p. 142), assim, além de representar indivíduos<br />
com até 21 anos de idade, a maioridade penal, esse termo ganhou um sentido pejorativo como confirmado<br />
nos estudos de Adriana Vianna (1999).<br />
13 Alguns pesquisadores já utilizaram esse tipo de processo como fonte primária em seus estudos acadêmicos como<br />
Gislane Campos Azevedo (1995), que embora afirme na introdução de seu trabalho e nas datas limites da pesquisa,<br />
1871 e 1917, não se deter nessa problemática, não consegue se desvencilhar dela fazendo apenas pequenas incursões<br />
pelo século XX; Anna Gicelle Allaniz (1997); Luciana Araújo Pinheiro (2003); Maria Aparecida Papali (2003);<br />
Arethuza Helena Zero (2004) e Heloísa Maria Teixeira (2006).<br />
14 SAMARA, Eni de Mesquita; TUPY, Ismênia S. Silveira T.. O Trabalho com o documento. In:______. História &<br />
Documento e metodologia de pesquisa. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p.113.<br />
44
ficações na sociedade brasileira, que foram incorporadas pelas instituições públicas<br />
como o Judiciário com o foco de regular a sociedade frente aos novos padrões<br />
sociais.<br />
O 3º CARTóRIO DO JUIZADO DISTRITAL DA VARA DE<br />
óRFãOS DE PORTO ALEGRE<br />
O Juizado de órfãos de Porto Alegre, no período de 1900 a 1927, era dividido<br />
em três Cartórios que, posteriormente, receberam o nome de Varas de Família<br />
e Sucessão do Município de Porto Alegre. Neste texto analisamos as informações<br />
contidas nos processos abertos no 3º Cartório ou 3ª Vara do Município de Porto<br />
Alegre, correspondendo a 167 processos de tutela, do total de 823 processos 15 , para<br />
os anos de 1900 a 1927, ou seja, 20% do total que está depositados no Arquivo Público<br />
do Estado do Rio Grande do Sul (APERS), como aponta o gráfico 1 abaixo.<br />
Gráfico 1: Processos por Vara baseado nos processos de tutela de 1900 a 1927<br />
depositados no APERS.<br />
Os dados analisados nessa fonte referem-se ao período de 1902 a 1925 16 e nos<br />
revelam uma preferência pelos menores do sexo feminino (gráfico 2), pois no total<br />
de 267 menores tutelados nesse período, 59% eram meninas. Este grande número de<br />
15 É importante salientar que há a grande possibilidade de inúmeros outros casos em condições semelhantes a da<br />
instituição da Tutela, atribuída pelo Juízo dos órfãos, não ter chegado ao conhecimento das autoridades; fato que<br />
nos apresenta uma pequena amostra da situação das crianças que passavam por alguma desestruturação familiar.<br />
16 1902 é o ano de início dos processos que estão depositados no APERS e 1925 marca o fim destes já que não há<br />
registros da abertura de processos posterior a essa data.<br />
45
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
meninas acredita-se que tenha ocorrido pela necessidade da proteção da integridade<br />
moral das menores, perpetuada pela virgindade dessas, ou também por elas ajudarem<br />
no trabalho doméstico. Pois a moral vigente na época ditava que as mulheres, ou<br />
meninas, deviam ficar “... resguardadas em casa, se ocupando dos afazeres domésticos,<br />
enquanto os homens asseguravam o sustento da família trabalhando no espaço<br />
da rua” 17 . Embora essa não fosse a prática fiel, tendo em vista que muitas mulheres<br />
trabalhavam fora do espaço privado, a casa, os suplicantes a tutor valorizavam essa<br />
moralidade em suas petições.<br />
46<br />
Gráfico 2: Sexo dos Menores baseado nos processos de tutela de 1902 a 1925<br />
depositados no APERS.<br />
A família dentro desse novo ideal se tornou um dos alvos da regularização<br />
social, ela deveria ser: nuclear, conjugal, monogâmica, buscando a disciplinaridade<br />
sexual18 , e um dos membros desta união era a mulher que deveria receber atenção<br />
redobrada, pois, como Sandra Pesavento afirma, as mulheres são vistas pela sociedade<br />
no início do século XX sendo<br />
basicamente, perigosas. Elas são uma alteridade inquietante, a marcar,<br />
pela sua natureza mutável um risco permanente para a sociedade<br />
da qual deveriam ser o esteio. A ameaça reside, basicamente, no seu<br />
poder de ação, sedução, autodeterminação, o que mostrava que, não<br />
sendo postas sobre controle, as mulheres ameaçavam toda a ordem<br />
social19 .<br />
17 FONSECA, Cláudia. Ser mulher, mãe e pobre. In: PRIORE, Mary Del (Org.); BASSANEZI, Carla (Coord. De<br />
Textos). História das Mulheres no Brasil. 3ª edição. São Paulo: Editora Contexto, 2000, p.517.<br />
18 COSTA, Jurandir Freira. Ordem médica e norma familiar. 5ª edição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004.<br />
19 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Os sete pecados de uma capital. In:______. Os sete pecados da capital. São<br />
Paulo: Editora Hucitec, 2008, p.12.
O gráfico 3 apresenta que essas concepções sociais sobre as mulheres se refletiam<br />
no Juizado de órfãos, pois apenas 17% dos tutores eram do sexo feminino, ou<br />
seja, dos 171 tutores que foram investidos por este Juízo no período, apenas 29 eram<br />
mulheres, das quais a grande maioria eram avós, mulheres já de idade que corriam<br />
menos riscos de caírem ou conduzirem um menor para o lado da imoralidade, do<br />
desapego ao trabalho ou do descaso com a educação.<br />
Gráfico 3: Sexo dos Tutores baseado nos processos de tutela de 1902 a 1925<br />
depositados no APERS.<br />
Ainda neste gráfico 3 pode-se perceber que havia certa difusão da importância<br />
da figura masculina no cuidado para com o menor, principalmente se este fosse<br />
uma menina, para protegê-la. Dessa forma, os homens teriam um respaldo maior<br />
para conseguir a tutela de um menor, pois a grande maioria dos processos foi iniciada<br />
por indivíduos do sexo masculino, os quais tiveram a maioria de seus pedidos<br />
deferidos pelo Judiciário.<br />
Esses dados nos permitem ver que a regulamentação do inciso 10º do Novo<br />
Roteiro dos órphãos de 1903, que diz: “Perdem o direito a Tutela as mães e avós,<br />
deixando de viver honestamente, ou casando-se; e não podem reavê-la ainda que<br />
viúvem outra vez (Ord. liv. 4º, tite. 102 § 4º) 20 ” ou mesmo o Código Civil Brasileiro,<br />
que começa a vigorar em 1917 substituindo as Ordenações Filipinas como código<br />
jurídico, que no artigo 395, inciso 3º, também coloca em linha tênue o comportamento<br />
dos pais ao apresentar que se perde o direito ao pátrio poder aquele “que<br />
praticar atos contrários a moral e aos bons costumes”.<br />
20 As citações foram transcritas respeitando-se a pontuação e a gramática original, mas atualizou-se a ortografia.<br />
47
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Dessa forma, podemos perceber que as mulheres, dentro da legislação que<br />
regulamentava a tutela dos menores, estavam em constante vigilância, pois se estas<br />
apresentassem um comportamento desviante segundo concepções de moralidade<br />
vigente na época ou mesmo se contraíssem novo casamento perderiam a tutela do<br />
menor, mesmo que este fosse seu filho.<br />
Um caso que podemos tomar como exemplo de atitude por parte do Juizado<br />
de órfãos é o processo da menor Alice 21 de 14 anos de idade, filha natural de Marcolina<br />
da Silva.<br />
Este processo foi encaminhado ao Juizado de órfãos por Balbina Brühl de<br />
Albuquerque, viúva, que denunciou que a mãe da menor Alice não tem condições<br />
“nenhuma” para cuidar da referida menor. A senhora Balbina pediu que a mãe da<br />
menor fosse ouvida, pois ela poderia confirmar suas declarações; quando esta foi<br />
intimada afirmou não se opor em sua filha ser tutelada por aquela senhora. Entretanto,<br />
o Juiz João Soares não deu o cargo de tutor à Balbina Brühl e indicou o senhor<br />
Alfredo Melo para exercer o cargo, sujeito o qual a mãe não concordou que fosse<br />
tutor de sua filha, apresentando no processo a reclamação contra esse homem, sem<br />
explicitar os motivos para a não investidura de Alfredo Melo. No mesmo dia o Juiz<br />
respondeu afirmando que “independente da carta acima (pedido de destituição do<br />
tutor feito pela mãe), intime o tutor nomeado para prestar o compromisso”.<br />
Podemos perceber que por causa da mãe não ter condições “nenhuma”, sejam<br />
elas quais fossem, pois o processo não as apresenta, o Juiz não considerou sua<br />
vontade no momento de deferir a tutela de sua filha a um terceiro, mesmo que este<br />
não pertencesse ao circulo familiar da referida menor.<br />
O gráfico 4 nos apresenta justamente que casos como da menor Alice, em que<br />
um terceiro que não tinha qualquer relação com a menor recebesse a tutela dessa,<br />
não eram a exceção, pois em 51% dos casos os tutores não possuíam qualquer vínculo<br />
seja consanguíneo (pai, mãe, avós, tios, irmãos etc.), de ofício (patrão) ou mesmo<br />
espiritual (padrinho ou madrinha) para com o seu tutelado.<br />
21 Processo número 630 de 1916 do APERS.<br />
48
Gráfico 4: Relação com o Menor baseado nos processos de tutela de 1902 a 1925<br />
depositados no APERS.<br />
Outros tantos processos foram iniciados porque a mãe contraiu segundas<br />
núpcias, assim o processo da menor Ernestina de Azambuja Moré 22 é um desses<br />
que exemplificam muitos outros casos que transcorreram pelo Juizado de órfãos<br />
de Porto Alegre neste período. Nesse processo sua mãe Arabella Bittencourt de<br />
Azambuja, viúva do Alferes Ernesto Emmanuel Moré, pede ao Juiz Hugo Teixeira<br />
que este dê um tutor para sua filha, pois ela, a mãe, contraiu segundas núpcias e dessa<br />
forma perdeu o pátrio poder sobre a referida filha. Como em outros casos, a senhora<br />
Arabella indica um familiar para, dessa forma, não perder contato com a menor e<br />
nem esta a referência familiar; indicando seu irmão, casado, Octavio Bittencourt de<br />
Azambuja. Uma estratégia legal encontrada pela mãe para esta não perder sua filha<br />
para outra pessoa.<br />
Mas o caso da menor Ernestina, em que há a indicação do tutor e este recebe<br />
a tutoria não era a regra, pois os gráfico 5 indica que justamente isso era a exceção,<br />
pois, por meio dele, evidencia-se que apenas 1% dos tutores que receberam a guarda<br />
de um menor foram indicados pelos suplicantes e a grande maioria destes, 94%<br />
não possuíam indicação, ou seja, a maioria dos aspirantes ao cargo de tutor entrou<br />
pessoalmente com a solicitação da tutela para si, ou mesmo o Juiz, com a autoridade<br />
que o revestia, indicava o tutor, de toda a forma, o Juiz tinha total autonomia para<br />
investir uma pessoa com o cargo de tutor, mesmo que isso viesse a romper com os<br />
laços familiares do menor, como o caso da menor Alice, visto anteriormente, em que<br />
um terceiro recebeu sua guarda.<br />
22 Processo número 611 de 1915 do APERS.<br />
49
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Gráfico 5: Tutor indicado baseado nos processos de tutela de 1902 a 1925 depositados no APERS.<br />
O gráfico 6 nos apresenta a idade dos menores tutelados e essa informação<br />
evidencia o que Silvia Arend já constatou para as famílias dos populares portoalegrenses<br />
do início do século XX, pois “para os populares, os filhos [ou os menores<br />
tutelados], após certa idade (em torno de 7 anos), deixavam de ser ‘uma boca a mais’<br />
para se tornar mão-de-obra” 23 , podendo contribuir na renda familiar, assim, explicando,<br />
um pouco, os motivo das maiores incidências de tutelas estavam atribuídas<br />
aos menores com 13 e 15 anos de idade.<br />
23 AREND, Silvia Maria Fávero. Dramas: A Família Popular. In:______. Amasiar ou Casar? A Família Popular<br />
no Final do Século XiX. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2001, p.67.<br />
50<br />
Gráfico 6: idade dos Menores baseado nos processos de tutela de 1902 a 1925<br />
depositados no APERS.
A maior parte dos processos foi iniciado devido ao falecimento do pai ou da<br />
mãe ou mesmo pelo menor não ter qualquer um de seus progenitores vivos (gráfico<br />
7), fazendo-se necessário um adulto legalmente constituído para ser responsável legal<br />
por esse menor, “em juízo ou fora dele”, até esse completar a maior idade, quando<br />
cessa-se a autoridade e a responsabilidade legal sobre um menor, consanguíneo<br />
ou não.<br />
Gráfico 7: Motivos do pedido de tutela baseado nos processos de tutela de 1902 a 1925<br />
depositados no APERS.<br />
Isso também se reflete na abertura dos processos estarem concentrados nos<br />
anos de 1923 a 1925, ou seja, 42% dos processos abertos nesse Cartório se centralizam<br />
nesses anos que, não por acaso, foram os anos posteriores a Gripe Espanhola<br />
que assolou o Estado do Rio Grande do Sul em finais do ano 1918 provocando um<br />
grande número de órfãos.<br />
CONCLUINDO, MAS NãO EM ABSOLUTO<br />
Temos muito que aprofundar nesta temática, mas a partir dos dados apresentados<br />
podemos observar que ocorreu, sim, um reflexo dos valores cultivados pela<br />
sociedade nos processos de tutela, bem como, uma forte influência masculina na<br />
legislação que regulava as questões dos menores. Este último fato foi somente rompido<br />
em 1962, com o artigo 380 do Código Civil o qual colocou marido e mulher<br />
em termos iguais quanto ao pátrio poder e que a viúva recasada não perderia mais o<br />
pátrio poder de seus filhos de casamentos anteriores.<br />
51
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Além disso, verificamos que as menores do sexo feminino possivelmente<br />
eram tuteladas em maior quantidade dos que os do sexo masculino por causa da<br />
necessidade moral de proteção da mulher e por ela poder contribuir nos afazeres<br />
domésticos. Os homens por não receberem tanta vigilância legal quanto às mulheres<br />
sobre os seus procedimentos acabavam com maior frequência revestidos do cargo<br />
de tutor de um menor. Os homens tanto quanto as mulheres eram vigiados em relação<br />
a sua conduta moral, mas as segundas sofriam mais, pois a vigilância sobre seus<br />
atos eram mais intensos que sobre os primeiros.<br />
O Juizado Distrital da Vara de órfãos de Porto Alegre, dessa forma, foi de<br />
grande valor para o Estado organizar as famílias que passavam por alguma situação<br />
de desagregação familiar ou mesmo nas composições de novas estruturas familiares<br />
já que mais da metade dos tutores não possuía vínculo com os menores e que esse<br />
Juízo, nas épocas de epidemia ou não, cuidou para que os menores tivessem um<br />
responsável legal sobre suas vidas e seus atos.<br />
52
REFERêNCIAS DOCUMENTAIS<br />
impressa<br />
Novo roteiro dos orphãos: ou guia pratica do processo orphanologico no<br />
Brazil : fundamentado na legislação respectiva, e illustrado pela lição dos<br />
praxistas, contendo muitas disposições novas a aréstos dos tribunaes, até ao<br />
presente, com o formulario de todos os processos. 3ª edição. Rio de Janeiro:<br />
Laemmert, 1903. 1 p.l., [v]-vi, 276p. Biblioteca da Faculdade de Direito da UFRGS.<br />
On Line<br />
ALMEIDA, Cândido Mendes de. Código Filipino ou Ordenações e leis do Reino<br />
de Portugal, recompiladas por mandado do rei D. Philippe i. 14ª edição.<br />
Rio de Janeiro: Tipografia do Instituto Philomathico, 1870. Disponível em: . Acesso em 25/04/2010.<br />
Manuscrita<br />
3ª Vara de Família e Sucessão<br />
APERS - Fundo Poder Judiciário, 3ª Vara de Família e Sucessão, Tutelas, Estante<br />
91, maço 24, [Caixa 004.1837, Estante 121G], autos 595-665 [autos 595-649]. Anos<br />
1913-1919 [Data limite: 01/01/1913-31/12/1918].<br />
APERS - Fundo Poder Judiciário, 3ª Vara de Família e Sucessão, Tutelas, Estante<br />
91, maço 23, [Caixa 004.1836 estante 121G], autos 536-594. [autos 543-594]. Anos<br />
1895-1946.<br />
APERS - Fundo Poder Judiciário, 3ª Vara de Família e Sucessão, Tutelas, Estante<br />
31, maço 26, autos 752-832. Anos 1923-1932.<br />
APERS - Fundo Poder Judiciário, 3ª Vara de Família e Sucessão, Tutelas, Estante<br />
121G, autos 650-976. Caixa 004.1838. Data limite: 01/01/1878-31/12/1919.<br />
REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
ALANIZ, Anna Gicelle García. ingênuos e libertos: estratégias de sobrevivência<br />
53
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
familiar em épocas de transição (1871-1895). Campinas/São Paulo: CMU/UNI-<br />
CAMP, 1997. 107p.<br />
AREND, Silvia Maria Fávero. Dramas: A Família Popular. In:______. Amasiar ou<br />
Casar? A Família Popular no Final do Século XIX. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS,<br />
2001. p. 49-69. 98p.<br />
AZEVEDO, Gislane Campos. De Sebastianas e Geovannis: o universo do menor<br />
nos processos dos juízes de órfãos da cidade de São Paulo (1871-1917). São Paulo:<br />
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1995. (Dissertação de Mestrado em<br />
História).<br />
BAKOS, Margaret Marchiori. A habitação em Porto Alegre: Problemas e projetos<br />
administrativos (1897-1937). Cadernos de Estudo: Programa de Pós-Graduação<br />
em História, UFRGS. Porto Alegre: UFRGS, n.1, p. 1-85. Nov. 1988.<br />
BAKOS, Margaret Marchiori. Porto Alegre e seus eternos intendentes. Porto<br />
Alegre: EDIPUCRS, 1996. 218p.<br />
COSTA, Jurandir Freira. Ordem médica e norma familiar. 5ª edição. Rio de Janeiro:<br />
Edições Graal, 2004. 282p.<br />
FONSECA, Cláudia. Pais e filhos na família popular. In: D’INCAO, Maria Ângela<br />
(Org.). Amor e família no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 1989. p. 95-128p. 160p.<br />
FONSECA, Cláudia. Ser mulher, mãe e pobre. In: PRIORE, Mary Del (Org.); BAS-<br />
SANEZI, Carla (Coord. de Textos). História das Mulheres no Brasil. 3ª edição.<br />
São Paulo: Editora Contexto, 2000. p. 510-553. 678p.<br />
FONSECA, Cláudia. Uma Tradição de Gerações. In:______. Caminhos da Adoção.<br />
3ª edição. São Paulo: Cortez, 2006. p. 43-74. 152p.<br />
LONDOÑO, Fernando Torres. A origem do conceito menor. In: DEL PRIORE,<br />
Mary (Org.). História da Criança no Brasil. 5ª edição. São Paulo: Contexto, 1998.<br />
p. 129-145. 176p.<br />
MARINS, Paulo César Garcez. Habitação e Vizinhança: Limites da Privacidade no<br />
surgimento da metrópole. In: NOVAIS, Fernando A. História da Vida Privada no<br />
Brasil, 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 131-214. 724p.<br />
NUNES, Clarice. A escola reinventa a cidade. In: HERSCHMANN, Micael; PE-<br />
REIRA, Carlos A. M. (Org.). A invenção do Brasil Moderno: medicina, educação<br />
e engenharia nos anos 20-30. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 180-201. 226p.<br />
PAPALI, Maria Aparecida C. R. Escravos, libertos e órfãos: A construção da liberdade<br />
em Taubaté (1871-1895). São Paulo: Annablume; FAPESP, 2003. 220p.<br />
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Os sete pecados de uma capital. In:______. Os sete<br />
pecados da capital. São Paulo: Editora Hucitec, 2008. p. 9-21. 455p.<br />
54
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Os trabalhadores do futuro. O emprego do trabalho<br />
infantil no Rio Grande do Sul da República Velha. História. São Paulo, 14, p. 189-<br />
201, 1995.<br />
PINHEIRO, Luciana de Araújo. A civilização do Brasil através da infância: propostas<br />
e ações voltadas à criança pobre nos finais do Império (1879-1889). Rio de<br />
Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2003. (Dissertação de Mestrado em História).<br />
SAMARA, Eni de Mesquita; TUPY, Ismênia S. Silveira T.. O Trabalho com o documento.<br />
In:______. História & Documento e metodologia de pesquisa. Belo<br />
Horizonte: Autêntica, 2007. p. 67-116. 168p.<br />
TEIXEIRA, Heloísa Maria. A Labuta sem Ciranda: crianças pobres e trabalho em<br />
Mariana (1850-1900). Revista Diálogos. UEM - Maringá/PR, v. 10, n. 3, p. 185-<br />
214, 2006.<br />
VIANNA, Adriana de Resende Barreto. O Mal que se adivinha: Polícia e Menoridade<br />
no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999. 198p.<br />
ZERO, Arethuza Helena. O preço da liberdade: caminhos da infância tutelada –<br />
Rio Clara (1871-1888). Campinas/São Paulo: Universidade Estadual de Campinas,<br />
2004. (Dissertação de Mestrado em Economia).<br />
55
2<br />
rePressão e<br />
Protesto<br />
nA históriA do<br />
teMPo Presente
CorAção de luto: teixeirinhA e o<br />
Protesto dos esqueCidos<br />
Francisco Alcides Cougo Junior*<br />
Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar parte da produção musical do cantor e compositor<br />
Vitor Mateus Teixeira, o Teixeirinha, autor de canções que permanecem como grandes sucessos<br />
de público. No trabalho, enfoco alguns porquês deste sucesso e, especialmente, de sua perenidade,<br />
dando destaque ao que a historiadora e jornalista Mirian de Souza Rossini chamou de “laço empático”,<br />
isto é, o elo que ligava o público à música de Teixeirinha. Ao abordar parte do cancioneiro de Teixeira,<br />
aponto para algumas gravações que enfatizaram valores, sentimentos e até protestos de determinado<br />
segmento social, especificamente aquele descrito pela filósofa Marilena Chauí como a “população popular”.<br />
Palavras-chave: Teixeirinha – música popular – canção de protesto.<br />
INTRODUçãO<br />
Teixeirinha (Vitor Mateus Teixeira, 1927-1985) faleceu há 25 anos,<br />
mas, mesmo assim, inúmeros programas de rádio dedicam espaço a<br />
seu cancioneiro. Em Porto Alegre, as emissoras Liberdade FM e Rural<br />
AM possuem horários específicos em que só tocam o repertório do astro gaúcho.<br />
No interior do Rio Grande do Sul, rádios como a Planalto FM (de Passo Fundo)<br />
e a Santa-Mariense AM, também mantêm produções regulares em homenagem ao<br />
cantor. Até no Rio de Janeiro e no Sergipe, Teixeirinha segue sendo ouvido.¹<br />
Estes programas, quase todos campeões de audiência em seus horários, representam<br />
apenas uma parte do “fenômeno social” que é a produção musical de<br />
Teixeirinha, um sucesso que segue rompendo paradigmas e recordes, fronteiras e<br />
* Licenciado em História pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e Mestre em História pela Universidade<br />
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).<br />
¹ Em Porto Alegre, a Rádio Rural AM 1220 leva ao ar, de segunda à sexta, às 20h, o programa Querência Amada e,<br />
aos domingos, às 12h, o Estúdio Betha, ambos apresentados por Elizabeth Teixeira, filha de Teixeirinha. Em Passo<br />
Fundo, o Programa Teixeirinha é transmitido pela Rádio Planalto FM aos domingos, entre 8 e 10h, sob a apresentação<br />
de João do Prado. Em Santa Maria, a Rádio Santa-Mariense produz o programa Abre a porteira, Rio Grande, sob o<br />
comando de João Caetano Brum. Já em Nova Friburgo (RJ), Joel de Sá Martins apresenta Relembrando Teixeirinha, de<br />
segunda à sexta, entre 4 e 6 da manhã. Na cidade de Lagarto (SE), a Rádio Jenipapo FM homenageia o cantor com<br />
um programa exclusivo veiculado aos sábados, às 6 da manhã.<br />
59
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
gerações. O cantor, que teria vendido cerca de 80 milhões de discos (segundo as<br />
sempre controversas cifras da indústria fonográfica), é um dos mais populares artistas<br />
brasileiros, conhecido do Oiapoque ao Chuí e ouvido à exaustão por fãs de<br />
diferentes regiões, idades e classes sociais. Seus 573 fonogramas revelam uma infinidade<br />
de temas, ritmos, gêneros e construções criativas, elementos que sobrevivem<br />
ao tempo, cativando cada vez mais ouvintes.<br />
A perenidade do sucesso musical de Teixeirinha intriga. Os porquês de tamanho<br />
êxito mesmo passados tantos anos de seu “estouro”, podem encontrar respostas<br />
na própria atualidade do repertório que o artista criou. A historiadora e jornalista<br />
Mirian de Souza Rossini revela que o sucesso de Teixeirinha só foi possível porque<br />
a vida do artista, contada continuamente em sua obra, fez com que “vasta gama da<br />
população, que normalmente não tem voz na mídia, se visse representada pela sua<br />
própria ótica”.² A este fenômeno, a pesquisadora dá o nome de “laço empático”.<br />
É curioso perceber que este “laço” segue presente na relação entre a produção<br />
musical do artista e seus ouvintes. Enquanto canções emblemáticas dos anos<br />
1960 e 1970 parecem ter perdido popularidade, a maior parte do cancioneiro de<br />
Teixeirinha segue vigorando como de grande sucesso. Neste artigo, irei redimensionar<br />
este fenômeno a partir de uma parcela do repertório de Vitor Mateus Teixeira,<br />
mais especificamente aquela que discorre sobre as agruras da chamada “população<br />
popular” 3 , segmentos compostos pelos baixos extratos da sociedade, para os quais,<br />
em geral, as composições de Teixeirinha eram direcionadas. Se algumas canções que<br />
marcaram época, como Alegria, alegria 4 e Cálice 5 – reverenciadas pela historiografia<br />
como referências da oposição da MPB à ditadura civil-militar instaurada no Brasil,<br />
em 1964 – perderam o fôlego de sua popularidade (estando muito mais consolidadas<br />
como registros históricos pela academia/crítica do que pela memória coletiva popular<br />
em si), a música de Teixeirinha atravessa a via contrária: é pouco lembrada pelas<br />
esferas da formação de pensamento e memória “oficial”, mas muito recordada pela<br />
memória coletiva (e afetiva) popular. Este trabalho discorre sobre os porquês de tal<br />
fenômeno e enfoca a atualidade do discurso cancionista de Teixeirinha, elemento<br />
fundamental, responsável direto por sua perenidade, tendo em vista sua validade.<br />
Como fontes deste trabalho, utilizo, primordialmente, algumas peças musicais<br />
do acervo fonográfico de Teixeirinha (composto por 573 fonogramas gravados em<br />
quatro empresas fonográficas diferentes) e alguns depoimentos do artista, colhidos<br />
² ROSSINI, Mirian de Souza. O popular cinema de Teixeirinha. BECKER, Tuio. Cinema no Rio Grande do Sul. Porto<br />
Alegre: UE/Porto Alegre, 1995, p. 73.<br />
³ CHAUí, Marilena. Conformismo e resistência. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 10.<br />
4 Alegria, alegria (Caetano Veloso) Gravação de Caetano Veloso. LP “Caetano Veloso” – Philips P.1967.<br />
5 Cálice (Chico Buarque – Gilberto Gil) Gravação de Chico Buarque. LP “Chico Buarque” – Philips P.1978.<br />
60
em pesquisas no arquivo da Rede Brasil Sul de Televisão (RBSTV) e no acervo da<br />
Fundação Vitor Mateus Teixeira - Teixeirinha. Com esta análise, pretendo também<br />
enfatizar a importância do objeto documental fonograma (em seus mais diferentes<br />
dispositivos: discos, fitas, mídia digital), produzido à exaustão durante todo o século<br />
XX, mas ainda tão parcamente utilizado como registro histórico.<br />
PAULADA NO PAPAI NOEL, TAPA NA GRANFINA<br />
Vitor Mateus Teixeira nasceu em 3 de março de 1927, no município gaúcho<br />
de Rolante, na época distrito da cidade de Santo Antônio da Patrulha, 95km<br />
distante da capital do Rio Grande do Sul. Aos seis anos, o futuro cantor perdeu<br />
o pai, o carreteiro Saturnino Francisco Teixeira, que faleceu vitimado por um<br />
ataque cardíaco. Três anos depois, foi a lavradora Ledurina Mateus, mãe de Teixeirinha,<br />
que morreu. Ela caiu sobre uma pequena fogueira, logo após sofrer um<br />
ataque epilético, e não resistiu às queimaduras. Em 1936, “sozinho no mundo”,<br />
o menino Vitor começava uma verdadeira peregrinação, que só teve fim às portas<br />
da década de 1960, quando ele casou-se e fixou residência no município de<br />
Passo Fundo. Dali, o cantor que já fazia sucesso excursionando pelo interior do<br />
Estado, saiu para São Paulo, onde – em 1959 – gravou suas primeiras canções.<br />
Em 1960, o disco de 78 rotações contendo o xote Gaúcho de Passo Fundo e a toada-milonga<br />
Coração de luto chamou a atenção do público brasileiro e alcançou o<br />
topo da parada de sucessos. Teixeirinha ficou rico, mudou-se para Porto Alegre<br />
e lançou 49 LPs inéditos e uma infinidade de discos compactos, numa carreira<br />
de sucesso que perdurou por 26 anos. Em 1961, o cantor firmou parceria com<br />
a jovem acordeonista Mary Terezinha, dando início a uma das mais populares<br />
duplas da música no Brasil. A partir de 1967, Teixeirinha também passou a atuar<br />
no cinema, onde contracenou em 12 longas-metragens – dez deles produzidos<br />
pela Teixeirinha Produções Artísticas.<br />
Dos 58 anos que viveu, Teixeirinha passou quase metade deles em sérias dificuldades.<br />
Quando criança, habitou as ruas, “fazendo bicos” e convivendo, de perto,<br />
com a incerteza da sobrevivência:<br />
Esse foi o momento mais triste da minha vida. Porque ele não só doeu<br />
na hora. Ele doeu por muitos anos, porque os nove anos perdidos<br />
pelo mundo, passando fome, passando frio, dormindo em viadutos,<br />
dormindo dentro de canos, dormindo dentro de matos, comendo folha<br />
de araçá ou de pitangueiras para matar a fome... Então, eu tive dias<br />
que eu sentava na calçada ou na beira da estrada e dizia: ‘Mãe, vem me<br />
buscar que eu não agüento mais a fome. Não agüento mais o sofrimento’.<br />
Ela não veio, Deus quis que fosse assim e depois de dezoito<br />
61
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
anos – que eu tive documentos, fui trabalhar e tudo – me acompanha<br />
só a grande saudade e o grande amor, porque amor de mãe não existe<br />
nenhum igual. 6<br />
Ainda jovem, Vitor Mateus Teixeira trabalhou em granjas, pensões e foi tratorista<br />
do DAER (Departamento Autárquico de Estradas e Rodagens), seu último<br />
emprego antes de decidir tornar-se cantor profissional. A meu ver, esta vida de extremas<br />
incertezas e dificuldades forjou a personalidade do compositor Teixeirinha,<br />
um artista de grande fluidez criativa, que, se por um lado herdou explícitos traços<br />
artísticos dos nomes da “Era do Rádio” (décadas de 30-40), por outro, criou um ambiente<br />
musical completamente próprio, especialmente no que tange às temáticas de<br />
suas gravações. É dentro deste contexto que enxergo o “laço empático” citado por<br />
Mirian Rossini. Tendo vivenciado na carne as agruras da maior parte da população<br />
brasileira, em geral pobre e esquecida pelo poder econômico subjugador, Teixeirinha<br />
conseguiu transportar uma espécie de “sentimento de classe” para seu cancioneiro, o<br />
que lhe facilitou a comunicação com seus ouvintes. Acrescente-se a isso a explosão<br />
do mercado de bens de consumo culturais no Brasil dos anos 60 e 70 e o caráter<br />
eminentemente popular de sua carreira (gestada no rádio e alimentada por apresentações<br />
simplíssimas em carrocerias de caminhões e circos de chão batido, Brasil<br />
afora), e temos o perfil de sucesso do cantor.<br />
Um sucesso que, aliás, fica ainda mais claro quando abordamos as minúcias da<br />
produção musical de Teixeirinha, ainda hoje parcamente analisada em sua totalidade<br />
(até porque, a historiografia da música no Brasil continua sendo bastante preconceituosa<br />
em relação à “canção popular”). 7 Variada, mas focada, a música de Teixeirinha<br />
possui um mote temático muito comum: o enfoque na tristeza, no sentimento de<br />
abandono, na orfandade, na pobreza e nas desigualdades sociais. Dirigida a um público<br />
eminentemente pobre, o cancioneiro do artista é autobiográfico e, ao mesmo<br />
tempo, reflexivo de um contexto que, infelizmente, pouco se alterou. Ele discorre<br />
sobre a fuga do campo para as cidades, a pobreza dos menores abandonados e as<br />
disparidades sociais. Das 573 canções gravadas por Teixeirinha e que compõem o suporte<br />
documental deste trabalho, 171 trazem as palavras “triste”, “tristeza” ou “tristonho”<br />
no corpo do texto, o que representa cerca de 30% de toda a produção do artista.<br />
Mais do que uma estatística, este dado nos leva a concluir que – ao contrário de<br />
Pedro Raymundo ou José Mendes, por exemplo, artistas gaúchos reconhecidos por<br />
repertório baseado em “causos” humorísticos cantados – Teixeirinha primou por<br />
uma temática essencialmente melancólica, boa parte dela evocativa de seu próprio<br />
6 Depoimento de Teixeirinha ao programa J. Silvestre. Disponível no documentário Teixeirinha – O Gaúcho Coração do<br />
Rio Grande. RBSTV, 2005.<br />
7 Para maiores informações, consultar: NAPOLITANO, Marcos. A historiografia da música popular brasileira (1970-<br />
1990): síntese bibliográfica e desafios atuais da pesquisa histórica. ArtCultura. Uberlândia, v.8, n.13, jul.-dez. 2006.<br />
62
passado de pobreza e abandono, o mesmo vivido por alguns de seus milhares de fãs.<br />
Além disso, esta produção musical com enfoque na “tristeza brasileira” é quase<br />
toda cantada em primeira pessoa, um fato de fundamental importância. O autor<br />
que substitui o “nós” pelo “eu” dá voz às suas vivências, traumas e emoções. O<br />
emprego desta modalidade verbal, tanto nas letras quanto nos títulos das canções,<br />
recupera um sentir presente num espaço-tempo determinado. A historiadora Maria<br />
Izilda Matos afirma que “a construção na primeira pessoa dá à canção e a todos<br />
que cantam a possibilidade da subjetivação da mensagem, uma identificação com o<br />
compositor, um sentimento que passa a ser também coletivo, ou seja, uma interpretação<br />
individual de uma sensação geral”. 8 Tal interpretação só é possível na medida<br />
em que o público-ouvinte assimila a mensagem que lhe é transmitida. Para isso, é<br />
necessário que este mesmo público tenha vivenciado o que é cantado, ainda que<br />
subjetivamente.<br />
A experiência afetiva só tem sentido para quem viveu. A relação do<br />
público com a canção efetiva-se na forma de relatar as experiências e<br />
provocar uma empatia por aproximação com elas. O desafio do compositor<br />
é fazer com que a experiência relatada pareça ter sido realmente<br />
vivida, recuperando o sentimento e dando credibilidade à canção. 9<br />
Esta identificação parece ter acompanhado a carreira de Vitor Mateus Teixeira<br />
durante toda sua vida. Como é comum, por exemplo, na música caipira (uma<br />
das inegáveis referências de Teixeirinha), suas canções – mesmo as autobiográficas<br />
– “denunciam a transferência de pobreza de áreas rurais para áreas urbanas” 10 e<br />
apontam para as péssimas condições criadas pelo desenvolvimento da sociedade capitalista<br />
brasileira entre as décadas de 1960 e 1970, principalmente. Em certa medida,<br />
elas representam a forma de vida imposta a milhares de brasileiros e, por isso, uma<br />
considerável parcela da população sentia-se como se sua própria história de dificuldades<br />
estivesse sendo contada, formando-se, pois, o “laço empático” que deu tanta<br />
popularidade a Teixeirinha. Entrevistado em 1985 sobre o assunto, o cantor revelou<br />
crer nesta identificação tácita entre o público e suas canções: “Num caso como Coração<br />
de luto, que fez tanta gente chorar, a gente vê muita gente chorando, puxando<br />
lenço, relembrando um caso que passou, porque já não tem mais mãe, ou com pena<br />
de tantas crianças que não tem” – afirmou. 11<br />
A propósito, Coração de luto, a canção citada por Teixeirinha, é um grande<br />
exemplo do quanto seu repertório buscou e conseguiu identificação com a “po-<br />
8 MATOS, Maria Izilda Santos de. Dolores Duran: Experiências boêmias em Copacabana nos anos 50. Rio de Janeiro: Bertrand<br />
Brasil, 1997, p. 88.<br />
9 TATIT, Luiz. O cancionista: composições de canções no Brasil. São Paulo: Edusp, 1996, s/p.<br />
10 ULHÔA, Martha Tupinambá de. Música sertaneja em Uberlândia na década de 1990. ArtCultura, Uberlândia-MG,<br />
nº9, jul.-dez./2004, p.61.<br />
11 Depoimento de Teixeirinha em Teixeirinha Especial. RBSTV, 5-12-1985.<br />
63
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
pulação popular”. Lançada em julho de 1960, a toada-milonga conta a história da<br />
infância de Teixeirinha, mais especificamente a morte de sua mãe, ocorrida quando<br />
ele contava apenas nove anos. Na letra, o cantor explora a temática da perda e, principalmente,<br />
da orfandade. Só que o resultado de sua canção-autobiográfica vai mais<br />
além: em versos bastante diretos, o cantor enfatiza sua condição de pobre abandonado<br />
– “passei fome, passei frio / por este mundo, perdido”. 12 Coração de luto tornou-se<br />
um grande sucesso no exato momento em que o Brasil vivia um período de otimismo<br />
extremo, embalado pela série de inaugurações do governo Juscelino Kubitscheck<br />
(dentre elas a moderna capital Brasília) e seu programa de desenvolvimento capitalista<br />
“50 anos em 5”. A propaganda institucional do governo investia na idéia de que<br />
o país transpirava progresso, que entrara de vez na era das grandes potências e no<br />
“Primeiro Mundo”. Acontece que, por detrás daquele cenário de modernidade, nem<br />
tudo ia bem: a inflação, de quase 25%, consumia as finanças do Estado 13 ; mais de<br />
40% dos brasileiros vivia abaixo da linha da pobreza 14 e a expectativa média de vida<br />
chegava a apenas 41 anos em alguns Estados do Nordeste brasileiro. 15 Inúmeros menores<br />
abandonados, iguais aos cantados por Teixeirinha em Coração de luto, vagavam<br />
pelas ruas das grandes cidades, levando uma vida subumana e de poucas perspectivas.<br />
Não é descabido imaginar o quanto eles se identificassem com a canção.<br />
Em Conformismo e resistência, Marilena Chauí afirma que a sociedade civil brasileira<br />
é tradicionalmente autoritária, independentemente do regime governamental<br />
responsável pelo controle do Estado. É claro que em determinados momentos este<br />
autoritarismo se investe de outras roupagens e mesmo se redimensiona, muitas vezes<br />
ampliando-se. No entanto, para determinado segmento da população, ele é sempre<br />
forte. No Brasil, a história da música popular brasileira tem – não sem razões – atribuído<br />
grande importância à “canção engajada” ou “canção de protesto”, gestada a<br />
partir dos anos 1960, quando os movimentos musicais “pós-bossa nova” passaram a<br />
buscar formas de firmar uma arte engajada no combate ao regime antidemocrático<br />
e violento da ditadura civil-militar instaurada no país através do golpe de Estado,<br />
ocorrido em 1964. Esta idéia de protesto, que se firmou através de passeatas, peças<br />
teatrais e, principalmente, da música popular, enfrentou ampla perseguição por parte<br />
do Estado brasileiro, uma verdadeira caça que, através de um eficaz sistema de<br />
censura, tentou de todas as formas calar a voz de compositores politicamente ativos,<br />
como Geraldo Vandré ou Chico Buarque de Holanda.<br />
No entanto, fora da esfera universitária (onde o prostest song brasileiro foi ges-<br />
12 Versos de Coração de luto (Teixeirinha) Gravação de Teixeirinha. 78rpm PTJ 10.104 – Chantecler P.1960.<br />
13 SOARES, Gláucio Ary Dillon; D’ARAÚJO, Maria Celina (orgs.). 21 anos de regime militar: balanços e perspectivas. Rio<br />
de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1994, p. 16.<br />
14 Id., p. 300.<br />
15 BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. O Governo Kubitscheck. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 286.<br />
64
tado), outro tipo de canção de protesto circulava, mostrando uma realidade que<br />
perpassa a própria ditadura civil-militar do período, sendo um composto tradicional<br />
da história brasileira. Paulo Cesar de Araújo afirma que “é tênue a linha que separa<br />
uma simples e triste canção de amor de uma elogiada canção de protesto. Ambos<br />
os estilos podem conter o grito de milhões de brasileiros excluídos do sistema social,<br />
sem acesso à informação, educação e saúde pública”. 16 O historiador Marcos<br />
Napolitano também endossa essa idéia a partir de referências do chileno Juan Pablo<br />
Gonzalez. Analisando o texto performativo gravado em seus mais diversos níveis de<br />
significação, ele chega à conclusão de que<br />
(...) mesmo a canção estandardizada, catalogada como ‘comercial, impura,<br />
simplória e corporal’, tem algo a dizer sobre a sociedade e sobre<br />
os sujeitos que a consomem, nem sempre apenas pelo viés da ‘alienação’,<br />
como quer a tradição adorniana, ainda muito presente no meio<br />
acadêmico brasileiro. 17<br />
É este tipo de protesto sem “refutação” ou “combate aberto”, que “opera no<br />
interior da mitologia sem destruí-la, mas revelando suas ilusões” 18 que aparece em<br />
boa parte do cancioneiro de Teixeirinha. Se Coração de luto traz um relato autobiográfico<br />
de agruras e sofrimentos, outras canções vão mais além e escancaram relações<br />
diretas de desigualdade e pobreza, muitas vezes protestando contra a ordem vigente.<br />
Papai Noel, toada gravada em 1968, é um destes exemplos. Na canção, Teixeirinha interpreta<br />
(mais uma vez em primeira pessoa) a história de um menino magoado com<br />
a reconhecida figura natalina que, como em outras ocasiões, não lhe trouxe o tão<br />
desejado presente. O cantor lembra o grande número de pobres no país, revelandose<br />
condolente com os mesmos. Um verso é peculiar em relação a isso:<br />
Papai Noel,<br />
lhe esperei o ano inteiro.<br />
Só por falta do dinheiro,<br />
você esqueceu de mim! 19<br />
Note-se que esta canção é lançada exatamente às portas do Governo Médici,<br />
o mesmo que ficou reconhecido pela explosão do “Milagre Econômico” brasileiro,<br />
um momento de otimismo e de mensagens ufanistas que apregoavam o progresso<br />
do “país que vai pra frente”. Anos depois, mais ríspido e muito provavelmente levado<br />
pelo aumento das dificuldades de vida no país (fruto, justamente, da crise “pós-<br />
Milagre”), Teixeirinha volta a dirigir-se ao “bom velhinho”, desta vez cobrando-o<br />
16 ARAÚJO, Paulo Cesar de. Eu não sou cachorro, não. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 263.<br />
17 NAPOLITANO, Marcos. História e música popular: um mapa de leituras e questões. Revista de História 157. (2º<br />
semestre de 2007), p. 166.<br />
18 CHAUí, op. cit., p. 100.<br />
19 Versos de Papai Noel (Teixeirinha) Gravação de Teixeirinha. LP “Última tropeada” – Copacabana P.1968.<br />
65
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
diretamente por não tê-lo atendido quando criança e por, invariavelmente, esquecerse<br />
dos órfãos e pobres. Em Infância frustrada, de 1982, logo depois das primeiras<br />
estrofes, o cantor pergunta: “Porque, Papai Noel? Porque você não me visitava?”.<br />
Em seguida, ele volta à carga: “Papai Noel... / Velhinho esnobe, é comercial. / Papai<br />
Noel... / Por isso os pobres não ganham o Natal...”. Na seqüência a canção é encerrada<br />
com “Papai Noel, hoje em entendo quem é você. / É um comerciante que<br />
só propaga na televisão...”. 20 Neste caso, é importante notar que Teixeirinha buscou<br />
realmente criar um cenário de crítica social ao consumismo e à frustração que os pobres<br />
sentem por não poderem compartilhar das benesses do mundo capitalista. Isso<br />
fica claro quando ouvimos o ensaio de Infância frustrada, registrado em fita cassete e<br />
esquecido no acervo pessoal do cantor. Dirigindo-se ao produtor do disco, Leonir,<br />
Teixeirinha pede a ele que o arranjo do rasqueado faça alguma referência ao Natal<br />
(“um sininho, uma coisinha qualquer assim...”), mas, entretanto, revela estar rebatendo<br />
à figura do Papai Noel, “que me traiu muito quando eu era criança”. Teixeirinha<br />
prossegue: “Isso é frustração. Mas quem é que não se frustra quando, na infância,<br />
não tem as coisas, não é? E eu estou dando uma paulada no Papai Noel!”. 21<br />
Tão emblemática quanto a briga de Teixeirinha contra a falta de condições<br />
dos pobres e explorados é sua rusga com um fato que o cantor vivenciou na pele, e<br />
que transportou para seu cancioneiro com vigor, certamente por saber que o público<br />
ouvinte se identificaria. Trata-se da disparidade social entre classes, tão comum no<br />
Brasil desde longa data. Diversas canções de Vitor Mateus Teixeira deram conta do<br />
problema da desigual distribuição de renda e dos conflitos sociais provocados por<br />
ela, algo muito dissimulado pelos governantes, mas crônico na sociedade brasileira.<br />
Em 1960, quando Coração de luto tornou-se campeã de vendas em todo o país, “os<br />
10% mais pobres da população receberam 1,9% da renda total, enquanto os 10%<br />
e os 1% mais ricos receberam, respectivamente, 39,6% e 11,9% de toda a riqueza<br />
produzida no país”. 22 Graças à inércia governamental dos períodos posteriores, este<br />
quadro só piorou: em 1999, a título de exemplo, os 10% mais ricos da população<br />
receberam 45,7% de toda a riqueza gerada no país, enquanto os 10% mais pobres,<br />
apenas 1%, recebendo pouco mais de 100 reais por mês.<br />
A desigualdade econômica brasileira gerou uma clivagem social acentuada<br />
que se reflete até hoje nas mais variadas instâncias. Uma conseqüência real dela diz<br />
20 Versos de Infância frustrada (Teixeirinha) Gravação de Teixeirinha. LP “Que droga de vida” – Chantecler P.1982.<br />
21 A fita contendo a gravação encontra-se, sem identificação, no acervo pessoal de Teixeirinha, na casa do cantor, em<br />
Porto Alegre. Para maiores informações, consultar: COUGO JUNIOR, Francisco; REIS, Nicole Isabel dos. Nos<br />
porões da Glória: uma reflexão sobre arquivos pessoais, Teixeirinha e alguns cruzamentos entre História e Antropologia.<br />
Aedos. Porto Alegre, v.1, n.1, 2008. (Disponível em http://www.seer.ufrgs.br/index.php/aedos/article/<br />
view/9819/5620).<br />
22 TEIXEIRA, Ricardo Augusto Grecco. Breves retratos do Brasil: a distribuição de renda. Estudos. Londrina: CLAI<br />
/ Fé, Economia e Sociedade, julho/2002, p.2.<br />
66
espeito às impossibilidades de bom relacionamento entre classes distintas, sem que<br />
haja sobreposição de uma por outra. Em termos reais, pobres e ricos vivem em<br />
realidades diferentes e estão o mais afastados possível. Neste processo, chamam<br />
atenção as formas pelas quais a camada mais pobre da sociedade acaba manifestando<br />
seu descontentamento com tal situação. Em relação a isso, a música tem sido um<br />
importante veículo de protesto – consciente ou inconscientemente. Neste ínterim,<br />
Teixeirinha foi pródigo, pois muitas de suas composições trazem histórias nas quais<br />
ele é ora narrador, ora personagem principal. Estas narrativas tratam de questões extremamente<br />
interessantes, em especial relativas às divergências sociais entre pobres e<br />
ricos (ou empregados e patrões), ao sonho da ascensão social – seja na zona urbana,<br />
seja no cotidiano rural (geralmente ligada a golpes de sorte, casamentos ou proezas<br />
conquistadas graças à humildade e confiança no destino que um dia atende a quem<br />
nele acredita) – e também ao sofrimento de quem trabalha duro, mas ganha pouco.<br />
Estas composições, a meu ver, mostram o que Araújo chama de “luta de classes na<br />
sociedade – e na perspectiva dos oprimidos”. 23<br />
Canções de temática aparentemente amorosa são peculiares neste sentido. O<br />
tango Vida fantasia, de 1969, é um bom exemplo. Nele, o personagem principal – interpretado<br />
pelo próprio Teixeirinha – está apaixonado por uma mulher rica, mas não<br />
é correspondido justamente por ter se atrevido a “lhe querer bem, sem pensar que<br />
não devia”, já que ela “ao ver que eu não era rico / voltou com sua nobreza”. A mulher<br />
amada não suporta a vida de misérias, pois, nas palavras do autor, “quem nasceu<br />
para ser nobre / não acostuma à pobreza”. Um dos versos da composição mostra,<br />
além disso, que não basta apenas uma posição financeira favorável para que o amor<br />
seja possível. Um elevado grau de educação e um status social adequado também<br />
são imprescindíveis. É por isso que, em meio a toda sua melancolia (ressaltada pela<br />
tristonha melodia do tango e de um plangente violino realizando o complemento<br />
harmônico), o personagem principal diz:<br />
Nunca foi o seu dinheiro<br />
que pra mim teve valor.<br />
Apenas lhe amo tanto,<br />
só queria o seu amor.<br />
Não reconheci que sou<br />
simplesmente um trovador.<br />
Você está com a razão,<br />
merece um nobre doutor. 24<br />
23 ARAÚJO, op. cit., p. 85.<br />
24 Versos de Vida fantasia (Teixeirinha) Gravação de Teixeirinha. LP “Volume de prata” – Copacabana P.1969.<br />
67
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
No elenco dos velados protestos contra as disparidades entre os brasileiros,<br />
algumas canções de Teixeirinha foram ainda mais longe. E digo isso, justamente<br />
porque elas não evocaram histórias fictícias ou relatos autobiográficos na transmissão<br />
das mensagens objetivadas, mas sim desenharam protestos explícitos, dirigidos a<br />
qualquer rico que, porventura, possa ter ultrajado aos pobres. Nesta linha, algumas<br />
das composições mais significativas dão conta da figura do “granfino”, indivíduo<br />
“metido a rico, elegante, aristocrata” 25 , “que vive com luxo” 26 , uma figura comum<br />
nos anos 1960-1970, rotulada como um abastado ou ainda o “bacana”. Em algumas<br />
canções evocativas ao “granfino”, Teixeirinha dirige-se diretamente ao personagem.<br />
Sintomaticamente, a principal peça artística relativa ao tema data do início dos anos<br />
1980, quando o país vivia um dos piores momentos de sua economia, após o colapso<br />
pós-Milagre. O tango Granfina, de 1979, opõe a rica – “esnobe da cabeça aos pés”<br />
– àquela que “lava o chão”, numa nítida defesa à emprega doméstica, muitas vezes<br />
obrigada a morar em seu quarto de fundos, pequeno e escuro, uma espécie de anexo<br />
à residência, renegado ao isolamento e remontando à própria tradição da casa grande<br />
e da senzala do Brasil-colônia – na qual criados e senhores não podiam misturar-se.<br />
No tango, Teixeirinha iguala as duas mulheres: “Tu não pensa que o teu sangue / só<br />
por ser de gente nobre, / é diferente da pobre / que lava o chão e a vidraça. / Granfina,<br />
a tua arrogância / provocou os versos meus. / Neste mundo de um só Deus /<br />
preconceito é uma desgraça!”. No desfecho da canção, ele as equipara novamente,<br />
chegando a citar o grande abismo social entre ambas:<br />
Granfina, já foste minha<br />
sem roupa e sem maquiagem.<br />
Vi em ti a mesma imagem<br />
da mulher que lava o chão.<br />
Só o orgulho e o esnobismo<br />
e a diferença social.<br />
Este é o teu grande mal<br />
granfina sem coração! 27<br />
Paulo Cesar de Araújo afirma que canções como estas, cantadas em primeira<br />
pessoa, sobre temas que demarcam tacitamente o lugar-social de determinado segmento<br />
da população, podem ser absorvidas por seus ouvintes como um discurso<br />
que fala sobre eles próprios. Ao analisar o bolero Eu não sou cachorro, não, de Waldik<br />
Soriano, o historiador afirma:<br />
25 LUFT, Celso Pedro. Minidicionário Luft. São Paulo: Editora Ática, 1996, p. 324.<br />
26 HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro Salles. Minidicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva,<br />
2004, p. 375.<br />
27 Versos de Granfina (Teixeirinha) Gravação de Teixeirinha. LP “20 anos de glória” – Chantecler P.1979.<br />
68
(...) a canção reflete a condição social e os embates contra o autoritarismo<br />
vivenciados pelo próprio autor. E tudo isto serve de ‘indícios’,<br />
‘sinais’, de que a opressão relatada na letra de Eu não sou cachorro,<br />
não, não se refere somente a uma relação amorosa e nem que o público<br />
a interpretasse apenas desta maneira. 28<br />
Ao conversar com sua parceira Mary Terezinha e com a amiga e cantora Berenice<br />
Azambuja (em uma descontraída conversa registrada em fitas cassete), Teixeirinha<br />
sinaliza saber disso. Após mostrar Granfina à Berenice (cantando, acompanhado<br />
por Mary), o cantor revela com ar de vingança: “Isso sim que é sucesso! As mulherzinha<br />
[sic] de morro e a empregadinha doméstica vão enlouquecer tudo! Dá um tapa<br />
na granfina, não é?”. 29 Ou seja, nesta gravação vemos a explícita intencionalidade de<br />
Teixeirinha em produzir uma canção que remontasse a realidade de um determinado<br />
segmento da população e seu lugar-social.<br />
CONSIDERAçõES FINAIS<br />
Mais do que composta por canções “comerciais” ou “popularescas” – como<br />
pretendem críticos e mesmo historiadores da música popular brasileira –, a produção<br />
musical de Teixeirinha traz elementos que podem ser tomados como protestos contra as<br />
condições subumanas de uma parte considerável da população brasileira, ora explorada<br />
pelo patrão “granfino”, ora carente de um amor que acaba por ser impossível em virtude<br />
de diferenças sociais, mas – irremediavelmente – triste e marcada pelo desafio da sobrevivência<br />
em meio à calamidade das clivagens sociais. Canções como Coração de luto, Vida<br />
fantasia ou Granfina apresentam em seus versos uma forma de desabafo contra a opressão<br />
e o tratamento humano degradante, um clamor por melhorias, o “desejo único pelo qual<br />
o oprimido se diferencia radicalmente do opressor: o desejo da não-agressão”. 30 Com<br />
isso, vemos que – mesmo em uma produção musical comumente encarada como alienada<br />
aos problemas sociais e criticada por um não-envolvimento político direto – uma<br />
linguagem diferente de protesto está presente. Como corrobora o professor Eduardo<br />
Granja Coutinho, “uma canção política não significa necessariamente canção revolucionária<br />
ou de agitação. Sem se colocar frontalmente contra o regime, uma canção pode ser<br />
política por expressar críticas sociais e de costumes, como um samba de Noel Rosa ou<br />
uma marchinha de Lamartine Babo”. 31 Ou um tango de Teixeirinha que, pela atualidade<br />
das denúncias que faz, continua válido. E fazendo sucesso.<br />
28 ARAÚJO, op. cit., p. 238.<br />
29 Fita cassete encontrada no arquivo pessoal do cantor, sem identificação.<br />
30 CHAUí, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez, 1997, p.54.<br />
31 COUTINHO, Eduardo Granja. Velhas histórias, memórias futuras: o sentido da tradição na obra de Paulinho da Viola.<br />
Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ. Rio de Janeiro: Eco, 1999, p.60.<br />
69
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
70<br />
REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
ARAÚJO, Paulo Cesar de. Eu não sou cachorro, não. Rio de Janeiro: Record, 2002.<br />
BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. O Governo Kubitscheck. Rio de Janeiro:<br />
Paz e Terra, 1979.<br />
CHAUí, Marilena. Conformismo e resistência. São Paulo: Brasiliense, 1994.<br />
_____________. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez,<br />
1997.<br />
COUGO JUNIOR, Francisco; REIS, Nicole Isabel dos. Nos porões da Glória: uma<br />
reflexão sobre arquivos pessoais, Teixeirinha e alguns cruzamentos entre História e<br />
Antropologia. Aedos. Porto Alegre, v.1, n.1, 2008.<br />
COUTINHO, Eduardo Granja. Velhas histórias, memórias futuras: o sentido da tradição na<br />
obra de Paulinho da Viola. Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da<br />
UFRJ. Rio de Janeiro: Eco, 1999.<br />
HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro Salles. Minidicionário Houaiss da língua portuguesa.<br />
Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.<br />
LUFT, Celso Pedro. Minidicionário Luft. São Paulo: Editora Ática, 1996.<br />
MATOS, Maria Izilda Santos de. Dolores Duran: Experiências boêmias em Copacabana nos<br />
anos 50. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.<br />
NAPOLITANO, Marcos. A historiografia da música popular brasileira (1970-1990):<br />
síntese bibliográfica e desafios atuais da pesquisa histórica. ArtCultura. Uberlândia,<br />
v.8, n.13, jul.-dez. 2006.<br />
____________________. História e música popular: um mapa de leituras e questões.<br />
Revista de História 157. (2º semestre de 2007).<br />
ROSSINI, Mirian de Souza. O popular cinema de Teixeirinha. BECKER, Tuio. Cinema<br />
no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UE/Porto Alegre, 1995.<br />
SOARES, Gláucio Ary Dillon; D’ARAÚJO, Maria Celina (orgs.). 21 anos de regime militar:<br />
balanços e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1994.<br />
TATIT, Luiz. O cancionista: composições de canções no Brasil. São Paulo: Edusp, 1996.<br />
TEIXEIRA, Ricardo Augusto Grecco. Breves retratos do Brasil: a distribuição de<br />
renda. Estudos. Londrina: CLAI / Fé, Economia e Sociedade, julho/2002.
ULHÔA, Martha Tupinambá de. Música sertaneja em Uberlândia na década de<br />
1990. ArtCultura, Uberlândia-MG, nº9, jul.-dez./2004.<br />
REFERêNCIAS DOCUMENTAIS<br />
Alegria, alegria (Caetano Veloso) Gravação de Caetano Veloso. LP “Caetano Veloso”<br />
– Philips P.1967.<br />
Cálice (Chico Buarque – Gilberto Gil) Gravação de Chico Buarque. LP “Chico Buarque”<br />
– Philips P.1978.<br />
ACERVO DA REDE BRASIL SUL DE<br />
TELEVISãO (RBSTV, PORTO ALEGRE)<br />
Depoimento de Teixeirinha ao programa J. Silvestre. Disponível no documentário<br />
Teixeirinha – O Gaúcho Coração do Rio Grande. RBSTV, 2005.<br />
Depoimento de Teixeirinha em Teixeirinha Especial. RBSTV, 5-12-1985.<br />
ACERVO DA FUNDAçãO VITOR MATEUS TEIXEIRA –<br />
TEIXEIRINHA (PORTO ALEGRE)<br />
Coração de luto (Teixeirinha) Gravação de Teixeirinha. 78rpm PTJ 10.104 – Chantecler<br />
P.1960.<br />
Diálogo gravado entre Teixeirinha, Mary Terezinha e Berenice Azambuja, fita cassete<br />
encontrada no arquivo pessoal do cantor, sem identificação.<br />
Granfina (Teixeirinha) Gravação de Teixeirinha. LP “20 anos de glória” – Chantecler<br />
P.1979.<br />
Ensaio de Teixeirinha para o disco “Que droga de vida”, 1982, fita cassete encontrada<br />
no arquivo pessoal do cantor.<br />
Infância frustrada (Teixeirinha) Gravação de Teixeirinha. LP “Que droga de vida” –<br />
Chantecler P.1982.<br />
Papai Noel (Teixeirinha) Gravação de Teixeirinha. LP “Última tropeada” – Copacabana<br />
P.1968.<br />
Vida fantasia (Teixeirinha) Gravação de Teixeirinha. LP “Volume de prata” – Copacabana<br />
P.1969.<br />
71
A AtuAção rePressivA dA ditAdurA Civil-MilitAr<br />
brAsileirA durAnte A Construção dA AnistiA<br />
Julio Mangini Fernandes<br />
Resumo: O artigo apresentado discute as práticas repressivas da Ditadura Civil-Militar do Brasil<br />
no contexto da luta pela Anistia, institucionalizada em 1979. Esta incursão atuou de forma autoritária<br />
nas organizações e movimentos sociais que questionavam as diretrizes arregimentadas pelo Estado.<br />
Esta foi exercida através de perseguições, sequestros e desaparecimentos de militantes, políticos e pessoas<br />
“comuns” (sem vinculação direta político-partidária). O intercâmbio da repressão e a criação de<br />
redes de informação entre os países do Cone Sul foi uma das maneiras para aniquilar a oposição externa<br />
ao governo, que se utilizou do terror para propagar o medo generalizado na sociedade, supostamente<br />
ameaçada por um inimigo da Nação. Portanto, perceber quais foram essas ações e discuti-las no âmbito<br />
acadêmico, visando analisar as relações de poder inseridas nesse momento histórico, daqueles que lutavam<br />
pela Anistia, as práticas sociais e as maneiras pelos quais se representou o “inimigo” externo que<br />
assolava intermitentemente os países sul-americanos.<br />
Palavras-chave: Ditadura Militar – repressão – Anistia.<br />
O<br />
presente trabalho¹ tem como intuito pensar e discutir os meios pelos<br />
quais a Ditadura Civil-Militar brasileira na década de 1970 podou<br />
quase todas as possibilidades de ação de organizações e movimentos<br />
sociais de exilados brasileiros que questionavam as diretrizes autoritárias<br />
arregimentadas pelo Estado. Essas se constituíam em perseguições, sequestros e<br />
desaparecimentos de militantes, políticos e pessoas “comuns” (sem vinculação direta<br />
político-partidária) que questionavam e criticavam, de alguma forma, o modelo<br />
imposto vigente na época. O intercâmbio dos métodos repressivos e a criação de<br />
redes de informação e repressão com outros países da região, tais como Uruguai,<br />
Chile e, sobretudo, com a Argentina, foi uma das maneiras para executar esse projeto<br />
de aniquilar as oposições interna e externa ao governo autoritário. Isso foi realizado<br />
através de Terrorismo de Estado propagando o medo na sociedade, supostamente<br />
ameaçada por um inimigo interno e externo da Nação, apressadamente rotulado<br />
¹ Esse trabalho consiste em um recorte da dissertação intitulada “As práticas repressivas da ditadura civil-militar<br />
brasileira aos exilados brasileiros na Argentina (1964-1979)” defendida em setembro de 2009, pelo programa de<br />
pós-graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso, sob os auspícios do CNPq.<br />
73
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
de “comunista”. Portanto, perceber quais foram essas ações e discuti-las no âmbito<br />
acadêmico, trazem à tona a repressão aos exilados brasileiros no exterior e seus usos<br />
na propagação do Terror de Estado.<br />
Procuro refletir sobre o Brasil no contexto da guerra fria, durante o golpe<br />
civil militar brasileiro e a atuação brasileira de cooperação e intercâmbio antes e<br />
depois da criação da chamada “Operação Condor”. As práticas exercidas antecedem<br />
tal operação e a investigação dos exilados brasileiros datam desde pelo menos<br />
quando foi criado o CIEX – Centro de Informações do Exterior, em 1966, uma<br />
das ramificações do SNI – Serviço Nacional de Informações – criado em 1964 e<br />
vinculado ao Ministério das Relações Exteriores. O CIEX tinha como função agir<br />
de forma especializada, buscando e analisando conjunturas de países vizinhos, fazer<br />
encaminhamento e responder, através de dados, informações e processos anteriores<br />
e pedido de antecedentes, monitorando os brasileiros que buscavam exílio em países<br />
democráticos.<br />
O CIEX fazia parte de um eficiente mecanismo repressivo usado pelo regime<br />
ditatorial civil-militar e consistia na vigilância e controle cotidiano sobre a sociedade,<br />
conhecido como “comunidade de informações”. Em nome da Segurança Nacional,<br />
montou-se um complexo sistema repressivo para combater a subversão e reprimir<br />
preventivamente qualquer atividade considerada “suspeita”, por se afigurar como<br />
potencialmente perturbadora da ordem.²<br />
Os aparatos repressivos das forças armadas e policiais, os quais detinham<br />
certa autonomia de ação entre si, eram ordenadas a partir de um núcleo central, o<br />
SNI. Esse subordinava outros órgãos repressivos, como os centros de informações<br />
das três armas (CIE – Centro de Informação do Exército, CENIMAR – Centro de<br />
Informação da Marinha e CISA – Centro de Informação da Aeronáutica), a Polícia<br />
Federal e as polícias Estaduais (como por exemplos os DOPS – Departamento de<br />
Ordem Política e Social), além do próprio CIEX. Para integrá-los, criou-se o DOI-<br />
CODI – Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de<br />
Defesa Interna, oficializado em 1970, que congregava representantes de todas as<br />
forças policiais. Dotados de recursos financeiros e tecnológicos, as atividades eram<br />
planejadas e orientadas pela lógica da disciplina militar, com propósitos de combater<br />
inimigos em uma guerra.<br />
Além disso, a composição dos aparatos repressivos obedecia uma rígida hierarquia,<br />
onde o topo era composto pelo Presidente da República, tendo o Conselho<br />
de Segurança Nacional e a equipe executiva para garantir sua segurança. A esses<br />
eram subordinados os órgãos de repressão em todas as regiões do país, coordenados<br />
² ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). 2ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 1984.<br />
74
por militares. Eram assessorados por analistas de informações, vistos como a elite do<br />
sistema. Esses, por sua vez, recomendavam planos de ação e frequentavam a Escola<br />
Nacional de Informações.<br />
A Ditadura Civil-Militar no Brasil usou vários métodos repressivos com intuito<br />
de aniquilar a oposição brasileira dentro e fora do país. Enquanto esteve sob a<br />
égide dos militares, o governo brasileiro montou um sistema repressivo que ia além<br />
de suas fronteiras. O Ministério das Relações Exteriores, vinculado ao SNI, destinou<br />
ao CIEX o monitoramento de brasileiros com intuito de informar às autoridades<br />
brasileiras responsáveis pela repressão, para desarticular atividades contrárias ao regime<br />
brasileiro e de outros países da região no exterior. Os países mais procurados<br />
pelos exilados foram os do Cone Sul da América do Sul – Chile, Uruguai e Argentina<br />
– que até aquele momento não tinham deflagrado golpe militar.<br />
Com o advento, no Brasil, do golpe em 1964, muitos brasileiros migraram,<br />
forçosamente ou não, para países vizinhos, como o Uruguai e o Chile³. Em 1973,<br />
ambos os países sofreram golpes militares e se alinharam aos outros países dominados<br />
pelas ditaduras, as quais perseguiam exilados da América Latina. A Argentina,<br />
que possuía um governo democrático, tornou-se, inevitavelmente um reduto mais<br />
seguro para aqueles que sofriam com a repressão militar em seus países de origem.<br />
Tal percepção de segurança foi ruindo ainda durante o governo civil, pois suas instâncias<br />
democráticas foram perdendo legitimidade com o avanço da crise econômica<br />
e política, dando espaço para atos clandestinos repressivos de grupos paramilitares<br />
com propósito de combater os movimentos sociais. Com a morte de Juan Perón,<br />
em 1974, as ações governamentais passaram a expor cada vez mais a fragilidade das<br />
democracias latino-americanas, em especial da Argentina.<br />
Nesse contexto, é importante salientar as práticas repressivas da ditadura civil-militar<br />
brasileira aos exilados brasileiros, que propagou através dos seus sistemas<br />
de informação e mecanismo de repressão a cultura do medo e terror, intimidando,<br />
cerceando a liberdade alheia em nome de uma pretensa guerra. Ou seja, um inimigo<br />
foi escolhido, uma guerra foi travada e os parentes, amigos, filhos, e a sociedade<br />
como um todo foram vítimas dessas ações, sobretudo com a lógica da suspeição<br />
que, entre outras coisas, ceifou vidas, tanto de forma física como psicológica, ética e<br />
moralmente.<br />
Ao analisar a documentação utilizada no trabalho, sobretudo a do CIEX,<br />
aliado ao estudo referente à repressão, terrorismo de Estado, memórias e exílio com-<br />
³ Vale ressaltar que o Chile, vizinho do Brasil em termos regionais, possuía uma tradição democrática no século XX<br />
e se tornou foco de migração de perseguidos e exilados, principalmente após a eleição direta do presidente socialista<br />
Salvador Allende.<br />
75
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
preendeu-se quanto a ditadura brasileira se preocupava com os sistemas políticos de<br />
países vizinhos, tais como a Argentina. Através desta rede de informações secreta,<br />
altamente organizada, padrão unânime e referência para outros órgãos repressivos<br />
do Cone Sul, órgãos brasileiros trocavam entre si, e com outros Departamentos de<br />
Informação de países que já tinha implantado o regime autoritário, informes e encaminhamentos<br />
com intuito de organizar a repressão e evitar oposição e resistência,<br />
dentro e fora do país. O maior receio era, pois, a ação daquilo que foi rotulado de<br />
“inimigo interno” e que, ao mesmo tempo, agia também no exterior, ideia essa seguida,<br />
sustentada, alimentada e teorizada a partir da Doutrina de Segurança Nacional,<br />
contra a “ameaça” comunista ao mundo.<br />
As práticas empregadas com o golpe no Brasil se baseavam na tortura física e<br />
psicológica, morte, desaparição e ocultação de cadáver como política de intimidação<br />
e extermínio, além da atuação conjunta com outros países, antes, durante e depois<br />
de instaurada a “Operação Condor”. Tais ações, sustentadas e amparadas ideologicamente<br />
pela Doutrina de Segurança Nacional, visavam a criação de uma sociedade<br />
baseada apenas em valores “ocidentais”, cristãos e capitalistas, capitaneado e liderado<br />
pelas Forças Armadas.<br />
Todas essas ações representavam o temor das elites brasileiras de uma configuração<br />
de movimentos sociais combativos que lutavam por melhorias na sociedade,<br />
que lutavam para ampliar o sentido de democracia, através da participação popular<br />
nas decisões políticas e econômicas no Brasil. Essas posturas adotadas por homens<br />
e mulheres trabalhadoras, estudantes, religiosos, autônomos que, de alguma forma<br />
acreditavam na transformação da sociedade brasileira foram consideradas ações de<br />
inimigos da Nação, ou seja, inimigos de uma elite conservadora que controlava, e<br />
ainda controla os meios de produção e comunicação. Essas pessoas se tornaram<br />
criminosas por discordarem da situação de desigualdade social brasileira e por se<br />
organizarem em sindicatos e partidos políticos, ou seja, atuar em pleno gozo da democracia<br />
era um incômodo aos golpistas.<br />
Esse processo se perpetuou por 20 anos por conta de alguns fatores. Em<br />
primeiro lugar, é necessário destacar a atuação da ditadura brasileira em canalizar<br />
a participação política nos partidos autorizados a existirem e eleições fraudadas,<br />
controladas a base de opressão, repressão e terror de Estado. Além disso, foi<br />
feita a propagação de alguns benefícios, durante o auge da repressão brasileira, de<br />
1968 a 1974, rotulado como “milagre brasileiro”. Essa iniciativa foi uma maneira de<br />
fazer propaganda do regime como sendo benéfico à sociedade, todavia condicionava<br />
o crescimento econômico em detrimento das liberdades individuais e coletivas. O<br />
crescimento ocorreu aliado também com um endividamento maior das contas públicas,<br />
aumentando consideravelmente a dívida interna e externa do Brasil, além de<br />
agravar ainda mais o quadro de desigualdade social do país, haja vista que durante<br />
76
esse período aumentou o abismo que separa os mais ricos dos mais pobres, ou seja,<br />
houve crescimento, mas sem a preocupação da distribuição de renda.<br />
Há, portanto, a necessidade de se rever a política de documentos no Brasil.<br />
Segundo Eliana Resende Furtado de Mendonça (1998) não existe no país uma legislação<br />
específica sobre prazos e acessos aos documentos relativos à privacidade,<br />
de períodos conturbados, tais como de Ditadura civil-militar. Nos países europeus,<br />
assim como os EUA e o Canadá, não se adotaram soluções extremas (de abrir ou<br />
fechar tudo), pois, segundo Mendonça,<br />
isso não é política; uma política de acesso reconhece interesses conflitantes<br />
e propõe alternativas que harmonizem esses interesses com um<br />
objetivo comum: o direito à informação para o exercício da cidadania.<br />
Todos esses países garantem o direito à informação, e as limitações<br />
são feitas através de sistemas de prazo que variam de país para país4 .<br />
Mendonça (1998) faz uma importante contribuição a respeito dos usos e das<br />
consequências dos documentos da repressão criados a partir do golpe de 1964. Muitas<br />
vezes pesquisas tratam de pessoas vivas, essas informações contidas em algum<br />
trabalho acadêmico se esbarram na questão da privacidade dos citados:<br />
A partir da década de 1960, as informações contidas nos documentos<br />
da polícia passaram a priorizar, além das práticas políticas públicas e<br />
clandestinas, dados sobre a intimidade dos investigados e perseguidos<br />
políticos [...] Há dois tipos de informação que afetam a vida privada:<br />
aquelas produzidas pela própria polícia, na maioria das vezes por informantes<br />
encarregados da vigilância e infiltração, que contêm apreciações<br />
e comentários sobre comportamento pessoal e privacidade; e<br />
aquelas que constam de depoimentos assinados pelo preso político,<br />
nos quais ele presta informações sobre si mesmo e outras pessoas envolvidas<br />
em organizações e ações políticas clandestinas. São registros<br />
acerca da atuação política e também sobre a vida pessoal que ferem a<br />
reputação de si mesmo e de terceiros. 5<br />
Analisando os documentos do CIEX é possível perceber tais incursões apontadas<br />
por Mendonça (1998). Os repressores se infiltravam em movimentos sociais,<br />
sindicatos e grupos que lutavam pela anistia. Era uma tática que facilitava o controle<br />
e perseguição daqueles que lutavam por dias melhores.<br />
A luta dos movimentos de direitos humanos, além dos políticos, trabalhadores<br />
e estudantes exilados buscava combater as práticas de repressão, buscando<br />
alguma alternativa pelo retorno da democracia. Nesse sentido, a vigência dos direitos<br />
4 MENDONçA, Eliana Rezende Furtado de. Documentação da Polícia Política do Rio de Janeiro. In Estudos Históricos.<br />
Rio de Janeiro: FG V vol. 12, n. 22, 1998. Disponível em: http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/253.pdf<br />
Acesso em 18.11.2005.<br />
5 Ibidem.<br />
77
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
humanos é algo relevante na legitimação os regimes políticos, sobretudo os democráticos<br />
do século XX e, em sentido contrário sua violação deslegitima e coloca em<br />
crise o discurso das democracias formais.<br />
Segundo Duhalde,<br />
La caída de la Dictadura fue el resultado de su fracaso absoluto en<br />
crear condiciones para perpetuar su permanencia, pero também de<br />
haber cumplido su objetivo fundamental; hacer tabla rasa con la contestatación<br />
social al plan del capital monopólico y de la aristocracia<br />
financiera. 6<br />
Os grupos de contestação que atuavam no exterior, sobretudo na Argentina,<br />
sofriam dois vieses: de um lado a repressão que ocorria antes mesmo do golpe militar<br />
argentino, articulado pelos grupos paramilitares, se destacando a chamada Triple<br />
A, Alianza Anti-comunista Argentina – AAA, criada no final do ano de 1973. De outro,<br />
houve a perseguição da ditadura brasileira, com auxílio dos sistemas de informação<br />
muito bem organizados e articulados (reconhecidos inclusive pelos países vizinhos<br />
e europeus) entre si e com de outros países. Segundo o documento número 360, do<br />
ano de 1975 do CIEX:<br />
Em 03 de setembro de 1975, em Lisboa, um oficial da marinha portuguesa<br />
[...] declarou que, em Portugal, mais que a “CIA”, é o SNI que<br />
atua. Disse calcular que, entre agentes, turistas-informantes, funcionários<br />
do Banco do Brasil e da Embaixada, o SNI conta com uma rede<br />
de uns 500 elementos. 7<br />
Flávio Koutzii, exilado brasileiro, perseguido pelas ditaduras militares brasileira<br />
e argentina, fora preso com mais duas outras pessoas gaúchas. Ele foi detido na<br />
Argentina em 1975 e libertado anos mais tarde. Flávio Tavares e Flávia Schilling foram<br />
presos pela ditadura uruguaia. Somente com a ampla mobilização da sociedade<br />
brasileira pela redemocratização do país, através da luta sindical das greves do ABC,<br />
das atividades dos intelectuais, da agitação estudantil e, especificamente, o trabalho<br />
dos comitês brasileiros pela anistia, os CBA’s, enfim, resistindo, foi possível a anistia<br />
a partir de 1979, na qual Koutzii foi liberado dos cárceres argentinos após 4 anos de<br />
prisão. Segundo o próprio Flávio Koutzii,<br />
Saí do Brasil em 1970, quando a atividade dos grupos políticos de<br />
esquerda se tornou cada vez mais precária pelo recrudescimento da<br />
repressão desde a edição do AI-5. Passei pelo Chile, onde acompanhei<br />
a primeira fase do Governo de Allende, e me transferi para a<br />
6 DUHALDE, Eduardo Luis. El Estado Terrorista Argentino. Quince años después, uma mirada crítica. Buenos Aires: Ed.<br />
Universitaria de Buenos Aires, 1999<br />
7 Centro de Informações do Exterior (CIEX). Informes nº 001 a 336. v.23. Ano: 1975. Arquivo do Ministério das<br />
Relações Exteriores (AMRE), nº 360, vol. 23, 23/09/75.<br />
78
Argentina, onde retomei minha militância. Fui seqüestrado e, depois,<br />
formalmente processado e preso por atividades políticas um pouco<br />
antes do Golpe Militar do general Videla. 8<br />
Existe também o caso de uma pessoa de nacionalidade brasileira, a qual<br />
iremos chama-la pelas iniciais LM9 , que saiu do Brasil em um período no qual a perseguição<br />
estava no seu auge de sua rigidez, isto é, no início da década de 70, e que<br />
para ela estava praticamente impossível continuar no país. Quando militantes nordestinos<br />
do partido no qual militava, o PC do B, começaram a “cair”, por conta da<br />
repressão, “feito jogo de dominó” (LM), chegando até o Rio de Janeiro e São Paulo,<br />
ela resolveu sair, junto com outros companheiros, migrando para um país vizinho.<br />
Nós saímos basicamente porque se nós ficássemos aqui estávamos<br />
mortos, mas também para entrar, voltar a ter contato com o partido...<br />
porque (...) todo esse período, acho que de 71 a 72 primeiro tinha<br />
umas 700 pessoas do partido no Brasil. As quedas começaram<br />
no Nordeste, foi assim tipo um jogo de dominó, foi caindo, caindo,<br />
caindo...até chegar no Rio de Janeiro, São Paulo (...) do movimento<br />
estudantil10 Para “LM” foi muito ruim, teve gente que morreu e também porque ela e<br />
outros militantes perderam o contato com a direção do PC do B. Nesse momento,<br />
resolve ir a Argentina: “Nessa ocasião nós fomos pra Argentina para retomar o contato.<br />
A gente queria ir para o Chile, mas não deu né, por causa do Golpe”. 11<br />
A Argentina se tornou atrativa a todos que estavam fugindo da repressão,<br />
buscando o auto-exílio para continuar lutando contra não só a ditadura brasileira,<br />
mas como todas aquelas existentes no chamado Cone Sul, em especial ao golpe<br />
militar no governo socialista de Salvador Allende. Este caminho foi o mais viável segundo<br />
ela, pois lá existia liberdade democrática e existiam pessoas de todos os países,<br />
a fim de encontrar parceiros para fortalecer a militância (LM, 2006).<br />
Quando LM chegou na Argentina, achou o país um “paraíso terrestre. Nunca<br />
tinha visto tanta manifestação na minha vida” 12 , o que demonstrava que, inicialmente,<br />
sua impressão sobre este país era de um reduto seguro para a militância. Lá, muitos<br />
comitês de solidariedade e de luta anti-imperialista estavam sendo formados por<br />
militantes, intelectuais e políticos argentinos e estrangeiros. Ela se ligou ao COSOL-<br />
PLA – Comité de Solidariedad a los Pueblos Latino-Americanos. Esse comitê era<br />
observado pelos repressores brasileiros, como é possível perceber na citação abaixo:<br />
8 KOUTZII, Flávio. A luta contra a ditadura. Porto Alegre, RS. Entrevista da TVE. (DVD) Setembro/ 2003 – Acervo<br />
de luta contra a ditadura.<br />
9 A pedido da própria personagem, que deseja manter sua identidade no anonimato.<br />
10 LM, 2006. Entrevista concedida ao autor no dia 07 de abril de 2006. Gravação digital.<br />
11 Ibidem.<br />
12 Ibidem<br />
79
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
O “comitê” de Solidariedade latinoamericano”, do qual fez parte<br />
Francisco Julião, em representação do Brasil, omitiu uma declaração<br />
através da qual formula as razões que sustentam suas atividades, bem<br />
como seus propósitos. 13<br />
Francisco Julião era advogado e ajudou a fundar as Ligas Camponesas, que<br />
seria um embrião do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Ele era militante<br />
do PSB – Partido Socialista Brasileiro e foi eleito deputado. Com o golpe militar de<br />
1964, Francisco Julião teve seus direitos políticos cassados. Partiu para o exílio em<br />
dezembro de 1965, indo viver no México. Com a anistia, em 1979, voltou ao Brasil e<br />
se filiou ao partido que também pertencia seu amigo Leonel Brizola, o PDT – Partido<br />
Democrático Trabalhista. Brizola foi uma das personalidades políticas que atuou,<br />
de alguma forma, pela anistia no Brasil.<br />
Além do COSOLPLA, havia outros, tais como o Movimento Argentino Antiimperialista<br />
de Solidariedade Latino-Americano – MAASLA (CIEX nº 05, vol. 23,<br />
1975), que, assim como outros grupos e comitês, participava de manifestações semanais<br />
com 200 mil pessoas nas ruas contra o recente golpe no Chile e “selvagerias”<br />
(LM, 2006) que estavam sendo cometidas pelo golpe militar chileno. Por algum tempo,<br />
os argentinos e latino-americanos acreditavam que seria revertido esse quadro, o<br />
que não se confirmou.<br />
Muitos também achavam que jamais ocorreria algo parecido na Argentina,<br />
mesmo sabendo do recente histórico argentino, repleto de golpes e intervenções<br />
militares. Por esse motivo a Argentina se tornou destino certo de muitos brasileiros<br />
que sofriam a dupla repressão em outros países (a do país onde se encontrava o<br />
exilado e do Brasil), pois acreditavam que lá teria segurança para militar, sobretudo<br />
com o retorno de Juan Perón ao poder. Havia um otimismo muito grande e, para<br />
“LM”, o que ela viu na Argentina não se via no Brasil: pessoas discutindo política<br />
abertamente, sem medo, na maior liberdade. Eram bem progressistas e todos tinham<br />
posicionamento político, e não eram apenas estudantes, como no Brasil (LM, 2006).<br />
Havia também na Argentina, no Uruguai e no Cone Sul algo que para “LM”<br />
era interessante: a idéia de “Pátria Grande” do povo da América Latina, de solidariedade<br />
contra a exploração e contra o domínio dos Estados Unidos.<br />
Toda essa união e percepção de uma Argentina razoavelmente boa para se<br />
morar foi mudando com a criação da chamada Triple A, (criada por Lopez Rega,<br />
braço direito de Juan e Isabelita Perón, conhecido também como “El Brujo”) e<br />
principalmente após a morte de Juan Perón, aquela passava a agir clandestinamente,<br />
13 Centro de Informações do Exterior (CIEX). Informes nº 001 a 336. v.23. Ano: 1975. Arquivo do Ministério das<br />
Relações Exteriores (AMRE), nº 363, vol. 23, 23/09/75.<br />
80
porém, com apoio da Policia Federal da Argentina e simpatia dos militares. Começou<br />
a matar os simpatizantes das lideranças de oposição aos regimes militares de<br />
forma acintosa, cruel e violenta: “Eles não pegavam as lideranças, eles pegavam os<br />
apoios das lideranças (...) e deixavam as lideranças isoladas”, de forma que “jogava<br />
uma bomba e matava a família inteira” (LM, 2006). LM começou a ver a situação<br />
que ela vivia no Brasil, “de você não saber se vai acordar no mesmo dia, na mesma<br />
cama, no mesmo lugar, não sabe se vai ser preso... as coisas começam a ficar complicadas,<br />
começo a ser perseguida” (LM, 2006). Enfim, chegou um momento em que<br />
se perseguiu e reprimiu “a tudo a que se cheirasse esquerda”, isto é, atrizes e atores,<br />
intelectuais e políticos que apenas apoiassem algum grupo de exilados combativos,<br />
ou que tivessem posicionamento mais progressista tiveram que se exilar da Argentina,<br />
como é o caso do ex-presidente Héctor Cámpora.<br />
Leonel Brizola, que se instalou no Uruguai após o golpe de 1964, era visto<br />
como um grande líder capaz de organizar os primeiros comitês pró-anistia, no ano<br />
de 1975.<br />
O grupo de políticos informou BRIZOLA de que a ala dos “autênticos”<br />
do MDB deseja promover em todo o Brasil a formação de comitês<br />
pró-anistia, como uma forma de mobilizar o povo logo nos primeiros<br />
meses de 1975. Segundo essas fontes é necessário aproveitar o<br />
resultado eleitoral, utilizando-o como ponto de apoio para lançar um<br />
movimento de “frente anti-imperialista” de natureza democrática dirigida<br />
tanto a militares e estudantes quanto a camponeses e elementos<br />
da pequena burguesia, como fato determinante da luta pelo estabelecimento<br />
das liberdades democráticas.<br />
Esse grupo lembrou ainda a BRIZOLA que ele tinha responsabilidade<br />
no processo político brasileiro e que não podia omitir-se quanto<br />
a assumir eventualmente uma atitude, principalmente agora com o<br />
respaldo dos resultados eleitorais.<br />
Segundo o ponto de vista de determinadas áreas do MDB do sul, BRI-<br />
ZOLA poderia desempenhar agora uma importante tarefa: empreender<br />
uma pregação cívica pelos países do terceiro Mundo para sensibilizar<br />
essas áreas quanto ao problema da anistia no Brasil. Isto seria<br />
particularmente válido em relação aos países árabes e africanos, onde<br />
o Brasil deseja desenvolver grandes interesses de natureza econômica.<br />
A viagem de Brizola caso fosse efetivada seria uma iniciativa a ser<br />
desenvolvida em coordenação com a fundação do Comitê Pró-Anistia<br />
dentro do Brasil, enquanto que nos países visitados por BRIZOLA<br />
seriam fundados grupos de pessoas que se comprometeriam a lutar<br />
pelo restabelecimento dos direitos democráticos no Brasil.<br />
Esses setores do MDB acreditam que a campanha em favor da anistia<br />
política, no Brasil, deve ser implantada com uma cobertura internacional,<br />
inclusive nos Estados Unidos, uma vez que a medida conteria<br />
81
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
o governo quanto a assumir uma atitude de repressão pela própria necessidade<br />
de preservar sua imagem no exterior. O primeiro país a ser<br />
visitado por BRIZOLA nessa campanha seria Portugal onde, acredita<br />
o MDB, existiriam as melhores condições para sensibilizar a opinião<br />
pública tanto brasileira quanto portuguesa. 14<br />
As investidas de políticos brasileiros15 , na busca de lideranças, sobretudo a de<br />
Leonel Brizola, que se encontrava exilado, persistiram, pois acreditavam na luta por<br />
dias melhores, e alguns exilados serviam de exemplo:<br />
Esses políticos disseram a Barlesi que a liderança de LEONEL BRI-<br />
ZOLA no rio Grande do Sul continuava intacta e que se ele se candidatasse<br />
agora teria mais votos ainda do que quando se lançou a<br />
deputado pela Guanabara. Afirmaram ainda que decidiram viajar a<br />
Montevidéu após consultas com seu setor do MDB, presidido por<br />
Aldo Fagundes, pois acreditavam que ante a carência de lideranças de<br />
massa no Brasil Brizola era um dos poucos homens de 1964 que ainda<br />
retinha intacta sua imagem política como “anti-imperialista”. Vinham<br />
assim exigir da parte de Brizola uma postura política frente aos resultados<br />
das eleições no Brasil. 16<br />
Além de políticos, intelectuais sofreram algum tipo de perseguição por parte<br />
dos sistemas de informação. Foi o caso, por exemplo, de Luiz Alberto Moniz Bandeira,<br />
renomado professor e intelectual brasileiro crítico da atuação norte-americana<br />
na América Latina. Sua trajetória, inclusive sua ida ao Uruguai e para Buenos Aires<br />
foram relatadas em documentos do CIEX17 , sobretudo por ele ter tido relações de<br />
amizade e afinidade política com Leonel Brizola.<br />
Segundo Luiz Alberto Moniz Bandeira (2009), os Estados Unidos tiveram<br />
forte influência sobre os golpes ocorridos na América do Sul, inclusive no Brasil.<br />
Suas ideias refletem, portanto, um posicionamento político oposto aos golpistas:<br />
O Brasil está situado na área de influência direta dos Estados Unidos,<br />
que patrocinaram o golpe-militar em 1964, a fim de desvirtuar o sentido<br />
do seu desenvolvimento nacional. Mediante esses golpes militares<br />
na América Latina, nos anos 60 e 70, os Estados Unidos trataram<br />
de promover praticamente as mesmas diretrizes neoliberais, aplicadas<br />
nos anos 90 pelos governos democráticos. No Brasil, o general Caste-<br />
14 Centro de Informações do Exterior (CIEX). Informes nº 001 a 336. v.23. Ano: 1975. Arquivo do Ministério das<br />
Relações Exteriores (AMRE) nº 50, vol. 23, 14/02/75.<br />
15 Jairo Brum, Darci Coberlini, Calixto Letti, Fossati [...] estiveram também com o brasileiro Barlesi que se encontra<br />
semi-asilado no Uruguai. (CIEX nº 52, vol. 23, 14/02/75)<br />
16 Centro de Informações do Exterior (CIEX). Informes nº 001 a 336. v.23. Ano: 1975. Arquivo do Ministério das<br />
Relações Exteriores (AMRE), nº 52, vol. 23, 14/02/75.<br />
17 Centro de Informações do Exterior (CIEX). Informes nº 001 a 336. v.23. Ano: 1975. Arquivo do Ministério das<br />
Relações Exteriores (AMRE), nº 281, vol. 23, 03/07/75.<br />
82
lo Branco começou a adotar tais medidas. Houve reação do Exército<br />
ele, embora condenasse o estatismo por criar atritos com os Estados<br />
Unidos, teve de fazer maciços investimentos públicos, a fim de tirar<br />
o País da recessão. E só quando o Brasil voltou a desenvolver-se em<br />
ritmo acelerado, a partir de 1968-1969, os capitais estrangeiros recomeçaram<br />
a afluir para a sua economia. 18<br />
No dia 03 de julho de 1975 foi emitido um documento do CIEX, número<br />
281 que relatava as viagens feitas por Luiz Alberto Moniz Bandeira (tratado como<br />
“elemento” no documento), sua aproximação com João Goulart e Leonel Brizola<br />
e também seu pertencimento ao partido socialista brasileiro. Para os militares que<br />
investigavam os passos de Moniz Bandeira, era importante saber a respeito de suas<br />
conversas com militantes de esquerda, entre eles os peronistas, para estabelecer e<br />
manter contatos:<br />
Durante cinco dias, a partir de 22 de maio de 1975, esteve em Montevidéu<br />
o elemento BANDEIRA MONIZ que esteve asilado no Uruguai<br />
em princípios da revolução de 1964.<br />
Ao que se sabe, BANDEIRA MONIZ era jornalista do “Correio da<br />
Manhã” e pertencia ao PC do Brasil. Em Montevidéu manteve contatos<br />
com Carlos Olavo da Cunha, IVO MAGALHAES, EDMUNDO<br />
MONIZ e o ex-coronel DAGOBERTO RODRIGUES.<br />
BANDEIRA MONIZ dia 30 de maio de 1975 seguiu viagem para<br />
Buenos Aires onde esperava estabelecer outros contatos com brasileiros<br />
e peronistas de esquerda. Segundo informações do próprio<br />
BANDEIRA MONIZ, ele saiu do Brasil, onde diz não ter problemas<br />
na atualidade. 19<br />
O jornalista gaúcho Flávio Tavares foi também uma pessoa muito visada pelos<br />
repressores. Sua atuação era vinculada a guerrilha e, portanto, era considerado<br />
um “subversivo” perigoso.<br />
FLAVIO TAVARES está temporariamente Na Argentina, com a cobertura<br />
de jornalista do jornal “Excelsior”, do México, e viajando com<br />
passaporte mexicano.<br />
FLAVIO mantém ligações com setores de superfície dos Montoneros<br />
e das FAP (forças armadas peronistas), hoje integradas ao ERP.<br />
FLAVIO TAVARES vive, normalmente, no México, mas tem estado<br />
viajando pela América Latina e desenvolvendo contatos no Equador,<br />
Peru e Venezuela com setores da Esquerda pró-luta armada. Mantém<br />
também contatos com os cubanos de Buenos Aires e quadros da ALN<br />
que viajam a Buenos Aires.<br />
18 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz (entrevista). A Alca é um projeto político. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br.<br />
Acesso em: 08 de agosto de 2009.<br />
19 Centro de Informações do Exterior (CIEX). Informes nº 001 a 336. v.23. Ano: 1975. Arquivo do Ministério das<br />
Relações Exteriores (AMRE), nº 281, vol. 23, 03/07/75.<br />
83
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
TAVARES se encontrou posteriormente com o economista e teórico<br />
trotskista brasileiro RUI MAURO MARINI que também se encontra<br />
asilado no México, mas estava em Buenos Aires por uma semana, devendo<br />
seguir posteriormente para Paris, onde manteria contatos com<br />
dirigentes europeus da IV Internacional trotskista. 20<br />
Rui Mauro Marini (citado no documento anterior) foi um importante cientista<br />
social e jornalista, com ampla produção acadêmica. Ele teve que se asilar no México,<br />
mas antes foi forçado a sair do Brasil devido a circunstâncias genuinamente brasileiras,<br />
ou seja, a repressão no Brasil o perseguiu, prendeu e fez pressão sobre ele,<br />
amigos e a própria família. Em suas memórias, Marini diz:<br />
Minha estada em Brasília foi cortada bruscamente pelo golpe de 1964.<br />
Naquele momento, eu me encontrava no Rio, onde -sabedor de que<br />
era procurado em Brasília- permaneci, o que não impediu que eu fosse<br />
sumariamente demitido, com outros doze professores, na primeira<br />
medida tomada pela ditadura contra a universidade. Depois de escapar<br />
de ser preso, em maio, caí finalmente, em julho, em mãos do CENI-<br />
MAR. Em setembro, beneficiado por habeas corpus do STF (que a<br />
Justiça militar negara, anteriormente), fui sequestrado pela Marinha e<br />
entregue ao Exército, em Brasília, por conta de outro processo que se<br />
me movia por lá. Repeti o itinerário Justiça militar-STF e obtive, em<br />
dezembro, novo habeas corpus, que desta vez foi acatado. Embora<br />
por pouco tempo: não houvesse eu deixado a cidade, discretamente,<br />
horas depois da minha libertação, e teria sido preso novamente. Após<br />
um período de clandestinidade de quase três meses, quando a pressão<br />
policial-militar sobre meus companheiros e minha família tornou-se<br />
pesada, a ponto de forçar um dos meus irmãos a passar também à<br />
clandestinidade, asilei-me na Embaixada do México, no Rio, e viajei<br />
para esse país, um mês depois. 21<br />
Essa repressão clandestina, porém atuante e violenta, continuou e ainda mais<br />
forte com o golpe militar na Argentina em 1976. Era a consequência da insatisfação<br />
da direita conservadora representada pelas elites burguesas da Argentina, as quais<br />
não estavam mais aturando esse processo democrático e de crescimento de atividades<br />
e manifestações políticas populares.<br />
Há vários exilados, segundo os documentos do CIEX, que sofreram algum<br />
tipo de perseguição e que buscavam, de alguma forma, organizar os comitês de<br />
anistia contra as ditaduras de segurança nacional, sobretudo a brasileira. O asilado<br />
Dagoberto Rodrigues esteve na Argentina com intuito de encontrar outros brasilei-<br />
20 Centro de Informações do Exterior (CIEX). Informes nº 001 a 336. v.23. Ano: 1975. Arquivo do Ministério das<br />
Relações Exteriores (AMRE), nº 283, vol. 23, 03/07/75.<br />
21 MARINI, Ruy Mauro. Memória (auto biografia). Disponível em: http://www.marini-escritos.unam.mx. Acesso<br />
em: 08 de Agosto de 2009.<br />
84
os e também membros da embaixada cubana, para articular supostas ações “conspirativas”<br />
contra o regime brasileiro. Vale ressaltar que nesse caso, a data de obtenção<br />
do informe foi emitido no dia 17 de março de 1976, poucos dias antes do Golpe da<br />
Junta Militar na Argentina:<br />
O asilado brasileiro DAGOBERTO RODRIGUES esteve em Buenos<br />
Aires durante mais de vinte dias, ocasião em que manteve contato<br />
com setores conspirativos brasileiros (grifo meu) e com representante<br />
da Embaixada Cubana naquela capital. 22<br />
Para o CIEX, Dagoberto Rodrigues já tencionava radicar-se na Argentina<br />
para participar de um esquema internacional de trabalho conspiratório. 23<br />
Havia ainda o monitoramento daqueles brasileiros que estavam também sob<br />
mira do governo argentino, agora já sob égide da Junta Militar liderada por Jorge<br />
Rafael Videla. Em um informe do dia 30 de Junho de 1976, o CIEX relata nome de<br />
15 brasileiros expulsos que se encontravam detidos e a disposição do Poder Executivo<br />
acusados de desenvolver atividades atentatórias contra a segurança do Estado. 24<br />
O CIEX publicou um extenso artigo de 11 páginas veiculado pela agência<br />
de noticias “Prensa Argentina (PA)”, chamado “Os instrumentos da conspiração<br />
comunista” no qual relata a preocupação de que havia uma grande conspiração internacional,<br />
cuja intenção era a penetração comunista no ocidente e na Argentina.<br />
Eram organizações de fachada tais como aquelas que defendem os direitos humanos,<br />
a democracia, as liberdades públicas pós-45. Na verdade, tinham como intuito<br />
aniquilar os “Estados democráticos”, com delegações em quase todo o mundo livre,<br />
inclusive na Argentina. 25 Vale ressaltar que Flavio Tavares, Ruy Marini e Dagoberto<br />
Rodrigues tiveram a participação nesse jornal.<br />
Essa preocupação fez o governo ditatorial argentino publicar a lei, através<br />
do Boletim Oficial da Argentina, no qual modificava o Código Penal, acrescentando<br />
pena de morte, por fuzilamento, para atos subversivos. Essa foi uma das decisões no<br />
âmbito institucional da Argentina mais radical e violenta, criticando que no Brasil o<br />
“combate a subversivos” era feito de forma desordenada e sem organização. 26<br />
Diante desse impasse, no qual o governo militar da Argentina não controla<br />
oficialmente as mortes e a violência aos opositores do regime de ditadura militar, até<br />
22 Centro de Informações do Exterior (CIEX). Informes nº 001 a 522. v.24. Ano: 1976. Arquivo do Ministério das<br />
Relações Exteriores (AMRE), nº 125, vol. 24, 30/04/76;<br />
23 Idem.<br />
24 Idem.<br />
25 Centro de Informações do Exterior (CIEX). Informes nº 001 a 522. v.24. Ano: 1976. Arquivo do Ministério das<br />
Relações Exteriores (AMRE), nº 172, vol. 24, 11/06/76<br />
26 Ver CIEX nº 232, nº234 e nº 235, vol 23, 1975.<br />
85
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
os Estados Unidos, através do Congresso norte-americano começou a ficar descontente<br />
com as violações dos direitos humanos. De fato, o embaixador dos EUA na<br />
Argentina, Robert Hill, alertou o presidente Videla sobre as conseqüências extremamente<br />
negativas no caso do Congresso norte-americano condenar a Argentina, com<br />
forte impacto interno, haja visto que caso ocorresse a medida haveria suspensão<br />
no apoio financeiro que os Estados Unidos ofereciam aos argentinos. Segundo os<br />
arquivos desclassificados da CIA, o centro de inteligência estadunidense,<br />
As predicted by the State Department, the military Junta instituted<br />
widespread and vicious repression following the coup. Not only Argentines<br />
were targeted, but also citizens from Chile, Paraguay, Bolivia<br />
and Uruguay who had taken up political exile in Argentina to escape<br />
repression in their home nations. As part of Operation Condor-a network<br />
of Southern Cone secret police services collaborating to eliminate<br />
opponents of their regimes--the Argentine military carried out<br />
numerous operations against foreigners trapped in Buenos Aires after<br />
the coup. 27<br />
É possível perceber, portanto, que a repressão argentina violou de forma<br />
abrupta, sistemática e descontrolada os direitos humanos. O Brasil, em contrapartida,<br />
foi mais coeso em suas ações coercitivas e repressivas, ao ponto que soube<br />
propagandear suas ações como sendo algo benéfico a Nação e ainda mantendo uma<br />
imagem no Exterior mais preservada.<br />
Na Argentina houve uma preocupação maior em rever a memória nacional, e<br />
buscar algum tipo de punição aos que cometeram crimes durante o Estado terrorista.<br />
No Brasil, a lei da Anistia igualou os que resistiam aos que usaram o Estado para<br />
cometer crimes e atos ilícitos da repressão, em nome de uma sociedade cristã e capitalista,<br />
colocando-os no mesmo patamar de “crime político”. Como pode alguém<br />
ser anistiado de um crime sem nunca ser acusado deste? Tal medida tinha um único<br />
efeito, que corrobora com os pactos entre as elites, (prática decorrente e constante<br />
na história da República brasileira), em evitar qualquer julgamento e punição aos<br />
envolvidos.<br />
O fato de reconhecer a morte de pessoas durante a ditadura civil-militar no<br />
Brasil28 , não promoveu uma averiguação em relação aos culpados desses crimes,<br />
sobretudo na transferência de responsabilidade para provar as mortes e desaparecimentos<br />
aos familiares.<br />
27 NATIONAL SECURITY ARCHIVE. New declassified details on repression and U.S. support for military dictatorship.<br />
Disponivel em: http://www.gwu.edu/~nsarchiv/NSAEBB/NSAEBB185/index.htm Acesso em: 07 de<br />
Agosto de 2009.<br />
28 Em 1995 o governo brasileiro editou a lei da indenização, reconhecendo a morte de 136 pessoas.<br />
86
Hoje o Brasil tem uma lei sancionada através da Medida provisória, criada em<br />
2001 pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, e ratificada por Luiz Inácio<br />
Lula da Silva que impõe prazos para o sigilo de documentos. Aqueles considerados<br />
ultra-secretos terão 50 anos de sigilo, podendo ser revogados para sempre; 30 anos,<br />
para os arquivos secretos; 20 anos para os documentos confidenciais e 10 anos para<br />
os documentos reservados. Todas essas ações demonstram que as dificuldades tanto<br />
para o julgamento quanto para investigação historiográfica desse período recente<br />
da história brasileira continuam a ser grandes, mas cabem aos movimentos pelos<br />
direitos humanos e grupos dos familiares e desaparecidos, professores e acadêmicos,<br />
militantes e sindicalistas, trabalhadores e estudantes, lutarem por melhores dias no<br />
que tange os estudos sobre a repressão durante a ditadura civil-militar no Brasil.<br />
MEMóRIAS E A HISTóRIA DO TEMPO PRESENTE<br />
A discussão sobre o uso das fontes orais e as memórias subterrâneas, as quais<br />
são pertencentes de culturas minoritárias e dominadas e que se opõem ao oficialismo, a<br />
memória nacional. Exponho as disputas pela memória entre a memória oficial (uniformizadora,<br />
opressora, reducionista) e as memórias subterrâneas, marginais e periféricas.<br />
As grandes convulsões e cataclismos, as guerras e dramas coletivos não são<br />
lembrados constantemente na consciência social. Para Duhalde (1999), essas situações<br />
afloram em momentos mais inesperados, porque recorrem internamente o<br />
corpo da nação. Segundo o autor, não há reconciliação, pois não há conciliação possível<br />
enquanto seguir vigentes os antagonismos. Nesse sentido, é vital perceber que<br />
não se trata apenas de uma simples autopsia de um tempo passado, ao se recorrer às<br />
memórias sufocadas mas, assumir todas as suas implicações, desde o presente, com<br />
intuito de que a dignidade deve ser recuperada e reparada, para se tornar legado às<br />
próximas gerações.<br />
Este é o grande desafio da memória. Alguns autores tais como Eduardo<br />
Duhalde (1999), e Josefina Cuesta (1993) são categóricos ao dizer que, ao assumir<br />
coletivamente a “culpa” e reparação, podemos resgatar o sentido ético de pertencimento<br />
a espécie humana.<br />
Há ainda de se questionar, para alguns autores, tais como Beatriz Sarlo (2007),<br />
porque existe hoje tanta vontade para a desmemória. O aprofundamento das análises<br />
dos crimes militares estaria indo de encontro com os interesses econômicos<br />
e financeiros, daqueles que se beneficiaram com o golpe de Estado nos países do<br />
Cone-Sul da América do Sul. Entre esses, se destacam, sobretudo, o Brasil e a Argentina,<br />
os quais são os mesmos que controlaram e se beneficiaram do processo de<br />
redemocratização.<br />
87
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Muito se avançou, a começar com o discurso anti-ditatorial, como uma linha<br />
de saída, uma tentativa de ruptura desde o início dos crimes praticados pela Junta<br />
Militar na Argentina e o terror psicológico da ditadura brasileira. As vozes de contestação<br />
ocorreram nestes países inicialmente, porém de forma minoritária, mas com<br />
o tempo tomou conta do tecido das relações sociais, o que pode ser chamado de<br />
“um espaço onde se constituiu um novo sujeito social de direito” 29 , que continuou<br />
crescendo, se expressando espontânea e massivamente no cenário de construção da<br />
democracia.<br />
Esse sujeito social gira em torno do núcleo de legitimidade do sistema democrático,<br />
os direitos humanos. A partir do reconhecimento institucional de tais<br />
direitos que é possível perceber as atitudes proporcionais dos poderes constituídos.<br />
Todavia, a privação do caráter reparatório simbólico que implica em justiça<br />
e condenação dos culpados tem provocado rupturas, rachaduras na credibilidade<br />
do sistema democrático e o ceticismo manifestado cada vez mais sobre o papel do<br />
Estado como aplicador da lei. O Estado, portanto, não pode produzir um discurso<br />
que gere legitimidade sobre si mesmo.<br />
Essa impunidade é o silêncio negador da memória coletiva. Segundo Duhalde<br />
(1999), na história da humanidade quase sempre e de forma trágica percebe-se que<br />
não é fácil cancelar o passado, quando seu cancelamento, ou esquecimento não vem<br />
acompanhado de justiça social.<br />
Segundo Maurice Halbwachs (2004), existe o caráter destruidor, uniformizador<br />
e opressor da memória coletiva nacional. Tais memórias que emergem do subterrâneo<br />
promovem subversão no silêncio e que pouco são percebidas, aflorando-se<br />
em momentos de crise. Há uma disputa pela memória, o conflito e competição entre<br />
memórias concorrentes é latente.<br />
Os dominantes não podem, e não conseguem controlar até onde pode levar<br />
as reivindicações das memórias subalternas, as quais se formam e ganham espaço no<br />
mesmo tempo em que tabus criados pela memória oficial são negados. As lembranças<br />
dos períodos traumáticos, lembranças que esperam o momento propício para<br />
serem expressas veem a tona, no momento presente circunstanciado. Amargadas<br />
e reprimidas diante da doutrinação ideológica, essas lembranças ficam confinadas<br />
ao silêncio e muitas vezes são transmitidas de forma oral, de geração em geração,<br />
permanecendo-as vivas. A resistência, através dos silêncios sobre o passado e não<br />
esquecimento é a forma pelo qual uma sociedade civil que se sente amordaçada se<br />
opõe aos discursos oficiais (POLLAK, 1989).<br />
29 DUHALDE, Eduardo Luis. El Estado Terrorista Argentino. Quince años después, uma mirada crítica. Buenos Aires: Ed.<br />
Universitaria de Buenos Aires, 1999, p.10.<br />
88
Há 30 anos, havia um processo em andamento que se constituiu o princípio<br />
da abertura política no Brasil, com a anistia geral do Governo do General João<br />
Baptista de Figueiredo. Nesse momento, foi possível que muitos brasileiros exilados,<br />
militantes políticos em outro país, tivessem a chance de fazer com que suas vozes<br />
silenciadas por um longo período fossem ouvidas novamente. Vários desses estavam<br />
engajados em comitês internacionais pela anistia no mundo todo, sobretudo<br />
na Europa.<br />
Esse retorno ao Brasil coincidiu, ou melhor, fomentou que memórias do exílio,<br />
da repressão e da militância fossem divulgadas, trabalhadas e produzidas também,<br />
apesar de que algumas obras desse viés já tinham sido publicadas, algumas<br />
fora do país. Pensar as imbricações e relações que essas obras tiveram, dentro de um<br />
contexto de violência e de efeitos traumáticos, é ponto fulcral.<br />
Nesse contexto é importante pensar na História do Tempo Presente ou História<br />
Recente que elucida os temas tratados, que são latentes, se relacionam e coincidem<br />
com as fontes. Estas são vivas, podendo ser o testemunho oral da vítima como<br />
também pode ser algo sobre essa vítima: um relato, uma carta, uma imagem, uma<br />
reportagem de jornal, um documento oficial, filmes e fotos. Ambas as possibilidades<br />
servem para o arcabouço do historiador que estuda a repressão nas Ditaduras<br />
civil-militares de Segurança Nacional no Cone Sul da América do Sul, através das<br />
memórias individuais e coletivas de muitos perseguidos que conseguiram sobreviver<br />
a repressão.<br />
No entanto, a escrita da história do tempo presente foi, e ainda é um processo<br />
custoso e difícil, mesmo com o recente reconhecimento da comunidade acadêmica<br />
de sua legitimidade e de sua operacionalidade. Alguns de nossos pares continuam<br />
com a ideia de que é necessário um distanciamento temporal entre o contemporâneo<br />
e o historiador para se escrever a História. Apesar de parecer uma concepção<br />
retrógrada da história, essa visão positivista da historiografia, que deseja alçar uma<br />
pretensiosa “imparcialidade” dos fatos ainda impede, muitas vezes, que certos trabalhos<br />
sigam adiante.<br />
Para Jean Lacouture “os componentes irredutíveis da história imediata são a<br />
proximidade temporal da redação da obra em relação ao tema tratado e a proximidade<br />
material do autor em relação a crise estudada” 30 . Inclusive, vale destacar a interdisciplinaridade,<br />
no entanto, sem confundir história e jornalismo, mas pensar a relação de<br />
historiadores e a imprensa. Essa história escrita e criada pelo historiador do tempo<br />
presente pretende dar a palavra aos silenciados, aos que foram atores dessa história.<br />
30 LACOUTURE, Jean. A História Imediata. In: Le Goff, Jacques (org). A História Nova. São Paulo : Martins Fontes,<br />
1990, p. 215.<br />
89
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Para Josefina Cuesta, a história do tempo presente não é novidade. Tucidides,<br />
ao escrever “História da Guerra do Peloponeso” e L. Trotsky, que escreveu<br />
“História da Revolução Russa” 31 revelam que o intuito de valorizar o trabalho do<br />
contemporâneo do tempo historiográfico tratado, não é somente para aspirar apenas<br />
a rapidez dos reflexos, nem privilegiar o oral e vilipendiar o argumento escrito, mas<br />
procura basear tanto em sua instantaneidade quanto na sua relação afetiva entre o<br />
autor e o objeto de pesquisa.<br />
Ou seja, o historiador do tempo presente percebe a incapacidade quanto a<br />
conclusão do período que estuda e que isso pode ser uma virtude em seu trabalho.<br />
Conhecer o desfecho de um combate talvez leve a subestimar o rigor e o dinamismo<br />
do vencido.<br />
Ligado ao seu tempo e cultura, independente de estar tratando de assuntos<br />
contemporâneos ou não, o historiador exprime esse feixe de condicionamento na<br />
orientação da sua pesquisa e na interpretação que se faz, ou seja, o historiador do<br />
tempo presente permanece honesto ao manifestar suas opções.<br />
Em busca de uma definição para a história do tempo presente, Lacouture<br />
considera que “o imediatista ver-se-ia tentado a sugerir que a disciplina que ele se<br />
esforça por praticar não tem precisamente por objetos essas mudanças, menos ainda<br />
o ‘mudado’ mas sim ‘o mudar’” 32 . A reflexão sobre o domínio da história do tempo<br />
presente leva a um embate com a incerteza. Não apenas porque nunca se conhece<br />
o fim da história, e porque o trabalho com a incerteza trafega no próprio coração<br />
do porvir humano. O estudo do tempo presente deve levar em conta o fato de que<br />
o observador é ao mesmo tempo um contemporâneo e até um ator. Essa subjetividade<br />
é necessária a toda curiosidade, mesmo a científica. O papel do historiador,<br />
sobretudo o imediatista é ativo, dinâmico, interativo. A construção do objeto está<br />
intimamente ligada a narrativa histórica.<br />
É necessário destacar a criação dos primeiros Comitês Brasileiros de Anistia<br />
em 1978, apesar que as lutas travadas em prol da Anistia foram criadas no momento<br />
em que a repressão se intensificou com a edição do Ato Institucional nº 5, em 1968.<br />
Os comitês foram idealizados por familiares dos presos políticos, o movimento operário,<br />
o estudantil e alguns parlamentares no Congresso Nacional. Foram organizadas<br />
manifestações públicas, sempre com forte repressão.<br />
Portanto, é necessário perceber as ações dos brasileiros em prol da anistia e o<br />
viés repressor do governo brasileiro, ao investigar, espionar e perseguir os exilados<br />
31 Essa obra foi escrita vários anos depois da sequência dos fatos estudados, e apresenta o extraordinário interesse<br />
não apenas visto e revisto, mas vivido e criado.<br />
32 Ibidem, p. 230-231.<br />
90
asileiros, sobretudo da Argentina. Jornalistas, advogados, professores com ampla<br />
pesquisa e produção acadêmica foram alvos certeiros da repressão, por significarem,<br />
para a Ditadura, lideranças natas que poderiam modificar o status quo do sistema<br />
autoritário estabelecido.<br />
Esse trabalho se propôs a discutir e apresentar algumas maneiras de perseguição<br />
e repressão aos brasileiros no exterior, e como tais práticas produziram a apatia<br />
e impossibilidade de se questionar tais ações arbitrárias, por algum motivo que se<br />
remete ao medo e ao terror. Em um Estado no qual as garantias democráticas estão<br />
cortadas, mesmo que o discurso uniformizador estivesse em defesa da democracia,<br />
ficou inviável exercer o direito de cidadão de brasileiros que sofreram algum tipo<br />
de repressão. Contudo, o silêncio imposto não conseguiu provocar o esquecimento,<br />
apenas abafar as aspirações de pessoas que foram forçadas ao exílio ou se exilaram<br />
voluntariamente por discordar do regime ou por temor de algo de ruim lhes acontecesse.<br />
Tal esquecimento foi e continua a ser combatido através da abertura dos<br />
arquivos da repressão na América Latina, sobretudo no Paraguai, onde se encontra<br />
o chamado Arquivo do Terror. Além disso, há necessidade de salientar a importância<br />
das memórias subalternas, periféricas e fora do círculo daquilo que é considerado<br />
oficial, para o entendimento desse período nefasto recente de nossa sociedade. Os<br />
projetos do “Nunca Mais” não são revanchismos, como alguns querem crer, mas<br />
apenas a necessidade de reparação e justiça e, sobretudo, educar as gerações posteriores<br />
ao regime contra-insurgente que se instaurou no Brasil e no Cone Sul entre as<br />
décadas de 1960 e 1980.<br />
Tais incursões não esgotam as discussões a respeito do assunto. Aliás, o empreendimento<br />
se configura como início de uma pesquisa que deve seguir adiante,<br />
com intuito de analisar o caráter repressivo do regime militar do Brasil, instaurado<br />
em 1964, dentro e fora do país. Nesse sentido, foi fundamental apresentar o cotidiano<br />
de brasileiros que, mesmo afastados do seu país e de seus familiares, não se distanciaram<br />
dos seus ideais e nem deixaram de contestar um regime militar que ultrapassou<br />
as fronteiras nacionais e alcançou os brasileiros exilados, através dos serviços<br />
de informações do Brasil. Foi importante também debruçar-se sobre as memórias<br />
daqueles que sofreram a repressão, por entender a importância delas na construção<br />
de um viés diferente sobre o tema, muitas vezes pouco lembrado e valorizado por<br />
alguns setores da sociedade brasileira atual. Com isso, levantar questões da memória<br />
oficial brasileira permite a elucidação do que foi esse momento conturbado na conjuntura<br />
política do nosso país – a formação dos partidos atuais, a atuação da geração<br />
passada na redemocratização e as consequências para os dias atuais.<br />
91
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
92<br />
REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). 2ª edição.<br />
Petrópolis: Editora Vozes, 1984.<br />
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz (entrevista). A Alca é um projeto político. Disponível<br />
em: http://www.espacoacademico.com.br. Acesso em: 08 de agosto de 2009.<br />
CUESTA, Josefina. Historia del presente. Madrid: EUDEMA, 1993.<br />
DUHALDE, Eduardo Luis. El Estado Terrorista Argentino. Quince años después, uma<br />
mirada crítica. Buenos Aires: Ed. Universitaria de Buenos Aires, 1999<br />
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Ed. Centauro, 2004.<br />
JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memória. Madrid: Siglo XXI. 2002.<br />
LACOUTURE, Jean. A História Imediata. In: Le Goff, Jacques (org). A História<br />
Nova. São Paulo : Martins Fontes, 1990, p. 215.<br />
MARINI, Ruy Mauro. Memória (auto biografia). Disponível em: http://www.mariniescritos.unam.mx.<br />
Acesso em: 08 de Agosto de 2009.<br />
MENDONçA, Eliana Rezende Furtado de. Documentação da Polícia Política do Rio de<br />
janeiro. In Estudos Históricos. Rio de Janeiro: FGV vol. 12, n. 22, 1998. Disponível<br />
em: http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/253.pdf Acesso em 18.11.2005.<br />
POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro,<br />
vol.2, nº 3, 1989.<br />
SARLO, Beatriz. Tempo Passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo : Companhia<br />
das Letras, UFMG, 2007.<br />
FONTES UTILIZADAS<br />
Centro de Informações do Exterior (CIEX). Informes nº 001 a 336. v.23. Ano:<br />
1975. Arquivo do Ministério das Relações Exteriores (AMRE).<br />
______. Informes nº 001 a 522. v.24. Ano: 1976. Arquivo do Ministério das Relações<br />
Exteriores (AMRE).<br />
KOUTZII, Flávio. A luta contra a ditadura. Porto Alegre, RS. Entrevista da TVE.<br />
(DVD) Setembro/ 2003 – Acervo de luta contra a ditadura.
LM, 2006. Entrevista concedida ao autor no dia 07 de abril de 2006. Gravação digital.<br />
NATIONAL SECURITY ARCHIVE. New declassified details on repression and U.S.<br />
support for military dictatorship. Disponivel em: http://www.gwu.edu. Acesso em: 07<br />
de Agosto de 2009.<br />
93
3<br />
esCrAvidão:<br />
trAbAlho, resistênCiA<br />
e liberdAde
A orgAnizAção do trAbAlho esCrAvo<br />
nAs ChArqueAdAs Pelotenses nA segundA<br />
MetAde do séCulo xix<br />
Bruno Stelmach Pessi*<br />
Resumo: O artigo apresentado pretende analisar a organização do trabalho escravo nas charqueadas<br />
pelotenses na segunda metade do século XIX, procurando entender a manutenção da escravidão<br />
após o fim do tráfico trasnatlântico. Para tal, é essencial inserir-se no debate com a obra de<br />
Fernando Henrique Cardoso, Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional. Através de estudo empírico,<br />
basicamente em inventários de charqueadores, mostramos que a lógica do trabalho escravo nas charqueadas<br />
buscava melhor organização da produção, contrariamente à irracionalidade e ao “regime do<br />
desperdício” proposta por Cardoso. Assim, a permanência do trabalho escravo nas charqueadas mesmo<br />
após o fim do tráfico e o progressivo encarecimento dos cativos segue uma racionalidade que visava<br />
permitir condições para o seu melhor aproveitamento, o que proporcionaria a amortização ao longo de<br />
maior tempo da inversão inicial feita pelos charqueadores.<br />
Palavras-chave: Escravidão – Charqueada – Organização do trabalho escravo.<br />
Rever as concepções tradicionais de estudiosos do passado é um dos<br />
objetivos do estudo da História. Afinal de contas, a História é escrita<br />
e re-escrita, as interpretações sobre o passado são somadas umas às<br />
outras, reforçando ou revisando os argumentos e construções em diversas áreas do<br />
conhecimento histórico. Quanto à escravidão, não é diferente. Através de uso de<br />
novas fontes e metodologias, diversos historiadores se propuseram e continuam se<br />
propondo a questionar a constituição tradicional da instituição escravista. O trabalho<br />
aqui apresentado pretende debater com uma visão já clássica da escravidão no<br />
Rio Grande do Sul, a saber, a obra de Fernando Henrique Cardoso “Capitalismo e<br />
escravidão no Brasil Meridional”¹, especialmente no que se refere à racionalidade e<br />
produtividade do trabalho escravo nas charqueadas pelotenses. Para isso, partiremos<br />
* Mestrando em História Social pela USP. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo<br />
(FAPESP).<br />
¹ CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional. 2ª. Edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra,<br />
1977.<br />
97
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
de resultados obtidos em um estudo anterior² e procuraremos avançar – com a utilização<br />
de três registros de compra e venda de charqueadas - no entendimento da<br />
viabilidade ou não da escravidão nessa atividade tão importante para a aproximação<br />
econômica da província com os grandes centros do país.<br />
Ao estudarmos os impactos do fim do tráfico na charqueada e na sua escravaria,<br />
observamos que houve dificuldade na manutenção dos grandes plantéis existentes<br />
no período anterior a 1850. Vimos que em 1870, os charqueadores investiam<br />
parcelas semelhantes às aplicadas em escravos no fim da década de 1840, mas que,<br />
por outro lado, o número médio de cativos sofreu um decréscimo de quase 50%<br />
entre os dois períodos (de 80 para 43 escravos por charqueador). Ou seja, se houve a<br />
possibilidade dos charqueadores manterem os investimentos voltados para aquisição<br />
de escravos o mesmo não ocorre quando observamos o tamanho dos plantéis. De<br />
fato, o que observamos foi que o valor dos plantéis teve um aumento considerável,<br />
impulsionado pela valorização do preço médio dos escravos ocorrida após 1850³.<br />
Também pudemos observar que essa dificuldade obrigou aos charqueadores a racionalizarem<br />
o investimento em escravos, adquirindo mais escravos do sexo masculino.<br />
Se houve uma dificuldade tão grande de manutenção dos grandes plantéis,<br />
como explicar a permanência da escravidão nas charqueadas depois de 1850? Robert<br />
Slenes 4 propôs a mesma pergunta ao observar a expansão dos cafezais e das compras<br />
de escravos pelos fazendeiros do Vale do Paraíba na segunda metade do século XIX<br />
mesmo frente a uma realidade que, desde o estudo de Stanley Stein 5 , parecia de decadência<br />
após os anos 1860 com o envelhecimento dos cafezais, falta de terras virgens,<br />
encarecimento dos escravos e dos custos de manutenção dos mesmos, redução de<br />
compra de cativos e venda dos que existiam na região para novas áreas cafeeiras.<br />
Inspirados no trabalho do citado autor, nos perguntamos: será que a insistência dos<br />
charqueadores na manutenção do trabalho escravo era fruto da permanência de uma<br />
mentalidade pré-capitalista, do apego a valores patriarcais? Ou o trabalho escravo<br />
poderia ser rentável mesmo com o encarecimento do preço dos cativos?<br />
98<br />
***<br />
² PESSI, Bruno Stelmach. O impacto do fim do tráfico na escravaria das charqueadas pelotenses (C. 1846-C. 1874). (Monografia<br />
de Conclusão de Curso de Graduação). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio<br />
Grande do Sul, Porto Alegre, 2008.<br />
³ Ibidem, p. 28 et. seq.<br />
4 SLENES, Robert. Grandeza ou decadência? O mercado de escravos e a economia cafeeira da província do Rio de<br />
Janeiro, 1850-1888. In: DA COSTA, Iraci del Nero (Org.). Brasil: História econômica e demográfica. São Paulo: Instituto<br />
de Pesquisas Econômicas, 1986, pp.103-155.<br />
5 STEIN, Stanley J. Vassouras: a Brazilian Coffee Coutry, 1850-1900. Cambridge, Massachusetts, 1957.
Antes de entrarmos no debate central deste artigo, é necessário observar a<br />
importância do trabalho de Fernando Henrique Cardoso para a compreensão da<br />
escravidão no Rio Grande do Sul, as suas inovações e os argumentos com os quais<br />
procuraremos dialogar. Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional, publicado inicialmente<br />
em 1962, foi um marco para a compreensão da escravidão no Rio Grande do<br />
Sul. É através desse estudo que a sociedade gaúcha passa a ser compreendida como<br />
essencialmente escravista, contrariamente à dita democracia racial postulada por autores<br />
como o General Borges Fortes, Walter Spalding e Moysés Vellinho. A perspectiva<br />
desses autores, que dominava a historiografia sobre o tema no Rio Grande do<br />
Sul, afirmava que os escravos tiveram um papel marginal na construção da sociedade<br />
e economia da região e mesmo que o tratamento concedido a eles pelos escravistas<br />
era bem generoso, tratando-se uns aos outros como iguais.<br />
É a partir de Fernando Henrique Cardoso que a sociedade gaúcha passa a ser<br />
encarada como potencialmente escravista, onde a escravidão negra teve participação<br />
fundamental para a economia, principalmente na região charqueadora. O autor<br />
questionou a imagem do Rio Grande do Sul formado essencialmente por uma economia<br />
de criação de gado nas estâncias, atribuindo a formação da Província a uma<br />
economia agropastoril, sendo a lavoura, atividade complementar à estância. Nessas<br />
lavouras e estâncias, a mão-de-obra utilizada era a escrava. Apesar disso, “não deve<br />
ter havido concentração de escravos nas mãos de poucos agricultores poderosos” 6<br />
por não haver um tipo de atividade compensadora para a importação de mão-deobra.<br />
Foi com a lavoura de trigo que a acumulação de capital possibilitou a aquisição<br />
de escravos em larga escala e a articulação da Província com outras áreas coloniais:<br />
“logo que a agricultura proporcionou-os [recursos monetários para aquisição de<br />
mão de obra], o problema da mão-de-obra pôde ser resolvido pela importação de<br />
escravos” 7 . Mas o cultivo do trigo, para Cardoso, não explica a grande população de<br />
escravos no Rio Grande do Sul, que seria conseqüência da expansão da estância e da<br />
produção do charque 8 .<br />
Quanto à produção do charque, o autor abordou o trabalho escravo nas charqueadas<br />
em contraposição ao trabalho livre nos saladeros platinos e a concorrência<br />
implicada por essa empresa capitalista à produção escravista no sul do Brasil. Segundo<br />
o autor, o trabalho escravo nas charqueadas do Rio Grande do Sul comparativamente<br />
com a produção do charque no Uruguai onde o trabalho era livre, apresentava<br />
6 CARDOSO, Op. cit, p. 54.<br />
7 Ibidem., p. 59.<br />
8 Como vimos anteriormente, essa imagem da charqueada como única atividade compensadora para a importação<br />
de mão-de-obra africana já foi refutada por estudos mais recentes que demonstram a importância da escravidão em<br />
outras atividades que não a charqueadora. Ver nota de número 4.<br />
99
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
menor produtividade e um custo mais elevado de produção 9 . A economia escravocrata<br />
imporia certos limites à racionalização da produção que, em uma produção<br />
sazonal como a do charque, onde o trabalho dos escravos teria que ser ocupado em<br />
alguma forma de produção para mantê-los ativos e proporcionar uma “ilusão do trabalho”,<br />
quando enfrentadas com a concorrência de uma produção nos moldes capitalistas<br />
levariam ao fracasso inerente da produção escravocrata. Segundo o autor, de<br />
forma a ocupar os escravos ao máximo, “o senhor de escravos interessava-se antes<br />
por ocupar sempre o escravo do que por ocupá-lo melhor, ou mais produtivamente”<br />
10 , estabelecendo dessa forma um “regime do desperdício”.<br />
Dessa forma, alguns trabalhos eram executados tardiamente, para serem<br />
executados por todos os escravos. Fazendo-os trabalhar em todos os setores do<br />
processo produtivo, não haveria momento em que os cativos não estivessem dedicados<br />
ao trabalho, fosse ele no abate do gado, na secagem do couro, no embarque<br />
dos produtos, ou em outras atividades, acarretando no desperdício de tempo em<br />
relação ao processo produtivo, mas fazendo com que o trabalho do escravo fosse<br />
despendido ao longo de todo o processo. Assim, não haveria incentivo à divisão e<br />
organização do trabalho, já que tais melhoramentos técnicos implicariam na redução<br />
do trabalho e na possibilidade de não ocupação do escravo permanentemente,<br />
criando momentos de ociosidade, seja nos meses fora do calendário de produção do<br />
charque, seja durante o processo produtivo. É dessa forma que, segundo Fernando<br />
Henrique Cardoso, a escravidão não seria compatível com a charqueada e que seria<br />
a principal responsável pela sua decadência.<br />
Contrariamente ao postulado por Fernando Henrique Cardoso e outros autores,<br />
de que a escravidão seria um obstáculo insuperável para o desenvolvimento<br />
do capitalismo e um sistema produtivo destinado ao fracasso, já que o regime escravocrata<br />
impediria a divisão técnica do trabalho e a especialização profissional,<br />
Berenice Corsetti afirma que havia, sim, certo grau de divisão técnica e especialização<br />
nas charqueadas pelotenses. Segundo a autora, “desde as primeiras informações<br />
apresentadas sobre o tipo de organização do trabalho nas empresas charqueadoras<br />
sulinas, é possível perceber, sem dúvida, a existência de certo grau de divisão técnica<br />
do trabalho” 11 . Apesar dessa afirmação, baseada em análise de inventários de charqueadores,<br />
a autora não avança na análise da organização do trabalho escravo nessas<br />
unidades produtivas.<br />
9 CARDOSO, Op. cit, p. 172.<br />
10 Ibidem, p. 180.<br />
11 CORSETTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no século XIX. (Dissertação de Mestrado). Instituto de<br />
Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1983, p. 136.<br />
100
Leonardo Monasterio 12 também critica as afirmações de Fernando Henrique<br />
Cardoso quando afirma que a escravidão seria o fator responsável pela crise da charqueada<br />
no Rio Grande do Sul e o sucesso do charque platino. Utilizando-se de estudos<br />
sobre a produção do charque no Uruguai, Monasterio afirma que o trabalho<br />
livre não seria essencialmente mais rentável do que o trabalho escravo. Segundo o<br />
autor, os mesmos problemas de organização do trabalho, incentivo e controle eram<br />
enfrentados nos dois lados da fronteira. Através da aplicação de modelos econométricos,<br />
o autor procurou analisar a racionalidade da utilização e manutenção da<br />
escravidão na charqueada no que se refere à taxa de retorno esperada da aquisição de<br />
um escravo para utilização na charqueada e à rentabilidade da troca da mão-de-obra<br />
escrava para o trabalho livre. Segundo os resultados da aplicação de tais modelos,<br />
o trabalhado cativo representava para os charqueadores uma forma de, em uma<br />
situação de escassez de mão-de-obra, obter altas taxas de retorno, aproveitando-se<br />
durante muito tempo das condições favoráveis dos mercados e da exploração dos<br />
trabalhadores negros escravos. Finalmente, afirma o autor, a crise da charqueada não<br />
pode ser explicada pela utilização de mão-de-obra cativa, mas pelo boom do café nas<br />
províncias de São Paulo e Rio de Janeiro, que teria valorizado a taxa de câmbio real,<br />
reduzindo a competitividade de outros setores exportadores ou sujeitos à competição<br />
internacional, como o charque. Assim, a crise aconteceu apesar da escravidão e<br />
não por causa dela.<br />
***<br />
Apesar de proporem a revisão de algumas afirmativas de Fernando Henrique<br />
Cardoso a respeito da irracionalidade da produção charqueadora e afirmarem<br />
a possibilidade da melhor organização do trabalho escravo e da especialização dos<br />
trabalhadores, Corsetti e Monastério não sistematizam essa organização. Em um<br />
trabalho anterior 13 , ao nos centrarmos na análise dos impactos do fim do tráfico na<br />
escravaria das charqueadas pelotenses observamos uma racionalização do trabalho<br />
escravo na segunda metade do século XIX. Nesta pesquisa, analisamos 17 inventários<br />
post-mortem de charqueadores, divididos em dois momentos, oito para os anos<br />
compreendidos entre 1846 e 1850 e sete para o período de 1870 a 1874. Com tal<br />
divisão, propomos analisar as transformações nas fortunas dos charqueadores, nos<br />
plantéis de escravos e na organização da charqueada.<br />
12 MONASTERIO, Leonardo Monteiro. FHC errou? A economia da escravidão no Brasil Meridional. In: Anais do<br />
XXXI Encontro anual da Associação Nacional de Pós-Graduação em Economia, 2003. Disponível em: http://www.anpec.<br />
org.br. Acessado em: abril de 2010.<br />
13 PESSI, op. cit. Especialmente, Capítulo III: Os trabalhadores da charqueada – ofício e avaliação. pp. 52-66.<br />
101
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Assim, vimos que entre 1846 e 1850, 224 dos 633 escravos listados nos inventários<br />
post-mortem dos charqueadores apresentam descrições sobre ofícios especializados,<br />
o que representa 35% dos escravos arrolados no período. Entre 1870 e 1874,<br />
330 dos 386 cativos apresentam descrições sobre ofícios, o que representa 85% dos<br />
plantéis. Esse aumento do número de escravos com conhecimento de algum ofício é<br />
impressionante e pode ter sido gerado por dois fatores: uma maior preocupação dos<br />
escrivães com a descrição dos escravos ou ao crescimento real do número de escravos<br />
especializados. Parece-nos mais convincente a segunda hipótese já que, entre as<br />
outras características dos escravos presentes nos inventários (idade e origem, principalmente)<br />
não houve um detalhamento mais significativo nas descrições. Assim,<br />
acreditamos que houve um processo de intensificação da organização do trabalho<br />
escravo nas charqueadas, o que implicou em um maior grau de especialização da<br />
escravaria.<br />
Como mostra o gráfico 1, a intensificação da organização do trabalho escravo<br />
nas charqueadas, apresentada no aumento do número de escravos com especialização,<br />
foi mais acentuada em algumas áreas do processo produtivo. Observamos<br />
que entre os cativos ligados ao serviço da charqueada, houve um grande aumento<br />
da quantidade de escravos especializados enquanto que entre os ofícios ligados ao<br />
serviço do campo e da lavoura e àqueles ligados aos serviços domésticos, houve uma<br />
redução significativa da participação dos escravos entre os dois períodos.<br />
102<br />
Gráfico 1: Participação dos escravos (%) nas categorias ocupacionais<br />
nos dois períodos<br />
Fonte: APERS. Inventários post-mortem. Pelotas<br />
Através do gráfico podemos ver que a maioria dos escravos especializados,<br />
em ambos períodos, está ligada ao serviço da charqueada. Porém, é preciso fazer
uma distinção importante entre os trabalhadores que consideramos prestar o serviço<br />
da charqueada. Dentre todos os ofícios relativos à charqueada, há aqueles ligados<br />
diretamente à produção do charque, ao abate, esquartejamento do animal, retirada<br />
do couro e afins, e há os que estão ligados indiretamente, seja com o transporte ou<br />
com outros ofícios manuais. Diretamente ligados à produção do charque estão os<br />
escravos carneadores, curtidores e serventes, e indiretamente, os responsáveis pelo<br />
transporte (boleeiros, carroceiros e marinheiros), os oleiros dedicados à olaria e os<br />
escravos com ofícios manuais (carpinteiros, calafates, ferreiros, pedreiros).<br />
Dessa forma, como pudemos ver, o trabalho ligado ao charque podia sim<br />
gerar certa divisão e especialização do trabalho. Ao contrário do afirmado por Fernando<br />
Henrique Cardoso 14 , baseado nas descrições de Louis Couty 15 , parece-nos<br />
que havia muito mais do que trabalhadores que se dedicassem somente às operações<br />
anteriores à salga, salgadores e trabalhadores encarregados pelos subprodutos do<br />
charque. Por mais que no processo que se estende do abate do animal até a produção<br />
do charque, couro e graxas, não nos parece haver uma subdivisão mais rigorosa do<br />
trabalho, a presença de escravos nos processos anteriores e posteriores ao citado acima<br />
denota uma importante divisão do trabalho. Também, o caráter bruto do trabalho<br />
escravo, necessário para que o escravo não se anteponha ao senhor, não parece<br />
encontrar apoio nos dados empíricos, visto a alta especialização de alguns escravos,<br />
como os calafates 16 , carpinteiros e ferreiros. A presença de tais escravos mostra que a<br />
lógica da charqueada escravista não era tão irracional como pretendida por Cardoso,<br />
mas procurava certa auto-suficiência, buscando minimizar as necessidades de recorrer<br />
ao mercado, em relação a algumas atividades correlatas à produção do charque.<br />
Essa auto-suficiência se representa também no setor de transportes, com a importante<br />
presença de escravos marinheiros, além dos boleeiros e carroceiros. Também<br />
nessa atividade, essencial para a produção charqueadora, a utilização de mão-de-obra<br />
escrava era importante, contando com a possibilidade de especialização dos trabalhadores<br />
na execução de suas atividades. A preocupação com auto-suficiência da<br />
charqueada em matéria-prima e alimentos está demonstrada na importante participação<br />
dos escravos ligados ao serviço do campo e da lavoura. Estão incluídos nesse<br />
grupo os campeiros, roceiros e os descritos como “serviço da lavoura”.<br />
14 CARDOSO, op. cit., p. 178.<br />
15 A utilização dos relatos de Louis Couty é uma das grandes críticas feitas ao trabalho de Fernando Henrique Cardoso.<br />
Lembramos que Couty foi um naturalista francês que veio para o Brasil na década de 1870, viajando pelo Rio<br />
Grande do Sul entre o final da década de 1870 e o início da década de 1880. O uso indiscriminado dos seus relatos<br />
fez com que Cardoso generalizasse para todo o século XIX a imagem dos últimos anos da charqueada escravista,<br />
cometendo uma série de equívocos.<br />
16 Talvez os escravos calafates (ou “calafeteiros”, como também são apresentados na fonte) possam ser considerados<br />
como o exemplo máximo da especialização do trabalho nas charqueadas. Esses escravos eram, basicamente, carpinteiros<br />
especializados na manutenção das embarcações.<br />
103
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Por último, observamos que os escravos eram ocupados também em diversas<br />
atividades domésticas, principalmente as mulheres. De fato, somente encontramos<br />
mulheres com ofícios entre os escravos do serviço doméstico. Não nos deteremos<br />
de forma muito extensiva na análise desse grupo, mas parece-nos importante enumerar<br />
os ofícios relacionados a essas atividades. Temos alguns escravos vinculados<br />
à costura de panos, os alfaiates, costureiras e tecedeiras, além de sapateiros, o que<br />
indica que também havia preocupação com o sustento da casa em relação ao fornecimento<br />
de roupas para os escravos. O restante era composto por escravos relacionados<br />
ao serviço doméstico, como cozinheiros, lavadeiras, engomadeiras, mucamas,<br />
padeiros, etc.<br />
O elevado crescimento do número de escravos com ofício e principalmente<br />
daqueles ligados ao serviço da charqueada entre os dois períodos estudados é compatível<br />
com a idéia apresentada de racionalização do trabalho escravo nas charqueadas<br />
em um contexto de crise de braços. Tal incremento na organização do trabalho<br />
após o fim do tráfico foi advogado por Jacob Gorender ao estudar as fazendas de<br />
café do oeste paulista na segunda metade do século XIX. Segundo o autor, “com o<br />
braço escravo comprado a preços altíssimos, a poupança da mão-de-obra tornou-se<br />
imperativa. A tecnificação setorial abriu caminho no próprio escravismo brasileiro,<br />
prolongando sua viabilidade econômica” 17 . Dessa forma, parece plenamente racional<br />
que, aliado à melhoria tecnológica da empresa escravista, o incremento da organização<br />
do trabalho escravo visasse à poupança do escravo cada vez mais caro, a<br />
fim de perpetuar a utilização de sua força de trabalho. Além disso, cabe fazer alguns<br />
apontamentos sobre a importante questão da divisão técnica do trabalho escravo na<br />
década de 1870. Se entre 1846 e 1850, os ofícios referentes ao serviço da charqueada<br />
se resumiam em nove especializações diferentes, na primeira metade da década<br />
de 1870 temos, além do aparecimento de cinco novas especialidades, a presença de<br />
graus de conhecimento do ofício, tais como aprendizes e mestres. Entre os ofícios<br />
que constam na documentação desse período e que não constavam anteriormente,<br />
encontramos correeiros, descarnadores, graxeiros, salgadores e tanoeiros, desaparecendo<br />
dos inventários os carroceiros, curtidores e oleiros. O que chama a atenção<br />
é a maior divisão do processo de abate e esquartejamento do gado e salga da carne,<br />
demonstrado pela presença, além dos carneadores e serventes, de descarnadores<br />
e salgadores. Assim, enquanto os carneadores eram os responsáveis pelo abate e<br />
esquartejamento do animal, os descarnadores separavam ossos, peles e couros e os<br />
salgadores ficavam responsáveis pela última etapa do processo, a salga e empilhamento<br />
da carne.<br />
17 GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Editora Ática, 1980. P. 563.<br />
104
Também se mostrou interessante o fato de que, no segundo período da nossa<br />
análise, encontramos entre os escravos especializados, quatro aprendizes de carneador<br />
e um tanoeiro mestre. Apesar de pouca freqüência de tal tipo de descrição,<br />
isso nos indica que existiam graus de especialização mais vastos do que o simples<br />
conhecimento de ofícios variados, havendo investimento e uma rede de aprendizado<br />
entre os escravos dos charqueadores do período analisado. Assim, o estudo empírico<br />
nos inventários post-mortem nos mostra que as possibilidades de especialização do<br />
trabalho escravo nas charqueadas eram variadas e foram se intensificando ao longo<br />
da segunda metade do século XIX, contrariamente do postulado por Fernando<br />
Henrique Cardoso.<br />
A partir dos dados acima expostos, podemos rever a posição de Fernando<br />
Henrique Cardoso quando afirma que não haveria interesse dos charqueadores em<br />
ocupar os escravos de forma mais produtiva, não investindo na especialização dos<br />
cativos e fazendo com que os mesmos trabalhassem em todos os setores do processo<br />
produtivo. Empiricamente, a presença de um grande número de escravos com<br />
ofícios especializados nos mostra que essa ocupação de todos os cativos ao mesmo<br />
tempo em uma única atividade não ocorria. Existiam, assim, escravos altamente<br />
especializados que se dedicavam a só uma atividade do processo produtivo, sendo<br />
ensinado a fazer aquele trabalho específico. Claro que a grande presença de “serventes”<br />
pode ser uma referência que esses escravos eram alocados conforme a necessidade<br />
da produção, mas não nos parece que o trabalho especializado seja tão<br />
contraditório ao regime escravocrata. Houve, sim, a necessidade e o investimento<br />
dos charqueadores na organização do trabalho em diversas esferas da produção, que<br />
foi crescente ao longo do período estudado nessas páginas. Dessa forma tendemos<br />
a acreditar ser possível que, como afirma Stuart Schwartz, a existência de hierarquias<br />
e especializações na produção se tornavam formas de incentivar a produção e a diferenciação<br />
dos escravos, algo semelhante a promoções entre os melhores cativos,<br />
havendo assim possibilidade de salários e recompensas para os escravos mais especializados<br />
18 . Além disso, a lógica escravista para a segunda metade do século XIX<br />
parece visar a economia - entendida como a melhor utilização - do trabalho escravo.<br />
***<br />
Neste mesmo estudo, ao compararmos os valores dos escravos entre os dois<br />
períodos, observamos um importante encarecimento dos mesmos. É importante<br />
18 SCHWARTZ, Stuart. Trabalho e cultura: vida nos engenhos e vida dos escravos. In: Escravos, roceiros e rebeldes.<br />
Bauru: Edusc, 2001. P. 96 et. seq.<br />
105
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
ressaltar que não estamos lidando com o preço de compra e venda dos cativos,<br />
mas o valor de avaliação dos mesmos nos inventários post-mortem que podem não<br />
representar o valor de mercado do cativo, mas com certeza se regulam através dele.<br />
As avaliações dos bens arrolados nos inventários eram feitas por “especialistas”,<br />
pessoas que tivessem conhecimento dos bens a serem avaliados e que pudessem<br />
seguir uma “geral estimação” dos preços. Os inventários do período que se estende<br />
dos anos 1846 a 1850 nos indicam que a média geral da avaliação dos escravos é alta:<br />
aproximadamente 451$690, maior entre os homens (468$822) do que entre as mulheres<br />
(400$000). Já entre 1870 e 1874, o valor médio dos escravos é surpreendente,<br />
cerca de 1:065$000. Surpreendente também se compararmos a relação entre os valores<br />
dos homens e das mulheres. Os valores médios entre cativos do sexo masculino<br />
foram de 1:122$500 enquanto que entre as mulheres foram de 682$600 (61% do<br />
valor médio dos escravos do sexo masculino).<br />
Como a tabela 1 nos mostra, a variação do valor da avaliação entre os homens<br />
foi muito maior do que entre as mulheres nos 20 anos que separam os períodos<br />
estudados. Enquanto entre os homens, a variação foi de 239%, entre as mulheres<br />
foi de 173%. Podemos observar que o acesso aos escravos do sexo masculino se<br />
tornou dificultoso para os charqueadores, mas que mesmo assim, grande parte do<br />
investimento na compra de cativos se direcionava para esse grupo 19 . Novamente, a<br />
racionalização e a melhor organização do trabalho escravo nas charqueadas, visando<br />
a “poupança” de mão-de-obra, representam soluções para compensar o alto custo<br />
de aquisição de cativos após o fim do tráfico.<br />
106<br />
Tabela 1: Variação dos preços médios dos escravos<br />
Fonte: APERS. Inventários post-mortem. Pelotas.<br />
Se observarmos a variação da avaliação dos escravos especializados e nãoespecializados,<br />
percebemos um movimento semelhante. Obviamente, os valores dos<br />
cativos especializados são mais elevados do que os sem ofício, conforme nos mostra a<br />
tabela 2. De forma geral, os valores dos homens e dos cativos com ofícios variam semelhantemente.<br />
O mesmo ocorre entre as mulheres e os cativos sem ofício declarado.
Tabela 2: Variação dos preços médios entre escravos com e sem ofício<br />
Fonte: APERS. Inventários post-mortem. Pelotas.<br />
A variação dos valores dos escravos com ofício não foi, contudo, igual em<br />
todos os ofícios. Dos 14 ofícios que se repetem nos dois períodos, em 4 a variação<br />
é menor do que a variação média dos escravos com ofício declarado, tendo uma<br />
valorização expressiva, porém semelhante à dos escravos sem ofício declarado (a<br />
avaliação das costureiras teve um aumento de 180%; das lavadeiras, 154%; dos serventes,<br />
142%; e das declaradas “serviços domésticos”, 172%). Isso demonstra que<br />
passou a se tornar cada vez mais necessária a especialização dos escravos na produção<br />
do charque. Essa capacidade de desenvolver uma atividade específica gerando<br />
economia e melhor qualidade do trabalho estava “calculada” no valor do escravo e<br />
tornava-o mais bem cotado em relação aos outros.<br />
Também utilizamos as avaliações dos inventários para analisar o valor dos<br />
cativos em relação à idade, o que nos mostrou quais eram os grupos etários mais<br />
envolvidos com a produção. Entende-se assim que, ao tratarmos o grupo de escravos<br />
dos períodos estudados, a variação de preços ao longo de cada período é essencialmente<br />
um indicativo da capacidade produtiva dos mesmos. Logo, aquele cativo<br />
em idade produtiva e com boa saúde valeria mais do que um cativo muito jovem ou<br />
muito velho para o trabalho, ou mesmo adoentado. Elaboramos o gráfico 2 procurando<br />
entender a variação do valor dos escravos conforme a idade dos mesmos. O<br />
gráfico representa a variação dos valores médios dos escravos agrupados por idades<br />
a cada cinco anos. Para a análise comparativa, consideramos os valores máximos encontrados<br />
em cada período como 100%, na tentativa de mostrarmos a evolução dos<br />
mesmos em relação ao seu ápice. Os máximos encontrados correspondem à faixa<br />
de 20 a 24 anos no primeiro período (583$000) e à faixa de 25 a 29 aos no segundo<br />
(1:407$000).<br />
107
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
108<br />
Gráfico 2: Evolução do preço dos escravos em relação à idade<br />
Fonte: APERS. Inventários post-mortem. Pelotas.<br />
O que podemos observar do gráfico é que, entre os escravos considerados<br />
crianças, manteve-se uma progressão semelhante nos preços entre os dois períodos.<br />
Entre o momento de nascimento do cativo até os quatro anos, os valores correspondiam<br />
a cerca de 15% dos valores máximos. Entre os 10 e 14 anos o valor do escravo<br />
já representava em torno de 70% do valor de um adulto, situação que está intimamente<br />
relacionada à capacidade produtiva que já era demonstrada por tais cativos<br />
nessa idade. Aos 15 anos o escravo já era um adulto com todas as competências para<br />
o trabalho e o vigor físico necessário para tal. Na faixa de idade dos 15 aos 19 anos,<br />
os escravos já alcançam 85% do valor médio máximo, pertencente aos cativos na<br />
faixa dos 20 aos 24 anos, no período que se estende de 1846 a 1850. Até os 34 anos<br />
esse valor é mais ou menos estável, atingindo pouco menos de 90% do preço máximo,<br />
decaindo de forma constante a partir dos 40 anos. Se as avaliações das crianças<br />
representam um crescimento semelhante entre um período e outro, a variação dos<br />
valores quanto aos escravos em idade adulta nos períodos analisados não apresenta<br />
tantas semelhanças. Nos primeiros quatro anos da década de 1870, o valor de um<br />
escravo entre os 15 e 19 anos representava 95% da média máxima, obtida entre os<br />
escravos com 25 a 29 anos. Se o valor médio do escravo supera os 90% do máximo<br />
antes do que no primeiro período, ele volta a cair abaixo desse patamar mais tar-
diamente, por volta dos 45 aos 49 anos, onde representa 85% do valor máximo e a<br />
partir de então decai de forma mais significativa.<br />
Dessa forma, o que podemos analisar no gráfico acima é que os escravos na<br />
década de 1870 possuem um valor relativamente alto (entre 90% e 100% do valor<br />
médio máximo) ao longo de um período maior da sua vida, dos 15 aos 44 anos, o<br />
que representa uma maior valorização do próprio trabalho desses cativos. O que entendemos<br />
por isso é que, numa lógica econômica própria desse momento, o escravo<br />
se tornava velho – sinônimo de improdutivo, ou menos produtivo – em uma idade<br />
mais avançada em relação ao primeiro período. Tendo isso em mente, parece que a<br />
racionalização do trabalho escravo com o objetivo de economizar além do alto capital<br />
investido, o próprio escravo, na forma de melhor organização e especialização do<br />
trabalho, pôde proporcionar a extensão da idade produtiva e o maior aproveitamento<br />
do cativo ao longo de sua existência.<br />
O que esses dados nos mostram é que houve, pelo menos até a década de<br />
1870, condições de racionalizar o trabalho escravo nas charqueadas pelotenses. Assim,<br />
a permanência da escravidão não representa a permanência de uma “mentalidade<br />
atrasada” ou uma “irracionalidade” como propõe Fernando Henrique Cardoso,<br />
mas um esforço de tornar o trabalho escravo especializado e produtivo, permitindo,<br />
além de uma melhor organização, o aumento da produtividade do próprio cativo.<br />
Dessa forma, além da possibilidade de uma maior organização do trabalho, houve a<br />
adoção de medidas racionalizantes para o trabalho escravo nas charqueadas, necessidade<br />
que se tornou premente devido à crise de mão-de-obra causada pelo fim do<br />
tráfico transatlântico de escravos e o paulatino encarecimento do preço do escravo.<br />
Como forma de compensar a crise e tornar possível a permanência da escravidão<br />
nas charqueadas, a maior especialização dos cativos pode ter sido aliada à inovações<br />
tecnológicas e ao uso cada vez maior de mão-de-obra livre, que não nos atemos a<br />
analisar.<br />
***<br />
Manuseando os livros notariais do tabelionato de Pelotas, encontramos três<br />
contratos de compra e venda de charqueadas. Entre os bens comercializados junto<br />
ao estabelecimento, nos três casos, houve a venda de grandes quantidades de escravos.<br />
As escrituras públicas de compra e venda são documentos que mostram a transação<br />
comercial de algum bem, onde estavam envolvidos compradores, vendedores<br />
e testemunhas. Denominava-se uma escritura porque era realizada por um tabelião<br />
e era registrada em livros cartoriais; era também pública porque estava sob controle<br />
do Estado, escrita por um burocrata imperial; e, finalmente, era uma compra e venda<br />
109
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
porque tinha o fim de transacionar de forma legal qualquer bem: casas, terras, móveis,<br />
escravos etc. Assim, este documento produzido durante o século XIX com o<br />
objetivo de tornar público e legal as relações comerciais e também com o fim de evitar<br />
problemas de embargo e herança, torna-se privilegiado para entender a dinâmica<br />
comercial de escravos, já que apresenta informações relevantes sobre os tramites da<br />
obtenção de cativos na época. É importante destacarmos que havia outras formas,<br />
que não com o registro legal, para obtenção de cativos. Os dados coletados para<br />
esta pesquisa foram extraídos de escrituras de compra e venda de escravos, documentos<br />
notariais. Infelizmente, a grande dificuldade observada ao utilizarmos essa<br />
fonte nesse estudo é justamente a pouca freqüência desse tipo de registro nos anos<br />
selecionados.<br />
O primeiro registro que encontramos foi a venda de uma charqueada com<br />
55 escravos que Cipriano Rodrigues Barcellos fez a Cândido Antônio Barcellos e<br />
Irmãos em primeiro de dezembro de 1860 20 . É interessante observar que, dos 49 escravos<br />
do sexo masculino vendidos, apenas sete não tinham nenhum ofício declarado.<br />
Entre os 16 ofícios citados, os mais freqüentes eram carneador (11), carpinteiro<br />
(6) e servente (6). O preço acertado entre as partes foi de 1:400$000 por escravo, valor<br />
bem elevado se comparado com a média das avaliações feitas nos inventários utilizados<br />
anteriormente, mas próximo dos valores médios de carneadores (1:341$758)<br />
e descarnadores (1:400$000) presentes nos mesmos.<br />
Em 29 de novembro de 1875, Manoel Mathias da Terra Velho, morador de<br />
Rio Grande, registra a venda de uma charqueada com 25 escravos para Joaquim Rodrigues<br />
da Silva e Antônio Joaquim da Silva Maia 21 . Nesta transação também encontramos<br />
uma maioria de escravos com ofício declarado: somente cinco não o tinham.<br />
Entre os ofícios mais freqüentes, encontramos carneador (10), oleiro (3) e marinheiro<br />
(3). Foi ajustado o valor de 35:000$000 pela transação, 1:400$000 por cativo.<br />
O último registro de compra e venda que utilizaremos foi feito em nove de<br />
fevereiro de 1882. Junto à charqueada, são vendidos pela Firma Evaristo e Gonçalves<br />
ao Comendador Possidonio Mâncio da Cunha 22 34 cativos, entre carneadores<br />
e serventes. Neste registro não há nenhum escravo sem ofício, apenas um escravo<br />
declarado “serviços domésticos”. O valor, porém, não demonstra semelhança<br />
com os casos anteriores: 19:000$000 pela compra de 34 escravos (aproximadamente<br />
560$000 por escravo). É preciso lembrar que na década de 1880 a escravidão já estava<br />
nos seus momentos finais: as leis Eusébio de Queirós e Rio Branco estancaram as<br />
20 APERS. Pelotas, I Tabelionato, Livro 9 (1860 – 1864), fl. 105r.<br />
21 APERS. Pelotas, II Tabelionato, Livro 16 (1875 – 1876), fl. 17r.<br />
22 APERS. Pelotas, II Tabelionato, Livro 18 (1881 – 1882), fl. 194v.<br />
110
duas fontes de aquisição de novos trabalhadores escravizados, o tráfico transatlântico<br />
e a reprodução interna de escravos. Talvez, pelo valor da negociação, já houvesse<br />
nesta década a consciência do fim inerente da escravidão, mas não é esse o aspecto<br />
que procuramos chamar atenção neste texto.<br />
O que buscamos na análise desses registros de compra e venda não é a relação<br />
entre oferta/procura de escravos ou a intensidade do comércio. Apenas três registros<br />
não dariam conta de perceber toda a dinâmica comercial da localidade. Procuramos,<br />
sim, constituir, através de uma outra fonte que não os inventários, o espaço<br />
produtivo da charqueada no período estudado e compará-lo com as características<br />
evidenciadas no estudo dos inventários. Com o uso dos registros de compra e venda,<br />
percebemos que o valor agregado à especialização do escravo estava presente não<br />
só nas avaliações em inventários, mas também no preço utilizado em transações<br />
comerciais envolvendo cativos especializados. Além disso, podemos ver a proeminência<br />
dos escravos com ofícios frente aqueles sem ofício, tendência que, como já<br />
destacamos, se acentuou após 1850.<br />
***<br />
Voltando à questão que nos propusemos anteriormente, por que os charqueadores<br />
teriam continuado, então, a investir em escravos na década de 1870? Por que<br />
foram registradas compras de charqueadas com quantidades consideráveis de escravos<br />
se, além do encarecimento tão significativo da aquisição de cativos, o trabalho<br />
escravo nas charqueadas não era economicamente racional? Talvez pela própria inexistência<br />
ou insuficiência de um mercado local de trabalhadores livres, mas com certeza,<br />
pela existência de condições de melhoramento da produtividade e organização<br />
do trabalho escravo nas charqueadas. Esses melhoramentos da produtividade, aqui<br />
referenciados essencialmente na melhor organização do trabalho escravo, podem ter<br />
se aliado a melhoramentos tecnológicos como máquinas a vapor, entre outros.<br />
Compreendemos assim que a permanência do trabalho escravo nas charqueadas<br />
mesmo após o fim do tráfico e o progressivo encarecimento da aquisição de<br />
cativos segue uma racionalidade que visava permitir condições para o seu melhor<br />
aproveitamento, o que proporcionaria a amortização ao longo de maior tempo da<br />
inversão inicial feita pelos charqueadores. Assim, até pelo menos a década de 1880,<br />
quando o próprio fim da escravidão já parecia uma possibilidade real para os escravistas,<br />
o investimento no trabalho escravo não parecia para os charqueadores a<br />
permanência de um atraso frente a utilização de mão-de-obra livre, mas possibilitava<br />
condições de expansão e maior organização do trabalho, o que poderia tornar o<br />
escravo mais produtivo e inclusive, mais rentável.<br />
111
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
112<br />
FONTES UTILIZADAS<br />
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul<br />
Acervo dos Tabelionatos<br />
I Tabelionato, Pelotas, Livros Notariais de Transmissão e Notas, Livro 9 (1860 –<br />
1864), fl. 105r.<br />
II Tabelionato, Pelotas, Livros Notariais de Transmissão e Notas, Livro 16 (1875 –<br />
1876), fl. 17r.<br />
II Tabelionato, Pelotas, Livros Notariais de Transmissão e Notas, Livro 18 (1881 –<br />
1882), fl. 194v.<br />
Acervo do Judiciário<br />
INVENTÁRIO de Jerônimo José Coelho. Pelotas, n° 6, cx. 101, I Vara Cível, 1846.<br />
INVENTÁRIO de Emerencia Maria Teixeira. Pelotas, n° 4, cx. 18, II Vara Cível,<br />
1847.<br />
INVENTÁRIO de José Pereira de Sá Peixoto. Pelotas, n° 276, cx. 396, Vara de Família,<br />
Sucessão e Provedoria, 1847.<br />
INVENTÁRIO de Maria Angélica Barbosa. Pelotas, n° 286, cx. 397, Vara de Família,<br />
Sucessão e Provedoria, 1847.<br />
INVENTÁRIO de Francisca Alexandrina de Castro. Pelotas, n° 293, cx. 397, Vara<br />
de Família, Sucessão e Provedoria, 1848.<br />
INVENTÁRIO de Joaquina Maria da Silva. Pelotas, n° 304, cx. 398, Vara de Família,<br />
Sucessão e Provedoria, 1849.<br />
INVENTÁRIO de Teresa da Silva Santos d’Oliveira. Pelotas, n° 310, cx. 398, Vara<br />
de Família, Sucessão e Provedoria, 1849.<br />
INVENTÁRIO de Dignatário José Rodrigues Barcellos. Pelotas, n° 15, cx. 101, I<br />
Vara Cível, 1850.<br />
INVENTÁRIO de Silvana Claudina Belchior. Pelotas, n° 727, cx. 422, Vara de Família,<br />
Sucessão e Provedoria, 1870.<br />
INVENTÁRIO de Cipriano Joaquim Rodrigues Barcellos. Pelotas, n° 02, cx. 510, II<br />
Vara de Família, 1870.
INVENTÁRIO de Felisbina Silva Antunes. Pelotas, n° 68, cx. 103, I Vara Cível, 1871.<br />
INVENTÁRIO de Laurinda da Silva Guimarães. Pelotas, n° 71, cx. 20, II Vara Cível,<br />
1871.<br />
INVENTÁRIO de Carlota Batista Teixeira. Pelotas, n° 733, cx. 423, Vara de Família,<br />
Sucessão e Provedoria, 1871.<br />
INVENTÁRIO de Antônio José Gonçalves Chaves. Pelotas, n° 754, cx. 424, Vara<br />
de Família, Sucessão e Provedoria, 1872.<br />
INVENTÁRIO de Maria Luiza Chaves. Pelotas, n° 770, cx. 424, Vara de Família,<br />
Sucessão e Provedoria, 1872.<br />
INVENTÁRIO de Matildes Vinhas Lopes. Pelotas, n° 775, cx. 425, Vara de Família,<br />
Sucessão e Provedoria, 1873.<br />
INVENTÁRIO de Luiz Teixeira Barcelos. Pelotas, n° 777, cx. 425, Vara de Família,<br />
Sucessão e Provedoria, 1873.<br />
BIBLIOGRAFIA<br />
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional. 2ª ed.<br />
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.<br />
CORSETTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no século XIX. (Dissertação<br />
de Mestrado). Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal<br />
Fluminense, Niterói, 1983<br />
GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Editora Ática, 1980.<br />
MONASTERIO, Leonardo Monteiro. FHC errou? A economia da escravidão no<br />
Brasil Meridional. In: Anais do XXXI Encontro anual da Associação Nacional de Pós-<br />
Graduação em Economia, 2003. Disponível em: http://www.anpec.org.br. Acessado<br />
em: abril de 2010.<br />
PESSI, Bruno Stelmach. O impacto do fim do tráfico na escravaria das charqueadas pelotenses<br />
(C. 1846-C. 1874). (Monografia de Conclusão de Curso de Graduação). Instituto de<br />
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto<br />
Alegre, 2008.<br />
SCHWARTZ, Stuart B. Trabalho e cultura: vida nos engenhos e vida dos escravos.<br />
In: Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: Edusc, 2001<br />
SLENES, Robert. Grandeza ou decadência? O mercado de escravos e a economia<br />
cafeeira da província do Rio de Janeiro, 1850-1888. In: DA COSTA, Iraci del Nero<br />
(Org.). Brasil: História econômica e demográfica. São Paulo: Instituto de Pesquisas Econômicas,<br />
1986, pp.103-155.<br />
113
uMA eConoMiA esCrAvistA? APontAMentos sobre A<br />
PoPulAção e A estruturA de Posse de esCrAvos eM<br />
Porto Alegre (1779-1792)<br />
Luciano Costa Gomes¹<br />
Resumo: Este trabalho aborda a configuração da população e a estrutura de posse de escravos<br />
de Porto Alegre e suas mudanças entre os anos de 1779 e 1792. As fontes utilizadas são os róis de<br />
confessados de Porto Alegre de 1779, 1782 e 1792 e o mapa de população de 1780. Averiguamos que<br />
o crescimento populacional então verificado teve como principal fator o aumento do número de escravos<br />
e agregados. Este é um dado significativo se atentarmos para o fato de que o período em foco se<br />
caracterizou por expressivo crescimento econômico na Capitania do Rio Grande. Verificamos também<br />
que mais da metade dos domicílios listados apresentava posse de escravo e que, destes, predominaram<br />
aqueles com poucos escravos. Os dados encontrados apontam para a possibilidade de caracterizar a<br />
economia porto-alegrense de escravista.<br />
Palavras-chave: Escravidão – Porto Alegre – População – Estrutura de posse de escravos.<br />
INTRODUçãO<br />
Neste estudo, pretendemos analisar a configuração e mudança da<br />
população de Porto Alegre de fins do século XVIII a partir dos<br />
róis de confessados. O rol de confessados é uma fonte de origem<br />
eclesiástica na qual se registrava a participação dos cristãos de uma localidade nos<br />
sacramentos oferecidos pela Igreja no período da quaresma. Nesse sentido, ao se<br />
considerar que praticamente todos os moradores da Freguesia de Porto Alegre eram<br />
católicos, podemos entender os róis como um censo da mesma população. Nele, as<br />
pessoas são agrupadas a partir do fogo² em que residiam, o que nos permite observar<br />
a variada composição dos núcleos familiares e, especialmente quando contamos<br />
com escravos e agregados, das unidades produtivas. Contamos com os róis de 1779<br />
até 1782 e os de 1790 e 1792. No primeiro conjunto, existem as informações de<br />
¹ Mestrando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista CNPq.<br />
² Por fogo ou domicílio entende-se o conceito de unidade de censo, utilizado por Juan Garavaglia (GARAVAGLIA, 1999,<br />
p. 54):<br />
115
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
nome, situação matrimonial, condição social – se livre, liberto ou escravo –, posição<br />
ocupada no fogo – se pertencente ao núcleo familiar, agregado ou escravo –, cor,<br />
idade e dados referentes à participação dos cristãos nos sacramentos de confissão<br />
e comunhão. Nos róis da década de 1790, constam todas estas informações, com<br />
exceção da idade dos indivíduos.<br />
O principal problema enfrentado no uso desta documentação é seu estado de<br />
má conservação. A partir da visualização do material, temos a impressão de que algo<br />
entre 15 e 20% se perdeu, opinião semelhante a de Fábio Kühn sobre à conservação<br />
dos róis de Viamão³. Para contornar o problema, empreendemos duas operações<br />
distintas. A primeira foi de procurar recuperar informações perdidas por meio de<br />
comparação dos róis de um mesmo período entre si. Muitas descrições de indivíduos<br />
foram assim recuperadas, especialmente as referentes aos chefes dos domicílios. Para<br />
complementar algumas informações, ou mesmo corrigi-las, foram também úteis os<br />
livros de batismos de livres e de escravos de Porto Alegre. A segunda operação foi<br />
de retirar do cômputo as descrições dos fogos muito danificados para evitar maiores<br />
distorções no conjunto dos resultados.<br />
A partir dos dados obtidos pela análise dos róis de confessados, abordaremos<br />
dois temas. O primeiro diz respeito ao tamanho da população, seu crescimento ao<br />
longo do período e sua composição em termos da posição ocupada pelos indivíduos<br />
nos domicílios, se pertencentes ao núcleo familiar, agregados ou escravos. O segundo<br />
tema abordado é o da configuração da estrutura de posse de cativos da localidade,<br />
isto é, a forma como se distribuía a população cativa pelos domicílios escravistas.<br />
Frisamos que nossa perspectiva é diacrônica, pois procuramos avaliar algumas das<br />
mudanças ocorridas na localidade num período de treze anos, entre 1779 e 1792. É<br />
um período curto, mas que apresenta significativas variações no conjunto da população.<br />
Antes de continuarmos, precisamos apresentar algumas informações sobre<br />
a localidade. Foi no contexto da guerra guaranítica que alguns casais açorianos desembarcaram<br />
nas margens do Guaíba em 1753, onde então existia a estância de<br />
Jerônimo de Ornelas 4 . Assim, a paróquia de Porto Alegre estava ocupada há cerca de<br />
quarenta anos quando os róis em questão foram elaborados. Já em inícios da década<br />
de 1780 a localidade se dividia em dois espaços diferentes, o núcleo urbanizado e<br />
o entorno rural, cada qual com suas especificidades produtivas 5 . Este cinturão ru-<br />
3 KÜHN, 2004, p. 50.<br />
4 FLORES, 1993, p. 50.<br />
5 Segundo o rol de 1782, que preservou as localizações de ruas e bairros rurais, o perímetro urbano se constituía<br />
pelas ruas da Praia, da Igreja, Formosa e mais uma cujo nome está corroído. O entorno rural apresenta os seguintes<br />
bairros: a região fora do portão, o Capão da Fumaça (transcrito como Tumasa), o Cristal e o Passo de Ornellas. Este<br />
tema será assunto de futuro trabalho.<br />
116
al era composto por famílias de lavradores, em geral ilhéus, muitas das quais com<br />
escravos e agregados. Havia pequenos rebanhos com até 250 reses 6 e produziam-se<br />
gêneros de subsistência para proveito próprio, para venda no mercado local e para<br />
exportação para o Rio de Janeiro. Segundo o mapa de colheita de 1780, a localidade<br />
produziu 31% do trigo plantado na Capitania neste ano 7 . Temos também registro de<br />
ao menos uma azenha neste período, onde se fabricava farinha de trigo, de propriedade<br />
de Francisco Antônio da Silveira, conhecido entre seus contemporâneos como<br />
Chico da Azenha 8 . No núcleo urbano encontramos comerciantes, militares de alta<br />
patente, artesãos e o porto. Era por este porto que se fazia a ligação entre o interior<br />
da Capitania, até Rio Pardo, e o porto do Rio Grande. No rol de 1792, encontramos<br />
um mínimo de 39 embarcações ancoradas 9 . Entre os comerciantes, encontramos 14<br />
indivíduos, alguns deles acompanhados por caixeiros 10 . Dito isto, passemos à análise.<br />
POPULAçãO<br />
O primeiro ponto que podemos abordar é o do crescimento da população ao<br />
longo do período porque dispomos desta informação para todos os anos contemplados<br />
pelos róis. Na tabela seguinte apresentamos os dados relativos ao tamanho<br />
da população e número de domicílios ainda preservados na fonte, sem acréscimo<br />
ou exclusão de informações. Os valores devem representar algo entre 80 e 85% do<br />
que possuíam os documentos quando ainda estavam intactos. Importa observar que<br />
não estão incluídas as relações dos andantes, nem as relações do destacamento de<br />
infantaria presente em 1782 e da população das embarcações de 1792.<br />
Tabela 1<br />
População e domicílios nos róis de confessados de Porto Alegre, sem exclusão<br />
ou acréscimos de dados, do período entre 1779 a 1782<br />
Fonte: róis de confessados de Porto Alegre, 1779-1782, AHCMPA.<br />
6 Fonte: “Relação de moradores que têm campos e animais no Continente”, feito no início do ano de 1784, depositada<br />
no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Sobre a fonte, ver OSORIO, 2008, p. 79ss.<br />
7 OSóRIO, 2008, p. 179.<br />
8 CORUJA, 1983, p. 128.<br />
9 Fonte: rol de confessados de Porto Alegre, 1792, AHCMPA.<br />
10 Estes comerciantes descritos no rol de confessados foram encontrados pela procura dos mesmos na lista elaborada<br />
por Adriano Comissoli (2008, p. 70) sobre os Vereadores da Câmara de Porto Alegre, pela procura de fogos que<br />
abrigassem caixeiros, indício seguro de que o chefe do fogo era comerciante, e pela pesquisa no Almanaque de Porto<br />
Alegre de 1808, de autoria do comerciante Manuel Antônio de Magalhães (obra transcrita em FREITAS, Décio. O<br />
capitalismo pastoril. Porto Alegre, EST, 1980).<br />
117
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Obs.: foram consideradas apenas as descrições de indivíduos que contivessem, no mínimo, uma informação.<br />
Em 1782 foram excluídas as descrições de dois domicílios repetidos e havia dois domicílios<br />
que, separados por espaço corroído, eram, em realidade, um só.<br />
Dispondo desta série de róis podemos avaliar as mudanças na população no<br />
espaço de treze anos 11 . Mesmo levando em consideração que cada rol apresenta<br />
especificidades próprias dependendo do ano e do padre que o elaborou, temos algumas<br />
razões para creditar ao conjunto dos documentos homogeneidade suficiente<br />
para estabelecer comparações válidas: estes documentos foram feitos com o mesmo<br />
objetivo de registrar a participação dos fregueses nos sacramentos religiosos; aparecem<br />
apenas três padres responsáveis pela coleta das informações; além disso, as categorias<br />
utilizadas são as mesmas em todos os documentos, sem maiores alterações.<br />
Devemos enfatizar que existem especificidades, como o fato de apenas os róis de início<br />
da década de 1780 apresentarem as idades dos fregueses; apenas nos róis de 1781<br />
e 82 aparece a categoria de guarani; algumas descrições dos róis de 1790 foram feitas<br />
com alguma informalidade, pois as informações de cor e condição social de alguns<br />
indivíduos que apareceram nos livros de batismos como pardos e libertos não foram<br />
declaradas. Ainda assim, estas peculiaridades parecem não impedir o relacionamento<br />
entre os diferentes documentos, visto as razões inicialmente apresentadas 12 .<br />
Para avaliar da maneira mais precisa possível a mudança no tamanho da população<br />
entre os dois períodos em questão – fins da década de 1770 e início da década<br />
de 1790 – precisamos também que os documentos estejam com a conservação<br />
das informações em estado algo semelhante. Como os róis parecem ter perdido<br />
a mesma quantidade de dados e que a dupla operação de recuperação e exclusão<br />
de informações foi mais eficiente nos róis da década de 1780, preferimos obter o<br />
tamanho da população de cada ano a partir das informações restantes em cada rol,<br />
sem acréscimos ou decréscimos. Por isso preferimos usar os valores “brutos” que<br />
dispomos, pois assim compararemos os róis em semelhante estado de conservação.<br />
Observamos nos valores constantes nos róis um aumento gradual e constante<br />
no número de descrições de indivíduos, com exceções nos anos de 1780 e 1781. Não<br />
temos condições, por enquanto, de avaliar o porquê desta redução no número de indivíduos<br />
entre 1779 e 1782. Podemos considerar que os róis estejam em pior estado<br />
de conservação que os demais, motivo pelo qual apresentaram menor número de<br />
11 O tamanho da população que encontramos nos róis de 1779 e 1782 se difere daquele encontrado por Ana Silvia<br />
Volpi Scott, em seu estudo sobre os mesmos róis de confessados, que foram de respectivamente 1562 e 1710 habitantes<br />
(SCOTT, 2008, p. 10).<br />
12 Sobre os cuidados ao se comparar róis de uma mesma localidade, ver SIRTORI, 2008, especialmente o capítulo 2.<br />
118
indivíduos. No entanto, uma informação constante no fechamento do rol de 1780<br />
parece indicar que, em realidade, a causa da menor quantidade de pessoas se deva<br />
a sub-registros. No texto de fechamento do documento, após o número de crismados,<br />
aparece a seguinte frase, entre palavras corroídas: “[corroído] fogos duzentos e<br />
quarenta e [corroído]” 13 . Se, de fato, foram descritos cerca de 240 fogos e restaram<br />
216, podemos calcular as perdas deste rol. Antes, devemos excluir os domicílios que<br />
apresentaram muitos danos, que foram oito. Assim, chegamos a um percentual de,<br />
aproximadamente, 13% de perdas, valor próximo ao dos demais róis. É possível,<br />
então, que o rol de 1780 apresente um índice maior de sub-registros.<br />
Entre os anos de 1779 e 1782 encontramos um crescimento populacional<br />
anual de 1,5%, enquanto que entre 1782 e 1792 verificamos um aumento significativo<br />
no crescimento, que passou para 2,5%. Ao que parece nos encontramos diante de<br />
um fenômeno de expansão da população da localidade, que foi também verificado<br />
em outra oportunidade, por meio de um expediente diferente. Sérgio da Costa Franco<br />
utilizou-se da receita do açougue de Porto Alegre, cujas arrematações perante a<br />
Câmara Municipal mostraram um aumento de 10 mil réis, em 1773, para 230 mil e<br />
500 réis, em 1779. Embora houvesse uma série de fatores influentes na evolução das<br />
receitas anuais do açougue, o “fato de o ‘donativo das carnes’ haver-se multiplicado<br />
por 23 entre 1773 e 1779 diz bastante a respeito do aumento do consumo daquele<br />
alimento essencial” 14 .<br />
Este crescimento não foi isolado, mas uma realidade que marcou as últimas<br />
décadas do século XVIII na América portuguesa. Na convergência de fatores estruturais<br />
e de curto prazo – respectivamente, as reformas pombalinas e o impacto<br />
causado pelas lutas de independência colonial nos Estados Unidos e em Santo Domingo<br />
–, a América portuguesa vivenciou um período de acentuado crescimento<br />
econômico, ao qual a literatura denomina de renascimento agrícola 15 . Bahia, Maranhão,<br />
Pará, Rio de Janeiro, Pernambuco, o sul de Minas Gerais, São Paulo e também<br />
o Rio Grande do Sul participaram ativamente das efervescentes movimentações nos<br />
mercados internacional e colonial. Foram exportados algodão, açúcar, arroz, cacau,<br />
café, fumo e cachaça, se importaram fazendas e contingentes crescentes de escravos<br />
e circularam em âmbito interno fumo, cachaça, arroz, os trigos do sul, gado em pé,<br />
charque, sebos e couros, além dos próprios escravos que entraram pelos portos cariocas,<br />
baianos e pernambucanos 16 .<br />
13 Rol de confessados de Porto Alegre de 1780.<br />
14 FRANCO, 2000, p. 21s.<br />
15 Sobre o assunto, ver SCHWARTZ, 1998, p. 337ss, que apresentar foco especial sobre a Bahia. Sobre a situação<br />
verificada no Rio de Janeiro, conferir FRAGOSO; FLORENTINO, 2001, p. 92ss. Para o Rio Grande de São Pedro,<br />
ver OSóRIO 2008, p. 183ss.<br />
16 Ver SCHWARTZ, 1988, p. 348; FRAGOSO e FLORENTINO, 2001, p. 98-101.<br />
119
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Foi paralelo e ligado ao crescimento econômico que se deu o aumento populacional.<br />
No Rio Grande de São Pedro, Helen Osório constatou um período de expansão<br />
econômica e demográfica, no qual a população passou de 17.923, em 1780,<br />
para 22.437 habitantes, em 1791, o que representa uma taxa anual de crescimento<br />
populacional de aproximadamente 2,1% 17 . A partir dos totais de população de São<br />
Paulo apresentados por Maria Luiza Marcílio, entre os anos de 1772 e 1776, verificamos<br />
uma taxa de 3,7%, com um crescimento de 100537 para 124825. Este pequeno<br />
recorte temporal de quatro anos se encontra numa fase demográfica mais ampla<br />
considerada pela autora, que vai de 1765 até 1808, no qual verificou um crescimento<br />
singular da população de 148% devido à introdução da economia de plantation, à<br />
aceleração da introdução de escravos importados e à retração para a região de populações<br />
oriundas das áreas mineradoras decadentes18 . No Recôncavo baiano, entre os<br />
anos de 1724 e 1757, período marcado por uma situação de estagnação econômica,<br />
Schwartz verificou uma taxa anual de crescimento de 1,7%, valor possivelmente aumentado<br />
em conseqüência dos resultados incompletos do primeiro ano; já entre os<br />
anos de 1774 e 1780, a taxa encontrada foi de 3,1%, quase o dobro. O autor acredita<br />
que dita dinâmica demográfica foi consequência, em grande medida, da importação<br />
de cativos19 . Mas não devemos apenas à escravidão o incremento demográfico verificado<br />
no período. Sheila de Castro Faria aponta para a importância representada<br />
pelos “andarilhos da sobrevivência”, brancos e libertos pobres que migravam para<br />
áreas de exploração recente, em busca de melhores condições de vida20 .<br />
Dito isto, acreditamos ser aceitável considerar como válidos o acentuado<br />
crescimento populacional em Porto Alegre e suas respectivas taxas de crescimento<br />
anuais verificados a partir dos róis de confessados nas décadas finais do XVIII. Isso<br />
porque os dados foram obtidos a partir de fontes razoavelmente homogêneas e os<br />
resultados não diferem nem daquele verificado para o Rio Grande de São Pedro,<br />
nem extrapola aqueles verificados em áreas mais dinâmicas da América portuguesa,<br />
como São Paulo e o Recôncavo baiano. Partindo dessa premissa, faremos o esforço<br />
de tentar apontar valores absolutos mais aproximados da população de Porto Alegre<br />
entre os anos de 1782 e 1792.<br />
Os poucos autores que se abordaram a população porto-alegrense colonial<br />
se basearam nas informações constantes no mapa de população de 1780, parte do<br />
Mapa Geográfico do Rio Grande de São Pedro, segundo o qual existiriam 1512 al-<br />
17 OSóRIO, 2007, p. 100.<br />
18 MARCíLIO, 2000, p. 71s.<br />
19 SCHWARTZ, 1988, p. 87s.<br />
20 FARIA, 1998. p. 108ss.<br />
120
mas na localidade 21 . Sem dúvida, este documento traz uma informação importante,<br />
que é o total da população que no mínimo havia recebido sacramento da comunhão<br />
constante no rol de confessados do mesmo ano 22 . No entanto, o valor da população<br />
apresentado não pode ser tomado como o do total da população de Porto Alegre<br />
de então porque não foram considerados os jovens que não receberam comunhão,<br />
em geral menores de sete anos. A exclusão destas crianças representaria, seguindo a<br />
proporção etária do rol de 1782, uma perda de um sexto da população do período.<br />
O documento teoricamente mais adequado para avaliar o tamanho da população<br />
de Porto Alegre seria o rol de confessados, isso se não houvesse sofrido a perda<br />
material verificada. Nesse caso, a contabilidade da população apenas a partir dos<br />
róis não é viável porque os documentos não estão completos. Ainda assim, como já<br />
apontamos, os róis apresentam a vantagem de serem seriados, permitindo verificar a<br />
mudança na população com a passagem do tempo.<br />
Em síntese, para o primeiro período, temos dois conjuntos de informações,<br />
um oriundo do rol de confessados e o outro do mapa de população de 1780, cada<br />
qual com limites e vantagens específicos. Pelo mapa temos os valores da população<br />
jovem e adulta sem perdas de informação, mas não temos o tamanho da população<br />
infantil. Pelos róis, temos o registro de indivíduos de todas as faixas etárias, mas<br />
com perda da descrição da população. Nesse sentido, o ideal seria cruzar os dados<br />
específicos de cada documento: somar o total da população sugerido pelo mapa<br />
ao número de crianças constantes no rol que possivelmente ainda não haviam sido<br />
iniciadas nos sacramentos cristãos. Como, teoricamente, era a idade de sete anos que<br />
marcava a iniciação do jovem na vida cristã adulta 23 , foram somadas aos 1512 habitantes<br />
indicados no mapa, as crianças com até seis anos do rol de 1780, um grupo de<br />
168 crianças livres, que resultou num total de 1680 pessoas.<br />
No entanto, como já relatamos, o rol de 1780 apresenta um conjunto de informações<br />
discrepante em relação ao dos outros róis, o que se demonstra quando<br />
verificamos a quantidade de crianças livres presentes em 1782, que é 284, diferença<br />
de mais de cem crianças para um prazo de apenas dois anos. Assim, possivelmente,<br />
o meio adequado para se obter o valor mais aproximado do que foi a população<br />
de Porto Alegre no período seja tomar o valor dos jovens de 1782 que não haviam<br />
recebido a comunhão em 1780 com aquele representado pela população constante<br />
21 Fonte: Mapa geográfico do Rio Grande de São Pedro suas freguesias e moradores de ambos os sexos, com declaração<br />
das diferentes condições e cidades em que se acham em 7 de outubro de 1780. 9, 4, 9 nº 134, Biblioteca<br />
Nacional do Rio de Janeiro. Agradecemos a Prof.ª Helen Osório por ter cedido a transcrição do mapa de população<br />
referente a Porto Alegre. Sobre os autores que citaram a fonte ver, por exemplo, MACEDO, 1993, p. 75.<br />
22 Homens e mulheres livres são divididos nas seguintes categorias: velhos, casados, solteiros e meninos e meninas<br />
de confissão. Os escravos são apresentados com um número total segundo sexo.<br />
23 MARCíLIO, 2000, p. 38.<br />
121
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
no mapa de população. Como entre 1780 e 1782 não temos registro de qualquer<br />
calamidade que viesse a significar decréscimo demográfico extraordinário, podemos<br />
considerar o total informado pelo mapa como o da população livre com nove anos<br />
ou mais do último ano. Isso porque a faixa etária mais jovem apresentada pelo mapa<br />
de 1780 é a dos meninos e meninas de confissão, os quais possuíam, possivelmente,<br />
um mínimo de sete anos. Ao fim, computamos o total de indivíduos falecidos<br />
adultos no período. Para os escravos, preferimos tomar o valor informado pelo rol<br />
de confessados do ano de 1782, já que o crescimento desta população deve estar<br />
relacionado principalmente ao tráfico. Neste caso, a participação cativa estará subregistrada<br />
visto a perda de dados devido à má conservação dos róis.<br />
Resumimos, agora, nosso método: 1 – tomamos o total populacional livre<br />
informado no mapa como o total da população maior de sete de 1780 e, consecutivamente,<br />
maior de nove anos em 1782; 2 – tomamos os dados de crianças com oito<br />
anos ou menos de 1782, pois este grupo possivelmente esteve fora da categoria de<br />
“meninos e meninas de confissão” em 1780; 3 – tomamos o total de escravos informado<br />
em 1782; 4 – por fim, computamos como decréscimo o total de falecidos<br />
entre os dois anos, constante nos livros de óbitos de livres. Os dados e o resultado<br />
se encontram na seguinte tabela:<br />
Tabela 2<br />
Estimativa da população de Porto Alegre de 1782 a partir das informações<br />
do rol de confessados, do mapa de população e dos primeiro livro de óbitos<br />
de livres e de escravos de Porto Alegre<br />
Fonte: mapa de população de 1780; róis de confessados de 1780 e 1782, AHCMPA; primeiro livro de<br />
óbitos de livres de Porto Alegre, AHCMPA.<br />
Precisamos apontar as limitações destes dados. A categoria das crianças de<br />
confissão em geral se aplicava às crianças maiores de sete anos, o que não impede<br />
que crianças menores possam ter participado ou, ao contrário, crianças maiores não<br />
o terem. Além disso, devido à má conservação da fonte, o número de crianças com<br />
até oito anos está sub-registrado. Outro ponto importante é o de que não temos<br />
122
acesso a um dos fatores fundamentais para o crescimento da população, que é a<br />
imigração. Não temos, por ora, nem o número de escravos aqui aportados, nem o<br />
número de indivíduos livres recém-chegados. Nesse sentido, podemos considerar o<br />
valor de 1818 indivíduos como apenas aproximativo, sendo o número real da população<br />
possivelmente maior.<br />
Uma alternativa para tentar avaliar a população de então é acrescentar ao valor<br />
da população que restou nos róis o possível valor do que foi perdido. Isto é, acrescentar<br />
ao total indicado nos róis aquilo que corresponderia à perda entre 15 e 20%<br />
devida à má conservação da fonte. Se a perda girou, de fato, entre um sexto e um<br />
quinto, então teríamos uma população residente entre 1840 e 1955 indivíduos. Estes<br />
dois resultados estão acima da estimativa feita a partir do mapa de população, o que<br />
pode implicar em duas possibilidades distintas: ou o valor da população estimado é<br />
mínimo em relação ao que deve ter sido a população de Porto Alegre de então; ou<br />
então a perda de informações deve ter girado não entre quinze e vinte percento, mas<br />
entre dez e quinze. Por enquanto, optamos por ficar com a primeira possibilidade.<br />
Para o ano de 1792 encontramos algumas dificuldades em estabelecer o tamanho<br />
da população, pois não encontramos fonte alguma além do rol de confessados<br />
deste ano. Mas como já possuímos um valor absoluto mais aproximado da população<br />
no início da década de 1780 e a taxa de crescimento anual desta mesma década<br />
obtida a partir da série dos róis de confessados, podemos projetar a população de<br />
1792 a partir daquela estimativa encontrada para 1782. Com uma população inicial<br />
de 1818 indivíduos, com um crescimento anual de 2,5% e considerado um período<br />
de dez anos, encontramos uma população final de 2323 indivíduos. Utilizamos<br />
também o método de acrescentar à população constante no rol de 1792 o possível<br />
percentual de perda, que deve ter girado entre 15 e 20%, pelo qual encontramos um<br />
resultado entre 2371 e 2519 habitantes. Novamente, os resultados encontrados estão<br />
acima daquele estimado pela projeção, o que pode significar as mesmas possibilidades<br />
apontadas para a estimativa de 1782. Neste caso, também preferimos apenas<br />
considerar que o valor encontrado para a população seja mínimo em relação a tamanho<br />
real da população de Porto Alegre de 1792.<br />
Lembramos que estes são apenas esforços aproximativos ao se tratar com<br />
fontes fragmentadas, que tornam qualquer investigação passível de equívoco. Utilizamos<br />
mais de um método para tentar avaliar o tamanho da população e, por enquanto,<br />
os valores encontrados apresentam semelhanças entre si. Até aqui, fizemos<br />
um aproveitamento máximo das informações disponíveis para tentar montar um<br />
quadro coerente da população da Freguesia de Porto Alegre. Tomamos como base o<br />
mapa de população e os róis de confessados e averiguamos um crescimento acentuado<br />
da população num período de dez anos, que passou de aproximadamente 1818<br />
pessoas em 1782 para algo em torno de 2323. A partir de agora, faremos uma análise<br />
123
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
privilegiando os dados mais qualificados disponíveis, que são oferecidos pelos róis<br />
de confessados. Deste documento, tomaremos apenas os registros dos indivíduos<br />
que tiverem descrita sua condição social, se livre, liberta ou cativa. A partir de agora<br />
utilizaremos as informações recuperadas por meio de comparação das fontes e<br />
excluiremos da análise os domicílios muito danificados, para evitar maiores perturbações<br />
na amostra. No entanto, há um grupo de domicílios que, apesar de estarem<br />
significativamente danificados, devem ser preservados, que são quinze domicílios<br />
escravistas do ano de 1792 que estão com o espaço da descrição dos familiares livres<br />
completamente corroído. Tomamos esta decisão pelo fato de que englobam um total<br />
de 70 escravos, número significativo, sendo que dentre estes domicílios se encontram<br />
alguns dos maiores plantéis do rol. Além disso, como mostraremos a seguir, a<br />
manutenção destes domicílios não acarretará numa distorção significativa no cômputo<br />
da distribuição da população segundo condição social. É importante avisar que<br />
trabalhamos aqui apenas com a população de moradores dos róis, tendo excluído da<br />
análise os andantes de todos os anos, a relação do destacamento de infantaria constante<br />
em 1782 e a relação dos barcos de 1792, por não sabermos se estes indivíduos<br />
chegaram a criar vínculos na localidade.<br />
Iniciamos a série com o rol de 1779, que é composto por 1468 registros<br />
individuais e de 222 fogos, sendo que cinco destes domicílios foram acrescentados<br />
posteriormente, pois foram transcritos como se pertencessem à descrição do fogo<br />
que lhes antecedia. Ao compararmos este número de registros com aquele do total<br />
de registros “brutos” constantes na fonte (ver tabela 1), verificamos que a exclusão<br />
de informações foi significativo, maior que o aumento de registros que operamos.<br />
O rol de 1782 oferece o melhor conjunto de dados. Primeiro, porque é o<br />
que apresenta a maior quantidade de informações dos róis deste início de década;<br />
segundo, porque nele estão separados os moradores da localidade de acordo com<br />
a rua ou bairro rural em que residiam; terceiro, porque é o único em que encontramos<br />
a categoria de guarani anunciada. Neste rol, trabalhamos com um total de<br />
1611 registros, o que representa 89% da estimativa populacional de 1818 indivíduos,<br />
calculados para o ano a partir do mapa de população e do rol de confessados. Do<br />
total de 279 domicílios existentes na transcrição do documento, trabalhamos agora<br />
com 248. Dois fogos foram excluídos por repetição e outro havia sido separado em<br />
dois no momento da transcrição, possivelmente por possuir informações corroídas<br />
em seu interior. Por fim, devemos ressaltar que os róis deste período apresentam a<br />
informação de idade dos moradores, que não consta nos róis posteriores.<br />
O rol de 1792 é o que apresenta o maior número de registros de nossa série,<br />
com um total de 2007 habitantes, valor que representa 86% da projeção populacional<br />
elaborada para o ano. Se compararmos com o total da população apresentado<br />
na tabela 1, notaremos que houve uma diminuição devido à re-elaboração da fonte.<br />
124
Explicamos o motivo: o processo de recuperação de informações para este conjunto<br />
de róis foi menos eficiente que aquele efetuado sobre os de início da década de 1780.<br />
Isso não apenas porque dispomos de somente dois róis para a década de 1790, como<br />
também a própria “qualidade” das informações é inferior àquela encontrada nos<br />
róis da década de 1780. Neste caso, foram menores as possibilidades de localizar os<br />
dados de um domicílio danificado em outro rol. Quando conseguimos, houve pouca<br />
segurança, em alguns casos, para avaliar se ambas as descrições referiam-se ao mesmo<br />
domicílio. Não temos a informação de idade; alguns indivíduos aparecem sem o<br />
sobrenome; algumas descrições que verificamos serem de homens forros apareceram<br />
sem esta indicação. A impressão que temos é a de que este arrolamento foi feito<br />
ou com pressa ou com certo ar de informalidade, sem intenção ou necessidade de<br />
informações mais precisas. Ou as duas coisas, talvez. Ainda assim, devemos ressaltar<br />
que a recuperação de informações foi muito proveitosa, visto que conseguimos perceber<br />
a continuidade de numerosos domicílios ao longo de mais de dez anos, fato<br />
inicialmente não observado.<br />
A maioria das informações recuperadas refere-se ao nome e sobrenome dos<br />
chefes de domicílio e de seus filhos que estavam corroídas, um dos motivos pelos<br />
quais preferimos manter aqueles quinze domicílios que apresentavam um contingente<br />
significativo de escravos. Dos 456 domicílios transcritos, trabalhamos com 431.<br />
Uma informação interessante deste rol é o de que apresenta o arrolamento dos navios<br />
estacionados no porto, mas que não contabilizamos por não termos indicativo<br />
algum de serem todos, ou sua maioria, de propriedade de moradores da localidade.<br />
A comparação dos três róis traz consigo vantagens e limitações. Em princípio,<br />
trabalhamos com fontes razoavelmente homogêneas, feitas num curto espaço de<br />
tempo, em que se utilizam as mesmas categorias de descrição e que possuem entre si<br />
semelhança no que tange ao estado de conservação. Podemos, desta maneira, pensar<br />
que as comparações realizadas são, em alguma medida, seguras, representativas da<br />
dinâmica demográfica de então. Por outro lado, lembramos que não trabalhamos<br />
com a informação de toda a população. Além das possíveis pessoas que ficaram<br />
de fora durante a elaboração do arrolamento, ainda perdemos algo entre 15 e 20%<br />
das descrições. Por isso, os dados e resultados com os quais trabalhamos devem ser<br />
pensados mais como indicativos, pistas, do que provas do real passado. Mas, evidentemente,<br />
a freqüência com que certas informações aparecem, não apenas nos róis<br />
como nos outros documentos trabalhados, pode aumentar a margem de confiança<br />
no manejo das mesmas.<br />
Iniciaremos pela avaliação da composição da população segundo a posição<br />
ocupada pelos indivíduos dentro dos domicílios, se familiares, escravos e ou agregados.<br />
As duas últimas categorias são encontradas na descrição dos indivíduos; a<br />
primeira, não, e a utilizamos para fazer referência ao chefe do domicílio, sua esposa,<br />
125
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
filhos e outros familiares. Em alguns casos, familiares como tios, pais e sogros foram<br />
descritos como agregados e os mantivemos como tal, mas deixamos assinalada a<br />
familiaridade entre ambos.<br />
126<br />
Fonte: róis de confessados de Porto Alegre, 1779, 1782 e 1792, AHCMPA.<br />
A primeira constatação a ser feita é a de que entre os dois primeiros anos a<br />
composição da população mudou pouco. Apenas os agregados apresentaram uma<br />
variação de 1%. Apenas decorrida uma década os valores mudam de maneira significativa.<br />
Verificamos, em primeiro lugar, que houve um aumento no tamanho da<br />
população escrava em detrimento da livre. Os escravos passaram de 37,9% da população,<br />
em 1779, para 40,7%, em 1792. Sua população aumentou 46,7%, passando<br />
de 557 para 817 indivíduos. Os agregados tiveram um aumento significativo, pois<br />
passaram de 5,3% da população em 1782 para 9,5% em 1792, com um aumento de<br />
124,7% em seu contingente (sendo que esse aumento ficou em 297,9% para o período<br />
entre 1779 e 1792). Já os familiares aumentaram apenas 7,8% entre 1782 e 92,<br />
de 927 indivíduos para 999, o que implicou num decréscimo de sua participação no<br />
conjunto da população, que passou de 57,5 para 49,8%. Ao se levar em consideração<br />
o fato de que a maioria das informações recuperadas serem referentes à família<br />
nuclear descrita no início de cada fogo, podemos pensar que o possível decréscimo<br />
de participação tenha sido algo maior.<br />
A constatação de que aumento da população se tenha verificado principalmente<br />
entre escravos e agregado talvez indique a natureza da dinâmica demográfica<br />
agora observada. O crescimento da população de Porto Alegre parece ter se dado<br />
pelo aumento da mão-de-obra disponível na localidade por meio do incremento de<br />
escravos via tráfico e pela vinda de imigrantes livres ou libertos pobres em busca
de oportunidades. Juntos, escravos e agregados representam 42,5% da população<br />
em 1782, enquanto que em 1792 passaram ao patamar de 50,2%. Este crescimento,<br />
se de fato ocorreu, não foi isolado do plano produtivo. Como demonstrou Helen<br />
Osório por meio da análise dos mapas de animais dos anos de 1780 e 1791, houve<br />
um crescimento acelerado do rebanho vacum na região de Porto Alegre e arredores,<br />
com uma taxa anual na ordem de 10,4%, que foi, por sinal, mais lento que aquele<br />
verificado na região do Rio Grande e do Rio Pardo 24 . Parece haver, desta maneira,<br />
uma inter-relação entre crescimento econômico e crescimento demográfico.<br />
De forma evidente, nossa hipótese parece apresentar uma limitação ao associar<br />
a categoria de agregado à de mão-de-obra não-familiar. No entanto, temos<br />
algumas razões empíricas para supor tal relação. A partir do rol de 1782 elaboramos<br />
um perfil do conjunto dos 85 agregados residentes em Porto Alegre dos quais temos<br />
registro. Os resultados indicam que entre os oitenta indivíduos dos quais obtivemos<br />
o sexo os homens predominam com uma razão de sexo de 150 homens para cada<br />
100 mulheres. Excluindo seis indivíduos sem descrição de idade, a moda e a mediana<br />
etária ficaram em 20 anos, o que indica uma população bastante jovem 25 . A população<br />
muito idosa, com mais de 50 anos, e a muito nova, com seis ou menos, representam<br />
apenas um quinto do total (22,8%). Dezessete destes agregados eram guaranis,<br />
em sua maioria crianças, dois com idade entre seis e nove anos, oito entre dez e doze<br />
anos e cinco entre vinte e trinta anos, quase todos, com duas exceções, acolhidos em<br />
domicílios escravistas. Muito provavelmente estes índios estavam encarregados de<br />
atividades domésticas e/ou produtivas 26 . Havia outros dezessete forros, mas com<br />
um perfil etário mais velho. Cinco dentre eles possuíam mais de 50 anos e estavam<br />
em domicílios de outros forros, possivelmente parentes que os abrigaram. Outros<br />
seis apresentavam quarenta anos e cinco possuíam entre 20 e 36 anos. Apenas um<br />
possuía menos de dez anos. Por fim, sobre o conjunto dos agregados, encontramos<br />
quatro quintos em fogos escravistas. Em suma, os agregados do ano de 1782, em<br />
sua maioria, eram homens, quase metade decididamente não era branca e poucos<br />
eram os muito idosos ou muito jovens. A maioria estava em fogos que já contavam<br />
com mão-de-obra externa ao núcleo familiar. Ao que parece, a maioria estava apta a<br />
desempenhar alguma atividade produtiva ou doméstica.<br />
24 OSóRIO, 2008, p.129s.<br />
25 A média ficou em 25,4 anos; no entanto, o desvio-padrão em 18,3 indica uma ampla dispersão dos dados e a<br />
impossibilidade de a média servir como representativa da amostra.<br />
26 Vide o caso encontrado por Elisa Garcia, em que a filha dos índios Martinho do Porará e Maria Simona, da Aldeia<br />
dos Anjos, foi raptada por Antônio de Vasconcelos, com justificativa de que aquela aprendesse o ofício de tecelã em<br />
sua casa e recebesse da família educação apropriada. Durante o processo, o capitão da aldeia averiguou que à criança<br />
não foi ensinado ofício algum e que, na realidade, a mesma fora empregada em atividades domésticas, como balançar<br />
os filhos do casal branco (GARCIA, 2007, p. 129).<br />
127
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Sobre a população de agregados de 1792 contamos com uma qualidade pior<br />
de informações. Conforme o gráfico 1, população de agregados mais que dobra em<br />
relação aquela de 1782. Dos 191 indivíduos dos quais temos informação, apenas<br />
oito constam como forros. A taxa de masculinidade cai para 120 homens para cada<br />
cem mulheres, mas contínua favorável aos homens. Interessante notar que aumenta<br />
muito o número de agregados casados. As agregadas casadas passam de 3 para 16 no<br />
prazo de dez anos. Esta mudança pode ser resultado de diferentes fenômenos: mulheres<br />
agregadas no primeiro período podem ter se casado e permanecido no domicílio<br />
onde se encontravam; filhas de chefes de fogo que se casaram com indivíduos<br />
pobres podem ter continuado a residir ou no lar ou no terreno do pai, como foi o<br />
caso de uma agregada que aparece como filha do cabeça de fogo; os agregados chegados<br />
no período podiam já estar casados, acompanhados de suas esposas ou não.<br />
Como já observamos, o gráfico 1 apontou não apenas ampla participação da<br />
população escrava em Porto Alegre como um aumento da mesma no período em<br />
questão. Em 1782, 37% da população da Freguesia é composta por escravos 27 ; dez<br />
anos mais tarde, esta participação aumenta em quatro pontos percentuais, chegando<br />
a dois quintos. Estes são indicadores altos, semelhantes àqueles encontrados nos<br />
pontos economicamente mais dinâmicos do América portuguesa de então, voltados<br />
para o mercado externo. No Recôncavo baiano, principal produtor açucareiro do<br />
período, os escravos representavam 30,8% da população nos anos de 1816-17 28 .<br />
Também economias voltadas para o mercado interno possuíam índices semelhantes,<br />
como Mocha, na capitania do Piauí, em 1762, e Viamão, vizinha de Porto Alegre, no<br />
ano de 1778. Ambos os espaços dedicavam-se à pecuária e possuíam respectivamente<br />
69,2 e 40,5% de suas populações em cativeiro 29 .<br />
Importa observar que a população escrava porto-alegrense apresentou um<br />
crescimento vegetativo negativo no ano, pois a taxa de natalidade foi de 43,4, enquanto<br />
que a de mortalidade foi de 55,1 30 . Isso quer dizer que o crescimento veri-<br />
27 Este valor está algo inflado. De acordo com a reconstituição baseada no rol de confessados e no mapa de população,<br />
a população escrava representava 32,9% da população. Nesse sentido, apesar da imperfeição de ambos os<br />
métodos, podemos considerar que a população escrava compunha pouco mais de um terço da população de inícios<br />
da década de 1780.<br />
28 MARCíLIO apud SCHWARTZ, 1988, p. 373. O valor se baseia no registro censitário, retirados por Joaquim<br />
Noberto e Souza, pesquisado por Maria Luiza Marcílio.<br />
29 KÜHN, 2004, p. 54. Ambos os valores baseados em listas nominativas paroquiais.<br />
30 Fontes: primeiro livro de batismos de escravos de Porto Alegre; primeiro livro de óbitos de escravos de Porto<br />
Alegre, AHCMPA. O período que selecionamos como recorte para obtenção do número de nascimentos e falecimentos<br />
não foi o civil, mas o de um ano após o início da elaboração do rol, pois assim, teoricamente, teríamos<br />
maiores chances de encontrar informações nos livros de batismo e óbitos referentes a indivíduos presentes no rol<br />
em questão. O total populacional considerado foi o de escravos constantes no rol de confessados de 1782 (ver tabela<br />
2). Os dados referentes à população livre apontam, pelo contrário, para um crescimento vegetativo positivo, pois sua<br />
taxa de natalidade ficou em 55,8 e de mortalidade em 50,9.<br />
128
ficado está relacionado, possivelmente, à importação de cativos. Dito isto, convém<br />
avaliar como a propriedade escrava se distribuía no seio da população aqui estudada.<br />
Isto é, estudar sua estrutura de posse de escravos.<br />
ESTRUTURA DE POSSE DE ESCRAVOS<br />
A análise da estrutura de posse cativa consiste em averiguar a distribuição dos<br />
escravos em uma localidade e a variação no tamanho das posses. Podemos começar<br />
pela comparação do crescimento do número de posses escravistas e do número de<br />
escravos verificados em dois períodos, o primeiro entre 1779 e 82, e o segundo entre<br />
1782 e 1792, apresentado no gráfico seguinte.<br />
Tabela 3<br />
Crescimento relativo (%) dos fogos escravistas e da população cativa em<br />
Porto Alegre, nos períodos de 1779 a 1782 e de 1782 a 1792<br />
Fonte: róis de confessados de Porto Alegre, 1779, 1782 e 1792, AHCMPA<br />
Ao longo destes treze anos, verificamos um crescimento contínuo tanto do<br />
número de fogos escravistas quanto do de escravos, em ambos os períodos com<br />
o predomínio dos primeiros. Entre os dois primeiros anos, o crescimento é quase<br />
idêntico, de 13 e 7%, respectivamente. No entanto, entre 1782 e 92, o crescimento<br />
de fogos escravistas toma uma distância ainda maior em relação ao crescimento do<br />
número de escravos. Estes crescem 36%, enquanto os primeiros têm um aumento<br />
de 50%. Verifiquemos os extremos: no ano de 1779, temos a informação de 134<br />
fogos escravistas e 557 escravos; em 1792, os valores são de, respectivamente, 226<br />
fogos e 817 escravos, o que implica um crescimento 67% para os primeiros e de 46%<br />
para os últimos. Ao que parece, o crescimento da Freguesia de Porto Alegre, em<br />
termos econômicos e demográficos, não apenas se deu pelo incremento no número<br />
de cativos por meio do tráfico, como foi também acompanhado por um aumento no<br />
número de domicílios comprometidos com o sistema escravista.<br />
Na tabela a seguir, apresentaremos alguns indicadores da estrutura de posse<br />
de cativos em Porto Alegre, que são a percentagem dos fogos escravistas no conjun-<br />
129
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
to dos fogos de cada ano e as medidas de tendência central (média, mediana e moda)<br />
e de dispersão (desvio-padrão) relativas à posse escrava.<br />
Tabela 4<br />
Participação (%) de fogos escravistas no conjunto dos domicílios e média,<br />
mediana, moda e desvio-padrão de posse de escravos em Porto Alegre, 1779,<br />
1782 e 1792<br />
130<br />
Fonte: róis de confessados de Porto Alegre, 1779, 1782 e 1792, AHCMPA.<br />
O indicador de participação de fogos escravistas revela ampla dispersão da<br />
posse escrava em Porto Alegre, pois mais da metade dos moradores dos quais temos<br />
registro, em todos os anos, possuía cativos em seus domicílios. Se entre dos<br />
dois primeiros anos a porcentagem se manteve praticamente inalterada, esse valor<br />
despencou oito pontos percentuais entre 1782 e 1792. Isso, em partes, se explica<br />
pelo aumento do número de registros de domicílios com indivíduos solitários sem<br />
escravos. Em 1779, eles são 11; em 1782, são 14; em 1792, por fim, são 71. Em<br />
1779, a proporção entre homens e mulheres que residiam sozinhos é equilibrada,<br />
com a diferença de um indivíduo a favor dos homens; em 1792, os homens constituem<br />
dois terços do total dos residentes solitários sem escravos. Estes indivíduos<br />
compõem, possivelmente, o grupo dos “andarilhos da sobrevivência” que chegaram<br />
à localidade pelas possibilidades abertas pelo crescimento da triticultura. Inclusive,<br />
este aumento dos homens solitários sem escravos pode ser um dado a reforçar a hipótese<br />
de que o crescimento da população se deu, em alguma medida, pela entrada<br />
de mão-de-obra, representada por homens livres e libertos pobres e, principalmente,<br />
africanos escravizados, num contexto de forte crescimento econômico.<br />
O desvio-padrão do conjunto dos dados é bastante alto, o que impede o uso<br />
da média como valor representativo do conjunto dos fogos escravistas. Ainda assim,<br />
verificamos que a média é decrescente. Os valores de mediana e moda apontam, de<br />
forma mais segura, para um traço importante da estrutura de posse porto-alegrense,<br />
que é o domínio das pequenas posses de escravos. Nos dois primeiros anos, metade
dos escravistas possuía até três escravos, enquanto que o tamanho de posse mais<br />
recorrente foi o de apenas um escravo. Passados dez anos após 1782, a mediana<br />
reduziu-se para dois escravos, enquanto que a moda permaneceu a mesma. Temos,<br />
assim, um indicativo de que o aumento do número de fogos escravistas se deu, principalmente,<br />
pelo aumento das posses menores.<br />
Na próxima tabela, faremos a análise da estrutura de posse de acordo com a<br />
quantidade de escravos detidos pelos senhores. Se adotássemos o padrão de tamanho<br />
de posse comumente utilizado em regiões que apresentam escravarias muito<br />
grandes, como as da Bahia ou da região mineradora das Gerais 31 , a maioria das<br />
nossas posses se classificaria como pequenas posses por apresentarem até nove escravos.<br />
Visto a especificidade dos tamanhos das posses locais, precisamos adotar um<br />
padrão igualmente específico para perceber as características locais. Consideraremos<br />
as menores posses aquelas com até quatro escravos; como médias, com posse entre<br />
cinco a nove escravos; as maiores foram as que apresentaram dez cativos ou mais.<br />
Tabela 5<br />
Fogos escravistas e distribuição dos escravos segundo faixas de tamanho de<br />
posse em Porto Alegre, nos anos de 1779, 1782 e 1792<br />
Fonte: róis de confessados de Porto Alegre, 1779, 1782 e 1792, AHCMPA.<br />
31 Sobre a região das Minas Gerais, ver LUNA; COSTA, 1982; sobre a Bahia, ver SCHWARTZ, 1988.<br />
131
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Temos que começar a análise desta tabela por suas limitações. Foram os maiores<br />
domicílios escravistas os mais prejudicados pela perda de informações. Como<br />
estes fogos ocupam mais espaço nas folhas do documento, proporcionalmente perderam<br />
mais informações que as descrições dos domicílios menores. Por esse motivo,<br />
encontramos algumas incongruências, como a queda no número de domicílios<br />
escravistas e de escravos entre os maiores escravistas do ano de 1779 para o de 1782.<br />
Nesse sentido, talvez seja correto afirmar que o grupo dos maiores escravistas possui<br />
representação inferior se comparada a dos pequenos escravistas.<br />
A constatação mais importante já foi indicada na tabela 3, que é o predomínio<br />
das pequenas posses escravistas, que aumentam entre os anos de 1782 e 1792. Com<br />
a última tabela, podemos ter uma noção da importância das pequenas posses. As<br />
posses com até quatro escravos não são inferiores a 65%. Se somarmos as posses<br />
com até nove escravos, limite das pequenas propriedades em um grande número<br />
de localidades escravistas da América portuguesa, encontramos não menos de nove<br />
décimos do total de escravos.<br />
Podemos observar que houve aumento em termos absolutos em todas as faixas,<br />
tanto do número de fogos escravistas quanto o número de escravos, com a exceção<br />
já apontada dos grandes escravistas de 1782. Mas, em termos relativos, houve<br />
crescimento apenas nas extremidades do conjunto, especialmente entre os pequenos<br />
escravistas, que passaram de 65 para 73% dos fogos e a deter de 33 para 39% dos<br />
escravos. Os escravistas intermediários apresentaram uma participação decrescente,<br />
mas sempre com uma parcela significativa do total dos cativos, nunca inferior a 39%.<br />
Os que possuíam mais de dez cativos eram poucos, algo entre 5 e 8% dos escravistas<br />
e detinham entre um quarto e um quinto dos escravos.<br />
Como havíamos alertado, a tabela 5 não representa de maneira adequada os<br />
maiores proprietários de escravos, pois estes foram os que tiveram as descrições de<br />
seus domicílios mais danificadas. Para se ter uma visão mais precisa deste grupo, optamos<br />
por avaliar a posse daqueles que estivessem entre os 10% maiores escravistas.<br />
Os resultados se encontram na tabela seguinte.<br />
132<br />
Tabela 6<br />
Posse de escravos dos 10% maiores escravistas,<br />
Porto Alegre, 1779 – 1792<br />
Fonte: róis de confessados de Porto Alegre, 1779, 1782, 1792, AHCMPA.
Obs: no ano de 1779 são 13 fogos; em 1782, são 15; no último, são 23.<br />
Na tabela 5 verificamos um decréscimo na posse dos escravistas com mais de<br />
cinco cativos, com uma queda de 4,5 pontos percentuais, entre 1782 e 1792, enquanto<br />
que entre os maiores escravistas houve uma perda de 3,8 pontos percentuais entre<br />
1779 e 1792. A tabela 6 nos aponta um movimento diferente, pois os escravistas que<br />
se encontravam na faixa dos 10% maiores apresentaram um crescimento do total<br />
dos cativos possuídos, de aproximadamente quatro pontos percentuais. As medidas<br />
de tendência central apontam para uma queda no tamanho dos domicílios. A média<br />
diminuiu de quase treze para doze cativos. A mediana e a moda diminuíram entre<br />
1779 e 82, ano a partir do qual os valores se mantiveram. Nestes dois anos, metade<br />
dos domicílios possuía até dez cativos, e o tamanho de posse mais recorrente foi o<br />
de nove escravos. Foram poucos os domicílios com mais de 15 escravos: em 1782,<br />
eram 3; dez anos mais tarde, encontramos apenas 4.<br />
Os dois conjuntos de valores podem apontar para dois fenômenos paralelos.<br />
Por um lado, temos crescimento das pequenas posses ao longo do período em questão,<br />
que pode estar relacionado tanto ao crescimento das posses urbanas como ao<br />
acesso de jovens lavradores aos seus primeiros escravos. Por outro lado, o pequeno<br />
aumento da concentração de escravos entre os maiores escravagistas parece estar<br />
ligado ao crescimento das unidades de lavradores abastados, mais velhos, que ao longo<br />
desses anos conseguiram aumentar o tamanho de seus plantéis. O pressuposto<br />
de que as unidades urbanas são menores que as rurais no Rio Grande foi defendido<br />
por Helen Osório, a partir de estudo de um conjunto de inventários entre os anos<br />
de 1765 e 1825, ao verificar que as posses escravas de inventários de áreas urbanas<br />
e rurais apresentam mais posses com até quatro escravos do que aqueles apenas de<br />
área rural 32 . Tal configuração de distribuição de escravos entre áreas urbanas e rurais<br />
também foi encontrada por Stuart Schwartz na Bahia 33 .<br />
CONCLUSãO<br />
Os róis de Porto Alegre dos anos de 1779, 1782 e 1792 apontam para um<br />
crescimento constante da população, com uma taxa de crescimento anual que acom-<br />
32 OSóRIO, 2004, p. 9.<br />
33 Segundo o autor, “a organização dos dados [de posse de escravos] segundo a localização e o tipo de atividade<br />
econômica, em ordem crescente de concentração de posse, revela claramente o grau em que todas as medidas [coeficiente<br />
de gini, parcela do total de escravos mantida pelos 10% maiores escravistas e número médio de escravos por<br />
proprietário] mais baixas estão associadas à escravidão urbana” (SCHWARTZ, 1988, p. 359).<br />
133
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
panha aquele verificado para toda a Capitania do Rio Grande de São Pedro. Segundo<br />
nossas estimativas, a população residente teria passado da casa de 1800 pessoas para<br />
a de 2300. Se incluirmos andantes, a relação do destacamento de infantaria de 1782<br />
e a população marítima de 1792, a população que Porto Alegre comportava era para<br />
os anos de 1782 e 92 de, respectivamente, 1879 e 2664 pessoas. Se levarmos em<br />
conta a parcela da população que certamente ficou sub-registrada, mesmo com as<br />
estimativas efetuadas, a população deve ter chegado quase à casa das 2000 pessoas,<br />
em 1782, e passado para cerca de 2800 em 1792.<br />
Esse grande crescimento esteve provavelmente ligado ao crescimento econômico<br />
da região. Como demonstrou Osório, houve enorme crescimento dos rebanhos<br />
na localidade no período em destaque. Ao mesmo tempo, os róis apontam<br />
que o crescimento das populações escravizadas e de agregados foi superior aquele<br />
verificado entre os familiares de chefes de fogo. Além disso, houve um expressivo<br />
aumento do número de descrições de domicílios compostos por homens solteiros<br />
e solitários. Ao que parece, esses dados indicam que o aumento populacional então<br />
verificado tenha como seu principal fator a imigração forçada de gente de origem<br />
africana e da migração de homens livres ou libertos pobres oriundos de outras localidade<br />
do próprio Continente ou de outros cantos da América portuguesa. Isto é,<br />
constamos um possível indicativo do aumento da mão-de-obra disponível na região,<br />
num contexto de crescimento econômico em uma região de recente ocupação.<br />
A análise da estrutura de posse demonstrou o peso e a importância da escravidão<br />
numa paragem tão distante dos grandes centros coloniais. Mesmo levando em<br />
consideração a significativa perda de informações pelo mal estado do rol e, também,<br />
a parcela da população que pode ter ficado de fora do arrolamento, os dados encontrados<br />
nas descrições de domicílios disponíveis apontam para o fato de que era<br />
comum que houvesse escravos sob o teto de famílias sem grandes recursos. Fossem<br />
eles lavradores de poucas reses, fossem moradores do núcleo urbano que talvez (sobre)vivessem<br />
do ganho diário de seus cativos.<br />
No conjunto dos fogos escravistas, as pequenas posses se mostraram predominantes,<br />
com crescimento ao longo do período em foco. Isso pode estar relacionado<br />
ao aumento das unidades produtivas urbanas, ligadas ao artesanato, ao comércio<br />
ou às atividades portuárias, como ao ciclo de vida dos jovens lavradores cabeças de<br />
fogo que conseguiram comprar seus primeiros escravos. Ao mesmo tempo, verificamos<br />
o aumento das posses daqueles que mais possuíam escravos. Possivelmente,<br />
este aumento esteve relacionado ao enriquecimento dos lavradores mais abastados<br />
ao longo do período, que conseguiram aumentar o tamanho de suas posses.<br />
Devemos lembrar que a Capitania do Rio Grande foi um dos principais destinos<br />
dos escravos revendidos pelos comerciantes da praça do Rio de Janeiro, como<br />
134
apontaram João Fragoso e Manolo Florentino 34 . Por isso, os dados encontrados<br />
não podem ser tomados como extravagantes, mas, pelo contrário, encontram sua<br />
explicação na rede formada pelo mercado interno colonial. Encontramos nestes<br />
dados um indicativo expressivo de que, talvez, a economia porto-alegrense possa<br />
ter sido escravista, dependente, em grande medida, da mão-de-obra cativa. Apesar<br />
de ainda ser cedo para tal defender tal posição, procuramos apresentar alguns dados<br />
que apontam para a importância de homens e mulheres africanos, em sua maioria<br />
de origem congo-angolana 35 , que participaram, mesmo que contra suas vontades, do<br />
processo de formação da sociedade meridional. Participaram, inclusive, da formação<br />
da própria capital da Capitania do Rio Grande de São Pedro, para a qual foi atribuída,<br />
durante muito tempo, origem açoriana.<br />
34 FRAGOSO; FLORENTINO, 2001, p. 106ss.<br />
35 OSóRIO, 2004, p. 12.<br />
135
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
136<br />
FONTES DOCUMENTAIS<br />
Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre<br />
Róis de confessados de Porto Alegre dos anos de 1779, 1780, 1781, 1782, 1790,<br />
1792;<br />
Primeiro livro de batismos de Porto Alegre;<br />
Primeiro livro de óbitos de Porto Alegre.<br />
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro<br />
Mapa geográfico do Rio Grande de São Pedro suas freguesias e moradores de ambos<br />
os sexos, com declaração das diferentes condições e cidades em que se acham em 7<br />
de outubro de 1780. 9, 4, 9 nº 134.<br />
REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
COMISSOLI, Adriano. “Os Homens Bons” e a Câmara Municipal de Porto Alegre (1767 –<br />
1808). Porto Alegre: Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre, 2008.<br />
CORUJA, Antônio Alvares Pereira. Antigualhas: reminiscências de Porto Alegre. Porto<br />
Alegre: ERUS, 1983.<br />
FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em movimento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,<br />
1998.<br />
FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto. Rio de Janeiro:<br />
Civilização Brasileira, 2001.<br />
FLORES, Moacyr. Historia do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Nova Dimensão, 1993.<br />
FRANCO, Sérgio da Costa. Gente e espaços de Porto Alegre. Porto Alegre: Editora da<br />
Universidade/UFRGS, 2000.<br />
GARAVAGLIA, Juan. Pastores y labradores de Buenos Aires. Una história de la campaña<br />
bonaerense 1700-1830. Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 1999.<br />
GARCIA, Elisa. As diversas formas de ser índio: políticas indígenas e políticas indigenistas no<br />
extremo sul da América portuguesa. Rio de Janeiro: PPGH-UFF, 2007. Tese de doutorado.
GELMAN, Jorge. Sobre esclavos, peones gauchos y campesinos: el trabajo y los<br />
trabajadores em uma estancia colonial rioplatense. In: SANTAMARIA, Daniel et al.<br />
Estructuras sociales y mentalidades em America Latina. Siglos XVII y XVIII. Buenos Aires:<br />
Fundación Simon Rodríguez, Editorial Biblos, 1990. p. 241-279.<br />
GOMES, Luciano. Estrutura etária e de gênero da população cativa e estrutura de<br />
posse de escravos em Porto Alegre, a partir do rol de confessados de 1782. In.:<br />
APERGS. VII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul.<br />
Porto Alegre: Corag, 2009. p. 243-262.<br />
KÜHN, Fábio. Gente da fronteira: sociedade e família no sul da América portuguesa<br />
– século XVIII. In GRIJó et al (Org.). Capítulos de História do Rio Grande do Sul. Porto<br />
Alegre: Editora da UFRGS, 2004. p. 47-90.<br />
LUNA, Francisco Vilda; COSTA, Iraci Del Nero. Minas colonial: economia e sociedade.<br />
São Paulo: FIPE e Pioneira Editora, 1982.<br />
MACEDO, Francisco Riopardense de. Historia de Porto Alegre. Porto Alegre: UFRGS,<br />
1993.<br />
MARCíLIO, Maria Luisa. Crescimento demográfico e evolução agrária paulista: 1700-1836.<br />
Editora São Paulo: HUCITEC, 2000.<br />
NEIS, Ruben. Guarda Velha de Viamão. Porto Alegre: Sulina, 1975.<br />
OSóRIO, Helen. O Império Português no sul da América. Porto Alegre: Editora da UFR-<br />
GS, 2007.<br />
OSóRIO, Helen. Esclavos de la frontera: padrones de la esclavitud africana en Rio<br />
Grande do Sul, 1765-1825. In: Betancur, Arturo; Borucki, Alex; Frega, Ana. (Org.).<br />
Estudios sobre la cultura afro-rioplatense. Historia y presente. Montevideo: Departamento<br />
de Publicaciones de la Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación, 2004,<br />
p. 7-15.<br />
SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.<br />
SCOTT, Ana Silvia. Família e relações intergeracionais: limites e possibilidades de<br />
abordagem a partir do estudo de Porto Alegre no final dos anos setecentos. In: III<br />
Congresso da Associação Latino Americana de População. Córdoba: Universidad Nacional<br />
de Córdoba, 2008. Disponível em:
Por ter ido Ao estAdo orientAl: guerrA e fronteirA<br />
nAs CArtAs de AlforriA de Alegrete (1832-1871)<br />
Marcelo Santos Matheus¹<br />
Resumo: O objetivo do presente artigo é analisar como duas características da região da<br />
Campanha, o espaço fronteiriço e a guerra endêmica, refletiram-se nas cartas de alforria em Alegrete,<br />
entre 1832 e 1871. Da mesma forma, espera-se capturar como estes dois elementos influenciaram os<br />
atores sociais, especialmente os escravos, na elaboração de suas estratégias – principalmente na busca<br />
da liberdade. Durante o recorte temporal proposto, foram registradas 230 manumissões, em que aparecem<br />
243 libertos. Com isso, espera-se demonstrar que inclusive os cativos tinham uma interpretação<br />
própria dos acontecimentos que os rondavam, bem como do espaço em que estavam inseridos.<br />
Palavras-chave: Alegrete – alforrias – fronteira – guerra.<br />
INTRODUçãO<br />
Opresente artigo faz parte de uma pesquisa mais ampla, que está sendo<br />
desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em História<br />
da Unisinos. Nesta última, busca-se compreender como ocorreu<br />
o processo de passagem da escravidão para a liberdade, via cartas de alforria, em<br />
Alegrete entre 1832 e 1888. Para isto, serão utilizadas uma série de fontes, caso dos<br />
registros de batismo e de casamentos, além do principal corpo documental da pesquisa,<br />
as alforrias.<br />
Por sua vez, no texto que aqui apresentamos, muito em razão da pesquisa<br />
estar no seu início, o objetivo é mais específico. Nele, pretende-se analisar como dois<br />
elementos característicos da região da Campanha - onde estava inserido o município<br />
de Alegrete, a guerra e a fronteira refletiam-se nas cartas de alforria e influenciavam<br />
os projetos dos agentes sociais ali inseridos, especialmente os escravos e suas estratégias<br />
em busca da liberdade.<br />
¹ Mestrando do Programa de Pós-graduação em História da Unisinos, bolsista CNPq, orientando do Prof. Dr. Paulo<br />
Roberto Staudt Moreira.<br />
139
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Deste modo, a finalidade do texto não é analisar as manumissões como um<br />
todo, mas somente aquelas que apresentam alguma referência aos dois importantes<br />
aspectos referidos acima, entre 1832, ano do registro da primeira manumissão em<br />
Alegrete, e 1871, ano da promulgação da Lei do Ventre Livre, a qual tornou oficial<br />
o direito dos escravos à alforria, acarretando profundas transformações à instituição<br />
escravidão.<br />
A FRONTEIRA E A GUERRA COMO OPORTUNIDADES<br />
O estudo sobre qualquer tema referente à Campanha no século XIX deve levar<br />
em conta duas peculiaridades da região: o espaço fronteiriço e a guerra constante.<br />
De acordo com Eduardo Neumann, em meados do século XVIII e início do século<br />
XIX, aquele espaço estava dividido “entre os interesses das duas Coroas ibéricas e<br />
a luta guarani pela autodeterminação”, com “a fronteira da América meridional”<br />
apresentando-se tripartida. Assim, estas três partes tencionavam e influenciavam os<br />
rumos que tomariam as relações sociais estabelecidas naquela região².<br />
Por sua vez, no século XIX, teve início o processo de construção dos Estados<br />
nacionais independentes, com a questão ganhando novos contornos. Com isso, “os<br />
limites entre” Brasil e a Banda Oriental (no futuro, República Oriental do Uruguai)<br />
“durante os três primeiros quartos do século XIX não haviam sido definidos”³.<br />
Neste sentido, conforme Luís A. Farinatti “a análise dos processos históricos<br />
ocorridos nas terras meridionais do Império não podem prescindir da percepção de<br />
que aquele espaço estava inserido em uma ampla região de fronteira”, sendo muito<br />
influenciada por essa condição 4 . Logo, este espaço fronteiriço dotava os sujeitos<br />
históricos ali presentes de recursos (materiais e simbólicos), e não levá-los em conta<br />
podia fazer com que indivíduos situados em pólos sociais antagônicos sofressem as<br />
consequências.<br />
Neste contexto, mesmo antes da independência política do Brasil, as autoridades<br />
portuguesas se preocupavam com a fuga de escravos da capitania de São Pedro<br />
² NEUMANN, Eduardo Santos. Uma fronteira tripartida: a formação do continente do Rio Grande – século XVIII.<br />
In: Kühn, Fábio .et al (org). Capítulos de História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 2004, p. 46.<br />
³ SOUZA, Suzana Bleil de & PRADO, Fabrício Pereira. Brasileiros na fronteira uruguaia: economia e política no<br />
século XIX. In: Kühn, Fábio. et al (org). Capítulos de História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS,<br />
2004, p. 121-122.<br />
4 FARINATTI, Luis Augusto Ebling. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na Fronteira<br />
Sul do Brasil (1825-1865). Rio de Janeiro: PPGHIS/UFRJ, 2007, p. 67-68 (Tese de Doutorado)<br />
140
do Rio Grande do Sul. Em 1813 foi expedida uma reclamação contra um decreto das<br />
Províncias Unidas do Rio da Prata, o qual tornava livre todo cativo de país estrangeiro<br />
que conseguisse atravessar a fronteira 5 .<br />
Depois de 1822, ainda em uma conjuntura de indefinições de limites nacionais,<br />
muitos senhores de escravos rio-grandenses eram proprietários de terras dos<br />
dois lados da fronteira. Segundo Susana B. de Souza e Fabrício Prado, em meados<br />
do século XIX, a maior parte das terras ao norte do rio Negro pertencia a pecuaristas<br />
brasileiros 6 . Com isso, um senhor que não soubesse negociar certas condições<br />
com seus escravos podia vê-lo fugir para o Estado Oriental (ou lá permanecer, já<br />
que alguns cativos já estavam trabalhando no Estado vizinho), onde a escravidão<br />
havia sido abolida em 1842 7 . Assim, se para os senhores a fronteira podia ser uma<br />
oportunidade para negócios (ou contrabando), os escravos, por sua vez, podiam ter<br />
uma outra interpretação acerca desta condição geográfica. Da mesma forma, se por<br />
um lado a guerra podia significar ganhos ou perdas aos indivíduos mais ricos, para<br />
os escravos podia marcar uma chance de alcançar a liberdade, fugindo do cativeiro e<br />
se alistando no exército do inimigo 8 .<br />
Pensar esta zona de fronteira como uma ferramenta de possível utilização<br />
também pelos subalternos, no caso os escravos, não é um paradoxo. Conforme Fredrik<br />
Barth “pessoas situadas em posições diferentes podem acumular experiências<br />
particulares e lançar mão de diferentes esquemas de interpretação” 9 . Consequentemente,<br />
compreender como os cativos “manejaram” 10 a fronteira, a partir de sua<br />
posição social, ou seja, dentro de suas possibilidades e de sua lógica, torna-se fundamental<br />
para entender as relações sociais ali construídas, bem como as estratégias que<br />
estes indivíduos elaboraram para chegar a liberdade.<br />
5 GRINBERG, Keila. Escravidão, alforria e direito no Brasil oitocentista: reflexões sobre a lei de 1831 e o “princípio<br />
da liberdade” na fronteira sul do Império brasileiro. CARVALHO, José Murilo de (org.). In: Nação e cidadania no<br />
império: novos horizontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 274.<br />
6 De acordo com os autores “em 1857 estimava-se que os rio-grandenses possuíssem cerca de 30% do território<br />
oriental”. Informações em: SOUZA S. B. & PRADO, F. P., op. cit., p. 122 e 133.<br />
7 FARINATTI, op. cit., p. 87. Quando iniciou o movimento pela independência das áreas do Império espanhol no<br />
rio da Prata, o Cabildo de Buenos Aires decretou o fim do tráfico de cativos e a liberdade do ventre escravo, nos<br />
anos de 1812 e 1813, respectivamente, ficando estes obrigados a trabalhar de graça até os 15 anos de idade. Em 1825,<br />
na Banda Oriental, estes decretos foram promulgados em lei. Informações em: MOREIRA, Paulo Roberto Staudt.<br />
Sobre Fronteira e Liberdade: Representações e práticas dos escravos gaúchos na Guerra do Paraguai (1864/1870).<br />
Revista Anos 90 (PPGH-UFRGS), Porto Alegre, v. 6, n. 9, 1998, p. 127; FREGA, Ana. Caminos de libertad em<br />
tiempos de revolución: Los esclavos em la Província Oriental Artiguista, 1815-1820. Revista História UNiSi-<br />
NOS, São Leopoldo, v. 4, n. 2, 2000, p. 4; GRINBERG, op. cit., 2007, p. 283.<br />
8 MOREIRA, op. cit., p. 121-122 e p. 142-144. FARINATTI, op. cit., p. 328-329; BORUCKI, Alex. Caminhos<br />
Cruzados: senhores e escravos da fronteira oeste do Rio Grande. CD-ROM [do] 4º Encontro “Escravidão e<br />
Liberdade no Brasil Meridional”: Curitiba, 2009, p. 7.<br />
9 BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contracapa, 2000,<br />
p. 176.<br />
10 FARINATTI, op. cit., p. 82.<br />
141
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
142<br />
POR TER IDO AO ESTADO ORIENTAL<br />
No primeiro dia do ano de 1868, Duarte Silveira Gomes alforriou seus escravos<br />
Bonifácio, Ângelo, Inocêncio e Antônio (todos crioulos) juntamente com o<br />
africano Pedro. Os cinco cativos chegaram à liberdade com a condição de “servirem<br />
no estado Oriental por tempo de 10 anos” com o seu senhor “dando-lhes durante<br />
esse tempo [...] unicamente comedoria e vestuário” 11 .<br />
O acordo entre os escravos e Duarte Silveira foi feito em meio a Guerra do<br />
Paraguai, conflito que envolveu Paraguai, Brasil, Argentina e Uruguai, e marcou a<br />
história da América do Sul na segunda metade da década de 1860. Dentre os muitos<br />
e complexos motivos que levaram os países à guerra estavam, novamente, os interesses<br />
de criadores de gado e senhores de escravos rio-grandenses com propriedades<br />
nos dois lados da fronteira, os quais se debatiam contra leis uruguaias de taxar a<br />
passagem do rebanho pela fronteira e de não-devolução de escravos fugidos 12 . Para<br />
melhor entender este período e o contexto das alforrias dos cativos de Duarte Silveira,<br />
é preciso voltar um pouco no tempo.<br />
Quando a Revolução Farroupilha terminou, em 1845, a República do Uruguai<br />
estava em guerra civil. A “Guerra Grande” opunha os “blancos” de Manoel Oribe<br />
e os “colorados” de Fructuoso Rivera. Mesmo assim, durante as décadas de 1840 e<br />
1850, os senhores brasileiros seguiam levando seus cativos para suas propriedades<br />
no Uruguai, disfarçando a escravidão com contratos de trabalhos 13 . Oribe, que comandava<br />
o interior - especialmente o norte do Uruguai, começou em 1848 a criar<br />
impedimentos para o livre trânsito de gado do Uruguai para o Brasil, da mesma<br />
forma que recebia em suas tropas os cativos de brasileiros que conseguiam escapar.<br />
Em meio a todas estas contendas, seguidamente os rio-grandenses solicitavam ajuda<br />
ao governo imperial para proteger seus bens no país vizinho 14 .<br />
Com receio do aumento do poder e da influência de Juan M. Rosas na região,<br />
o Império brasileiro entrou no conflito ao lado dos colorados, ajudando-os a vencer<br />
Manuel Oribe e o caudilho “argentino”, assinando em 12 de outubro de 1851 alguns<br />
11 Livros Notariais de Transmissões e Notas, 1º Tabelionato de Alegrete, livro 13, p. 9v, APERS.<br />
12 GUAZZELLI, César Augusto Barcellos. O Rio Grande de São Pedro na primeira metade do século XIX: estadosnações<br />
e regiões provinciais no Rio da Prata. In: Kühn, Fábio. et al (org). Capítulos de História do Rio Grande<br />
do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 2004, p. 95.<br />
13 FARINATTI, op. cit., p. 87.<br />
14 SOUZA, S. B. de & PRADO, F. P., op. cit., p. 128; FARINATTI, op. cit., p. 193.
tratados com o Uruguai que salvaguardavam os interesses dos rio-grandenses. Dentre<br />
eles estava a obrigação de devolução dos escravos fugidos da província 15 .<br />
Contudo, os protestos dos rio-grandenses contra o desrespeito à propriedade<br />
e mesmo aos tratados continuaram, sendo que “entre 1852 e 1864 o governo brasileiro<br />
encaminhou 56 reclamações oficiais ao governo uruguaio” 16 . Esta situação piorou<br />
quando da ascensão dos blancos ao poder, que pôs em perigo os tratados que o<br />
Brasil havia conseguido arrancar do Uruguai e que beneficiavam os rio-grandenses 17 .<br />
Neste contexto, em 1861, já durante a presidência do blanco Bernardo Berro,<br />
o governo uruguaio anuncia o término legal dos tratados de 1851, colocando “um<br />
fim no livre trânsito de gado pela fronteira e na extradição de escravos vindos do<br />
Brasil” 18 , além de decretar que os contratos entre cidadãos de cor e brasileiros não<br />
poderiam exceder seis anos. Após anos de conflitos, reclamações e negociações, em<br />
1864 o governo imperial, novamente, decidiu intervir na política uruguaia, auxiliando<br />
o levante do colorado Venâncio Flores, que derrubou o sucessor de B. Berro, o<br />
também blanco Atanásio C. Aguirre 19 .<br />
Com a volta dos colorados ao poder, os tratados foram mantidos. Neste sentido,<br />
a negociação de Duarte Silveira com seus cinco cativos só foi possível em razão<br />
da intervenção brasileira na política uruguaia. Caso os acordos não houvessem sido<br />
respeitados, o senhor dos escravos não teria garantias de que o governo uruguaio<br />
não iria expropriá-lo, nem que em caso de fuga, os escravos não seriam devolvidos.<br />
Por outro lado, ter ido para o lado uruguaio abriu a oportunidade dos cinco<br />
cativos, se quisessem, ter requerido a sua liberdade via justiça. Isto por que, oficialmente,<br />
o Brasil havia abolido o tráfico de escravos em 1831. A lei de 7 de novembro<br />
daquele ano foi elaborada na esteira dos tratados de 1810, 1815 e 1817 de Portugal<br />
com a Grã-Bretanha, e do tratado de 1826 (ratificado em 1827) do Brasil com o<br />
15 SOUZA, S. B. de & PRADO, F. P., op. cit., p. 131-132. Segundo este acordo, o senhor reclamante tinha que comprovar<br />
a posse e a propriedade do escravo, além de ficar proibido de castigar o cativo. Em 1857 o Brasil também<br />
assinou um tratado de devolução de escravos fugidos com a Confederação Argentina, onde a escravidão havia sido<br />
abolida em 1853. Informações em: GRINBERG, Keila. op. cit., 2007, p. 275 e 284; ZUBARAN, Maria Angélica.<br />
Escravidão e liberdade nas fronteiras do Rio Grande do Sul (1860-1880): o caso da lei de 1831. Estudos ibero-<br />
Americanos, Porto Alegre, v. XXXII, n. 2, p. 119-132, dezembro 2006, p. 125. Uma retificação do Tratado de<br />
Devolução de Escravos de 1851 obrigava os senhores que quisessem levar seus cativos para trabalhar no Uruguai<br />
a alforriá-los previamente, como o fez Duarte Silveira. Informação em: CARATTI, Jônatas Marques. Alforrias e<br />
contratos de trabalho: escravos rio-grandenses em estâncias uruguaias (meados do século XIX). Revista Aedos<br />
(UFRGS), Porto Alegre, v. 2, n. 4, 2009, p. 206.<br />
16 SOUZA, S. B. & PRADO. F. P., op. cit., p. 132.<br />
17 LEITMAN, Spencer. Raízes Sócio-Econômicas da Guerra dos Farrapos. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 173.<br />
18 FARINATTI, op. cit., p. 78.<br />
19 SOUZA, S. B. & PRADO, F. P., op. cit., p. 136; LEITMAN, op. cit., 1979, p. 173.<br />
143
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Império britânico. Ela estabelecia que os escravos que entrassem no Brasil três anos<br />
após a data do acordo (1827), seriam considerados livres20 .<br />
Este foi o caso da parda Maria Estácia, que teve a carta de alforria concedida<br />
pelo juiz municipal de Alegrete Libindo Nunes Coelho, em 13 de maio de 186821 . Ela<br />
requisitou na justiça sua liberdade, provando<br />
[...] com testemunhas e com a assistência de seu curador, o Dr.<br />
Franklin Gomes Souto, a cerca da liberdade que tem direito visto ter<br />
por diversas vezes ido ao Estado Oriental do Uruguai em companhia<br />
de sua ex-senhora Dona Mariana Romana Jacques casada com Sebastião<br />
Molina do Nascimento por seu livre consentimento, em virtude<br />
da Lei de 07-11-31 e Aviso de 20-05-5622 .<br />
O mesmo juiz também passou a alforria para outra escrava, a preta Maria, em<br />
186823 . No texto do registro consta que “em virtude dos senhores [herdeiros de Arminda<br />
Gonçalves Gomes] terem a consciência e certeza que a escrava Maria é livre<br />
por ter ido ao Estado Oriental deveras vezes em companhia de nossa mãe”. Pode<br />
ser que a conjuntura – um juiz favorável à causa do cativo, possa ter contribuído, não<br />
sendo assim uma coincidência Libindo Nunes aparecer nestes dois casos24 .<br />
Finalmente, ainda dentro do recorte temporal deste estudo, mais dois escravos<br />
- Joana25 (em 1869) e Braz26 (1870), de igual forma conquistaram a liberdade<br />
por terem ido ao Estado Oriental. O caso de Joana é muito interessante. Ela entrou em<br />
acordo com seu senhor, Anacleto Rodrigues Jacques, ganhando a liberdade com a<br />
condição de servi-lo por mais 7 anos. Entretanto, no momento do registro do documento,<br />
Anacleto Jacques<br />
[...] informado [...] que não podia dar liberdade a minha escrava Joana<br />
com a condição de servir-me por espaço de 7 anos, visto que ela foi<br />
ao Estado Oriental do Uruguai por meu consentimento, por meio<br />
20 O artigo 1º da lei de 1831 estabelece que “todos os escravos, que entrarem no território ou portos do Brasil,<br />
vindos de fora, ficam livres”. Informação em: GRINBERG, op. cit., 2007, p. 269. Ver também: ZUBARAN, op.<br />
cit., p. 125.<br />
21 Livros Notariais de Registros Diversos, 2º Tabelionato de Alegrete, livro 1, p. 24r, APERS.<br />
22 O aviso 188 de 20 de maio de 1856 foi uma resposta do Conselho de Estado a uma consulta do presidente do<br />
Tribunal de Apelação, Eusébio de Queirós. Nele, os conselheiros ratificaram a validade da lei de 1831. Informação<br />
em: GRINBERG, Keila, op. cit., 2007, p. 276. Por sua vez, o Aviso de 25 de janeiro de 1843 criou o acesso dos<br />
escravos aos curadores, o que garantiu a utilização de normas jurídicas pelos cativos. Informação em: ZUBARAN,<br />
op. cit., p. 121.<br />
23 Livros Notariais de Registros Diversos, 2º Tabelionato de Alegrete, livro 1, p. 27v, APERS.<br />
24 No inventário dos bens de seus falecidos pais, o Capitão Felisberto Nunes Coelho e Ana Joaquina da Conceição,<br />
Libindo Nunes Coelho já havia “abdicado do preço do escravo” Antônio, africano, “em favor de sua liberdade”,<br />
junto com os outros herdeiros, passando a alforria a Antônio em 31 de março de 1854. Informação em: Livros<br />
Notariais de Registros Diversos, 1º Tabelionato de Alegrete, livro 3, p. 65r, APERS.<br />
25 Livros Notariais de Registros Diversos, 2º Tabelionato de Alegrete, livro 1, p. 41r, APERS.<br />
26 Livros Notariais de Registros Diversos, 2º Tabelionato de Alegrete, livro 1, p. 52r, APERS.<br />
144
desta revogo a carta de liberdade que dei a dita a minha escrava com a<br />
condição de servir-me por 7 anos.<br />
No caso do preto Braz, de “mais de 60” anos, parece ter acontecido algo parecido.<br />
Após um longo texto, em que explica as razões de libertar seu escravo, Joaquina<br />
Maria Anhaia (viúva de José Manoel de Souza), expõe como último motivo o fato de<br />
ter sido “informada por pessoas fidedignas que o preto Braz por vezes esteve na República<br />
do Estado Oriental em companhia do mencionado meu marido”. Pode ser<br />
que Joaquina Anhaia pretendesse algo mais (alguma condição por tempo de serviço,<br />
certa quantia em dinheiro) para libertar seu cativo. Porém, o fato dele ter atravessado<br />
a fronteira com seu ex-senhor impossibilitou qualquer tentativa de ganho adicional<br />
para a viúva.<br />
Portanto, dentre as quatro manumissões registradas em razão dos escravos<br />
terem ido ao Estado Oriental, a única que pareceu litigiosa foi a da crioula Maria<br />
Estácia. Tendo conhecimento de que as regras jurídicas lhe possibilitavam tentar a<br />
liberdade, em razão das “contradições criadas pelos conflitos entre as elites locais e<br />
as metropolitanas” 27 sobre a interpretação da lei de 1831, e contando com a ajuda de<br />
outras pessoas – caso do advogado Franklin Gomes Souto, ela escolheu entrar na<br />
justiça. Não sabemos se antes de arriscar esta chance, Maria tentou um acordo com<br />
sua senhora28 .<br />
Keila Grinberg lembra que, embora tivesse entrado em vigência, a lei de 1831<br />
nunca foi colocada em prática – derivando daí à máxima lei para inglês ver 29 . Neste<br />
contexto, os juristas da Corte de Apelação do Rio de Janeiro tinham dúvidas em<br />
como proceder em relação às ações de liberdade que tinham como argumento central<br />
o tráfico ilegal. Por sua vez, mais complicados ainda eram os casos dos escravos<br />
do extremo sul do império, que requeriam a alforria por terem atravessado a fronteira30<br />
.<br />
Assim, em meio “a ambigüidade de regras” e à “necessidade de tomar decisões<br />
em situações de incerteza”, mesmo com uma “quantidade limitada de infor-<br />
27 GRINBERG, Keila, op. cit., 2007, p. 104. Segundo Maria A. Zubaran ocorreram “calorosas discussões entre os<br />
senadores do Império para decidir se esta Lei estava em vigor ou se caíra em desuso”. Alguns deles consideravam a<br />
lei vigente. Já outros pensavam ser ela “caduca”, deixando de “aplicá-la”. De concreto, para a autora, foi que a lei de<br />
1831 abriu “brechas legais que possibilitaram aos escravos, juntamente com seus curadores, pressionar as Cortes de<br />
Justiça para a interpretação da lei a favor da liberdade”. Informação em: ZUBARAN, op. cit., p. 123.<br />
28 Oportuno lembrar que Maria Estácia foi a primeira a conquistar a liberdade em Alegrete através deste argumento<br />
jurídico, não sabendo, deste modo, se iria ter êxito na sua tentativa.<br />
29 GRINBERG, Keila, op. cit., 2007, p. 269.<br />
30 Idem , 2007, p. 269-270. Até 1873, quando de uma sentença em contrário, podia-se apelar para a segunda instância,<br />
que era o tribunal de Relação do Rio de Janeiro. A partir de 1874, passou a ser o Tribunal de Relação de Porto Alegre.<br />
Informação em: ZUBARAN, op. cit., p. 121.<br />
145
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
mações” 31 , Maria Estácia, certamente amparada no grupo social ao qual pertencia,<br />
decidiu apostar na conquista da liberdade via justiça. Podemos nos questionar, caso<br />
tivesse fracassado a ação pela liberdade da cativa, o quão ruim seria seu relacionamento<br />
com sua senhora, com a escrava podendo sofrer retaliações pela sua ousadia.<br />
Felizmente, não foi o caso. Da mesma forma, o seu sucesso pode ter aberto “o caminho<br />
jurídico para a libertação de outros escravos” 32 , ou seja, pode ter contribuído<br />
para as liberdades de Braz, Joana, da outra Maria e de outros casos semelhantes após<br />
1871 33 .<br />
Como mencionei em estudo anterior, não é possível uniformizar toda uma<br />
gama de experiências, cada uma com sua lógica 34 . Deste modo, apesar do fato dos<br />
cinco escravos de Duarte Silveira não terem acessado a justiça, entrando em acordo<br />
com seu senhor, isto não descaracteriza que esta oportunidade foi aberta aos mesmos.<br />
Talvez eles pensassem ser mais vantajoso o acordo com o senhor, ou mesmo<br />
talvez esta possibilidade não tivesse chegado ao seu conhecimento.<br />
Por sua vez, não se está aqui “supervalorizando” ou “superdimensionando” 35<br />
o caso de Maria Estácia e dos demais escravos, nem os colocando em igualdade de<br />
condições em relação aos senhores perante o poder judiciário. Apenas é fato que eles<br />
se utilizaram de um recurso legal disponível. E a utilização da estrutura judiciária de<br />
curadores e juízes não permite a ilação de que esta estratégia somente legitimou o<br />
sistema escravista, debilitando a capacidade dos escravos de revoltarem-se e organizarem-se<br />
em rebeliões. Prefiro entender que Maria agiu dentro dos limites possíveis<br />
e que a sua ação, mesmo que não obtivesse sucesso, ajudou a enfraquecer toda a estrutura<br />
do regime escravista e, quem sabe, contribuiu para que o pensamento liberal<br />
de igualdade natural entre os homens, ainda que de maneira extremamente precária,<br />
se espalhasse mais rapidamente pelo país.<br />
Neste sentido, é importante a reflexão do historiador Edward P. Thompson,<br />
o qual entende que na negociação, mesmo entre forças sociais desiguais, os mais<br />
fracos ainda tinham direitos reconhecidos por aqueles que detinham mais força 36 .<br />
31 LEVI, Giovanni. A Herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVii. Rio de<br />
Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 46.<br />
32 GRINBERG, Keila. Alforria, direito e direitos no Brasil e nos Estados Unidos. Estudos Históricos, Rio de<br />
Janeiro, nº 27, 2001, p. 69.<br />
33 Apesar de não estarem dentro do período deste estudo, foram encontradas outras 8 alforrias, em Alegrete, com<br />
motivos idênticos aos dos 4 escravos, todas elas na década de 1870. Estas serão abordadas e analisadas quando do<br />
aprofundamento desta pesquisa.<br />
34 MATHEUS, Marcelo Santos. Alforrias em Alegrete (1832-1871). Santa Maria: TFG/UNIFRA, 2009, p. 37.<br />
(Monografia)<br />
35 GORENDER, J. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1991, p. 29-30.<br />
36 THOMPSON, Edward P. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p, 260.<br />
146
Da mesma forma, o autor compreende a lei como um espaço para defesa dos grupos<br />
subalternos e também para impor limites às classes dominantes (“muitas vezes<br />
um campo de conflito”), e não apenas como “outra máscara do domínio de uma<br />
classe” 37 . Foi isto que Maria - e o grupo social no qual ela estava inserida, fez. E<br />
com sucesso. Ela desafiou “o direito de propriedade” da senhora, “minimizando os<br />
aspectos coercitivos da lei” 38 .<br />
Contudo, este espaço fronteiriço não abria apenas oportunidades legais aos<br />
cativos. A proximidade com Estados onde a escravidão havia sido abolida, apesar<br />
de acordos entre eles e o Império brasileiro, não impediu as tentativas de fugas – as<br />
quais, por sua vez, não inviabilizaram a reprodução da escravidão naquele contexto<br />
39 . Luís A. Farinatti analisa em sua tese de doutorado um processo-crime onde a<br />
investigação tinha como base uma denúncia de uma fuga coletiva de escravos para<br />
o Estado Oriental, em 1850 40 . No processo aparece aproximadamente uma dezena<br />
de escravos, de cinco diferentes senhores, participando da ação juntamente com homens<br />
livres 41 . A complexidade do caso revela que, além dos cativos se utilizarem da<br />
fronteira dentro de suas possibilidades, eles elaboravam estratégias próprias, mesmo<br />
frente a uma pesada estrutura coercitiva 42 .<br />
Por fim, cabe aqui um comentário sobre uma diferenciação que a fronteira<br />
impunha ao valor dado a escolha dos padrinhos - os quais podiam ter um papel deci-<br />
37 THOMPSON, Edward P. Senhores e caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p.<br />
350-351e 352. Muito embora Thompson exclua “crianças” e “escravos” desta análise mais complexa de como a<br />
lei era produzida e aplicada na prática, releva-se o fato deste grupo social não ser o foco de seu estudo, bem como<br />
as pesquisas acerca da instituição escravidão ainda não estarem em um estágio mais avançado (nos temas e na sua<br />
complexidade) na época da publicação de Senhores e Caçadores. Portanto, considero extremamente válidas suas considerações<br />
sobre o acesso à lei pelos grupos subalternos, inclusive os cativos. Como ele mesmo pondera mais adiante,<br />
“a maioria dos homens tem um forte senso de justiça, pelo menos em relação aos seus próprios interesses”. Os<br />
escravos também o tinham, dentro dos seus limites. THOMPSON, Edward P., op. cit., 1987, p. 353-354.<br />
38 ZUBARAN, op. cit., p. 120.<br />
39 FARINATTI, op. cit., p. 379.<br />
40 Idem, p. 378-382.<br />
41 Aliás, eram frequentes as participações de homens livres, inclusive orientais, na “sedução de escravos”, com o<br />
objetivo de convencê-los a fugir para o Estado Oriental, especialmente a partir dos anos 1850. Nesta mesma década,<br />
Benito Varella, ex-vice-cônsul oriental de Jaguarão, foi inclusive preso acusado de aliciar cativos. Informações em:<br />
LIMA, Rafael Peter de. Violência na Fronteira: o seqüestro de negros no Estado Oriental (século XiX). IV<br />
Mostra de Pesquisa do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: CORAG, 2006, p. 264.<br />
Muito significativa também é a tentativa de insurreição escrava na vila de Taquari, em 1864, analisada por Paulo<br />
Moreira. Nela, os cativos planejavam saquear a cidade e depois atravessar a fronteira em busca da liberdade. MO-<br />
REIRA, op. cit., p. 134-141.<br />
42 Neste mesmo sentido, é exemplar o caso do escravo Salvador, analisado por Silmei Petiz. Salvador, ameaçado de ir<br />
a leilão após a morte de seu senhor, afirma que se tal fato ocorrer, ele “fugirá para o Estado Oriental”. Informação<br />
em PETIZ, Silmei de S. Buscando a liberdade: As fugas de escravos para o além-fronteira de 1811 a 1850.<br />
Passo Fundo: UPF, 2006, p. 63.<br />
147
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
sivo na busca pela liberdade 43 . Sidney Chalhoub, analisando as relações de compra e<br />
venda de escravos na corte, faz referência a um período de testes - o senhor, insatisfeito<br />
com a compra, poderia num curto prazo devolver o cativo 44 . Ele argumenta que, a<br />
princípio, isto que poderia parecer apenas uma garantia ao “consumidor”, também<br />
era um espaço de interferência do escravo na transação: durante o período de adaptação,<br />
os cativos podiam expressar ao futuro senhor o trabalho de sua preferência, a<br />
insatisfação com tarefas exigidas dele ou, no caso de não querer permanecer com o<br />
novo senhor, o cativo podia, dentre várias outras estratégias, ‘parecer’ doente.<br />
Tanto este período de teste, quanto a preferência do escravo em relação à sua<br />
ocupação parece algo impensável para a fronteira 45 . Ali, distante dos centros onde<br />
se comercializavam escravos, a adaptação do cativo ao meio social era uma necessidade.<br />
Por isso, os primeiros laços de parentescos, como o batismo, ganham outro<br />
significado em uma região longínqua de fronteira, ao contrário do que representava<br />
em centros com uma maior população cativa, onde o rito do batismo sancionava<br />
“formalmente uma aliança forjada anteriormente” 46 . Inserir o escravo no mundo<br />
social da Campanha, bem como dotá-lo de uma profissão, era algo que os senhores<br />
tinham que se preocupar, sob risco de perder o investimento 47 .<br />
43 Em minha monografia, analisei a alforria da parda Inácia, que teve sua liberdade paga em 4 de julho de 1837, quando<br />
tinha seis anos, pela madrinha Cipriana. Está pagou 300$ mil réis a Joaquim dos Santos Prado Lima. A madrinha,<br />
que no registro de batismo de Inácia consta como Sipriana Maria da Conceição, apadrinhou a menina juntamente<br />
com Jacinto, pardo e escravo. Até onde pôde ser verificado, Jacinto, entre os anos de 1830-32, foi padrinho de mais<br />
3 crianças escravas (além de Inácia), pertencentes a dois senhores diferentes, o que demonstra que ele era um indivíduo<br />
bastante requisitado e inserido numa extensa rede de relações, podendo apresentar atributos que auxiliavam<br />
outras pessoas a alcançar a liberdade. Informações em: Livros Notariais de Registro Diversos, 1º Tabelionato de<br />
Alegrete, livro 1, p. 73v, APERS; Livro 02 de Batismos da Capela Curada de Nossa Senhora Aparecida de<br />
Alegrete, folhas 358, 375 e 364. Arquivo da Diocese de Uruguaiana.<br />
44 CHAULOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São<br />
Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 75-77.<br />
45 Vinícius Pereira encontrou um caso semelhante aos de Sidney Chalhoub, mas em São Leopoldo e em relação a<br />
um cativo escravizado ilegalmente, pois havia sido seqüestrado no Uruguai. Informação em: OLIVEIRA, Vinícius<br />
Pereira de. De Manoel Congo a Manoel de Paula. Porto Alegre: EST, 2006, p. 67.<br />
46 ENGEMANN, Carlos. Da comunidade escrava e suas possibilidades, séculos XVII-XIX. In: MANOLO, Florentino<br />
(org.). Tráfico, cativeiro e liberdade: Rio de Janeiro, séculos XVii-XiX. Rio de Janeiro: Civilização<br />
Brasileira, 2005, p. 189.<br />
47 Gabriel Berute observou que aproximadamente 1/3 dos escravos despachados para o Rio Grande de São Pedro<br />
do Sul, entre 1788-1802, tinham entre 10 e 14 anos, ou seja, se esta tendência de entrada de escravos jovens continuou<br />
se reproduzindo até a primeira metade do século XIX, o rito do batismo ganha ainda mais importância. Informação<br />
em: BERUTE, Gabriel do Santos. Dos escravos que partem para os portos do sul: características do<br />
tráfico negreiro do Rio Grande de São Pedro do Sul, 1790-1825. Porto Alegre: PPGH/UFRGS, 2006. (Dissertação<br />
de Mestrado). Por outro lado, mesmo utilizando-se de algumas ferramentas como o batismo, não era fácil evitar<br />
as fugas de escravos oriundos de outras províncias, como percebeu Albertina Vasconcelos. A autora, investigando<br />
a importância do tráfico da Bahia para o Rio Grande do Sul através de guias e passaportes de escravos, relata que<br />
um número considerável de cativos naturais da Bahia fugia depois de aportar em Rio Grande, segundo os jornais da<br />
época. VASCONCELOS, Albertina Lima. Tráfico interno, liberdade e cotidiano de escravos no Rio Grande do Sul:<br />
1800-1850. CD-ROM [do] 2º Encontro “Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional”: Porto Alegre, 2005, p. 9-10.<br />
148
Neste contexto, o estudo com os registros de batismos, por exemplo, podem<br />
revelar a existência de alguns escravos que eram responsáveis pela integração dos<br />
novos cativos naquele mundo 48 , bem como quais padrinhos contribuíam mais para<br />
seus afilhados chegarem a liberdade. Portanto, da mesma maneira que a “condição<br />
de fronteira dotava-lhe [a elite rio-grandense] de recursos que outras elites periféricas<br />
não tinham” 49 , os escravos também podiam utilizá-la em beneficio próprio, conforme<br />
suas possibilidades.<br />
GUERRA E LIBERDADE: O DESCOMPROMETIMENTO<br />
DE ALEGRETE COM A CAUSA BRASILEIRA<br />
A guerra, evento constante em boa parte do século XIX na capitania e depois<br />
província de São Pedro do Rio Grande do Sul, também influenciou as vidas e<br />
estratégias dos escravos do Brasil meridional. Gabriel Aladrén, analisando a participação<br />
de pretos e pardos, livres e libertos nas Guerras Cisplatinas entre 1811 e 1828,<br />
período anterior ao deste estudo, afirma que “um dos caminhos mais sólidos para<br />
ascensão social de libertos e negros livres durante o período colonial era a participação<br />
nas campanhas milicianas” 50 . O autor ressalta que em meio às batalhas, em<br />
1817 e 1818, foram criados o 1º e 2º Batalhões dos Libertos para compor as tropas<br />
luso-brasileiras 51 . Este expediente foi utilizado, também, em função do líder oriental<br />
José G. Artigas ter formado em 1816 um “Batallón de Negros” 52 . Assim, os escravos<br />
“que pasasen al ejército português, ‘ganarían su libertad em el dia’” 53 .<br />
Durante o período que este estudo abrange, aconteceram três grandes confli-<br />
48 Inclusive com o papel de lhes ensinar um ofício, fazendo com que no caso de crianças escravas, por volta dos 12<br />
anos, entrassem no mundo dos adultos. Informação em: MANOLO, Florentino. Morfologia da infância escrava: Rio<br />
de Janeiro, séculos XVII e XIX. In: MANOLO, Florentino (org.). Tráfico, cativeiro e liberdade: Rio de Janeiro,<br />
séculos XVii-XiX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 215, p. 217.<br />
49 FARINATTI, op. cit., p. 35.<br />
50 ALADRÉN, Gabriel. Liberdades Negras nas Paragens do Sul: alforrias e inserção social de libertos em<br />
Porto Alegre, 1800-1835. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009, p. 141.<br />
51 ALADRÉN, Gabriel. Guerra, fronteira e liberdade: fuga de escravos e vivências de forros durante a campanha<br />
contra Artigas (Rio Grande de São Pedro, 1811-1820). Caicó: Revista d Humanidades/UFRN, v. 9, n.<br />
24, 2008, p. 1. Sobre o tema também ver: BAKOS, Margaret Marchiori. A Escravidão Negra e os Farroupilhas. In:<br />
PESAVENTO, Sandra Jatahy [e outros] (org.). A Revolução Farroupilha: história e interpretação. Porto Alegre:<br />
Mercado Aberto, 1997, p. 89-90.<br />
52 FREGA, Ana, op. cit., p. 9.<br />
53 Idem, p. 23. Nada menos do que 237 escravos conquistaram a liberdade desta forma. Informação em: ALA-<br />
DRÉN, op. cit., p. 7. No município de Rio grande, conforme Jovani Scherer, as alforrias quase triplicaram durante o<br />
período de “conquista da Cisplatina pelos luso-brasileiros, em ralação ao período anterior a 1810”. Informação em:<br />
SCHERER, Jovani de Souza. Experiências de busca da liberdade: alforria e comunidade africana em Rio<br />
Grande, século XiX. São Leopoldo: PPGH/UNISINOS, 2008, p. 66. (Dissertação de Mestrado)<br />
149
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
tos: a Revolução Farroupilha (1835-1845), a Guerra Grande, a qual levou a entrada<br />
brasileira no conflito configurando a Guerra contra Oribe e Rosas (1851-1852), e a<br />
Guerra do Paraguai (1864-1870). Como fenômeno que desestabilizava as relações<br />
comerciais e sociais, estas guerras também abriram a possibilidade dos escravos alcançarem<br />
a liberdade, seja na forma de alforria, seja na fuga – facilitada pelos problemas<br />
causados pelos conflitos.<br />
No que concerne à Revolução Farroupilha, César A. Guazzeli destaca que o<br />
conflito entre parte da elite rio-grandense e o Império abriu um canal por onde os<br />
cativos podiam alcançar a liberdade, já que a utilização de libertos nas tropas dos<br />
rebeldes foi uma constante 54 . Assim, os escravos pagavam com o serviço militar<br />
pela alforria. Como a necessidade de tropas era enorme, ambos os lados da disputa<br />
empregaram deste expediente, com os farrapos utilizando-se, inclusive, de jornais da<br />
época para prometer a liberdade aos escravos que se engajassem no conflito 55 . Isto<br />
foi preciso, também, em razão de alguns senhores rio-grandenses (farrapos, dentre<br />
eles), com medo de perder seus escravos em meio ao conflito, os transferirem para<br />
o Estado Oriental 56 . Porém, como vimos, esta estratégia acabou por oportunizar a<br />
alguns cativos a possibilidade de requerer a liberdade 57 .<br />
Em 1838, mais precisamente, o governo dos farrapos começou o recrutamento<br />
de índios e pretos libertos para formar, oficialmente, o Corpo de Lanceiros<br />
da 1º Linha, Infantaria e Caçadores, embora o alistamento de escravos já estivesse<br />
acontecendo desde 1836 58 . Estima-se que, ao final do conflito, quase metade das<br />
tropas dos rebeldes era composta por ex-cativos 59 .<br />
54 GUAZZELLI, César Augusto Barcellos. A República rio-grandense e o rio da prata: a questão dos escravos<br />
libertos. CD-ROM [do] 2º Encontro “Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional”: Porto Alegre, 2005, p. 2 e p. 3.<br />
55 Idem, p. 9; CUNHA, Manoela Carneiro da. Sobre os silêncios da lei: lei costumeira e positiva nas alforrias de<br />
escravos no Brasil do século XIX. In: Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo: Brasiliense,<br />
1986, p. 126; LEITMAN, op. cit., 1979, p. 70; BAKOS, op. cit., p. 91.<br />
56 GUAZZELLI, op. cit., 2005, p. 10. Silmei Petiz destaca que, em 16 de novembro de 1835, o governo do Estado<br />
Oriental proibiu, por meio de decreto, a entrada de escravos rio-grandenses em seu território. Com isto, visava<br />
atingir os senhores que transferiam seus cativos, pois tinham medo de perdê-los em meio ao conflito. Informação<br />
em: PETIZ, op. cit., p. 41.<br />
57 Maria A. Zubaran observa que em 4 ações de liberdades que tinham como justificativa o escravo ter ido ao<br />
Estado Oriental, os senhores contra-argumentaram que assim o procederam “devido à Guerra Civil na Província,<br />
a Revolução Farroupilha”. Como destaca a autora, é interessante notar que essa argumentação senhorial inverte o<br />
imaginário sobre a Revolução Farroupilha, qual seja, o de um movimento libertário. Informação em: ZUBARAN,<br />
op. cit., p. 128129.<br />
58 LEITMAN, Spencer. Negros Farrapos: hipocrisia racial no sul do Brasil no século XIX. In: PESAVENTO, Sandra<br />
Jatahy [e outros] (org.). A Revolução Farroupilha: história e interpretação. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997,<br />
p. 64; CARVALHO, Daniela Vallandro. “Nunca o inimigo havia visto as costas destes filhos da liberdade”:<br />
Experiências negras na guerra (Brasil Meridional, 1835-1845). CD-ROM [do] 4º Encontro “Escravidão e<br />
Liberdade no Brasil Meridional”: Curitiba, 2009, p. 4.<br />
59 CARVALHO, op. cit., p. 4.<br />
150
Jovani Scherer, em sua pesquisa sobre o município de Rio Grande, comenta<br />
que a quantidade de “alforrias registradas em cartório demonstram que os conflitos<br />
bélicos da província foram momentos de aumento considerável de cartas de alforria,<br />
sobretudo a Guerra dos Farrapos, período em que a concessão de alforrias alcançou<br />
as maiores médias” 60 . É interessante notar que Scherer encontrou um aumento de<br />
mulheres alforriadas, com registro em cartório, durante a Revolução Farroupilha,<br />
sendo que no período imediatamente anterior ao conflito havia um equilíbrio entre<br />
os sexos 61 .<br />
Como demonstrei em minha pesquisa anterior, o período entre 1832 e 1849<br />
foi o que mais mulheres alcançaram a liberdade em Alegrete (59, ou 39,5% do total<br />
de mulheres manumissas entre 1832 e 1871) 62 . As alforrias que ocorreram somente<br />
entre 1835 e 1846, ano imediatamente após o término do conflito, representam<br />
29,5% do total (44 manumissões de escravas), ou seja, ainda assim seria um número<br />
bastante relevante em relação aos outros recortes temporais. Com isso, é possível<br />
concluir, da mesma forma que J. Scherer, que a Guerra dos Farrapos abriu possibilidades<br />
dos escravos chegarem à liberdade. E, mais importante, o maior número<br />
de alforriados foi de mulheres (ocorreram 24 manumissões de homens em Alegrete<br />
entre 1835 e 1846), o que também nos leva a crer que havia uma estratégia mais<br />
complexa, e coletiva em muitos casos, por de trás destas liberdades.<br />
Por sua vez, retornando ao caso dos libertos farrapos, também havia o receio<br />
por parte dos comandantes rebeldes de que Fructuoso Rivera, em conflito com Manuel<br />
Oribe, incorpora-se nos seus batalhões os forros da Revolução Farroupilha 63 .<br />
Por isso, em 1838 – ano em que Rivera ocupou Montevidéu e retomou o poder, os<br />
republicanos rio-grandenses fecharam um acordo com o governo oriental, o Tratado<br />
de Cangué, em que Rivera comprometia-se a respeitar a propriedade dos escravos<br />
que ultrapassassem a fronteira 64 . A partir deste momento, foi a vez de Oribe, que<br />
comandava o interior, especialmente o norte do Uruguai, receber em suas tropas os<br />
cativos que conseguiam escapar 65 .<br />
60 SCHERER, op. cit., p. 66-67. (grifos meus)<br />
61 Idem, p. 75. Scherer encontrou apenas uma alforria, durante a Guerra dos Farrapos, em que o motivo direto era<br />
o escravo ir servir no lugar de seu senhor. Idem, p. 82.<br />
62 O período entre 1850 e 1859 representou 32,5% das alforriadas em Alegrete, enquanto entre 1860 e 1871, 28%.<br />
Informação em: MATHEUS, op. cit., p. 66.<br />
63 GUAZZELLI, op. cit., 2004, p. 117. Este foi o caso do africano Francisco, relatado por D. Carvalho. Informação<br />
em: CARVALHO, op. cit., p. 11-13.<br />
64 GUAZZELLI, op. cit., 2004, p. 108. Em 1838 os comandantes farroupilhas também fecharam um acordo para<br />
devolução de escravos fugidos com o governador de Corrientes, Pedro Ferré. Informação em: GUAZZELLI, César<br />
Augusto Barcellos. A República rio-grandense..., 2005, p. 8.<br />
65 FARINATTI, op. cit., p. 193.<br />
151
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Finalmente, a questão do que fazer com os escravos que lutaram ao lado dos<br />
farrapos contra as tropas imperiais foi motivo de discussões, tanto por parte dos<br />
rebeldes, quanto do Conselho de Estado imperial 66 . Temia-se que a re-incorporação<br />
deste contingente de soldados, agora livres, pudesse criar um terrível precedente 67 .<br />
A solução foi o pragmatismo: com o extermínio de muitos negros que lutaram ao<br />
lado dos farrapos na Batalha de Porongos, ficou aberto o caminho para o Império<br />
aceitar o artigo quarto do Tratado de Ponche Verde, o qual reconhecia a liberdade<br />
dos escravos que serviram à revolução 68 .<br />
Como se percebe, a guerra civil uruguaia, contemporânea a Farroupilha e que<br />
terminou apenas no início da década de 1850, também possibilitou a alguns escravos<br />
chegarem à liberdade, seja através da alforria - incorporando-se as tropas (tanto de<br />
colorados quantos dos blancos), seja por meio de fugas 69 . No fim dos anos 1840,<br />
quatro cativos do Brigadeiro Ortiz que trabalhavam na estância de Tacumbú, no<br />
Estado Oriental, aproveitaram-se da desorganização causada pela guerra e fugiram 70 .<br />
Na verdade, estas fugas vinham ocorrendo desde o decênio farroupilha. Por causa<br />
delas, nos anos de 1848 e 1849, os delegados de polícia dos municípios organizaram<br />
listas, as quais continham o número de escravos que estavam fugidos, bem como<br />
suas características. Ao todo, contabilizou-se 944 cativos que estavam evadidos, a<br />
maioria para o “além-fronteira” 71 .<br />
Todavia, não se deve imaginar que a fuga era algo de fácil realização. Se por<br />
um lado provavelmente “havia redes de auxílio, proteção e informação que articulavam<br />
escravos e livres”, viabilizando as fugas, por outro também havia “redes de<br />
comunicação e vigilância” por parte dos senhores 72 . Além disso, as longas distâncias<br />
que o escravo teria que atravessar, junto a outras dificuldades, de igual forma trans-<br />
66 GUAZZELLI, op. cit., 2005, p. 21-22; LEITMAN, op. cit., 1997, p. 72 e p. 74.<br />
67 GUAZZELLI, op. cit., 2004, p. 116. LEITMAN, op. cit., 1997, p. 72.<br />
68 GUAZZELLI, op. cit., 2005, p. 22-23; LEITMAN, op. cit., 1997, p. 75-76. Em relação aos sobreviventes, há<br />
indícios, segundo Daniela Carvalho, que muitos deles foram enviados para o Rio de Janeiro e re-escravizados. Informação<br />
em: CARVALHO, op. cit., p. 5.<br />
69 Em 1850, o delegado do município de Rio grande listou 57 escravos que estariam evadidos no Estado Oriental.<br />
Informação em: SCHERER, op. cit., p. 80-81.<br />
70 A propriedade dos cativos e sua ausência constam no inventário da esposa do Brigadeiro, o qual foi analisado por<br />
Luís A. Farinatti. Informação em: FARINATTI, op. cit., p. 382.<br />
71 PÉTIZ, op. cit, p. 25-27. Jônatas Caratti encontrou outra lista, desta vez com 266 cativos que haviam fugido, elaborada,<br />
provavelmente, no início da década de 1850. Destes, apenas 4 também estavam presentes na lista analisada<br />
por Silmei Petiz. Informação em: CARATTI, Jônatas Marques. Em busca da posse cativa: o Tratado de Devolução<br />
de Escravos entre a República Oriental do Uruguai e o império brasileiro a partir de uma relação<br />
nominal de escravos fugidos da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul (1851). CD-ROM [do] 4º<br />
Encontro “Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional”: Curitiba, 2009.<br />
72 FARINATTI, Luis Augusto Ebling. Confins Meridionais...2007, p. 384.<br />
152
formava a fuga em uma empreitada difícil73 . Por fim, “ao fugir para [...] outro país,<br />
o escravo extrapolava a esfera da comunidade em que estava inserido”, tendo que,<br />
algumas vezes, reconstruir do zero suas relações sociais74 .<br />
Um terceiro conflito, a Guerra do Paraguai, engendrou outra possibilidade<br />
aos cativos alcançarem a liberdade. Durante a contenda, alguns senhores alforriaram<br />
seus escravos para estes irem lutar no seu lugar (ou de algum parente). Paulo Moreira,<br />
analisando as cartas de alforria de Porto Alegre, encontrou 144 manumissões que<br />
tinham como finalidade a ida do liberto a guerra75 . Por sua vez, Thiago Araújo destaca<br />
em sua pesquisa sobre Cruz Alta que, provavelmente, “uma parte considerável<br />
do declínio da população escrava da vila [...] foi decorrência da Guerra do Paraguai,<br />
embora as fontes silenciem sobre esta questão” 76 .<br />
Até aqui não foi mencionado nenhum caso de manumissão em Alegrete, relacionada<br />
a algum dos conflitos citados77 . Como vimos, tanto a guerra de independência<br />
do Uruguai e seus conflitos internos posteriores, como a Revolução Farroupilha<br />
abriram caminhos, seja pela fuga, seja pela participação na contenda, para a<br />
liberdade. Com a Guerra do Paraguai não foi diferente. Como o exército brasileiro<br />
precisava de voluntários, a província do Rio Grande é quem melhor podia fornecêlos,<br />
dada sua localização. Analisando rapidamente as alforrias para toda a província,<br />
não foram poucas as liberdades conquistadas em troca do escravo ir lutar na guerra,<br />
principalmente com o objetivo de substituir seu senhor ou algum parente deste78 .<br />
No município de Santa Maria, região central da província, por exemplo, entre<br />
1865 e 1867, 5 escravos foram libertos com a condição de ir lutar no lugar de seu senhor.<br />
Henrique Niederaner alforriou seu escravo Vicente, pardo e nascido no Brasil,<br />
em fevereiro de 1867 para<br />
[...] servir no exército brasileiro em meu lugar, como meu substituto<br />
por me achar compreendido como Guarda Nacional do município<br />
de Santa Maria da Boca do Monte, a marchar para a guerra, sendo o<br />
73 MOREIRA, op. cit., p. 125. PETIZ, op. cit., p. 52.<br />
74 PETIZ, op. cit., p. 139.<br />
75 MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Os cativos e os Homens de Bem: experiências negras no espaço urbano.<br />
Porto Alegre: EST, 2003, p. 220.<br />
76 ARAÚJO, Thiago Leitão de. Escravidão, fronteira e liberdade: políticas de domínio, trabalho e luta em<br />
um contexto produtivo agropecuário (vila de Cruz Alta, província do Rio Grande do Sul, 1834-1884). Porto<br />
Alegre: PPGH/UFRGS, 2008, p. 107. (Dissertação de Mestrado)<br />
77 Em 1841, em meio a Farroupilha, David Canabarro alforriou Joaquim, “crioulo Rio-Grandense”, de 55 anos,<br />
“por bons serviços prestados”. Contudo, não há nenhuma referência direta que estes bons serviços tivessem sido<br />
realizados durante o conflito. Informação em: Livros Notariais de Registro Diversos, 1º Tabelionato de Alegrete,<br />
livro 1, p. 96r, APERS.<br />
78 O que só foi possível em função do importante trabalho realizado pelo Arquivo Público do Estado do Rio Grande<br />
do Sul, e pelos estagiários envolvidos neste projeto, o qual disponibilizou todas as alforrias no seu sítio na internet<br />
153
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
dito meu escravo Vicente, obrigado a servir, não só durante a presente<br />
guerra com a Republica do Paraguai, como depois dela concluída,<br />
conforme for determinado pelo governo, sobre os substitutos escravos<br />
libertados para semelhante fim; e desde o momento que seja aceito<br />
o dito meu escravo, e fique eu isento de todo o serviço, e garantido,<br />
como se lá esteja a minha própria pessoa lhe concedo a liberdade79 .<br />
Apesar de não haver nenhuma carta de alforria em Alegrete relacionada a algum<br />
dos três conflitos citados, o mais intrigante é a inexistência de manumissões durante<br />
a Guerra do Paraguai. Alegrete estava localizada na zona de conflito – a cidade<br />
de Uruguaiana, por exemplo, que foi invadida pelos paraguaios, até 1846 pertencia<br />
ao município de Alegrete80 . Além disso, muitos integrantes da elite alegretense eram<br />
também militares ou tinham laços de parentesco com algum oficial81 .<br />
Assim, quase não faz sentido em Santa Maria, cidade mais afastada da zona de<br />
combate, haver cinco alforrias ligadas à guerra e em Alegrete nenhuma. Dois últimos<br />
exemplos. No município de Jaguarão, também de fronteira, mas não tão perto do<br />
palco das batalhas quanto Alegrete, nada menos do que 17 alforrias foram passadas<br />
com a condição dos escravos irem lutar na guerra. Por sua vez, Antônio Lacerda<br />
encontrou quatro alforrias para o município de Juiz de Fora (!), em Minas Gerais82 .<br />
Como já foi dito, Thiago Araújo levantou a hipótese das cartas silenciarem<br />
em relação a participação dos cativos nesta guerra, já que encontrou apenas duas<br />
alforrias em Cruz Alta relacionadas à Guerra do Paraguai83 . Contudo, considero<br />
complicada está suposição, já que para tantos outros municípios as manumissões<br />
com condição de servirem ao exército aparecem explicitamente nos registros. Não<br />
é possível aqui descobrir o porquê deste falso descomprometimento dos habitantes<br />
de Alegrete para com a causa do Império. Todavia, assim como para Thiago Araújo,<br />
fica a dúvida do por que desta omissão – nos documentos ou dos proprietários de<br />
escravos, zelosos por seu patrimônio84 .<br />
Por outro lado, vimos que dentre os quatro escravos que conquistaram a liberdade<br />
por terem ido ao Estado Oriental, todos eles foram entre os anos de 1868 e 1870,<br />
79 Livros Notariais de Transmissões e Notas, 1º Tabelionato de Santa Maria, livro 4, p. 139r, APERS.<br />
80 FEDERAçãO DE ECONOMIA E ESTATíSTICA. De Província de São Pedro a Estado do Rio Grande<br />
do Sul - censos do RS 1803-1950. Porto Alegre: FEDERAçãO DE ECONOMIA E ESTATíSTICA, 1981, p. 30.<br />
81 FARINATTI, op. cit., 2007.<br />
82 LACERDA, Antônio Henrique Duarte. Os padrões das alforrias em um município cafeeiro em expansão:<br />
Juiz de Fora, Zona da Mata de Minas Gerais, 1844-1888. São Paulo: FABEP/Annablume, 2006, p. 66.<br />
83 ARAÚJO, op. cit., p. 250-251.<br />
84 Provavelmente as fontes referentes ao recrutamento para a guerra do Paraguai ajudem a esclarecer melhor esta<br />
questão. Nelas, talvez, seja possível encontrar quais lideranças militares locais se engajaram na organização do exército.<br />
154
ou seja, no contexto da Guerra do Paraguai. Maria A. Zubaran sugere que o impacto<br />
deste conflito contribuiu para a “produção de um imaginário favorável à libertação<br />
dos escravos na província” 85 . Colaborou com isto a intensificação do “deslocamento<br />
de estancieiros rio-grandenses e seus escravos de um lado para o outro da fronteira<br />
[...] permitindo aos curadores rio-grandenses novas interpretações da Lei anti-tráfico<br />
de 1831” 86 .<br />
Entretanto, não se pode pensar que a guerra e a própria condição de fronteira<br />
traziam apenas esperança e bons ventos aos cativos, já que oportunizava a liberdade<br />
através da fuga ou do engajamento militar. Como evento que desestabilizava o mundo<br />
de todos os agentes históricos ali presentes, ela também trazia infortúnios aos<br />
escravos. Neste sentido, são significativos os casos de seqüestro de negros orientais,<br />
em meados do século XIX, para escravizá-los em terras brasileiras. Alguns destes<br />
eram cativos que haviam fugido, ou descendentes destes. Em outros casos, os riograndenses<br />
raptores falsificavam registros de batismo para provar que o indivíduo<br />
havia nascido no Brasil e, por isso, era escravo 87 .<br />
***<br />
Em trabalho anterior, argumentei ser necessário uma desnaturalização tanto<br />
do conceito da palavra liberdade, quanto o de um suposto desejo intrínseco dos<br />
escravos por ela 88 . Neste sentido, uma passagem do processo-crime analisado por L.<br />
A. Farinatti, referido anteriormente, é reveladora. Durante o interrogatório de vários<br />
indivíduos, envolvidos ou não no crime, o testemunho do escravo Adão é interessantíssimo.<br />
Negando envolvimento na organização da fuga coletiva, Adão admitiu<br />
somente ter sido convidado para a mesma, não tendo aceitado em razão de já ter<br />
fugido uma vez para o Estado Oriental, e “que tendo chegado ali o prenderam e o<br />
85 ZUBARAN, op. cit., p. 122.<br />
86 Idem, p. 122.<br />
87 Informações em: OLIVEIRA, op. cit.; LIMA, op. cit., p. 263 e p. 267-268; CARATTI, Jônatas Marques. Apreensão,<br />
Venda e Extradição: experiências de uma crioula oriental em terras sul-rio-grandenses (1842-1854).<br />
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: CORAG, 2007, p.<br />
120. Portanto, como vimos anteriormente, da mesma forma que algumas pessoas eram “incitadas” a fugir para o<br />
lado oriental, o caminho inverso era verdadeiro, como destacam Alex Borucki, K. Chagas e Natalia Satalla: “En la<br />
frontera se establecieron corrientes migratorias de población negra em ambas direcciones. Por un lado, las fugas de<br />
esclavos brasileños, por otro, los raptos de morenos orientales llevados a Brasil”. Informação em: BORUCKI, Alex;<br />
CHAGAS, Karla; STALLA Natalia. Esclavitud Y Trabajo: Un Estudio Sobre Los Afrodescendientes En La<br />
Frontera Uruguaya (1835-1855). Montevideo: Pulmón Ediciones, 2004, P. 149.<br />
88 MATHEUS, op. cit., p. 11-12.<br />
155
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
mandaram para o Salto, para servir de soldado e como era inimigo de ser soldado,<br />
tinha fugido do caminho e tinha vindo apresentar-se a seu senhor” 89 .<br />
Ou seja, “aquela” liberdade alcançada por Adão, não o interessava. Certamente<br />
ele mediu os riscos e os ganhos que teria sendo um “homem livre”, mas soldado,<br />
em um contexto onde a guerra era uma constante, e preferiu voltar ao seu senhor,<br />
mesmo que isso representasse a sua volta à condição de cativo e, quem sabe, uma<br />
severa punição 90 .<br />
Portanto, “endemia bélica e irregularidade institucional compunham o ambiente<br />
onde sujeitos buscavam desenvolver estratégias para sobreviver e ascender ou reproduzir<br />
sua posição social” 91 . Como vimos, com os escravos não era diferente. Ao<br />
mesmo tempo em que sofreram as consequências daquele espaço fronteiriço e das<br />
guerras, os cativos também se utilizaram destes recursos para tentar atingir alguns de<br />
seus objetivos, os quais, às vezes, era composto pelo sonho de conquista da liberdade.<br />
89 FARINATTI, op. cit., p. 380.<br />
90 O caso de Adão é semelhante ao do cativo Antônio Maria, estudado por Paulo Moreira. Depois de delatar uma<br />
tentativa de insurreição de escravos em Porto Alegre, Antônio Maria receberia sua alforria, com a condição de servir<br />
as forças armadas na Guerra do Paraguai, o que de pronto rejeitou. MOREIRA, op. cit., 1998, p. 134; Silmei Petiz<br />
também analisa um caso de um cativo que fugiu e, sete anos depois, apresentou-se ao seu senhor. PETIZ, op. cit.,<br />
p. 71.Por fim, um último exemplo da necessidade de qualificar a liberdade, não tratando-a de maneira homogênea.<br />
Na década de 1830, o escravo Caetano, depois de ter sido feito prisioneiro, foi liberto e passou a receber pensão de<br />
soldado em Buenos Aires. Entretanto, Caetano fugiu, apresentando-se ao seu senhor. Informação em: ALADRÉN,<br />
Gabriel, op. cit., 2009, p. 150-151.<br />
91 FARINATTI, op. cit., p. 78.<br />
156
Fontes Primárias<br />
Arquivo Público do Rio Grande do Sul<br />
FONTES PESQUISADAS<br />
Rio Grande do Sul. Secretaria da Administração e dos Recursos Humanos. Departamento<br />
de Arquivo Público. Documentos da escravidão: catálogo seletivo de<br />
cartas de liberdade. Acervo dos tabelionatos do interior do Rio Grande do Sul.<br />
Vol. 1 e Vol. 2. Porto Alegre: CORAG, 2006.<br />
Arquivo da Diocese de Uruguaiana<br />
Livro 02 de Batismos da Capela Curada de Nossa Senhora Aparecida de Alegrete.<br />
Arquivo da Diocese de Uruguaiana.<br />
Fontes primárias impressas<br />
FUNDAçãO DE ECONOMIA E ESTATíSTICA. De Província de São Pedro<br />
a Estado do Rio Grande do Sul - censos do RS 1803-1950. Porto Alegre: FEE,<br />
1981.<br />
REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
ALADRÉN, Gabriel. Guerra, fronteira e liberdade: fuga de escravos e vivências<br />
de forros durante a campanha contra Artigas (Rio Grande de São Pedro,<br />
1811-1820). Caicó: Revista d Humanidades/UFRN, v. 9, n. 24, 2008.<br />
_______. Liberdades Negras nas Paragens do Sul: alforrias e inserção social<br />
de libertos em Porto Alegre, 1800-1835. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009.<br />
ARAÚJO, Thiago Leitão de. Escravidão, fronteira e liberdade: políticas de do-<br />
157
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
mínio, trabalho e luta em um contexto produtivo agropecuário (vila de Cruz<br />
Alta, província do Rio Grande do Sul, 1834-1884). Porto Alegre: PPGH/UFRGS,<br />
2008. (Dissertação de Mestrado)<br />
BAKOS, Margaret Marchiori. A Escravidão Negra e os Farroupilhas. In: PESA-<br />
VENTO, Sandra Jatahy [e outros] (org.). A Revolução Farroupilha: história e<br />
interpretação. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997.<br />
BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de<br />
Janeiro: Contracapa, 2000.<br />
BERUTE, Gabriel do Santos. Dos escravos que partem para os portos do sul:<br />
características do tráfico negreiro do Rio Grande de São Pedro do Sul, 1790-<br />
1825. Porto Alegre: PPGH/UFRGS, 2006. (Dissertação de Mestrado)<br />
BORUCKI, Alex; CHAGAS, Karla; STALLA Natalia. Esclavitud Y Trabajo: Un<br />
Estudio Sobre Los Afrodescendientes En La Frontera Uruguaya (1835-1855).<br />
Montevideo: Pulmón Ediciones, 2004.<br />
BORUCKI, Alex. Caminhos Cruzados: senhores e escravos da fronteira oeste<br />
do Rio Grande. CD-ROM [do] 4º Encontro “Escravidão e Liberdade no Brasil<br />
Meridional”: Curitiba, 2009.<br />
CARATTI, Jônatas Marques. Apreensão, Venda e Extradição: experiências de uma<br />
crioula oriental em terras sul-rio-grandenses (1842-1854). V Mostra de Pesquisa do<br />
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: CORAG, 2007.<br />
_______. Em busca da posse cativa: o Tratado de Devolução de Escravos<br />
entre a República Oriental do Uruguai e o império brasileiro a partir de uma<br />
relação nominal de escravos fugidos da Província de São Pedro do Rio Grande<br />
do Sul (1851). CD-ROM [do] 4º Encontro “Escravidão e Liberdade no Brasil<br />
Meridional”: Curitiba, 2009.<br />
_______. Alforrias e contratos de trabalho: escravos rio-grandenses em estâncias<br />
uruguaias (meados do século XIX). Revista Aedos (UFRGS), Porto Alegre, v. 2,<br />
n. 4, 2009.<br />
CARVALHO, Daniela Vallandro. “Nunca o inimigo havia visto as costas destes<br />
filhos da liberdade”: Experiências negras na guerra (Brasil Meridional, 1835-<br />
1845). CD-ROM [do] 4º Encontro “Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional”:<br />
Curitiba, 2009.<br />
CHAULOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas<br />
da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.<br />
CUNHA, Manoela Carneiro da. Sobre os silêncios da lei: lei costumeira e positiva<br />
nas alforrias de escravos no Brasil do século XIX. In: Antropologia do Brasil:<br />
mito, história, etnicidade. São Paulo: Brasiliense, 1986.<br />
158
ENGEMANN, Carlos. Da comunidade escrava e suas possibilidades, séculos XVII-<br />
XIX. In: MANOLO, Florentino (org.). Tráfico, cativeiro e liberdade: Rio de Janeiro,<br />
séculos XVii-XiX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.<br />
FARINATTI, Luis Augusto Ebling. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade<br />
agrária na Fronteira Sul do Brasil (1825-1865). Rio de Janeiro: PPGHIS/<br />
UFRJ, 2007. (Tese de Doutorado)<br />
FREGA, Ana. Caminos de libertad em tiempos de revolución: Los esclavos em la<br />
Província Oriental Artiguista, 1815-1820. Revista História UNiSiNOS, São Leopoldo,<br />
v. 4, n. 2, 2000.<br />
GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1991.<br />
GRINBERG, Keila. Alforria, direito e direitos no Brasil e nos Estados Unidos. Estudos<br />
Históricos, Rio de Janeiro, nº 27, 2001.<br />
_______. Escravidão, alforria e direito no Brasil oitocentista: reflexões sobre a lei<br />
de 1831 e o “princípio da liberdade” na fronteira sul do Império brasileiro. CARVA-<br />
LHO, José Murilo de (org.). In: Nação e cidadania no império: novos horizontes.<br />
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.<br />
_______. Escravidão e liberdade na fronteira entre o Império do Brasil e a República<br />
do Uruguai: notas de pesquisa. In: Cadernos do Centro de História e Documentação<br />
Diplomática. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2007.<br />
GUAZZELLI, César Augusto Barcellos. O Rio Grande de São Pedro na primeira<br />
metade do século XIX: estados-nações e regiões provinciais no Rio da Prata. In:<br />
Kühn, Fábio. et al (org). Capítulos de História do Rio Grande do Sul. Porto<br />
Alegre: UFRGS, 2004.<br />
_______. A República rio-grandense e o rio da prata: a questão dos escravos<br />
libertos. CD-ROM [do] 2º Encontro “Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional”:<br />
Porto Alegre, 2005.<br />
LACERDA, Antônio Henrique Duarte. Os padrões das alforrias em um município<br />
cafeeiro em expansão: Juiz de Fora, Zona da Mata de Minas Gerais,<br />
1844-1888. São Paulo: FABEP/Annablume, 2006.<br />
LEITMAN, Spencer. Raízes Sócio-Econômicas da Guerra dos Farrapos. Rio de<br />
Janeiro: Graal, 1979.<br />
_______. Negros Farrapos: hipocrisia racial no sul do Brasil no século XIX. In:<br />
PESAVENTO, Sandra Jatahy [e outros] (org.). A Revolução Farroupilha: história<br />
e interpretação. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997.<br />
LEVI, Giovanni. A Herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte<br />
do século XVii. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.<br />
159
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
LIMA, Rafael Peter de. Violência na Fronteira: o seqüestro de negros no Estado<br />
Oriental (século XiX). IV Mostra de Pesquisa do Arquivo Público do Estado<br />
do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: CORAG, 2006.<br />
MANOLO, Florentino. Morfologia da infância escrava: Rio de Janeiro, séculos XVII<br />
e XIX. In: MANOLO, Florentino (org.). Tráfico, cativeiro e liberdade: Rio de<br />
Janeiro, séculos XVii-XiX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.<br />
MATHEUS, Marcelo Santos. Alforrias em Alegrete (1832-1871). Santa Maria:<br />
TFG/UNIFRA, 2009. (Monografia de Conclusão de Graduação).<br />
MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Sobre Fronteira e Liberdade: Representações e<br />
práticas dos escravos gaúchos na Guerra do Paraguai (1864/1870). Revista Anos 90<br />
(PPGH-UFRGS), Porto Alegre, v. 6, n. 9, 1998.<br />
_______. Os cativos e os Homens de Bem: experiências negras no espaço<br />
urbano. Porto Alegre: EST, 2003.<br />
NEUMANN, Eduardo Santos. Uma fronteira tripartida: a formação do continente<br />
do Rio Grande – século XVIII. In: Kühn, Fábio. et al (org). Capítulos de História<br />
do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 2004.<br />
OLIVEIRA, Vinícius Pereira de. De Manoel Congo a Manoel de Paula. Porto<br />
Alegre: EST, 2006.<br />
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Farrapos, liberalismo e ideologia. In: DACANAL,<br />
José Hildebrando (org.). A Revolução Farroupilha: história e interpretação. Porto<br />
Alegre: Mercado Aberto, 1997.<br />
PETIZ, Silmei de S. Buscando a liberdade: As fugas de escravos para o alémfronteira<br />
de 1811 a 1850. Passo Fundo: UPF, 2006.<br />
SCHERER, Jovani de Souza. Experiências de busca da liberdade: alforria e<br />
comunidade africana em Rio Grande, século XiX. São Leopoldo: PPGH/UNI-<br />
SINOS, 2008. (Dissertação de Mestrado)<br />
SOUZA, Suzana Bleil de & PRADO, Fabrício Pereira. Brasileiros na fronteira uruguaia:<br />
economia e política no século XIX. In: Kühn, Fábio. et al (org). Capítulos de<br />
História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 2004.<br />
THOMPSON, Edward P. Senhores e caçadores: a origem da lei negra. São Paulo:<br />
Paz e Terra, 1997.<br />
_______. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.<br />
VASCONCELOS, Albertina Lima. Tráfico interno, liberdade e cotidiano de escravos<br />
no Rio Grande do Sul: 1800-1850. CD-ROM [do] 2º Encontro “Escravidão<br />
e Liberdade no Brasil Meridional”: Porto Alegre, 2005.<br />
ZUBARAN, Maria Angélica. Escravidão e liberdade nas fronteiras do Rio Grande<br />
do Sul (1860-1880): o caso da lei de 1831. Estudos ibero-Americanos, Porto Alegre,<br />
v. XXXII, n. 2, dezembro 2006.<br />
160
firMAndo (e AfrouxAndo) os lAços: CoMPAdrio,<br />
AlforriA e exPeCtAtivAs eM torno dA liberdAde – rio<br />
PArdo/rs, últiMAs déCAdAs dA esCrAvidão.<br />
Melina Kleinert Perussatto*<br />
Resumo: O compadrio era, sem dúvida, um laço ritual valorizado pelas famílias escravas, cujos<br />
desdobramentos frequentemente escapavam às projeções dos diferentes atores sociais envolvidos. Dessa<br />
maneira, propomos discutir diferentes expectativas em torno das relações de compadrio no processo<br />
da alforria nas últimas décadas da escravidão. Para tanto, utilizaremos dois casos ocorridos no município<br />
de Rio Pardo/RS que têm em comum a intervenção de padrinhos na consecução da liberdade de<br />
suas afilhadas, sendo um deles liberto condicional e outro membro da casa senhorial.<br />
Palavras-chave: família escrava – compadrio – alforria – liberdade – Rio Pardo.<br />
Em 30 de agosto de 1870 o liberto condicional Severino ofereceu em<br />
juízo o valor da avaliação de sua afilhada para que a mesma pudesse<br />
“gozar de todos os foros e privilégios de pessoa livre”¹. A pequena<br />
Lourença tinha somente dois anos quando foi inventariada por ocasião da morte<br />
de seu senhor, Lino Teixeira de Sá, em 1869². Assim como ela, outros três escravos<br />
adultos beneficiaram-se do que facultava o terceiro artigo de uma lei aprovada há<br />
menos de um ano da abertura do inventário, em 15 de setembro de 1869³. Entre os<br />
libertos estava Joaquina, de 50 anos de idade, avó de Lourença 4 . Lourença era filha<br />
natural de Bernarda e nasceu em dez de agosto de 1868. Foi batizada dois meses<br />
depois. Como padrinhos, os escravos Severino, de Dona Maria Esméria de Farias, e<br />
* Mestre em História pela Unisinos.<br />
¹ APERS. Rio Pardo/RS. 1º Tabelionato. Livro 16, p. 150v. Carta de alforria. Concessão: 30/08/1870. Registro:<br />
01/09/1870.<br />
² Lino Teixeira de Sá em 1869 possuía um monte mor pouco superior a 2:000$000 réis, constituído por nove escravos,<br />
parte de uma casa de moradia e de uma casa de atafona, além de nove animais vacuns e seis cavalares, e outros<br />
móveis e utensílios (APERS. Rio Pardo/RS. Vara da família. Inventários post-mortem. Número 726. Ano 1869).<br />
³ O referido artigo versava o seguinte: Art. 3º. Nos inventários em que não forem interessados como herdeiros<br />
ascendentes e descendentes, e ficarem salvos por outros bens ou direitos dos credores, poderá o juiz do inventário<br />
conceder cartas de liberdade aos escravos inventariados que exibirem à vista de suas avaliações judiciais (Decreto n.<br />
1695 de 15 de setembro de 1869).<br />
4 APERS. Rio Pardo/RS. 1º Tabelionato. Livro 16, p. 150r. Carta de alforria. Concessão e registro em 29/08/1870.<br />
161
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Cipriana, de Dona Ana Ubaldina de Faria Alencar 5 . Seu padrinho, apesar de identificado<br />
como escravo no assento de batismo, já possuía título de liberdade condicional<br />
há anos. Contudo, tratava-se de uma alforria condicionada à morte de sua senhora,<br />
que só se efetivou em 1873.<br />
Nesse mesmo ano, Severino registrou sua alf1orria em cartório 6 . O inventário<br />
dos bens de sua falecida senhora foi aberto somente em 1875 e apesar de Severino<br />
não constar mais entre os bens, constava na matrícula de 1872 e na classificação pela<br />
junta de emancipação em 1873. Interessante observar que no ano seguinte foi preterido<br />
da classificação por possuir carta de liberdade condicional, não sendo mais escravo<br />
aos olhos da junta. Ou seja, apesar de possuí-la há 13 anos somente foi levada<br />
em conta após o registro notarial, evidenciando as ambiguidades que caracterizavam<br />
os libertandos sob essa condição 7 . Na classificação em que foi preterido, Severino foi<br />
descrito como preto, crioulo, 48 anos, lavrador e campeiro. Gostaríamos de frisar<br />
que foi informado também que residia em uma chácara com sua esposa Joaquina, já<br />
liberta, sem filhos.<br />
O teor da carta de alforria, por sua vez, nos mostra que aos olhos de sua senhora<br />
Severino tinha uma boa conduta, sempre servindo com obediência “durante<br />
o tempo de seu cativeiro”. Por isso mereceria a liberdade após seu falecimento –<br />
caso assim continuasse servindo, pois “se por ventura degenerar, fica de nenhum<br />
efeito este benefício que lhe outorgo”. Severino pelo jeito havia conquistado alguns<br />
espaços de autonomia durante o tempo de seu cativeiro, pois morava em uma chácara na<br />
companhia de sua esposa, a liberta Joaquina, e havia amealhado pecúlio suficiente<br />
para libertar sua afilhada Lourença. Além disso, os laços espirituais estabelecidos<br />
com Bernarda podem ter feito parte de seus projetos. Aliás, em 1875 o filho ingênuo<br />
de Bernarda, Cláudio, foi amadrinhado por Joaquina – seria a esposa de Severino?<br />
Bernarda, comadre de Severino e talvez de Joaquina, por seu turno, era cozinheira<br />
e tinha 19 anos quando foi inventariada e partilhada aos herdeiros do senhor<br />
5 AHCMPA. Rio Pardo/RS. Livro de registros de batismos de escravos. 1860-1869.<br />
6 A carta foi concedida “em remuneração dos bons serviços e obediência com que se tem sempre prestado durante<br />
o tempo de seu cativeiro [...], com a condição porém de continuar a servir-me como até agora, e se por ventura<br />
degenerar, fica de nenhum efeito este benefício que lhe outorgo, por ser de minha livre vontade que, tendo ele<br />
merecido, chegue a gozar,pela sua boa conduta, que deve continuar a ser a mesma, para depois de meu falecimento<br />
gozar como e onde lhe convier, de sua plena liberdade”. A senhora pediu ao Tabelião Francisco de Paula Liz que a<br />
fizesse (APERS. Rio Pardo/RS. 2º Tabelionato. Livro 20, p. 104r. Concessão: 06/11/1860. Registro: 15/07/1873).<br />
7 Sobre as ambiguidades e os significados da liberdade ver especialmente: CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade:<br />
uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990; XAVIER, Regina.<br />
A conquista da liberdade: libertos em Campinas na segunda metade do século XIX. Campinas: UNICAMP, 1996;<br />
MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Os cativos e os homens de bem: experiências negras no espaço urbano: Porto Alegre<br />
1858-1888. Porto Alegre: EST, 2003.<br />
162
Lino Teixeira de Sá. A viúva Dona Guilhermina ficou com parte de Bernarda na<br />
partilha e por meio de seu inventário, aberto dez anos depois do falecimento do marido,<br />
descobrimos que Luiz, filho de Bernarda, nasceu após a partilha e foi dividido<br />
entre os herdeiros. Talvez para resolver esse impasse, decidiu-se por classificá-los em<br />
1877. Sem obter sucesso recorreram novamente ao auxílio governamental em 1883.<br />
Dessa vez apresentou-se “o cidadão Major Feliciano de Paula Ribas por parte da<br />
escrava Bernarda”. Dizia ser de propriedade de Antônio de Souza Oliveira – genro<br />
e inventariante dos bens do falecido Lino Teixeira de Sá –, “ser casada com o indivíduo<br />
liberto de nome Luiz José, ter 31 anos de idade e com cinco filhos, dos quais<br />
quatro livres 8 e um escravo”. Na reunião seguinte declarou à junta de classificação<br />
ter ainda uma filha liberta de nome Lourença. Exibiu a quantia de 175$000 réis que<br />
foi recolhida pelo mesário e depositada no cofre dos órfãos. Bernarda e Luiz foram<br />
libertos em segundo e terceiro lugares naquele ano, podendo, assim, viver com sua<br />
família em liberdade, já que os outros quatro filhos eram ingênuos – ou seja, nascidos<br />
de ventre livre após a lei promulgada em 28 de setembro de 1871 –, e Lourença<br />
já ter sido liberta pelo padrinho.<br />
A partir dessa família e suas relações pudemos perceber estratégias de liberdade<br />
e arranjos familiares de escravos que trabalhavam em Rio Pardo/RS. Lourença,<br />
a primeira filha de Bernarda, foi batizada como natural, da mesma maneira que três<br />
de seus cinco irmãos ingênuos. Interessante observar que os dois últimos filhos ingênuos<br />
batizados foram declarados como naturais em 1880 e 1882, ou seja, pouco<br />
tempo antes da classificação pela junta de emancipação em que Bernarda foi declarada<br />
como casada.<br />
Uma hipótese refere-se a um casamento arranjado com o objetivo de galgar<br />
posições na ordem de libertação, já que o regulamento de 1872 determinou a<br />
preferência de escravos casados na libertação pelo fundo de emancipação. Porém,<br />
acreditamos que se tratava de uma união consensual estável e duradoura reconhecida<br />
socialmente, portanto, sem a necessidade de passar pela legitimação eclesiástica. Por<br />
esse raciocínio, os filhos de Bernarda batizados como naturais ou com condição de<br />
nascimento não declarada provavelmente eram filhos com Luiz José. Essa hipótese<br />
é sustentada também pela regularidade do intervalo intergenésico, cuja diferença<br />
média era de 2,3 anos entre o nascimento dos filhos de Bernarda.<br />
8 Paulina, natural, batizada em 1874; Cláudio, batizado em 1875; Paulina, natural, batizada em 1880 e Damião, natural,<br />
batizado em 1882 (AHCMPA. Rio Pardo/RS. Livro de registro de batismos de libertos. 1871-1888). No registro<br />
encontramos também o batismo de Marieta em 1879 que não consta na ata da junta de emancipação, talvez por ter<br />
falecido antes da classificação de sua mãe e irmão.<br />
163
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Ainda podemos sustentar essa hipótese por meio dos dados obtidos junto<br />
ao levantamento dos registros de batismo de escravos e ingênuos da Paróquia de<br />
Nossa Senhora do Rosário do Rio Pardo. Essa fonte nos mostra que entre os anos<br />
de 1860 e 1888 a existência de filhos naturais de escravas era uma regra. Na tabela<br />
abaixo podemos verificar que nos registros de batismos de escravos (1860-69) o índice<br />
de legitimidade era de apenas 1,8% 9 . Se acrescentarmos os cinco casos em que<br />
foi informado o pai, mas não a condição do nascimento, assim como os dois casos<br />
em que consta o pai e a condição natural, esse percentual sobre para 2,5% 10 . Por não<br />
ser informada a legitimidade, podemos pressupor que se tratavam de relações consensuais<br />
reconhecidas naquela paróquia. Ao informar a condição natural e o nome<br />
do pai, os párocos estavam obedecendo às Constituições Primeiras do Arcebispado<br />
da Bahia, norma canônica que regia a feitura dos registros paroquiais. Era facultado<br />
informar o nome do pai, inclusive o da mãe: quando a relação não fosse sancionada<br />
pela Igreja, mas sabida e notória e livre de escândalos, o nome do pai poderia ser<br />
informado, caso contrário, somente constaria o nome da mãe, se esta declaração<br />
também fosse isenta de alvoroços. Nos registros de batismos de ingênuos (1871-<br />
1888), por sua vez, o índice de legitimidade era ainda menor: 1,2% 11 .<br />
Tabela 1: Condição do nascimento de escravos e ingênuos – Rio Pardo/RS,<br />
1860-1888.<br />
Fonte: AHCMPA. Paróquia de Rio Pardo. Livro de registros de batismos de escravos (1860-1869) e<br />
Livro de registros de batismo de ingênuos (1871-1888).<br />
9 De acordo com Sílvia Brügger: “Os registros paroquiais de batismos, ao informarem a legitimidade dos batizandos,<br />
constituem-se em fonte importante para a análise do comportamento conjugal de seus pais. A existência de<br />
longas séries de registros permite analisar a dinâmica de tal comportamento, constatando suas alterações ao longo<br />
do tempo”. BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Minas patriarcal: família e sociedade (São João Del Rei – séculos XVIII<br />
e XIX). São Paulo: Annablume, 2007, p. 72.<br />
10 Desses 21 casais, 15 eram formados por escravos, dois entre escravas e condição do cônjuge não informada, um<br />
em que não foi informada a condição de nenhum dos cônjuges e, por fim, um formado por forra com escravo. Acreditamos<br />
que a libertação da última tenha se dado após o nascimento do filho, batizado com nove meses de idade.<br />
11 Dentre os 14 casais legítimos, sete eram formados por escravos, dois por escrava e cônjuge sem a condição informada<br />
e dois em que nenhuma das condições foi informada. Ainda encontramos outros três casais: dois indicados<br />
com naturais e um não informado, todos os três com mãe escrava e pai incógnito.<br />
12 Trata-se do ingênuo Manoel, filho ilegítimo de Belisária, escrava de Urbano Correa de Oliveira. Foram padrinhos<br />
os escravos do mesmo senhor Marciano e Corina. O batismo aconteceu em 27/11/1875 durante uma visita pastoral<br />
(AHCMPA. Rio Pardo/RS. Livro de registro de batismos de libertos. 1871-1888).<br />
164
Outras fontes como o Recenseamento de 1872, a amostra da matrícula de<br />
1872 e os registros de casamentos confirmam o predomínio de famílias matrifocais<br />
e ilegítimas. Entre as possíveis explicações estão a estrutura de posse e a demografia<br />
escrava observada junto aos inventários post-mortem produzidos pela Vara da Família<br />
(antigo Cartório dos órfãos e Ausentes) e pelo Cartório do Cível e Crime de Rio<br />
Pardo entre os anos de 1860 e 1887. Ao todo identificamos 408 inventários, dentre<br />
os quais havia 287 proprietários de escravos. Deste último universo, observamos a<br />
predominância de pequenos proprietários de escravos (posses de 1 a 9) que se mantiveram<br />
ao longo das três décadas de nosso estudo. Essa característica, de acordo com<br />
Robert Slenes, diminuiria a oferta de parceiros afetivos dentro de uma escravaria,<br />
reduzindo, assim, as chances de se estabelecer casamentos sancionados pela Igreja,<br />
pois concorria com os projetos familiares dos escravos a proibição por parte dos<br />
senhores de uniões formais entre escravos de diferentes proprietários 13 . Entretanto,<br />
isso não significa, sobremaneira, a impossibilidade de formação de laços familiares<br />
nas pequenas escravarias ou para além delas, afinal, “as cercas’ entre as fazendas<br />
deixavam brechas pelas quais os escravos podiam manter e estender suas redes de<br />
amizade e parentesco” 14 .<br />
No estudo de Slenes para Campinas, as pequenas posses caracterizavam-se<br />
justamente pela presença de mães solteiras com filhos naturais, enquanto as médias e<br />
grandes pela presença de famílias nucleares. Dentre as médias e grandes, Slenes percebeu<br />
que mesmo as mães solteiras não tardariam a encontrar um parceiro disposto<br />
a reconhecer seus filhos naturais como legítimos perante a Igreja, parceiros que provavelmente<br />
eram o próprio progenitor 15 . Por seu turno, o fato das mães pertencentes<br />
às pequenas escravarias se manterem solteiras, não opera como ausência de parceiro<br />
afetivo ou de uniões estáveis e duradouras. Indica, provavelmente, o sub-registro de<br />
tais relações nas fontes compulsadas. Lembrando que, no momento da morte de seu<br />
senhor, este possuía nove cativos, ou seja, era um pequeno proprietário, estrutura de<br />
posse caracterizada pelo predomínio de famílias matrifocais.<br />
Nesse sentido, enquanto a documentação paroquial aqui utilizada nos ajuda<br />
a pensar proficuamente na demografia das famílias negras 16 , uma pesquisa qualitativa<br />
13 SLENES, Robert. Na Senzala, uma Flor: esperanças e recordações na formação da família escrava – Brasil, Sudeste,<br />
século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 75-76.<br />
14 ROCHA, Cristiany Miranda. Histórias de famílias escravas: Campinas, século XIX. Campinas: Editora da Unicamp,<br />
2004, p. 128.<br />
15 SLENES, Na Senzala, uma Flor... Op. Cit., p. 103.<br />
16 Utilizamos famílias negras por essa expressão dar conta da diversidade de condições existentes em tais famílias,<br />
compostas por escravos, libertos, libertandos, livres e ingênuos, sobretudo nas últimas décadas da escravidão. REIS,<br />
Isabel Cristina dos. A família negra nos tempos da escravidão: Bahia, 1850-1888. Tese de Doutorado. IFCH/UNICAMP,<br />
2007.<br />
165
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
junto aos processos criminais e às perfilações nos auxiliarão futuramente a desvendar<br />
as relações consensuais estabelecidas por essas e outras mulheres. Com isso<br />
queremos dizer que as relações afetivas não se reduziam àquelas sancionadas pela<br />
Igreja, tanto entre escravos como entre livres17 . No repertório dessas mães solteiras<br />
estavam, sem dúvida, as relações consensuais e de compadrio. Sob esse aspecto, podemos<br />
pensar o caso de Bernarda que buscou firmar laços de compadrio com um escravo<br />
de boa conduta e que já possuía liberdade condicionada antes de sancionar sua<br />
relação com o liberto Luiz José. Certamente não se arrependeu dessa escolha que lhe<br />
rendeu a libertação da filha. Sobre Bernarda devemos lembrar que no momento da<br />
morte de seu senhor, o mesmo possuía nove cativos, ou seja, era um pequeno proprietário<br />
– estrutura de posse caracterizada pelo predomínio de famílias matrifocais.<br />
Letícia Guterres em seu estudo sobre família escrava em Santa Maria (1844-<br />
1882) nos ajuda a pensar na importância do compadrio em um contexto de ampliação<br />
da ilegitimidade, movimento que também observamos para Rio Pardo na<br />
segunda metade doa oitocentos18 .<br />
[...] os dados referentes à ampliação da ilegitimidade podem estar associados<br />
a um movimento do compadrio, envolvendo escravos, principalmente<br />
após 1850. Em um quadro de diminuição de casamentos,<br />
em contrapartida, da existência de uniões que não passavam pela<br />
Igreja, as cerimônias de batismo eram momentos em que as famílias<br />
poderiam contrair laços de compadrio com compadres e comadres<br />
também cativos ou livres, ampliando os vínculos e laços para além<br />
dos limites da consanguinidade e das condições sociais semelhantes19 .<br />
Ainda sobre o predomínio da ilegitimidade devemos levar em conta as características<br />
demográficas das escravarias. Luiz Mott20 para a Bahia, por exemplo,<br />
percebeu que a legitimidade reduzia em locais e épocas onde havia um equilíbrio<br />
entre os sexos, realidade análoga a que encontramos no levantamento de diferentes<br />
fontes (inventários post-mortem, matrículas de escravos, recenseamento) relativas à<br />
Rio Pardo. Ainda devemos considerar que na análise dos inventários ficou patente a<br />
constante renovação das escravarias que se mantiveram jovens, com expressiva po-<br />
17 VASCONCELLOS, Márcia Cristina. Casar ou não casar, eis a questão. Os casais e as mães solteiras escravas no<br />
litoral sul-fluminense. 1831-1850. Estudos Afro-Asiáticos, Ano 24, n. 2, 2002. pp. 291-316.<br />
18 Silmei Petiz em estudo que compreendeu os anos de 1755 e 1835 em Rio Pardo observou um índice de legitimidade<br />
entre os batismos de escravos de 30,9% no período compreendido entre 1755 e 1809. Porém, o período posterior<br />
(1810-1835) já registrou uma redução significativa de 9,4% no índice de legitimidade que em nosso período<br />
de estudo fica abaixo dos 2%.<br />
19 GUTERRES, Letícia. Para além das fontes: im/possibilidades de laços familiares entre livres, libertos e escravos<br />
(Santa Maria – 1844-1882). Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: PPGH/PUCRS, 2004, p. 111.<br />
20 MOTT, Luís. As alternativas eróticas dos africanos e seus descendentes no Brasil escravista. LPH: Revista de História,<br />
v. 3, n. 1, 1992, p. 176-214.<br />
166
pulação adulta e infantil, sugerindo, pois, a importância da reprodução endógena da<br />
força o trabalho pelo menos ao longo do período que estudamos. Essas variáveis demográficas,<br />
sem dúvida, ampliavam as possibilidades de escolha do parceiro afetivo<br />
devido as redução da competitividade observada em regiões onde havia diferenças<br />
expressivas na razão de sexo 21 . Além disso, os dados sugerem uma pequena perda de<br />
escravos para o tráfico interno, já que esse comércio preferia homens e jovens. Caso<br />
contrário, teríamos encontrado uma população com desequilíbrio de sexo e envelhecida.<br />
Em suma, se o Rio Grande do Sul perdeu escravos para o tráfico interno<br />
dificilmente esse contingente foi deslocado de Rio Pardo.<br />
Retornando ao laço de compadrio firmado entre Bernarda e Severino, embora<br />
feita entre sujeitos com condições jurídicas semelhantes, não podemos desconsiderar<br />
o fato de Severino já possuir uma carta de liberdade condicional e residir com<br />
sua mulher em uma chácara. Em outras palavras, Severino já havia conquistado uma<br />
relativa autonomia em seu cativeiro, o que sem dúvida ampliava seu prestigio junto<br />
à comunidade escrava e ampliava suas chances de ajudar seus parceiros. Quanto à<br />
escolha dos padrinhos, as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia permitiam<br />
a indicação de somente um padrinho e uma madrinha, não sendo permitidos dois<br />
padrinhos ou duas madrinhas. Percebemos que praticamente todos os escravos ou<br />
ingênuos batizados tinham ambas as indicações. Sendo assim, apesar de não sancionarem<br />
sua relação afetiva perante a Igreja, não se furtavam em normatizar o compadrio,<br />
o que demonstra a importância de tais laços rituais.<br />
Tabela 2: Condição dos padrinhos e madrinhas de escravos e ingênuos – Rio<br />
Pardo/RS, 1860-1888.<br />
Fonte: AHCMPA. Paróquia de Rio Pardo. Livro de registros de batismos de escravos (1860-1869) e<br />
Livro de registros de batismo de ingênuos (1871-1888).<br />
21 SLENES, Na Senzala, uma Flor... Op. Cit.; MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no<br />
sudeste escravista. Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.<br />
167
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Na tabela acima fica notório a preferência por livres tanto nos batismos de<br />
escravos, como nos de ingênuos – tendência contrária à escolha de Bernarda. Eram<br />
entre os ingênuos que esse percentual tornava-se mais significativo – mais de 65%<br />
dos padrinhos e praticamente 60% das madrinhas de ingênuos eram livres. Essa<br />
constatação confirma a tendência observada por Schwartz de que a condição dos<br />
padrinhos e madrinhas escolhidos geralmente era igual ou superior à do afilhado e<br />
quase nunca inferior 22 . Ou seja, se os filhos de mulheres escravas a partir da lei de<br />
1871 nasceriam livres nada mais compreensível do que pessoas da mesma condição<br />
serem eleitos como padrinhos e madrinhas. Sílvia Brügger chamou essa relação de<br />
parentesco como uma aliança para cima 23 .<br />
Por outro lado, nos chamou atenção o movimento contrário: a significativa<br />
participação de escravos apadrinhando filhos livres de mulheres escravas, cerca de<br />
20%. Muitos deles eram parceiros de escravaria das mães dos batizandos, mas isso<br />
não nos pareceu ser uma regra, o que exige apreender sob que medida os senhores<br />
influenciavam em tais escolhas, assim como o peso das tradições africanas e dos<br />
cálculos existentes na comunidade escrava – aqueles que nem os senhores e nem os<br />
historiadores foram capaz de apreender 24 – se faziam sentir. Sherol Santos nos ajuda<br />
a pensar em tais escolhas ao dizer que a hipótese de que eram os escravos – e não<br />
os senhores, como sugeriu Brügger – que escolhiam os padrinhos parecia mais provável.<br />
Afinal, “ao indicar um padrinho pertencente, e por consequência, morador,<br />
a outra propriedade o senhor estava de certa forma estimulando a circulação desse<br />
sujeito entre as propriedades, dando-lhes razões para tal” 25 . Ao estabelecerem laços<br />
horizontais de compadrio os escravos, talvez, estivessem primando por ampliar e<br />
reforçar laços de solidariedade entre os seus. Esse nos pareceu ser o caso de Severino<br />
que não só apadrinhou como indenizou a liberdade de uma escrava pertencente a<br />
22 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Companhia<br />
das Letras, 1988.<br />
23 Sílvia Brügger sugere a necessidade de olhar com mais cuidado essas alianças para cima. Patentes militares, cargos<br />
políticos ou clérigos são indicativos do prestígio social do padrinho ou da madrinha. Contudo, a simples condição de<br />
livre poderia representar para mãe escravas uma aliança para cima. Além disso, problematizou a influência dos índices<br />
de legitimidade em tais escolhas e até que ponto pais ou mães solteiras adotavam os mesmos critérios dos casais<br />
legítimos. BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Minas patriarcal.... Op. Cit., p. 287-288.<br />
24 Slenes sugere que os senhores “eram estranhos ao mundo mais íntimo de seus cativos, e estes, por sua vez, não se<br />
interessavam em abrir-lhes ‘janelas’ para as senzalas”. SLENES, Na Senzala, uma Flor... Op. Cit. p. 207.<br />
25 Santos nos lembra que as próprias constituições primeiras que regiam tal prática designavam que os padrinhos<br />
seriam “nomeados pelo pai, ou mãe, ou pessoa, a cujo cargo estiver a criança; e sendo adulto, os que ele escolher”.<br />
Schwartz (1988) em seu estudo observou que o número de padrinhos escravos pertencentes ao mesmo senhor<br />
do batizando, se equilibrava com a participação de escravos de diferentes propriedades. SANTOS, Sherol. Apesar<br />
do Cativeiro: Família escrava em Santo Antônio da Patrulha (1773-1824). Dissertação de Mestrado. São Leopoldo:<br />
PPGH/UNISINOS, 2009, p. 154-155.<br />
168
uma escravaria diferente da sua. Consoante a Brügger podemos supor que a “escolha<br />
dos padrinhos pelos cativos aparecia, assim, como fundamental a suas pretensões<br />
de alianças sociais no cativeiro” 26 .<br />
De todo modo, nosso objetivo consiste em deslindar o compadrio na dinâmica<br />
da alforria e para isso torna-se pertinente pensar também nas alianças para cima<br />
que, conforme a tabela, eram bastante valorizadas 27 . Se um padrinho escravo poderia<br />
ser “útil no cotidiano, como apoio nas rotinas diárias e no suporte emocional necessário<br />
ao viver escravo”, não podemos perder de vista, conforme nos lembra Santos,<br />
que “numa sociedade extremamente hierarquizada, um padrinho com condição jurídica<br />
igual ao do senhor poderia a ele, ao menos, encaminhar a demanda” 28 . Porém,<br />
firmar laços com pessoas livres nem sempre contemplava as expectativas sobre o<br />
ato, exemplo disso é o caso envolvendo a escrava Etelvina e seu padrinho que era<br />
membro da casa senhorial. Apesar de Etelvina contar com a ajuda do padrinho para<br />
libertar-se, sua sorte em liberdade não correspondeu as suas perspectivas.<br />
Aos 19 de novembro de 1865 Antônio da Rocha Quebrada e Maria Emília<br />
Ribeiro apadrinharam a pequena Etelvina, nascida em oito de dezembro de 1864.<br />
Era filha natural de Silvéria, escrava de Joaquim Correa, sogro de Rocha Quebrada 29 .<br />
A escravaria de Joaquim Correa era composta por oito cativos aparentados, mostrando<br />
novamente a importância da reprodução endógena. Silvéria, mãe de Etelvina,<br />
manumitiu-se pelo fundo de emancipação no ano de 1875. A indenização cobriu<br />
600$000 réis, no qual estava incluído o pecúlio de 100$000 réis. Sua filha Antônia<br />
teve sua liberdade indenizada durante o inventário. Nos anos subsequentes – 1876<br />
26 BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Minas patriarcal.... Op. Cit., p. 291. Ver também: CUNHA, Maísa Faleiros da.<br />
Demografia e família escrava: Franca/SP, século XIX. Tese de Doutorado. Campinas: IFCH/UNICAMP, 2009; FREI-<br />
RE, Jonis. Escravidão e famílias escrava na Zona da Mata Mineira oitocentista. Tese de Doutorado. Campinas: IFCH/<br />
UNICAMP, 2009.<br />
27 Nesse mesmo aspecto, Florentino & Góes sugerem que “à medida que as gerações de uma família se sucediam<br />
– isto é, à medida que ela se sedimentava no tempo –, a busca de solidariedade e proteção por intermédio do compadrio<br />
tendia a se expressar em direção a alianças com pessoas de estatuto jurídico superior”. FLORENTINO,<br />
Manolo & GóES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790 – c.<br />
1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997, p. 87.<br />
28 SANTOS, Sherol. Apesar do Cativeiro..., p. 162.<br />
29 O monte-mor de Joaquim Correa, dono das escravas e sogro de Rocha Quebrada, somava quase sete contos no<br />
momento da abertura de seu inventário em 1872. Como principal bem de raiz uma casa na rua Barão do Triunfo,<br />
mobilhada com móveis de madeira nobre e prataria, e um terreno na rua da Imperatriz. Além disso, arrolou-se uma<br />
extensa lista de dívidas ativas e passivas e sua principal fortuna acreditamos que provinha dos oito escravos que<br />
possuía. A cozinheira Silvéria de 40 anos, avaliada em 600$000 réis, era mãe de cinco cativos listados entre os bens<br />
inventariados: Maria, 20 anos (800$000 réis); Carlos, pedreiro de 17 anos (1:000$000 réis); Paulino, sapateiro, de 14<br />
anos (800$000 réis); Etelvina, seis anos (400$000 réis); e Antônia de três anos (200$000 réis). Ainda havia outros<br />
dois cativos arrolados: o pedreiro Florêncio de 41 anos (800$000 réis) e Zeferina, 17 anos (700$000 réis) (AHCMPA.<br />
Rio Pardo/RS. Livro de registro de batismos de escravos. Livro 1857-1879. Ano 1865, página 125v).<br />
169
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
e 1877 – foram classificados seus filhos Paulino e Etelvina. Dos quase 700 escravos<br />
classificados em 1877, somente três foram libertos, dentre os quais estavam a pequena<br />
Etelvina, de serviços domésticos.<br />
Nos esclarecimentos prestados à junta, seu padrinho Antônio da Rocha Quebrada<br />
declarou que no inventário do falecido senhor de sua afilhada, Joaquim Correa,<br />
Etelvina foi avaliada em 400$000 réis “para pagamento dos credores da mesma<br />
herança”. Rocha Quebrada na condição de “genro do finado e credor privilegiado da<br />
mesma herança fazia desistência de 58$940 réis que lhe coube na mesma, em favor<br />
da liberdade” da afilhada. No ano anterior, constava na documentação a garantia da<br />
doação feita por ele do mesmo valor com o mesmo fim. Além disso, Rocha Quebrada<br />
apresentou em 1877 uma subscrição de 116$000 réis que arrecadou para a<br />
liberdade da menor 30 .<br />
Ora, havia escravos casados na classificação daquele ano, mas estranhamente<br />
não foram contemplados – em primeiro e segundo lugar foram libertas duas mulheres<br />
como filhos menores escravos e livres. Uma circular datada de 1883 e relatos de<br />
outros historiadores 31 demonstram muitas fraudes na distribuição das cotas do fundo,<br />
pois ao se privilegiar um indivíduo – caso de Etelvina – em detrimento de um classificado<br />
que se enquadrava no critério família fica patente a burla às determinações<br />
legais. Ao olharmos de maneira ampla os classificados e os senhores que buscavam<br />
esse recurso nos parece que o fundo servia também para resolver pendências oriundas<br />
de partilhas ou dívidas. Afinal, com tal indenização ficaria mais fácil o rateio do<br />
produto entre os credores ou herdeiros, do que partilhar a posse de um escravo – o<br />
que nos pareceu ser o caso de Etelvina, que foi dividida entre os credores da herança.<br />
Com a indenização pelo fundo Etelvina alcançou a liberdade, mas também foi<br />
possível quitar as dívidas deixadas por seu falecido senhor.<br />
Mas a história de Etelvina e de seu padrinho não se encerra por aí. Certamente<br />
Rocha Quebrada ficou duplamente satisfeito: se por um lado, mesmo que<br />
parcialmente, teve sua dívida ressarcida, por outro, e talvez mais importante, garantiu<br />
a gratidão da afilhada e de sua comadre. Porém suas expectativas foram frustradas<br />
diante dos planos de sua afilhada.<br />
30 AHMRP. Livro de listas de classificação de escravos para a libertação pelo fundo de emancipação de Rio Pardo/<br />
RS, 1876 e 1877.<br />
31 Ver: CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil, 1850-1888. 1. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,<br />
1975.<br />
170
Silvéria, e talvez as filhas libertas, residia na casa de seu amásio Antônio dos<br />
Santos Cardoso Menezes 32 . Etelvina, pouco tempo depois de ter alcançado a liberdade,<br />
aproveitou um momento de distração de seu padrinho, com quem passou a<br />
residir, e fugiu em direção a casa onde residia sua mãe. Sem titubear, Rocha Quebrada<br />
procurou trazê-la novamente junto de sua companhia. Porém, Antônio Menezes<br />
(seria pai de Etevina?) não permitiu que a mesma fosse levada de sua casa. Ora, após<br />
obter sua liberdade, acreditamos que a menina quisesse viver junto com sua mãe e<br />
irmãs libertas. Possivelmente manifestou em algum momento esse desejo e fracassadas<br />
as negociações com seu padrinho, a estratégia que lhe pareceu viável foi a fuga.<br />
Sem dar o braço a torcer, Rocha Quebrada exigiu que o Juiz de órfãos lhe<br />
passasse a tutoria da afilhada. Na solicitação argumentava que depois de ter se esforçado<br />
para libertá-la, “sem seu consentimento”, a “mulatinha” foi para a casa de Antônio<br />
dos Santos Cardoso Menezes que vivia com a mãe de Etelvina. Segundo ele,<br />
com essa companhia não poderia sua afilhada “ter conveniente educação e mesmo<br />
exemplos de honestidade”. Portanto, “para evitar mal maior no interesse” da protegida,<br />
solicitou que fosse nomeado seu tutor e que se passasse “mandado de entrega<br />
da referida menor, visto como amigavelmente recusa-se fazê-lo o indivíduo em casa<br />
de quem a mesma se acha assentada”. A tutoria foi concedida logo em seguida e no<br />
juramento Rocha Quebrada comprometeu-se em doutriná-la, vesti-la, alimentá-la,<br />
educá-la, tudo as suas custas, pois a menor não possuía bens e sua mãe natural não<br />
possuía “qualidades para ser-lhe conferido o precioso encargo de Tutoria no estado<br />
de mancebia em que atualmente se acha” 33 .<br />
Acionar a tutela sob o argumento da improbidade materna 34 em zelar por<br />
Etelvina foi um expediente acionado por Rocha Quebrada, sem dúvida, com motivações<br />
que transcendiam o apresso pela afilhada. Por conseguinte, a fuga de Etelvina<br />
32 Sílvia Arend a partir de Moreira sugere que o amasiamento caracterizava-se pelo encontro regular; pela “existência<br />
de responsabilidades mútuas entre o homem e a mulher”, e pelo caráter público da relação. “Para os populares, estar<br />
amasiado era considerado um estado próprio de sua cultura, equivalente a um estado civil da ordem jurídica”. Paulo<br />
Moreira já havia sugerido a importância das mulheres populares na conformação de tais relações. Partindo de alguns<br />
casos, constata que elas tinham fundamental importância na escolha de seus parceiros. AREND, Sílvia. Amasiar ou<br />
casar? A família popular no final do século XIX. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2001, p 61; MOREIRA, Paulo<br />
Roberto Staudt. Entre o deboche a rapina: os cenários sociais da criminalidade popular em Porto Alegre. Porto<br />
Alegre: Armazém Digital, 2009, p. 163-185.<br />
33 AHMRP. Documentação Avulsa. Pedido de Tutoria de Etelvina, 1878.<br />
34 A atuação do Juízo dos órfãos, nessa acepção, acaba por atingir as relações sociais e familiares. Na maioria dos<br />
casos era vetada a tutela feminina, com exceção das mães e avós, sobretudo entre os ricos e livres, “pois acreditavase<br />
que as mesmas não possuíam capacidade necessária para um ato de tamanha importância”. Zero constatou que<br />
várias “mães que buscaram na justiça reaver os seus filhos não conseguiram principalmente por serem consideradas<br />
inaptas para executarem a função de tutoras”. ZERO, Arethuza. O preço da liberdade: caminhos da infância tutelada –<br />
Rio Claro (1871-1888). Dissertação de Mestrado. Campinas: UNICAMP, 2004, p. 91.<br />
171
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
da casa de seu padrinho, ultrapassava a rebeldia ou o afronte. Foi, antes de tudo,<br />
o desejo de conviver com sua família e romper com o domínio de seu padrinho.<br />
Percebe-se aí, claramente, um confronto entre diferentes expectativas em relação à<br />
instituição do compadrio. Se a escolha de um livre e membro da família senhorial<br />
para compadre significou para Silvéria uma possibilidade de ganhos que iam desde<br />
a proteção até a liberdade, passando pela ampliação dos recursos materiais, para o<br />
escolhido – nesse caso, Rocha Quebrada – tornava-se uma oportunidade de ampliar<br />
suas redes de dependência e controle. Porém, entrou em conflito com os interesses<br />
de Rocha Quebrada os projetos de Etelvina e Silvéria. Podemos seguramente dizer<br />
que o “despretensioso” auxílio na libertação da afilhada escondeu o interesse em<br />
trazê-la para seu poder, já que a menina seria possivelmente vendida judicialmente<br />
por ter sido separada na partilha dos bens inventariados para o pagamento dos credores.<br />
Cristiany Rocha argumenta que o parentesco estabelecido entre escravos e<br />
membros da família senhorial<br />
[...] pode ser visto como ponto culminante de uma estratégia que<br />
congregava interesses de dominantes e dominados. Afinal, tal relação<br />
enredava o cativo na malha da política de controle paternalista tecida<br />
pelo senhor, mas, em contrapartida, também fornecia ao escravo<br />
meios para proteger e estender seus laços familiares35 .<br />
A alforria de Etelvina deixa entrever, ainda, a precariedade que marcava a mudança<br />
de condição jurídica – mudança que não significava o rompimento dos laços<br />
de dependência que caracterizavam o escravismo36 . Com a liberdade, na maioria das<br />
vezes, essa relação não se rompia por completo e acabava por estruturar a própria<br />
ideia do que era viver em liberdade, menos associada à autonomia e o direito de ir<br />
e vir, e mais com à “segurança na dependência, ou com menor precariedade na dependência”<br />
37 .<br />
172<br />
***<br />
O estabelecimento de parentesco espiritual por meio da escolha dos compadres<br />
e comadres estava, sem dúvida, relacionado aos projetos de alforria e de vida em<br />
liberdade que extrapolavam frequentemente as políticas senhoriais. Os dois casos<br />
35 ROCHA, Cristiany Miranda. Histórias de famílias escravas..., p. 137-138.<br />
36 De acordo com Chalhoub, a dependência era a ideologia que atravessava as relações entre desiguais na sociedade<br />
escravista, sendo que o escravo estava na condição de mais dependente, dentre todos os outros. CHALHOUB,<br />
Sidney. Machado de Assis, historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.<br />
37 CHALHOUB, Sidney. Entrevista. Aedos. vol. 1. ano 1, 2008.
aqui apresentados – de um compadrio entre uma escrava com um liberto condicional<br />
e outro entre uma escrava com um livre – configuram, nesse sentido, estratégias<br />
diferenciadas, cujos resultados apesar de serem, a priori, desconhecidos, eram, ao<br />
menos, projetados 38 . Se no primeiro caso a indenização da liberdade pelo padrinho<br />
liberto condicional sugere laços de solidariedade no interior da comunidade escrava,<br />
o segundo evidencia as intenções do padrinho em sujeitar a afilhada ao seu domínio<br />
após ajudá-la filantropicamente na libertação. Porém, os significados conferidos à<br />
liberdade por Etelvina e Silvéria antes de reafirmar os laços de dependência, operavam<br />
no sentido de afrouxá-los, enquanto Bernarda e Lourença, provavelmente, em<br />
liberdade fortaleceram ainda mais os laços de parentesco ritual com Severino. As<br />
estratégias dos compadres e afilhados aqui apresentados, portanto, se aproximavam por<br />
congregarem interesses que traziam muitos ganhos, mas também algumas perdas<br />
que extrapolavam os cálculos prévios.<br />
38 Henrique Espada Lima ao se reportar ao pensamento de Giovanni Levi converge para essa assertiva ao dizer<br />
que a ação do sujeito “depende da interação com ações alheias” e que por isso “o controle sobre o seu resultado é<br />
limitado por um horizonte de constante incerteza”. LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escalas, indícios,<br />
singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 262.<br />
173
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
174<br />
FONTES<br />
Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre – AHCMPA.<br />
- Paróquia de Nossa Senhora do Rosário de Rio Pardo. Livro de Batismos de libertos<br />
39 . 1871-1888.<br />
- Paróquia de Nossa Senhora do Rosário de Rio Pardo. Livro de Batismos de escravos.<br />
1860-1869.<br />
Arquivo Histórico Municipal de Rio Pardo – AHMRP.<br />
- Documentação Avulsa. Pedido de Tutoria de Etelvina, 1878.<br />
- Livro de atas da junta de emancipação de escravos de Rio Pardo/RS, 1876 e 1877.<br />
- Livro de listas de classificação de escravos para a libertação pelo fundo de emancipação<br />
– Rio Pardo/RS, 1876 e 1877.<br />
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul – APERS.<br />
- Inventários post-mortem. Vara da Família (antigo Cartório dos órfãos), 1860-1886.<br />
- Inventários post-mortem. Cartório do Cível e Crime, 1861-1887.<br />
- Cópias das listas de matrícula de escravos de 1872 anexas aos inventários, 1869-1887.<br />
- Registros notariais de alforrias selecionados: Rio Pardo/RS. 1º Tabelionato. Livro<br />
16, p. 150v. Concessão: 30/08/1870. Registro: 01/09/1870; Rio Pardo/RS. 1º Tabelionato.<br />
Livro 16, p. 150r. Concessão e registro em 29/08/1870; Rio Pardo/RS. 2º<br />
Tabelionato. Livro 20, p. 104r. Concessão: 06/11/1860. Registro: 15/07/1873. In:<br />
RIO GRANDE DO SUL. Secretaria da Administração e dos Recursos Humanos.<br />
Departamento de Arquivo Público. Documentos da escravidão: catálogo seletivo de cartas<br />
de liberdade acervo dos tabelionatos do interior do Rio Grande do Sul. Porto<br />
Alegre: CORAG, 2006. Vol. 2. p. 741-864.<br />
39 A referência correta, nesse caso, seria ingênuos ou filhos livres de mulheres escravas, pois não se tratavam de<br />
libertos. Porém, mantivemos a designação presente na catalogação.
LEGISLAçõES CITADAS 40<br />
- Lei n. 1695, de 15 de setembro de 1869. Proíbe as vendas de escravos debaixo de<br />
pregão e em exposição pública.<br />
- Lei n. 2040, de 28 de Setembro de 1871. Declara de condição livre os filhos de<br />
mulher escrava que nascerem desde a data desta lei, libertos os escravos da Nação<br />
e outros, e providencia a criação e tratamento daqueles filhos menores e sobre a<br />
libertação anual de escravos.<br />
- Decreto n. 5135, de 13 de Novembro de 1872. Aprova o regulamento geral para a<br />
execução da lei n. 2040 de 28 de setembro de 1871.<br />
REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
AREND, Sílvia. Amasiar ou casar? A família popular no final do século XIX. Porto<br />
Alegre: Editora da UFRGS, 2001.<br />
BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Minas patriarcal: família e sociedade (São João Del<br />
Rei – séculos XVIII e XIX). São Paulo: Annablume, 2007.<br />
CHALHOUB, Sidney. Entrevista. Aedos. vol. 1. ano 1, 2008.<br />
______. Machado de Assis, historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.<br />
______. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte.<br />
São Paulo: Companhia das Letras, 1990.<br />
CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil, 1850-1888. 1. Ed. Rio de<br />
Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.<br />
CUNHA, Maísa Faleiros da. Demografia e família escrava: Franca/SP, século XIX. Tese<br />
de Doutorado. Campinas: IFCH/UNICAMP, 2009.<br />
FLORENTINO, Manolo & GóES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas<br />
e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790 – c. 1850. Rio de Janeiro: Civilização<br />
Brasileira, 1997.<br />
FREIRE, Jonis. Escravidão e famílias escrava na Zona da Mata Mineira oitocentista. Tese de<br />
Doutorado. Campinas: IFCH/UNICAMP, 2009.<br />
GUTERRES, Letícia. Para além das fontes: im/possibilidades de laços familiares entre<br />
livres, libertos e escravos (Santa Maria – 1844-1882). Dissertação de Mestrado. Porto<br />
Alegre: PPGH/PUCRS, 2004.<br />
40 Disponíveis em: http://www2.camara.gov.br/legislacao/publicacoes/doimperio<br />
175
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escalas, indícios, singularidades. Rio<br />
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.<br />
MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista.<br />
Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.<br />
MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Entre o deboche a rapina: os cenários sociais da<br />
criminalidade popular em Porto Alegre. Porto Alegre: Armazém Digital, 2009.<br />
______. Os cativos e os homens de bem: experiências negras no espaço urbano: Porto<br />
Alegre 1858-1888. Porto Alegre: EST, 2003.<br />
MOTT, Luís. As alternativas eróticas dos africanos e seus descendentes no Brasil<br />
escravista. LPH: Revista de História, v. 3, n. 1, 1992, p. 176-214.<br />
PETIZ, Silmei Sant’Anna. Caminhos Cruzados: família e estratégias escravas na fronteira<br />
oeste do Rio Grande de São Pedro (1750-1835). Tese de Doutorado. São Leopoldo:<br />
PPGH/UNISINOS, 2009.<br />
REIS, Isabel Cristina dos. A família negra nos tempos da escravidão: Bahia, 1850-1888.<br />
Tese de Doutorado. IFCH/UNICAMP, 2007. ROCHA, Cristiany Miranda. Histórias<br />
de famílias escravas: Campinas, século XIX. Campinas: Editora da Unicamp, 2004.<br />
SANTOS, Sherol. Apesar do Cativeiro: Família escrava em Santo Antônio da Patrulha<br />
(1773-1824). Dissertação de Mestrado. São Leopoldo: PPGH/UNISINOS, 2009.<br />
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial,<br />
1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.<br />
SLENES, Robert. Na Senzala, uma Flor: esperanças e recordações na formação da<br />
família escrava – Brasil, Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.<br />
VASCONCELLOS, Márcia Cristina. Casar ou na casar, eis a questão. Os casais e as<br />
mães solteiras escravas no litoral sul-fluminense. 1831-1850. Estudos Afro-Asiáticos,<br />
Ano 24, n. 2, 2002. pp. 291-316.<br />
XAVIER, Regina. A conquista da liberdade: libertos em Campinas na segunda metade<br />
do século XIX. Campinas: UNICAMP, 1996.<br />
ZERO, Arethuza. O preço da liberdade: caminhos da infância tutelada – Rio Claro<br />
(1871-1888). Dissertação de Mestrado. Campinas: UNICAMP, 2004.<br />
176
esCrAvos eM bAgé: fugAs, quiloMbos<br />
e insurreições<br />
Vinicius Pereira de Oliveira<br />
Resumo: o artigo apresente aspectos da presença escrava em Bagé e localidades adjacentes no<br />
século XIX, analisando dados quantitativos e qualitativos como processos criminais, inventários postmorten,<br />
documentação da Polícia, da Justiça e estatísticas populacionais. Objetiva-se dar visibilidade<br />
à presença escrava na formação histórica da região, estabelecendo contraponto com a historiografia<br />
tradicional que postula a sua inexistência ou pouca expressividade. Especial destaque será conferido<br />
a ocorrências de fugas, aquilombamentos e tentativas de insurreições verificadas na documentação.<br />
Palavras-chave: Bagé – escravos – quilombos – fugas – insurreições.<br />
Neste artigo, apresentamos um recorte histórico de uma pesquisa<br />
maior realizada no ano de 2007 visando a elaboração de relatório<br />
histórico-antropológico para identificação e delimitação do território<br />
remanescente de quilombo “Com unidade de Palmas”, localizado no município<br />
de Bagé/RS¹. Esta pesquisa evidenciou, mediante cruzamento de informações<br />
oriundas da memória quilombola e de documentação histórica, que a gênese desta<br />
comunidade reporta diretamente ao período final da escravidão, e particularmente a<br />
um contexto de relações de trabalho e resistência frente a famílias pecuaristas grandes<br />
proprietárias de terras, exigindo um esforço de pesquisa no sentido de captar<br />
esta realidade.<br />
Nas linhas que se seguem, serão apresentadas apenas considerações de<br />
caráter geral sobre a presença escrava nesta cidade, resguardando-nos da publicização<br />
de aspectos mais específicos da trajetória desta comunidade, uma vez<br />
que a tramitação jurídica deste processo de regularização quilombola ainda está<br />
em curso.<br />
¹ Relatório realizado conforme Artigo 68 dos ADCT da Constituição Federal de 1988, Decreto 4887/2003 e Instrução<br />
Normativa no. 20/2005 do INCRA, mediante convênio firmado entre 11ª. Superintendência Regional do<br />
INCRA e o Laboratório de Observação Social da UFRGS, com interviniência da FAURGS.. A equipe foi composta<br />
pelo Doutor em Antropologia Iosvaldyr Carvalho Bittencourt Junior, pela Bacharel em Geografia Nola Patrícia<br />
Gamalho e pelo Bacharel em Ciências Sociais Lúcio D. Centeno, além do presente autor.<br />
177
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Uma primeira constatação para quem se propõe a tal pesquisa é a da inexistência<br />
de estudos mais detidos sobre a presença negra neste município. Apesar da<br />
abundância de documentação histórica sobre o negro disponível nos arquivos – e<br />
o APERS destaca-se neste cenário –, o papel deste grupo na formação histórica da<br />
região em questão, seja como escravo ou como trabalhador livre, raramente é citada<br />
pela bibliografia.<br />
Esta situação na realidade se estende ao Rio Grande do Sul como um todo.<br />
A historiografia tradicional deste estado por muito tempo invisibilizou e diminuiu<br />
a importância da presença negra na sua formação histórica ao postular que esta<br />
teria sido fruto basicamente de dois tipos sociais: de um lado, os grandes criadores<br />
de gado e peões luso-brasileiros, produto das estâncias da região da Campanha; e<br />
do outro o imigrante europeu (principalmente alemão e italiano), colonizador de<br />
pequenas propriedades rurais, propulsor do progresso e da civilização. Nestas elaborações<br />
idealizadas, pouco ou nenhum espaço é dado aos indígenas, negros, mestiços<br />
e lavradores nacionais pobres².<br />
Seguindo esta mesma perspectiva historiográfica, a escravidão no Rio Grande<br />
do Sul foi vista como não tendo a mesma dimensão e importância verificada em<br />
outras áreas do Brasil como os engenhos de açúcar nordestinos ou as lavouras de<br />
café do sudeste. De qualquer forma, onde ela ocorreu ter-se-ia caracterizado por<br />
um tratamento mais brando e igualitário dos senhores frente aos cativos, em uma<br />
relação supostamente marcada por fortes traços de cordialidade, algo como uma<br />
“democracia racial dos pampas”³.<br />
Resultado dos desejos e projeções de uma intelectualidade preocupados em<br />
solidificar uma representação histórica e identitária regional em contraposição ao<br />
restante do Brasil, tido como escravista, estes discursos não levaram em consideração<br />
referências empírica diversas, como por exemplo levantamentos estatísticos<br />
que demonstram ter sido o Rio Grande do Sul uma das mais importantes províncias<br />
escravistas no século XIX 4 .<br />
² ZARTH, Paulo Afonso. Do arcaico ao moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002, p. 145.<br />
3 Ver obras como: GOULART, Jorge Salis. A formação do Rio Grande do Sul: geografia social, geografia da historia,<br />
psicologia social e sociologia. Porto Alegre: Globo, 1933; e VIANNA, Francisco José Oliveira. Populações meridionaes<br />
do Brasil: história, organização, psycologia. São Paulo: Nacional, 1933.<br />
4 O Rio Grande do Sul era a terceira província com maior proporção de escravos em sua população no ano de 1874,<br />
atrás somente do Rio de Janeiro e Espírito Santo e a frente de estados como Bahia e Minas Gerais, tradicionalmente<br />
referidos como possuidores de grande concentração escrava (ver CONRAD, Robert Edgard. Os últimos anos da<br />
escravatura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975). Cabe ressaltar que estes dados referem-se ao ano de<br />
1874, quando já havia se passado 24 anos, da proibição definitiva do tráfico transatlântico de escravos para o Brasil,<br />
situação que tornou a província fornecedora de escravos no tráfico interprovincial para regiões economicamente<br />
mais prósperas do Brasil.<br />
178
Estudos diversos realizados nas últimas décadas têm, com grande eficácia, contraposto<br />
esta leitura mais tradicional ao demonstrar que a realidade do escravo no Rio<br />
Grande do Sul, além de ter sido demograficamente importante, foi extremamente dura<br />
e cruel como no restante do país, o que pode ser verificado tanto pelo uso de documentação<br />
histórica como pela memória dos descendentes de escravos em todo o estado5 .<br />
Outra afirmação recorrentemente difundida no imaginário histórico regional<br />
versa sobre a inadequação do trabalho escravo às atividades pecuárias, realidade<br />
econômica na qual a Comunidade de Palmas está historicamente inserida6 . Segundo<br />
determinada corrente de análise, a proximidade da fronteira e a cotidiana lida com o<br />
cavalo potencializariam as fugas escravas que, somadas ao baixo grau de capitalização<br />
do setor, tornariam inviável a adoção do trabalhador cativo neste setor econômico<br />
riograndense. Neste sentido, Farinatti chama a atenção de que:<br />
Até hoje, poucos foram os trabalhos que se dedicaram ao estudo específico<br />
da escravidão nas regiões de predominância pecuária no Brasil.<br />
Ao contrário, essa atividade foi, tradicionalmente, entendida como um<br />
palco privilegiado da mão-de-obra livre. 7<br />
Nos últimos anos a questão vem sendo estudada na sua devida medida, a<br />
partir da densa análise de documentação histórica diversificada e refinado aparato<br />
teórico-metodológico, o que possibilita demonstrar a importância e recorrência do<br />
negro escravizado ou mesmo livre nas atividades das estâncias, seja como campeiros,<br />
peões ou domadores, ou até mesmo em atividades acessórias como a produção de<br />
alimentos ou lides domésticas. 8<br />
Ademais, o aprofundamento das pesquisas e uma maior valorização do empírico<br />
ocorrida nas últimas décadas nos estudos sobre o passado brasileiro demonstraram<br />
que, contrariamente ao que se acreditou por muitos anos, a propriedade escrava<br />
era acessível a amplas parcelas da sociedade, estando presente não somente nas grandes<br />
unidades produtivas agro-exportadoras (canaviais, engenhos, lavouras de café),<br />
mas também em produções ligadas ao abastecimento interno. 9 O escravo esteve pre-<br />
5 Sobre as bases da construção historiográfica do mito da benevolência do sistema escravista do RS, ver GU-<br />
TFREIND, Ieda. O negro no Rio Grande do Sul: o vazio historiográfico. In: Estudos ibero-americanos: Anais do I<br />
Simpósio gaúcho sobre a escravidão negra. Porto Alegre: EDIPUCS, 1990.<br />
6 MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala. Mercado Aberto: Porto Alegre, 1988. 4ª edição; FREITAS, Décio. O capitalismo<br />
pastoril. Porto Alegre: EST/UCS, 1980.<br />
7 FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Escravos nas estâncias e nos campos: escravidão e trabalho na Campanha<br />
Rio-grandense (1831-1870). Conservatória: Anais do VI Congresso Brasileiro de História Econômica, CD-ROM, 2005, p. 1.<br />
8 OSóRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da estremadura portuguesa na América: Rio Grande<br />
de São Pedro, 1737-1822. Tese (Doutorado em História). UFRJ/IFCHS, 1999; ZARTH, Paulo Afonso. Do arcaico ao<br />
moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002; FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Confins<br />
meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na Fronteira Sul do Brasil (1825-1865). Tese de Doutorado em História. Rio<br />
de Janeiro: UFRJ, 2007.<br />
9 FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Modelos explicativos da economia escravista no Brasil. In: CARDOSO, Ciro Flamarion<br />
S. (org.) Escravidão e abolição no Brasil: novas perspectivas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, p. 24.<br />
179
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
sente em todos os setores produtivos da sociedade riograndense, desempenhando as<br />
mais diversas atividades urbanas e rurais, inclusive aquelas que exigiam elevado grau<br />
de especialização profissional.<br />
Os dados abaixo apresentados possibilitam captar a importância demográfica<br />
– e porque não social? – da população escravizada em Bagé ao longo do século<br />
XIX 10 :<br />
180<br />
População de Bagé no ano de 1846 11<br />
Dados Estatísticos da População de Bagé em 1858 12<br />
Municípios com maior número de escravos – 1859 13<br />
10 É importante destacar ainda a presença considerável de população negra livre e liberta em Bagé do século XIX,<br />
indígena, além daqueles referidos nos documentos de época como “bugres”, “índios amulatados”, “amorenados”,<br />
“indiáticos”. Um exemplo pode ser verificado em: APERS, Processos Crime, Piratini, Cartório Cível e Crime, Maço<br />
26, Processo 1080.<br />
11 AHRS, Fundo Estatística, Maço 01. Possivelmente se trate somente da sede do município, não considerando os<br />
demais distritos.<br />
12 AHRS, Fundo Estatística, Códice 1, Mapa da População da Província no fim do ano de 1858.<br />
13 Fonte: CAMARGO, Antônio E. Appenso ao Quadro estatístico e geographico da província de São Pedro do RGS. Porto<br />
Alegre: Typ. do Jornal do Comércio, 1868. Citado por ZARTH, Paulo Afonso. Do arcaico ao moderno: o Rio Grande do<br />
Sul agrário do século XIX. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002, p. 123.
Apesar desta constatação, quando nos propusemos a visualizar o passado escravista<br />
desta localidade nos deparamos com a inexistência de trabalhos mais detidos<br />
sobre o tema. Como praticamente inexistem documentos históricos produzidos pelos<br />
próprios escravos temos que recorrer àqueles produzidos pelas instâncias governamentais<br />
para reconstituir o passado dessas populações.<br />
Buscamos, então, uma primeira aproximação com a questão através da análise<br />
de inventários post-morten de indivíduos residentes em Bagé, o que permitiu visualizar<br />
algumas características da propriedade escrava nesta localidade. A partir de uma<br />
amostragem de 38 inventários, compreendendo o período de 1877-1883, podemos<br />
ter uma dimensão da difusão da posse escrava nesta localidade:<br />
Levantamento dos inventários pesquisados: posse de escravos<br />
Fonte: APERS, Inventários, Bagé, 1877-1883<br />
Esta pequena amostragem revela que 65,79% dos indivíduos que legaram<br />
bens possuíam pelo menos um escravo no momento da sua morte, atestando a disseminação<br />
desta prática sócio-cultural na região. Cabe destacar que o recorte temporal<br />
da documentação analisada se insere no período de desagregação do sistema escravista<br />
no Brasil, quando comprovadamente o contingente escravo no Rio Grande<br />
do Sul diminuía progressivamente, situação em grande medida atribuída aos efeitos<br />
da proibição definitiva do tráfico internacional de escravos em 1850.<br />
A análise da documentação referida permitiu igualmente sondar a estrutura<br />
da posse escrava, ao indicar o tamanho dos plantéis quando do elaboração dos documentos:<br />
O tamanho dos plantéis de escravos em Bagé<br />
181
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Constatou-se que a maior parte dos escravos vivia em plantéis pequenos, de<br />
no máximo 10 indivíduos, enquanto que o restante estava distribuído em plantéis<br />
médios, raramente ultrapassando a quantidade de 15 cativos. Estes dados atestam<br />
a predominância da pequena posse de escravos em Bagé, situação que na realidade<br />
vem sendo verificada em diversas outras áreas do Brasil ligadas ao abastecimento<br />
interno 14 . Essa constatação, antes de diminuir a importância da presença escrava<br />
nestas áreas, chama a atenção para a existência de distintas e complexas realidades<br />
escravistas no Brasil, variáveis em função de diferenciações regionais e econômicas 15 .<br />
Cabe destacar que a pecuária, por suas características produtivas, apresentava menos<br />
necessidade numérica de mão-de-obra fixa, se comparada com outros setores da<br />
economia rural da época, o que pode em parte explicar os números apresentados 16 .<br />
Por si estes dados já seriam suficientes para contrapor as referidas abordagens<br />
tradicionais que negam a fundamental presença da população negra escravizada<br />
em Bagé e na pecuária riograndense. Entretanto, uma diversidade de outros documentos<br />
históricos como os processos-criminais, cartas de alforrias, inventários postmorten,<br />
registros policiais e judiciários, aliados à riqueza dos relatos afrodesendentes,<br />
possibilitam visualizar uma diversidade de aspectos da experiência negra no Brasil<br />
escravista.<br />
Por muito tempo tomados pela historiografia como passivas vítimas de um<br />
sistema opressivo, dados estatísticos ou unicamente como força de trabalho, os escravos<br />
emergiram nos estudos especializados mais recentes como um grupo que<br />
buscava, mesmo sob o jugo desigual do cativeiro, ser sujeito de sua própria história.<br />
Neste sentido, uma maior atenção tem sido dada à análise de aspectos cotidianos da<br />
14 Fora setores produtivos específicos que exigiam maior número de trabalhadores como as charqueadas, engenhos<br />
de açúcar e fazendas de café, o padrão da posse cativa não só no Rio Grande do Sul, mas também em outras áreas do<br />
Brasil escravista seguia esta tendência de pequenos e médios plantéis. Hebe Castro observa que os pequenos plantéis<br />
formavam a maior parte dos proprietários de escravos no Brasil. Em regiões com o Recôncavo Baiano, por exemplo,<br />
tradicionalmente referido como área de grandes plantéis escravos em função da produção açucareira, 80% dos<br />
senhores possuíam menos de 10 escravos. Ver: CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Das cores do silêncio: os significados da<br />
liberdade no sudeste escravista - Brasil séc. XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, p. 36; e MATTOS, Hebe Maria.<br />
Escravidão e cidadania no Brasil Monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. Série Descobrindo o Brasil, p. 18.<br />
15 Schwartz, em estudo sobre a realidade escravista no Brasil, observa a existência de uma população de trabalhadores<br />
e famílias rurais que passou a existir à margem da economia agro-exportadora escravista desde o período<br />
colonial, criando uma classe camponesa. Nesta sociedade, a agricultura de subsistência e de exportação estavam<br />
intimamente ligadas numa relação complexa. Regiões como Maranhão, São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul, que<br />
anteriormente não teriam se caracterizado pela economia de exportação nem pelo uso predominante do trabalho<br />
escravo foram, a partir do final do período colonial, induzidas pela expansão das exportações “a uma dependência<br />
cada vez maior da escravidão”. Ver: SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: EDUSC, 2001, p. 129.<br />
Quanto a Bagé, cabe quantificar se tratavam-se de pequenos famílias rurais, no sentido exposto por Schwartz, ou<br />
médios e grandes pecuaristas.<br />
16 Para uma melhor problematização da questão, ver FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Confins meridionais: famílias<br />
de elite e sociedade agrária na Fronteira Sul do Brasil (1825-1865). Tese de Doutorado em História. Rio de Janeiro: UFRJ,<br />
2007.<br />
182
vivência desses agentes, como, por exemplo, a possibilidade de aproveitamento das<br />
brechas do sistema para a ressignificação de suas vidas.<br />
O contexto de opressão, de castigos e maus tratos do regime escravista levau<br />
muitos negros a elaborarem diversificadas estratégias de resistência na resistência na<br />
busca de influenciar no destino de suas vidas. Muitas delas se propunham a romper<br />
com as amarras do sistema e construir uma outra realidade, o que foi freqüentemente<br />
tentada através da formação de quilombos, da fuga e da organização de insurreições.<br />
Vejamos alguns casos ocorridos em Bagé e arredores.<br />
“PRENDER NOS MATOS A NEGROS FUGIDOS”:<br />
AS FUGAS ESCRAVAS<br />
A fuga, sem dúvida, foi expediente que fez parte dos projetos de muitos indivíduos<br />
escravizados, sendo um acontecimento corriqueiro do dia-a-dia do cativeiro.<br />
Os relatos desta prática são abundantes em todo Brasil, motivadas por uma gama<br />
ampla de questões como as condições adversas do cativeiro, os castigos e maus tratos,<br />
a separação de famílias e a imposição de ritmos de trabalho extremamente forçosos 17 .<br />
Nogueról 18 , em artigo onde analisa os riscos de fuga escrava oferecidos pela<br />
fronteira do Rio Grande do Sul com Argentina e Uruguai, apresenta o seguinte<br />
quadro com o número de indivíduos referidos como “fugidos” em inventários de<br />
diversas comarcas, entre elas Bagé:<br />
17 Silva sugere a interessante distinção entre “fugas-reinvidicatórias” e “fugas-rompimento”. As primeiras não se<br />
proporiam a romper com o sistema e muitas vezes tinham uma duração previsível. Seriam pequenas escapadelas<br />
que objetivavam exercer pressão e mostrar descontentamento contra alguma questão específica, como a quebra de<br />
acordos estabelecidos ou castigos considerados injustos e/ou excessivos. Já as “fugas-rompimento” eram casos mais<br />
extremos, em que se buscava a ruptura com o sistema. O autor utiliza também os conceitos de ‘fugas para fora”<br />
(ou seja, para lugares de difícil acesso, matas, montes, etc) e “fugas para dentro” (para as cidades, “para o interior da<br />
própria sociedade escravista”, onde os escravos tentavam se passar por livres). Ver: SILVA, Eduardo. Fugas, revoltas<br />
e quilombos: os limites da negociação. In: REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e Conflito: a resistência negra no<br />
Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.<br />
18 NOGUERóL, L. P. F. ; MIGOWSKI, V. ; Dias, M. S. ; Rodrigues, D ; PINTO, M. S. . Elementos da Escravidão<br />
do Rio Grande do Sul: a lida com o gado e o seguro contra a fuga na fronteira com o. In: XXXV ENCONTRO<br />
NACIONAL DE ECONOMIA, 2007, Recife - PE. Anais do XXXV Encontro Nacional de Economia, 2007.<br />
183
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Mesmo utilizando somente inventários como fonte, o autor demonstra que a<br />
situação de proximidade de Bagé com a fronteira uruguaia era fator potencializador<br />
das fugas escravas 19 . O maior número de ocorrências nesta localidade certamente<br />
estava vinculado ao fato da abolição da escravidão no Uruguai ter ocorrido na década<br />
de 1840, fornecendo mais um atrativo às esperanças de liberdade da população<br />
escravizada 20 .<br />
Os exemplos são múltiplos na Bagé escravista do século XIX. Em 1849, Felícia<br />
Flora Ribeiro, ao efetuar o inventário pelo falecimento de seu esposo, informa<br />
que seis anos antes fugiram para o Estado Oriental os seus escravos Antonio da<br />
Costa, Matheus da Costa e Florinda Crioula, dos quais nunca mais soube notícias 21 .<br />
Em 1848 José Rodrigues de Lima (homem branco, solteiro, natural desta Província,<br />
morador na freguesia de Lavras) foi avisado por ordem do inspetor de quarteirão<br />
que deveria ir até uma tapera nos arredores da povoação de Lavras “prender nos<br />
matos a negros fugidos, que ali se achavam” 22 . Em 1845, ao ser interrogada, a preta<br />
Maria (30 anos aproximadamente, nação Mina, solteira), escrava de Manoel Marques<br />
da Silva, informou que seu senhor “sempre judiava com os escravos, que por isso um<br />
seu companheiro tinha fugido para o mato” 23 .<br />
Diversos registros históricos demonstram que as fugas de escravos para o<br />
Uruguai poderiam ser incentivadas por indivíduos que “seduziam” a escravaria riograndense<br />
com vistas a suprir a necessidade de trabalhadores nas estâncias do outro<br />
lado da fronteira ou para servirem de soldados nos conflitos platinos. No final<br />
da década de 1850, por exemplo, o correntino João Rios teria seduzido o escravo<br />
Sebastião, de José Hipólito de Oliveira Martins, para seguirem para a província de<br />
Corrientes (Argentina) ou Uruguai, com a promessa de liberdade 24 .<br />
Esses são apenas alguns dos muitos exemplos presentes na documentação<br />
histórica da região, reveladores da capacidade escrava de conceber e executar projetos<br />
de liberdade, mas é fato que nunca saberemos a dimensão numérica dos indiví-<br />
19 Sobre as fugas de escravos brasileiros para o além fronteiras, especialmente Uruguai, ver PETIZ, Silmei de S.<br />
Buscando a liberdade: as fugas de escravos da província de São Pedro para o além-fronteira (1815-1851) Passo Fundo: UPF<br />
Editora, 2006.<br />
20 De 1839 a 1851 o Uruguai encontrava-se dividido politicamente por ocasião da Guerra Grande. Havia o Governo<br />
de la Defensa em Montevidéu, sob controle colorado de Fructuoso Rivera que promoveu a abolição em 1842 para<br />
recrutar negros para o exército. E em 1846 o Governo do Cerrito, sob controle blanco de Manuel Oribe também<br />
faz o mesmo.<br />
21 APERS, Inventários, Caçapava do Sul, Cartório de órfãos e Ausentes, Maço 07, Inventário nº 159.<br />
22 APERS, Processos Crime, Cartório 1 o Civil e Crime, Maço 35, Processo n o 1107.<br />
23 APERS, Processo Crime, Caçapava do Sul, Cartório 1 o Civil e Crime, Maço 34, Processo-crime n o 1077, Ano 1845.<br />
24 APERS, Piratini, Processos Crime, Cartório Cível e Crime, Maço 27, Processo nº 1146. Ver outros exemplos em<br />
PICCOLO, Helga Iracema L. A resistência escrava no Rio Grande do Sul. Caderno de Estudo. Porto Alegre: Curso de<br />
Pós-Graduação em História, 1992.<br />
184
duos que obtiveram êxito em suas fugas. Apesar de algumas dessas escapadas terem<br />
caráter reivindicatório e temporário, muitas tinham como objetivo quebrar os grilhões<br />
do cativeiro através da constituição de quilombos em matos de difícil acesso.<br />
“AQUILOMBADOS COM OUTROS PRETOS” – AS<br />
COMUNIDADES DE FUGITIVOS NA REGIãO DE BAGÉ 25<br />
São ricos os relatos de ocorrência de aquilombamentos em Bagé e localidades<br />
vizinhas. Em setembro de 1834, por exemplo, foi formada uma diligencia por<br />
diversos homens brancos da região de Caçapava do Sul afim de prender os escravos<br />
fugidos que viviam aquilombados nos matos da região pois fazia mais de ano que<br />
roubos de gado, roupas e até armamentos estavam ocorrendo. Certo dia, a patrulha<br />
repressiva andava costeando os matos da chácara de Joaquim Vitório Maciel quando<br />
avistaram um negro portando uma velha vestimenta composta de japona, calças de<br />
brim branco e botas. Tratava-se de do preto Manoel (crioulo, nascido em Sorocaba),<br />
escravo de Manoel Veríssimo Esteves26 , um dos quilombolas procurados.<br />
Na tentativa de escapar, Manoel acaba descarregando um trabuco que trazia<br />
consigo sobre um dos homens que tentavam prende-lo, causando-lhe a morte, o que<br />
de nada adiantou pois foi pego em seguida antes de conseguir se ocultar novamente<br />
no mato. Devido o falecimento ocorrido, foi instaurado um processo criminal onde<br />
o quilombola figurava como réu, e em seu diversos testemunhos e interrogatórios<br />
são revelados aspectos importantes da vida quilombola no Rio Grande do Sul27 .<br />
Ao ser interrogado, o quilombola Manoel afirmou andar fugido a mais de um<br />
ano e que se achava:<br />
[...] escondido nos matos da Chácara de Joaquim Vitório Maciel, ao<br />
sair do mato foi encontrado por Albino Francisco da Silva, Félix Roberto<br />
Luis da Silva, Manoel Elias de Morais, a quem apenas vendo lhe<br />
fez tiro com um trabuco que tinha em seu poder roubado da casa de<br />
um morador vizinho de Manoel de Souza Teixeira à costa do rio Santa<br />
Bárbara e cujo o tiro veio cair morto o mencionado Manoel Elias<br />
Moraes [...] porém que fora preso imediatamente pelos companheiros<br />
do morto.<br />
Perguntado pelo juiz se possuía local certo onde se refugiasse no mato e se<br />
haviam mais escravos fugidos consigo, Manoel respondeu que:<br />
25 Expressão retirada de processo crime referente a escravos fugidos: APERS, Processos Crime, Caçapava do Sul,<br />
Cartório 1o Civil e Crime, Maço 34, processo no: 1072.<br />
26 Também referido como Manoel Veríssimo Prestes da Fonseca.<br />
27 APERS, Processos Crime, Caçapava do Sul, Cartório 1o Civil e Crime, Maço 34, Processo no 1072.<br />
185
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
[...] ele e outro seu companheiro, o preto João, escravo de Joaquim<br />
Elias de Morais e uma preta de nome Joaquina, escrava de Joaquim<br />
Claro de Jesus, tinham dois quilombos um em matos de Manoel Correa<br />
Marques e outro nos matos do Coronel Olivério José Ortiz, de<br />
onde se mudavam de dias em dias para assim não serem preso.<br />
O depoimento revela ainda outros aspectos importantes da vivência quilombola.<br />
Manoel informa que ao longo do tempo em que ficou aquilombado ele e<br />
seus companheiros haviam carneado pelo menos nove reses, furtado algumas roupas<br />
como ponchos, pala, japonas, o trabuco que usou no momento de sua prisão,<br />
pólvora e dois cargos de chumbo. Manoel foi julgado e condenado a morte em<br />
04/03/1835, sendo o primeiro réu condenado a morte em Caçapava do Sul28 .<br />
Já em 1831 o escravo Joaquim é acusado de matar seu senhor Joaquim Martins<br />
de Araújo. Os documentos judiciais a que tivemos acesso afirmam que Joaquim costumava<br />
fugir recorrentemente de seu senhor e praticar roubos de gado e em moinhos<br />
de farinha de trigo. Em uma destas situações, entrou em conflito com o escravo de<br />
um proprietário de moinho, acabando por ser preso pelo capitão-do-mato. Mesmo<br />
na cadeia, era conduzido todos os dias por seu senhor Martins de Araújo em ferros<br />
para trabalhar no o ofício de seleiro. Sendo constantemente repreendido (entenda-se<br />
castigado) por seu senhor, o escravo acaba dando-lhe uma facada e ocasionando sua<br />
morte. Segundo o documento anexado ao processo criminal contra o escravo Joaquim,<br />
[...] vários habitantes desta cidade oferecem-se para ajudar e concorrer<br />
para a punição do criminoso com a condição porém se for sentenciado<br />
a morte e vir a cabeça a este mesmo lugar que talvez servisse de<br />
temor a outros 29 .<br />
Ansiosos por um castigo que servisse de exemplo para a ampla escravaria<br />
da região, diversos habitantes da cidade manifestaram sua vontade não só de condenação,<br />
mas de sentença à morte e exposição pública da cabeça do escravo. Em<br />
10/11/1834, porém, a sessão do Júri informou que o réu se achava ausente e em<br />
lugar desconhecido, não podendo dar prosseguimento ao processo.<br />
Em 1832 a Justiça manifestava a existência de<br />
[...] pretos aquilombados nas imediações desta Vila [de Caçapava] de<br />
nome Agostinho, escravo do Tenente Antonio Prudente, Simão, escravo<br />
de Eugenio Alano, João, escravo de Manoel Joaquim Ferreira, Januário<br />
e a preta Joaquina, que se ignora quem sejam seus senhores. 30<br />
28 AHRS, Fundo Autoridades Municipais, Caçapava do Sul, Correspondência Expedida, Maço 24, Caixa 10, Documentos<br />
63 e 64.<br />
29 o o APERS, Processo Crime, Caçapava do Sul, Cartório 1 Civil e Crime, Maço 34, Processo n : 1063.<br />
30 o o APERS, Processos Crime, Caçapava do Sul, Cartório 1 Civil e Crime, Maço 34, Processo n : 1065.<br />
186
Em 23 de novembro do mesmo ano o escrivão da localidade narrou ao Juiz<br />
de Paz Suplente José da Silva Rocha Ribeiro as providências tomadas para por fim<br />
ao quilombo localizado na Costa do Rio Santa Bárbara:<br />
depois de achar feito as diligências necessárias pode ao romper do<br />
dia de hoje cercar o campo onde se achavam os ditos pretos e depois<br />
de rigorosa resistência da parte destes, descarregando sobre a partida<br />
alguns tiros de clavina e pistola, que felizmente ficou ilesa, havendolhes<br />
gritado por 3 vezes que se entregassem a prisão à ordem de Vossa<br />
Senhoria, não obedeceram, antes se portaram com mais afoitosa, por<br />
isso que na forma da lei fui obrigado a repelir a força dos renitentes<br />
ficando mortos os pretos Simão e João, escravo de Manoel Joaquim<br />
Ferreira, cujos corpos não sendo possível conduzir perante a V.S. por<br />
ser o quilombo situado em um lugar aspérrimo cheio de barroca com<br />
bem presenciou o oficial jurado Antonio Machado, foram ali sepultados,<br />
apresentando somente o preto Agostinho baleado em uma coxa<br />
tendo-se escapado uma preta e um preto sendo no todo cinco fugidos.<br />
O preto Agostinho, o único sobreviventes que foi preso, responde a interrogatorio,<br />
revelando primeiramente dados sobre a dimensão do aquilombamento, que<br />
abrigava<br />
[...] quatro negros e uma negra [...] disse chamarem-se Simão, escravo<br />
de Eugenio Alamo, o outro, João, escravo de Manoel Joaquim Ferreira,<br />
outro, Januário e uma preta de nome Joaquina e que estes dois<br />
últimos se escaparam na ocasião da prisão e que ele era escravo do<br />
Tenente Antonio Prudente.<br />
Roubos e furtos são referidos por Agostinho como estratégias de sobrevivência<br />
e supressão de necessidades básicas do dia-a-dia:<br />
[...] perg. se eles tinham vindo as lavagens desta Vila [...] disse terem<br />
vindo algumas vezes de onde tinham roubado algumas roupas das<br />
lavadeiras [...] resp. ele terem carneado muitas reses de várias pessoas<br />
[...] perg. se foram eles que tinham roubados algumas armas da Nação<br />
depositadas em poder do tenente Joaquim Claro de Jesus, e roubadolhe<br />
a casa [...] resp. que eles tinham sido os mesmo que tinham roubado<br />
o dito armamento.<br />
Este armamento fora utilizado no momento da resistência contra a expedição<br />
que buscava prendê-los:<br />
[...] disse que no conflito tinham feito grande resistência pois que ele<br />
tinha uma clavina e Simão seu companheiro uma pistola, e o preto<br />
João uma espada e outro que escapou com arama larga e que nunca<br />
quiseram se entregar, dispararam alguns tiros sobre a partida de que<br />
resultou serem mortos o preto Simão e João, sendo ele baleado em<br />
uma coxa, quando então se entregou a prisão e que os mais companheiros<br />
se haviam escapado [...].<br />
187
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
No ano de 1848 o escravo Antônio, de José Carlos da Costa Ribeiro, foi preso<br />
por viver aquilombado em matos da região de Caçapava. Cerca de um ano antes havia<br />
fugido e se abrigado em matos de Dona Maria dos Santos. Em seu interrogatório<br />
relatou ter se encontrado:<br />
[...] com seis negros que andavam igualmente fugidos e aquilombados<br />
e que passados alguns dias estando ele em companhia dos outros pretos<br />
a tirar mel foram encontrados por um morador daquelas vizinhanças<br />
a quem os seus companheiros queriam matar, deixando de fazer a<br />
rogo dele crioulo, que logo depois disso não lhe parecendo bem andar<br />
em companhia de semelhante gente, os abandonou e veio residir nos<br />
matos de Manoel Correa Marques perto da casa de seu senhor e que<br />
ali estando ele só, pouco dias depois se lhe reuniu o desertor Manoel<br />
Prestes, que andando também fugido encontrou com ele crioulo nos<br />
ditos matos e [...] que depois deste encontro com Manoel Prestes nunca<br />
mais este crioulo separou-se deste e que andavam sempre juntos até<br />
serem presos. 31<br />
Manoel Ferreira Prestes tinha cerca de 20 anos era soldado do segundo regimento<br />
de cavalaria de linha e, juntamente com o escravo Antônio, vivia em um<br />
rancho dentro do mato. Perguntado sobre sua forma de alimentação, Manoel Prestes<br />
afirmou<br />
que costumava-se alimentar com o que vinha da casa de seus parentes<br />
e com mel que tirava das abelheiras e com o palmito de girivá, que<br />
cortava nos matos em que se achava.<br />
Ao ser indagado sobre quem levava para ele comida da casa de seus parentes,<br />
Manoel respondeu “que ele mesmo ia buscar o que comer na casa de seus parentes<br />
e o levava para o mato”. Afirmou ainda que o escravo caçava passarinhos e outros<br />
animais para seu sustento. Este quilombo apresenta a não rara característica de abrigar<br />
tanto escravos como homens livres, no caso um desertor do exército. Revela<br />
também a interessante opção do crioulo Antônio de abandonar o aquilombamento<br />
composto por negros para viver na companhia de um homem branco, o que,<br />
além dos motivos apontados pelo escravo, também propiciava maiores facilidades<br />
de acesso ao universo social externo aos matos, pois mesmo sendo Manoel Prestes<br />
procurado por ter desertado, levantava menos suspeitas ao circular fora dos matos<br />
por não ser cativo.<br />
O extenso Rio Camaquã, curso d’água que corre próximo a Comunidade<br />
Quilombola de Palmas, configurava-se como um espaço privilegiado para esconderijo<br />
de desertores e escravos fugidos32 . A documentação policial da região explicita as<br />
31 APERS, Processos Crime, Cartório 1o Civil e Crime, Maço 35, processo no: 1107.<br />
32 A sesmaria da família Simões Pires, família proprietária e escravista que está relacionada com um dos troncos<br />
que deu origem à comunidade negra de Palmas, tinha como um de seus limites, originalmente, este curso d’água.<br />
188
preocupações das autoridades governantes da época escravista com as possibilidades<br />
de esconderijo oferecidas pelo Rio. Em 08/09/1856 o delegado de polícia de Piratini<br />
informava ao Presidente da Província, Conselheiro General Francisco Coelho, ter<br />
tido notícias de que a costa deste rio estaria servindo de refúgio a:<br />
[...] uns sujeitos chamados Madástres 33 : homens perdidos carregados<br />
de vícios e de crimes que horrorizam a sociedade. O lugar de suas<br />
moradias seria uma grande ilha que há dentro dos matos daquele rio<br />
de onde saem para este lado, e para o da esquerda, que é território do<br />
município de Caçapava, oficiei ao respectivo delegado para q. depois<br />
de um plano feito entre mim e ele, puséssemos em uma noite essa ilha<br />
em sítio para de dia ser invadida [...] Estou informado que para esta<br />
importantíssima diligência será preciso 40 a 50 homens, não porque<br />
se tema esses facínoras, que consta estarem bem fortificados, mas porque<br />
esses matos que guarnecem o rio são de uma extensão enorme, e<br />
por tais motivos, e por não ter gente suficiente para esta empresa, não<br />
a tenho posto em ação. 34<br />
Rico de matos, montes e ilhas, as proximidades do Rio Camaquã era destino<br />
de muitos escravos que buscavam quebrar os grilhões do cativeiro. Cerca de um mês<br />
depois, em 29/10/1856, o delegado suplente de polícia de Piratini remete correspondência<br />
ao Comandante das Armas e Presidente da Província do RS manifestando<br />
sua preocupação com os espaços de refúgio do Rio Camaquã:<br />
Ilmo Exmo. Sr.<br />
Por portaria de V. Ex.a datada de 7 do presente mês, fico autorizado<br />
para requisitar ao Comandante Superior da Guarda Nacional deste<br />
município 40 a 50 praças para sob meu mando marcharem na diligencia<br />
de bater os facínoras que vagam e se acoitam nos montes que<br />
beiram o Rio Camaquã, os quais com gravoso peso tanto afrontam a<br />
sociedade. Já me entendi com o Comandante Superior, que já de V.<br />
Ex.a recebeu ordem para fornecer-me com esse Esquadrão, e agora<br />
só espero que fique baixo aquele grande rio para por em ação essa<br />
manobra, e entre tanto espero receber as convenientes instruções do<br />
Sr. Dr. Chefe de Polícia, conforme V. Ex.a ordena. 35<br />
Os aquilombamentos referidos permitem apreender uma diversidade de aspectos<br />
bastante recorrente sobre estes agrupamentos no Rio Grande do Sul, que<br />
em sua maioria, se caracterizavam por terem pequenas dimensões, congregando um<br />
número pequeno de indivíduos. Uma outra questão diz respeito à presença não só de<br />
33 Madraço, madracear e madraçarta seriam sinônimos de vadio e ocioso. Ver: FIGUEIREDO, Candido. Novo Dicionário<br />
da Língua Portuguesa. Lisboa: 1922, 3ª edição.<br />
34 AHRS, Piratini, Fundo Polícia, Maço 16, correspondência expedida pelo do Delegado de Piratini ao Presidente da<br />
Província Conselheiro General Francisco Coelho em 08/09/1856.<br />
35 AHRS, Piratini, Fundo Polícia, Maço 16, Correspondência Expedida por Bernado Pires, 29/10/1856.<br />
189
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
escravos fugidos, mas também de outros segmentos sociais que por motivos diversos<br />
buscavam nos matos um esconderijo frente uma situação considerada indesejada 36 .<br />
Atualmente, diversos autores têm buscado destacar o fenômeno social do<br />
aquilombamento a partir de suas dinâmicas e complexidades, rompendo com a idéia<br />
do seu isolamento total frente à sociedade escravista. Mediante relações estabelecidas<br />
com a população negra (escravizada ou não) e brancos pobres, por exemplo, os<br />
quilombolas procuravam ter acesso a informações estratégicas para sua sobrevivência<br />
e a outros bens materiais, além da manutenção de vínculos sócio-afetivos e laços<br />
de solidariedade com negros livres e escravos que continuavam no cativeiro. Dificuldades<br />
como a debilidade no acesso a alimentos e bens manufaturados necessários<br />
para o dia a dia levava-os ainda a manter vínculos com pequenos comerciantes,<br />
muitas vezes mediante troca de seu pequeno excedente produtivo ou mercadorias<br />
furtadas por gêneros diversos.<br />
Impossível, porém, é apontar a totalidade destas formações, já que, devido a<br />
ausência de registros escritos deixados pelos próprios quilombolas, somente temos<br />
notícias daqueles quilombos que ‘deram errado’, ou seja, foram descobertos pelas<br />
forças repressivas, havendo assim um sub-registro de suas ocorrências.<br />
190<br />
INSURREIçõES ESCRAVAS<br />
Além dos aquilombamentos e fugas, as revoltas, levantes e insurreições escravas<br />
foram outros atos que aterrorizaram a sociedade branca e senhorial da época.<br />
Bagé e seus arredores não estiveram livres destes temores.<br />
Em dezembro de 1831 o Juiz de Paz Suplente de Caçapava informava ao Presidente<br />
de Província do Rio Grande do Sul uma diversidade de crimes executados<br />
por Alexandre Luis de Queirós 37 . A presença deste homem era vista como ameaçadora<br />
à tranqüilidade dos moradores da região não somente pelos crimes contra a<br />
moral pública, de lesa-majestade, roubos e possíveis mortes que pudesse causar, mas<br />
também pelo temor de aliciar escravos para insurreição:<br />
36 Piccolo apresenta uma ampla relação de ocorrências de quilombos no Rio Grande do Sul, os quais caracterizavamse<br />
por terem pequenas dimensões. Na mesma obra apresenta diversos casos de presença de brancos e desertores<br />
nos quilombos. Ver: PICCOLO, Helga Iracema L. A resistência escrava no Rio Grande do Sul. Caderno de Estudo.<br />
Porto Alegre: Curso de Pós-Graduação em História, 1992; bem como MAESTRI, Mário J. Pampa negro: quilombos<br />
no Rio Grande do Sul. In: REIS, J. J.; GOMES, Flávio. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo:<br />
Companhia das Letras, 1996. p. 291-330. Sobre a recorrência deste aspecto em outras localidades do Brasil, ver<br />
GOMES, Flávio dos Santos; REIS, João José (orgs.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo:<br />
Companhia das Letras, 1996; e GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas<br />
no Rio de Janeiro - século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.<br />
37 AHRS, Justiça, Caçapava do Sul, Maço 5, correspondência do Juízo de Paz.
Este homem mau – Excelentíssimo Senhor, é na crise atual mui perigoso<br />
nesta Província, por todos os motivos, o que bem [?] se deixa ver<br />
sobre a escravatura desse lugar depois que ele aqui chegou, apesar de<br />
não ter-lhe saído o plano como meditou, mas a Vossa Excelência será<br />
constante que lhe é muito fácil não sendo perseguido ou preso, aliciar<br />
em poucos dias a partida da escravatura, a promessa da liberdade.<br />
Com a promessa de liberdade, Alexandre Queirós estaria buscando convencer<br />
os cativos a se insurgirem contra a sociedade branca e escravista:<br />
[...] é constante ter o dito Queirós ter convidado a grande porção de<br />
escravos cativos e alguns malévolos para reunidos ao mesmo em dia<br />
marcado, se levantarem, matando a todos os homens e pessoas brancas<br />
com promessa de libertá-los.<br />
Na mobilização e arregimentação de escravos para este projeto Alexandre<br />
Queirós contava com a participação de “um seu peão ou escravo preto a que chamava<br />
Capitão da Pátria”, o qual<br />
[...] convidava escravos para a insurreição combinado com seu amo<br />
ou senhor, os quais foram positivamente de noite a chácara dos<br />
Senhor Damaso dos Santos de Menezes, cita nos subúrbios desta<br />
freguesia, proprietário que tem por todo 30 escravos a convidá-los<br />
para o dito fim, como com efeito se verificou por declaração dos<br />
mesmos escravos.<br />
Infelizmente os documentos não informam o desfecho do caso. Somente sabemos<br />
que a comunidade da região encaminhou um abaixo-assinado ao Juiz de Paz<br />
de Caçapava solicitando a prisão de Alexandre Luis de Queirós.<br />
A proximidade com a fronteira também era motivo de preocupação em relação<br />
a levantes e insurreições. O Subdelegado de Polícia de Bagé, Matheus Teixeira<br />
Brasil, em correspondência com o Presidente da Província João Marcelino Gonzaga<br />
datada de 24/02/1865, manifesta sua vontade de estabelecer um corpo de policiais<br />
da Guarda Nacional. O temor era voltado à fronteira com o Uruguai, como se verifica<br />
neste documento:<br />
Ilmo. Exmo. Snr.<br />
A invasão dos bárbaros assassinos do Governo de Montivideo, os intentos<br />
de sublelevarem [sic] a escravatura nesta Província; os orientais<br />
imigrados dos dois partidos que vagam pelos distritos sem mostrarem<br />
em que se ocupam, e finalmente os desertores do Exército que também<br />
aparecem tem posto os cidadãos pacíficos em sobressalto, e desassossego,<br />
e desejando tomar as providencias conveniente para estabelecer<br />
a tranqüilidade pública consultei Comandante Superior da G. N. deste<br />
Município para estabelecer uma Polícia dos G. N. da reserva [...]. 38<br />
38 AHRS, Polícia, Bagé, Maço 44.<br />
191
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
O medo de levantes e revoltas escravas esteve presente no imaginário das<br />
elites brasileiras ao longo de todo o período escravista. Segundo Eduardo Silva 39 as<br />
revoltas foram o pesadelo do tempo da escravidão, onde uma elite branca minoritária<br />
convivia diariamente com a grande concentração de “gente de cor”. A ocorrência<br />
da Revolta dos Malês na cidade de Salvador, em 1835, entre tantas outros levantes,<br />
revoltas e insurreições negras, potencializou este medo ao tornar muito próximo o<br />
espectro da Revolução Haitiana, quando negros insurgiram-se e após 10 anos de luta<br />
acabaram com a dominação colonial na região 40 .<br />
192<br />
O MITO DA ABOLIçãO ANTECIPADA EM BAGÉ<br />
Neste último ponto, teceremos breves considerações sobre a errônea afirmação<br />
de que a escravidão teria sido abolida antecipadamente neste município 41 .<br />
Segundo algumas obras da historiografia local, no dia 28/09/1884 a Câmara Municipal<br />
de Bagé, após grande mobilização popular, teria declarado extinta a escravidão<br />
em seus limites, libertando assim todos os “pretos” que viviam em seu território.<br />
O Club 28 de Setembro, sociedade emancipadora que existia com a finalidade de<br />
libertar escravos, teria desempenhado papel fundamental na disseminação do ideário<br />
abolicionista e na decisão do legislativo local de aprovar tal lei 42 .<br />
Entretanto, uma análise mais detida da Ata da Sessão Extraordinária da Câmara<br />
Municipal de Bagé do dia referido revela que este legislativo se reuniu para<br />
comemorar a libertação dos escravos ocorrida por iniciativa particular de alguns pro-<br />
39 SILVA, Eduardo. Fugas, revoltas e quilombos: os limites da negociação. In: REIS, João José; SILVA, Eduardo.<br />
Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 70.<br />
40 Sobre os temores das elites nacionais com o grande percentual de negros e mestiços na sociedade brasileira do século<br />
XIX e o papel da questão racial em seu ideário, ver AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco:<br />
o negro no imaginário das elites século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987 e SCHWARCZ, Lilia Mortiz. O espetáculo das<br />
raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. Sobre a Revolta<br />
dos Males ver REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. São Paulo: Companhia<br />
das Letras, 2003. Edição revista e ampliada. Quanto ao impacto dos conflitos no Haiti sobre o imaginário das eites<br />
brasileiras, ver GOMES, Flávio dos Santos. Experiências transatlânticas e significados locais: idéias, temores e narrativas<br />
em torno do Haiti no Brasil Escravista. Tempo, Rio de Janeiro: Sette Letras, v. 7, n. 13, julho de 2002.<br />
41 Processo semelhante ocorreu em diversas outras cidades do Rio Grande do Sul. Sobre Porto Alegre, onde Moreira<br />
e Tassoni realizaram uma aprofundada análise das alforrias neste, explicitando suas lógicas de concessão e conquista.<br />
Ver: MOREIRA, Paulo Roberto Staudt; TASSONI, Tatiani de Souza. Que com seu trabalho nos sustenta: as cartas de<br />
alforria de Porto Alegre (1748-1888). Porto Alegre: EST Edições, 2007.<br />
42 Ver: TABORDA, Tarcisio Antonio Costa. A abolição da escravatura em Bagé. 28 de setembro de 1884. Bagé: Museu<br />
Dom Diogo de Souza, 1984; e MONTI, Verônica. O abolicionismo: sua hora decisiva no Rio Grande do Sul. Porto Alegre:<br />
Martins livreiro, 1985. A Praça da Matriz de Bagé teria passado a ser denominada “Praça da Redenção” em homenagem<br />
ao feito. Ver: FAGUNDES, Elisabeth Macedo de. Bagé: no caminho da história do Rio Grande do Sul. Porto Alegre:<br />
Martins Livreiro Editor, 1995, p. 58 e 77; e FAGUNDES, Elisabeth Macedo de. Inventário Cultural de Bagé: um passeio<br />
pela história. Porto Alegre: Evangraf, 2005, p, 71.
prietários, e não para declará-la abolida por lei, o que inclusive entraria em choque<br />
com a legislação maior do Império.<br />
A análise da documentação histórica do período revela que estas libertações<br />
foram em grande medida uma série de alforrias condicionadas, ou seja, dependentes<br />
do cumprimento por parte dos escravos de condições estipuladas pelo proprietário,<br />
como a prestação de serviço por mais alguns anos ou a morte do senhor. Até satisfazer<br />
estas cláusulas, os escravos deveriam continuavam a viver na esfera de dependência<br />
dos antigos senhores, os quais tentavam fazer com que o ato da alforria fosse<br />
internalizado pelos ex-escravos como uma concessão senhorial, resultado de um favor<br />
ou doação para com isso reforçar sua ascensão moral sobre os alforriados e criar<br />
um corpo de trabalhadores dependentes. Esta realidade pode ser averiguada tanto<br />
mediante de cartas de alforria como em inventários post-morten do período onde aparecem<br />
avaliados, ao invés dos escravos, os serviços que estes deveriam prestar a fim<br />
de obter a liberdade prometida nos documentos de manumissão.<br />
Comparando a quantidade de cartas de alforria concedidas em Bagé em 1884<br />
em relação aos anos anteriores percebe-se a posição de destaque ocupada por esta<br />
data:<br />
Número de registros de alforrias em Bagé 43<br />
Uma análise mais detida da modalidade das concessões de alforria no mesmo<br />
ano vai ao encontro do exposto acima:<br />
43 RIO GRANDE DO SUL. SECRETARIA DA ADMINISTRAçãO E DOS RECURSOS HUMANOS. DE-<br />
PARTAMENTO DE ARQUIVO PÚBLICO. Documentos da escravidão: catálogo seletivo de cartas de liberdade acervo dos tabelionatos<br />
do interior do Rio Grande do Sul. Porto Alegre : CORAG, 2006. A tabela seguinte está baseada na mesma fonte.<br />
193
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
194<br />
Cartas de Alforria em Bagé – Ano de 1884<br />
Apesar da considerável quantidade de cartas de alforrias concedidas em Bagé<br />
nos anos finais do regime escravista – que, como vimos, configurou-se como uma<br />
forma disfarçada de cativeiro –, o emprego da mão-de-obra escravizada esteve presente<br />
nesta localidade até a abolição em 1888, e após esta data sob a forma de relações<br />
de trabalho livre, assalariadas ou não.<br />
Precipitadamente, parcela da historiografia nacional disseminou a idéia de que<br />
a “transição” do trabalho escravo para o livre teria ocorrido unicamente pela via da<br />
substituição do trabalhador cativo pelo trabalhador livre assalariado – esse último<br />
visto como sinônimo de branco e imigrante europeu. Por detrás desta perspectiva,<br />
emergia a idéia de que os ex-escravos teriam “desaparecido” do mercado de trabalho<br />
nacionais a partir desta “substituição” da mão-de-obra cativa pela livre 44 . A emergência<br />
das histórias de comunidades de remanescentes de quilombos em todo Brasil é<br />
um exemplo sugestivo de como esta afirmação deve ser revista.
BIBLIOGRAFIA CITADA<br />
AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das<br />
elites século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.<br />
BEIGUELMAN, Paula. A crise do escravismo e a grande imigração. São Paulo: Brasiliense,<br />
1987.<br />
CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste<br />
escravista - Brasil séc. XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.<br />
CONRAD, Robert Edgard. Os últimos anos da escravatura no Brasil. Rio de Janeiro:<br />
Civilização Brasileira, 1975.<br />
FAGUNDES, Elisabeth Macedo de. Bagé: no caminho da história do Rio Grande do Sul.<br />
Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1995.<br />
__________. Inventário Cultural de Bagé: um passeio pela história. Porto Alegre: Evangraf,<br />
2005.<br />
FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Confins meridionais: famílias de elite e sociedade agrária<br />
na Fronteira Sul do Brasil (1825-1865). Tese de Doutorado em História. Rio de Janeiro:<br />
UFRJ, 2007.<br />
_______. Escravos nas estâncias e nos campos: escravidão e trabalho na Campanha<br />
Rio-grandense (1831-1870). Conservatória: Anais do VI Congresso Brasileiro de História<br />
Econômica, CD-ROM, 2005.<br />
FIGUEIREDO, Candido. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Lisboa: 1922, 3ª edição.<br />
FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Modelos explicativos da economia escravista no Brasil.<br />
In: CARDOSO, Ciro Flamarion S. (org.) Escravidão e abolição no Brasil: novas perspectivas.<br />
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.<br />
FREITAS, Décio. O capitalismo pastoril. Porto Alegre: EST/UCS, 1980.<br />
GOMES, Flávio dos Santos; REIS, João José (orgs.). Liberdade por um fio: história dos<br />
quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.<br />
GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas<br />
no Rio de Janeiro - século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.<br />
__________. Experiências transatlânticas e significados locais: idéias, temores e narrativas<br />
em torno do Haiti no Brasil Escravista. Tempo, Rio de Janeiro: Sette Letras, v.<br />
7, n. 13, julho de 2002.<br />
195
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
GOULART, Jorge Salis. A formação do Rio Grande do Sul: geografia social, geografia da<br />
historia, psicologia social e sociologia. Porto Alegre: Globo, 1933.<br />
GUTFREIND, Ieda. O negro no Rio Grande do Sul: o vazio historiográfico. In:<br />
Estudos ibero-americanos: Anais do I Simpósio gaúcho sobre a escravidão negra. Porto<br />
Alegre: EDIPUCS, 1990.<br />
MAESTRI, Mário J. Pampa negro: quilombos no Rio Grande do Sul. In: REIS, J. J.;<br />
GOMES, Flávio. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia<br />
das Letras, 1996. p. 291-330.<br />
MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e cidadania no Brasil Monárquico. Rio de Janeiro:<br />
Jorge Zahar Editor, 2000. Série Descobrindo o Brasil.<br />
MONTI, Verônica. O abolicionismo: sua hora decisiva no Rio Grande do Sul. Porto Alegre:<br />
Martins livreiro, 1985.<br />
MOREIRA, Paulo Roberto Staudt; TASSONI, Tatiani de Souza. Que com seu trabalho<br />
nos sustenta: as cartas de alforria de Porto Alegre (1748-1888). Porto Alegre: EST Edições,<br />
2007.<br />
MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala. Mercado Aberto: Porto Alegre, 1988. 4ª edição.<br />
NOGUERóL, L. P. F. ; MIGOWSKI, V. ; Dias, M. S. ; Rodrigues, D ; PINTO, M.<br />
S. . Elementos da Escravidão do Rio Grande do Sul: a lida com o gado e o seguro<br />
contra a fuga na fronteira com o. In: XXXV ENCONTRO NACIONAL DE ECO-<br />
NOMIA, 2007, Recife - PE. Anais do XXXV Encontro Nacional de Economia, 2007.<br />
OSóRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da estremadura portuguesa<br />
na América: Rio Grande de São Pedro, 1737-1822. Tese (Doutorado em História).<br />
UFRJ/IFCHS, 1999.<br />
PETIZ, Silmei de S. Buscando a liberdade: as fugas de escravos da província de São Pedro para<br />
o além-fronteira (1815-1851) Passo Fundo: UPF Editora, 2006.<br />
PICCOLO, Helga Iracema L. A resistência escrava no Rio Grande do Sul. Caderno de<br />
Estudo. Porto Alegre: Curso de Pós-Graduação em História, 1992.<br />
REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. São<br />
Paulo: Companhia das Letras, 2003. Edição revista e ampliada.<br />
RIO GRANDE DO SUL. SECRETARIA DA ADMINISTRAçãO E DOS RE-<br />
CURSOS HUMANOS. DEPARTAMENTO DE ARQUIVO PÚBLICO. Documentos<br />
da escravidão: catálogo seletivo de cartas de liberdade acervo dos tabelionatos do interior do Rio<br />
Grande do Sul. Porto Alegre : CORAG, 2006.<br />
SCHWARCZ, Lilia Mortiz. O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e questão Racial<br />
no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.<br />
SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: EDUSC, 2001.<br />
196
SILVA, Eduardo. Fugas, revoltas e quilombos: os limites da negociação. In: REIS,<br />
João José; SILVA, Eduardo. Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista.<br />
São Paulo: Companhia das Letras, 1989.<br />
TABORDA, Tarcisio Antonio Costa. A abolição da escravatura em Bagé. 28 de setembro<br />
de 1884. Bagé: Museu Dom Diogo de Souza, 1984.<br />
VIANNA, Francisco José Oliveira. Populações meridionaes do Brasil: história, organização,<br />
psycologia. São Paulo: Nacional, 1933.<br />
ZARTH, Paulo Afonso. Do arcaico ao moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX.<br />
Ijuí: Ed. Unijuí, 2002.<br />
FONTES PESQUISADAS<br />
APERS:<br />
- Processos Crime, Piratini, Cartório Cível e Crime, Maço 26 e 27<br />
- Processos Crime, Caçapava do Sul, Cartório 1 o Civil e Crime, Maço 34 e 35.<br />
- Inventários, Bagé, período 1877-1883<br />
- Inventários, Caçapava do Sul, Cartório de órfãos e Ausentes, Maço 07.<br />
AHRS:<br />
- Fundo Estatística, Maço 01.<br />
- Fundo Estatística, Códice 1.<br />
- Fundo Autoridades Municipais, Caçapava do Sul, Correspondência Expedida,<br />
Maço 24, Caixa 10.<br />
- Fundo Polícia, Piratini, Maço 16.<br />
- Fundo Polícia, Bagé, Maço 44.<br />
- Fundo Justiça, Caçapava do Sul, Maço 5.<br />
197
4<br />
elites e redes de<br />
soCiAbilidAde
vAlsAs, ContrAdAnçAs e bAilAdos: esPAços de<br />
soCiAbilidAde entre Agentes dA elite no rio grAnde<br />
de são Pedro no séCulo xIX.<br />
Adriano Comissoli¹<br />
Resumo: Este artigo se dedica a apresentar uma interpretação do modo como surgiram e<br />
se desenvolveram os relacionamentos sociais que permitiram os matrimônios de magistrados régios<br />
com mulheres pertencentes a sociedade já estabelecida do Rio Grande de São Pedro. Para esse efeito,<br />
analisamos os espaços de sociabilidade disponíveis aos membros da elite sul rio-grandense entre os<br />
anos de 1808 a 1831 e sua capacidade de aproximar os diferentes membros da mesma em convivência<br />
sociável. A proposta é explorar os eventos sociais como oportunidades para introduzir os magistrados<br />
na sociedade e promover políticas matrimoniais.<br />
Palavras-chave: elite – magistrados – matrimônio – sociabilidade.<br />
O<br />
período compreendido entre os anos de 1808 e 1831 contemplou<br />
alterações decisivas na formação sócio-política da América portuguesa,<br />
dentre as quais a que mais se destaca é a ruptura da unidade<br />
política entre Portugal e Brasil. Nesse cenário, foram importantes para o processo as<br />
transformações nas bases institucionais administrativas ocorridas tanto antes quanto<br />
depois da separação política. O Rio Grande de São Pedro conheceu neste momento<br />
alterações fundamentais em sua malha administrativa que implicaram, dentre outros<br />
fenômenos, a solidificação de conexão com o centro do poder situado no Rio de<br />
Janeiro. Igualmente, passaram a circular pela capitania/província uma série de oficiais<br />
administrativos até então inexistentes. Dentre os mesmo merecem destaque os<br />
magistrados régios, pois não só representavam o inicio do funcionamento de uma<br />
Justiça profissional, como os indivíduos que ocuparam tais cargos terminaram por<br />
desempenhar importante papel no desenvolvimento político do extremo sul. Coincidência<br />
ou não três bacharéis atuantes no Rio Grande foram escolhidos pelos eleitores<br />
e pelo imperador para compor o primeiro senado brasileiro, ainda que por diferentes<br />
províncias.² No Continente de São Pedro estes membros da administração<br />
¹ Mestre em História Social pela UFF. Doutorando do PPGHIS-UFRJ. Bolsista CAPES.<br />
² Foram eles Luís Correia Teixeira de Bragança pelo Rio Grande de São Pedro, José Teixeira da Matta Bacellar por<br />
Sergipe e José Feliciano Fernandes Pinheiro por São Paulo. Bragança, contudo, faleceu antes de tomar posse sendo<br />
substituído pelo padre Antônio Vieira da Soledade.<br />
201
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
nascidos fora da capitania passaram por meio de migração, matrimônios, sociedades<br />
e alianças diversas a compor a elite local oferecendo à mesma um caráter misto, qual<br />
seja, mesclando integrantes oriundos dos grandes proprietários de terra e militares<br />
nascidos na região com estes novos elementos vindo de fora.<br />
Para compreender os laços que atrelavam os indivíduos faz-se necessário<br />
identificar os relacionamentos desenvolvidos entre os mesmo, bem como a forma<br />
como os quais se originavam e desenvolviam. Nosso estudo se dirige a analisar as<br />
formas de integração entre os oficiais administrativos e os representantes da elite<br />
enraizada no Rio Grande de São Pedro, percebendo aí uma complementaridade que<br />
será fundamental para o desenvolvimento política da região e mais amplamente do<br />
Brasil durante o século XIX. Contemplamos aqui os meios de sociação dos membros<br />
da elite em estudo, dissertando sobre os espaços de sociabilidade de que dispunham<br />
para conhecerem-se uns aos outros e interagirem. São abordadas as reuniões<br />
públicas, os encontros cotidianos, as irmandades religiosas, a convivência acadêmica<br />
e as atividades de entretenimento enquanto oportunidades de criação de elos e de<br />
convívio. A fim de desvendar as situações que fomentam a sociabilidade do grupo<br />
utilizamos narrativas diversas que nos fornecem indícios sobre o tema, cruzando tais<br />
informações com dados empíricos coletados em outros documentos.<br />
202<br />
OS ESPAçOS DE SOCIABILIDADE NO<br />
RIO GRANDE DE SãO PEDRO<br />
Eis o fato. O desembargador Luís Correia Teixeira de Bragança, então ouvidor<br />
da comarca de Santa Catarina, casou-se com Josefa Eulália de Azevedo, às<br />
19 horas do primeiro dia do mês de fevereiro de 1807. Eis nossa interpretação.<br />
Sua união representou a aliança entre um magistrado régio representante do poder<br />
central e um ramo da primeira elite terratenente do Rio Grande de São Pedro cujas<br />
raízes se firmavam no século XVIII. Raciocínio semelhante pode ser estendido à<br />
união do magistrado José Maria de Sales Gameiro Mendonça Peçanha com Maria<br />
Pulquéria Menna Barreto ou à do juiz de fora Caetano Xavier Pereira de Brito com<br />
Francisca Godinho de Oliveira Valdez. Tratavam-se todos três de ministros régios<br />
que tomavam casamento com mulheres pertencentes às melhores famílias do extremo<br />
sul. Josefa Eulália era viúva do brigadeiro Rafael Pinto Bandeira, um dos homens<br />
mais ricos e poderosos do setecentos sul rio-grandense. Maria Pulquéria era filha de<br />
João de Deus Menna Barreto, militar que vivenciara as diversas campanhas do Prata<br />
e que desenvolveria intensa atividade política, fortemente alicerçada no largo alcance<br />
de sua parentela. Ao final de sua vida seria agraciado com os títulos de barão e mais<br />
tarde visconde de São Gabriel. Francisca, por sua vez, era filha do coronel Manuel
Godinho Leitão de Alboim, de quem sabemos pouco. Dessa maneira, esses juízes e<br />
ouvidores enviados ao sul pela Coroa portuguesa se enraizavam junto à sua população<br />
por meio de matrimônios que os aproximavam de importantes figuras da região.<br />
Eles logo abandonariam a carreira de juristas preferindo realizar uma conversão de<br />
agentes do poder central para representantes de uma elite local. Essa busca por estabelecer-se<br />
junto à sociedade sulista mostrou-se bastante bem sucedida, do ponto de<br />
vista político, uma vez que os três alcançaram postos políticos de destaque quando<br />
da reformulação das instituições de governo após a independência.³ Contudo, se o<br />
efeito social destas uniões mostra-se claro à nossa observação feita a posteriori, restam<br />
ainda dúvidas sobre o modo como se processa o encontro de tais personagens e sobre<br />
a evolução de tais relacionamentos. A pergunta que objetivamente formulamos é<br />
como se conhecem tais pessoas e como se engendram tais matrimônios?<br />
A 20 de junho de 1805 o então ouvidor da comarca de Santa Catarina, Luís<br />
Correia Teixeira de Bragança, encontrava-se instalado na vila de Porto Alegre, cumprindo<br />
a ordem régia que lhe determinava assumir como vogal e juiz executor da<br />
Junta da Fazenda do Rio Grande de São Pedro e, para tanto, residir em sua capital. 4<br />
Em suas obrigações ele tratava diretamente com os membros da Câmara municipal,<br />
presidindo suas sessões, mas também como governador Paulo José da Silva Gama<br />
e com uma infinidade de oficiais menores. Contudo, sua vivência não se restringia<br />
aos aspectos burocráticos e ele também passou a relacionar-se com a comunidade<br />
porto-alegrense. Parece haver pouca dúvida de que foi nessa localidade que o bacharel<br />
travou contato com a viúva do brigadeiro Rafael Pinto Bandeira, a senhora Josefa<br />
Eulália, dada a moradia dela no termo da vila. No ano seguinte, em 19 de julho, o<br />
príncipe regente de Portugal passava decreto autorizando o ministro a casar-se com<br />
a dita. 5 Quem primeiro se aproximou de quem é uma pergunta que não temos condições<br />
de responder. Não parece fora de propósito imaginar que o ouvidor tomasse<br />
conhecimento, a partir de sua chegada à vila, de quem era a viúva do brigadeiro, que<br />
herdara uma meação de cerca de 30 contos de réis e que segundo relatos da época<br />
possuía uma numerosa parentela. 6 Por outro lado, não há motivos para duvidar<br />
³ COMISSOLI, Adriano. “A Casa da família Pinto Bandeira: estratégias familiares de perpetuação de poder no Rio<br />
Grande de São Pedro (sécs. XVIII-XIX)”. In: Vi Fórum FAPA, 2007, Porto Alegre. Cadernos FAPA - Especial : VI<br />
Fórum FAPA 2007, 2007. www4.fapa.com.br/cadernosfapa/artigos/edicaoSPforum07/artigo12.pdf ; COMIS-<br />
SOLI, Adriano. “O juiz de fora que veio para ficar: um estudo sobre circulação e enraizamento de oficias da Justiça<br />
no império luso-brasileiro de Dom João e Dom Pedro”, In. Revista Territórios e Fronteiras. V. 1 N. 1, Programa<br />
de Pós-graduação - Mestrado em História, jan-jun 2008, pp. 244-262; COMISSOLI, Adriano. “O juiz de dentro:<br />
magistratura e ascensão social no extremo sul do Brasil, 1808-1831”, In. V Jornadas Regionais GT Mundos do<br />
Trabalho/Revista AEDOS, v. 2, nº 4, novembro 2009.<br />
4 AHU-SC. Carta do ouvidor geral da comarca de Santa Catarina ao príncipe regente, cx. 9, doc. 479.<br />
5 AHU-RS. Requerimento do ouvidor da comarca de Santa Catarina ao príncipe regente, cx. 11, doc. 660.<br />
6 APERS. Inventário de Rafael Pinto Bandeira, 1º Cartório de órfãos de Porto Alegre, maço 12, processo 188, ano<br />
1796. MAGALHãES, Manoel Antônio de. “Almanack da Vila de Porto Alegre”, In: Revista do instituto Histórico<br />
e Geográfico Brasileiro, vol. 30, 1867. P. 62.<br />
203
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
de que a senhora Josefa Eulália obtivesse informações sobre o magistrado, dado o<br />
tamanho reduzido de Porto Alegre e a novidade que a chegada do primeiro oficial<br />
de Justiça profissional da capitania se configurava. Com isso queremos afirmar que<br />
no plano dos interesses sociais havia motivos para ambos desejarem a aproximação.<br />
Com os outros dois magistrados o percurso foi bastante semelhante. Caetano<br />
Xavier Pereira de Brito assumiu como juiz de fora no ano de 1820, exercendo-o até<br />
1825, o que implica ter vivido como ministro da Justiça o processo de emancipação<br />
brasileiro. Entretanto, quaisquer que fossem as atribulações do período elas não o<br />
impediram de conhecer sua futura esposa e de tomar matrimônio durante seu mandato<br />
como juiz. Para isso, ele solicitou e recebeu do príncipe Dom Pedro licença para<br />
efetivar suas bodas. 7 Não difere do caso de Mendonça Peçanha que após atuar como<br />
juiz de fora em Porto Alegre foi designado a assumir a recém criada vara da vila de<br />
Rio Pardo em 1820. Se já conhecia Maria Pulquéria ou se veio a conhecê-la somente<br />
em Rio Pardo não temos como esclarecer, mas podemos afirmar que no ano de 1821<br />
os dois casaram-se na “nas casas de residência e no oratório do Ilustríssimo Marechal<br />
João de Deus Menna Barreto” na mesma vila. Era este o segundo casamento de<br />
Maria, então viúva de um capitão do regimento de Dragões. 8<br />
É óbvio os magistrados do monarca não eram os únicos homens de fora da<br />
capitania que contraíam matrimônio com as mulheres da mesma. A população do<br />
Rio Grande de São Pedro encontrava-se em franca expansão graças, em grande medida<br />
ao fluxo migratório. Muitos dos oficiais de vereança eram oriundos de foram<br />
do Rio Grande de São Pedro. Ao menos 53% dos 64 oficiais da Câmara de Porto<br />
Alegre eram portugueses do reino e outros 31,2% provinham de outras capitanias<br />
Americanas, da Colônia do Sacramento ou dos Açores. 9 A maioria desses cidadãos<br />
eram casados. Na listagem de elegíveis de 1814 de um total de 62 sujeitos listados, 47<br />
eram casados e mais um era viúvo. 10 Considerando que a maioria dos sujeitos migrara<br />
para o Rio Grande podemos concluir que seus casamentos também significaram<br />
enraizamento na sociedade sulista, sendo um signo de aceitação e de posicionamento<br />
dentro da mesma.<br />
Antônio José da Silva Guimarães contratou seu casamento com Maurícia Antônia<br />
de Oliveira, filha de Felisberto Pinto Bandeira. Antônio era natural do bispado<br />
de Braga em Portugal, mas Maurícia nascera na freguesia do Triunfo no extremo<br />
7 AHCMPA. Auto de justificação matrimonial de Caetano Xavier Pereira de Brito e Francisca Godinho de Oliveira<br />
Valdez, 1822/62.<br />
8 AHCMPA. Livro 3º de casamentos da freguesia de Rio Pardo, fl. 163.<br />
9 COMISSOLI, Adriano. “A vila coroada: perfil social dos vereadores de Porto Alegre (1808-1828)”, In. Anais: produzindo<br />
história a partir de fontes primárias. Vii mostra de pesquisa do Arquivo Público do Rio Grande<br />
do Sul. Porto Alegre: Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas – CORAG, 2009. P. 149.<br />
10 ANRJ. Caderno de Informadores de 1814, Desembargo do Paço, cx. 187, PAC. 2, doc. 18.<br />
204
meridional americano. Enquanto Antônio era comerciante seu sogro era mais um<br />
representante da estirpe dos Pinto Bandeira e dedicava-se à criação de gado. Domingos<br />
de Almeida Lemos Peixoto também efetuou um bom casamento. Nascido na cidade<br />
do Porto, ao norte de Portugal, ele deixou sua terra natal muito novo e dirigiuse<br />
ao Rio de Janeiro, passando depois a Porto Alegre, onde estabeleceu comércio. Na<br />
vila meridional ele terminou por casar-se com Luísa Joaquina da Silveira, natural de<br />
Viamão e filha de um capitão de Ordenanças e camarista, José Francisco da Silveira<br />
Casado, na altura do ano de 1790. 11 Silveira Casado não era estranho ao comércio<br />
e criava gado em quantidade junto a seus sócios aproximados por parentesco. Era<br />
freqüente participante da Câmara porto-alegrense e junto a seu irmão e filhos dominava<br />
os postos da tropa de Ordenanças. 12 Por fim, Almeida Peixoto também casaria<br />
uma de suas filhas com um negociante/camarista, o senhor Antônio Bernardes Machado,<br />
homem de ativa participação política nos eventos da emancipação do Brasil. 13<br />
Roteiro semelhante foi percorrido por José Antônio da Silva Neves. Ele saiu<br />
da cidade do Porto para o Continente de São Pedro “de menor idade”, ou seja,<br />
jovem demais para haver se casado. No ano de 1795 se contratava para casar com<br />
Inocência, filha do capitão Antônio José Martins Bastos, que dividia seu tempo entre<br />
o comércio e a Câmara. 14 Os depoimentos de sua justifacação matrimonial não nos<br />
permitem saber mais do que isso, mas descobrimos que Silva Neves estava inscrito<br />
na lista de comerciantes do Almanak de Porto Alegre em 1808, foi vereador em<br />
1814 e ostentou o posto de capitão quando do ano de sua morte (1820). 15 Seu sogro<br />
seguira o mesmo percurso: imigrante português que se tornou comerciante, casou<br />
com uma mulher nascida no sul do Brasil e alcançou cargo na Câmara.<br />
Este ciclo de casamentos entre migrantes, especialmente os oriundos de Portugal,<br />
e os descendentes femininos de outros que se deslocaram ao Rio Grande<br />
aponta para um mecanismo de recrutamento social tanto do corpo mercantil quanto<br />
dos vereadores e demais oficiais da Câmara de Porto Alegre. 16 De um ponto de vista<br />
funcionalista estas uniões parecem mesmo um tanto óbvias, visto que garantiam a<br />
11 AHCMPA. Auto de justificação de matrimônio de Domingo de Almeida lemos Peixoto e Luís Joaquina da Silveira,<br />
1790/18.<br />
12 COMISSOLI, Adriano. Os “homens bons” e a Câmara Municipal de Porto Alegre (1767-1808). Porto Alegre:<br />
Editora da UFRGS, 2008.<br />
13 APERS. Inventário de Antônio Bernardes Machado, 1º Cartório de órfão de Porto Alegre, maço 33, processo<br />
818, ano 1824. ANRJ. Caderno de Informadores de 1818, Desembargo do Paço, cx. 187, PAC. 2, doc. 18. PICCO-<br />
LO, Helga Iracema Landgraff. O processo de independência no Rio Grande do Sul, in. MOTA, Carlos Guilherme<br />
(org.). 1822 – Dimensões, São Paulo, Editora Perspectiva, 1972.<br />
14 AHCMPA. Auto de justificação de matrimônio de José Antônio da Silva Neves e Inocência Martins de Oliveira,<br />
1795/55.<br />
15 MAGALHãES, Manoel Antônio de. “Almanack da Vila de Porto Alegre”, Op. Cit. P. 65. APERS. Inventário de<br />
José Antônio da Silva Neves, 1° Cartório de órfãos de Porto Alegre, processo 701, maço 28, ano 1820.<br />
16 COMISSOLI, Adriano. Os “homens bons” e a Câmara municipal de Porto Alegre (1767-1808). Op. Cit.<br />
COMISSOLI. Adriano. “A vila coroada”. Op. Cit.<br />
205
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
continuidade do grupo ligada à administração local ou fundiam, no caso dos magistrados,<br />
duas legitimidades diferentes, otimizando o controle dos atores sobre os<br />
recursos da sociedade. Quando o desembargador Luís Correia Teixeira de Bragança<br />
desposou Josefa Eulália de Azevedo uniu-se o poder institucionalizado da Justiça<br />
régia com a riqueza material e a influência das relações pessoais dos grandes proprietários<br />
de terra do Rio Grande. Entretanto, tal interpretação apresenta o inconveniente<br />
de descrever estes sujeitos como dotados de uma hiperracionalidade, como se<br />
estivessem sempre a calcular cuidadosamente seus passos e ações. Se por um lado é<br />
necessário considerar capacidade dos sujeitos de criar estratégias e aplicá-las, por outro<br />
devemos igualmente respeitar as incertezas e especialmente o papel que o acaso<br />
desempenhava em suas vidas. É necessário ter em mente que estes casamentos, por<br />
mais que pudessem ser planejados tendo em vista interesses objetivos, resultavam<br />
igualmente de encontros fortuitos e da convivência entre os atores sociais localizados<br />
na vila. Explicar de modo menos mecanicista o encontro entre estes sujeitos,<br />
o estabelecimento dos primeiros laços e a evolução dos relacionamentos é nossa<br />
proposta para o presente artigo. A resposta que propomos encontra-se nos espaços<br />
de sociabilidade, que, embora não descrevam nenhum dos casos específicos aqui<br />
trabalhados, estavam disponíveis aos integrantes desta sociedade na época.<br />
Oportunidades para conhecer pessoas e para conviver com as mesmas não<br />
faltavam na Porto Alegre do século XIX. Elas estavam dispersas no cotidiano e talvez<br />
por se tratarem de algo tão corriqueiro tenham escapado ao registro documental<br />
mais sistemático, fato que se agrava pela inexistência de imprensa antes de 1827. 17<br />
Existem, contudo, indícios e rastros que nos permitem inferir as oportunidades de<br />
sociação dos sujeitos, em especial em momentos lúdicos. A teoria da forma lúdica de<br />
sociação como evento de convivência sociável que supera o imediatismo dos interesses<br />
dos sujeitos participantes é expressa por Georg Simmel. Para o sociólogo alemão<br />
a reunião de homens em torno de grupos de convivência – sociedades econômicas,<br />
comunidades de culto, irmandades de sangue – traduz não somente necessidades e<br />
interesses específicas, mas é fruto igualmente de um impulso de estar justamente socializado.<br />
Dessa forma, um ajuntamento de amigos carrega não somente o interesse<br />
de fortalecer ligações sociais, mas igualmente a satisfação de compartilhar a presença<br />
dos mesmos. 18 Essa teoria implica reduzir por alguns instantes em nossa análise a<br />
criação de estratégias conscientes por parte dos indivíduos, mas abre espaço, entretanto,<br />
para os encontros casuais e para os contatos inesperados. Portanto, ela<br />
17 PICCOLO, Helga Iracema Landgraff. “O processo de independência numa região fronteiriça: o Rio Grande de<br />
São Pedro entre duas formações históricas”, In. JANCSó, Istvan. independência: história e historiografia. São<br />
Paulo: Ed. Hucitec/FAPESP, 2005. P. 585, nota 25.<br />
18 SIMMEL, Georg. Questões fundamentais de sociologia: indivíduo e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar<br />
Ed., 2006. Em especial o capítulo 3.<br />
206
ecupera ao mesmo tempo o acaso e a incoerência das ações sociais, pois ainda que<br />
os atores sejam capazes de se posicionar estrategicamente no tabuleiro social eles<br />
não precisam estar jogando o tempo todo. Conquanto a matriz sociológica de Max<br />
Weber seja distinta da de Simmel é pertinente lembrar que o primeiro não considera<br />
que toda ação perpetrada pelos sujeitos possa ser considerada ação social. 19 Neste<br />
mesmo sentido, Fredrik Barth também não descreve que toda ação de indivíduos<br />
possa ser descrita como transação. 20 O que estamos propondo na leitura efetivada<br />
sobre a sociabilidade é pensá-la junto ao fortalecimento de laços e interesses sociais,<br />
mas governada igualmente pelo sentimento de satisfação de compartilhar a presença<br />
de outros sujeitos, notadamente também pertencentes ao círculo da elite sócioeconômica<br />
e política do Rio Grande de São Pedro.<br />
No Brasil do início do século XIX os espaços de interação entre as pessoas<br />
se multiplicavam, aumentando as possibilidades de sociabilizar. Os espaços públicos<br />
têm sido analisados majoritariamente como locais de discussão da política em grande<br />
medida orientada pela ampliação da esfera pública, fenômeno de destaque para a<br />
época. 21 “E a rua transformou-se em espaço de manifestações políticas”. 22 Contudo,<br />
ainda que estes espaços se convertessem em locais de manifestações políticas eles<br />
eram antes de tudo locais de convivência cotidiana e esse caráter, portanto, misto<br />
não pode se perder de vista. A Ra era antes de tudo o local do movimento do dia a<br />
dia, dos encontros na planejados e das conversas corriqueiras. As tavernas, as boticas,<br />
as livrarias e demais lojas comerciais são descritas por vezes como propiciadoras<br />
do debate público da política, pois que serviam como pontos de encontro, mas podemos<br />
igualmente interpretá-los como oportunidades de sociação. Nesse sentido, o<br />
tema da conversa – mesmo sendo de conteúdo político – servia tão somente de “suporte<br />
indispensável do estímulo desenvolvido pelo intercâmbio vivo do discurso”. 23<br />
Em outras palavras, ainda que conversar sobre política servisse para transmitir idéias<br />
e informações por vezes se resumia a compartilhar a companhia dos semelhantes; o<br />
tema agregava os sujeitos em torno de um ponto comum sem, contudo, mobilizá-los<br />
a discutir objetivamente. Avaliar se a conversa assumia um viés subjetivo servindo<br />
somente de palco para a sociabilidade ou se tornava-se objetiva impedindo a mesma<br />
é algo impossível ao historiador que se dedica ao oitocentos, visto não ser possível<br />
19 WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Editora Universidade<br />
de Brasília, 1994.<br />
20 BARTH, Fredrik. Process and form in social life. Selected essays of Fredrik Barth: volume i. London:<br />
Routledge & Kegan Paul, 1981.<br />
21 SLEMIAN, Andréa. Vida política em tempo de crise: Rio de Janeiro (1808-1824). São Paulo: Hucitec, 2006.<br />
22 PICCOLO, Helga Iracema Landgraff. “O processo de independência numa região fronteiriça...”, Op. Cit. 585-<br />
586.<br />
23 SIMMEL, Georg. Op. Cit. P. 75.<br />
207
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
resgatar os debates efetuados no cotidiano. Contudo, serve de aviso que nem toda a<br />
conversação assumia caráter objetivo qualquer que fosse o assunto em pauta podendo<br />
operar tão somente como interação sociável desprovida de outros interesse.<br />
Tendo clara essa possibilidade podemos pensar que os moradores de Porto<br />
Alegre tinham disponível diante de si tanto a expressão de opiniões políticas quanto<br />
a interação sociável por puro prazer. Segundo o naturalista francês Auguste de Saint-<br />
Hilaire, os habitantes da dita vila tinham o hábito de “frequentemente palestrar nas<br />
lojas, mas não há nenhum local de reunião”, ou seja, era nestes espaços de convívio<br />
diário que se operavam os contatos e as sociabilidades. 24 As tavernas eram locais de<br />
encontro tão comuns que em dado momento tiveram de ser vigiados. Em ordem ao<br />
Coronel Francisco Antônio de Borba, a Junta de Governo Provisório da capitania<br />
determinava em 1822<br />
Averiguará o objecto da reunião dos Cidadãos no cazo de se ajuntarem<br />
em lugar e numero que cauze suspeita dando conta a este Governo<br />
no cazo que o objecto de taes ajuntamentos não seja de natureza<br />
da tranqüilidade publica e o bem do estado exija que immediatamente<br />
desbaratados pela força, e prezos os que a elles tenhão concorrido. (...)<br />
Não tolere que as Tavernas, ou quaesquer outras Cazas aonde se vender<br />
vinho, genebra ou água-ardente estejão abertas de noite, depois do<br />
toque da Caixa; (...) E aos donos das mencionadas Cazas, ou Tavernas<br />
que consentirem nelas ajuntamentos de homens brancos, ou faltarem<br />
ao que fica ordenado a respeito d’aqueles os fará prender e deter na<br />
prizão por tempo razoável. 25<br />
A ordem indica, ao contrário do que observou o viajante francês, os estabelecimentos<br />
comerciais como locais de reunião. Os ajuntamentos dos cidadãos em<br />
nenhum momento foram proibidos, pois não eram em si algo ameaçador ou irregular,<br />
importava saber se o objetivo das mesmas era tão somente socializar ou<br />
intentar alguma mobilização política. O que se procurou com a determinação não<br />
foi destruir os espaços cotidianos em sua função sociável, mas policiar o teor das discussões<br />
neles travadas a fim de impedir a formação de facções políticas consideradas<br />
subversivas e ainda mais perigosas dada a instabilidade do início da década de 1820.<br />
As manifestações políticas do ano de 1821 haviam deixado as autoridades em alerta,<br />
bem como a possibilidade de mobilização de tropas militares contrárias à efetivação<br />
da emancipação brasileira. 26<br />
24 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,<br />
2002. P. 59.<br />
25 Revista do Archivo Publico do Rio Grande do Sul, n. 7, set. 1922, p. 194.<br />
26 PICCOLO, Helga Iracema Landgraff. Op. Cit.<br />
208
Os homens do século XIX tinham oportunidade de conviver socialmente<br />
não somente nas lojas e nas tavernas. As irmandades religiosas eram igualmente instrumentos<br />
aglutinadores. Elas desempenhavam um papel aristocratizante para seus<br />
membros, distinguindo hierarquias sociais de acordo com o pertencimento a uma<br />
ou outra confraria. Dessa forma, eram simultaneamente indicadoras e mantenedoras<br />
da hierarquia social. Contudo, também conferiam um sentido de corpo aos irmãos<br />
que os interligava e dava-lhes um sentimento de pertença a algo mais amplo. 27 Dessa<br />
maneira, se a entrada em uma determinada irmandade religiosa revela algo da<br />
categoria social do indivíduo admitido, a vontade de partilhar sua devoção religiosa<br />
por um santo específico junto a outros crentes pode ser avaliada como igualmente<br />
importante. A reunião em torno das irmandades, assim como junto à Misericórdia<br />
local, expressava a convergência de grupos sociais tanto quanto de particularidades<br />
devocionais, elementos que aproximavam os sujeitos e possibilitavam a convivência<br />
sociável que por sua vez permitia o surgimento de laços mais duradouros entre os<br />
mesmos. As reuniões das irmandades, as procissões e o acompanhamento dos funerais<br />
dos irmãos promovia o contato dos membros em situações que não incidiam<br />
necessariamente sobre a política da época.<br />
É bem verdade que a política e a religião caminhavam em proximidade no período<br />
de modo que as celebrações religiosas respaldavam as legitimidades políticas.<br />
Dessa forma, a luta pelas hierarquias geravam conflitos relacionados a preeminência<br />
dos poderes estabelecidos. O panorama era especialmente sensível nos anos 1820<br />
após a saída do governador Conde da Figueira e a instalação de governos provisórios<br />
dos quais participavam militares e civis de expressão local e regional. No ano<br />
de 1822 a Junta de Governo Provisório advertia ao juiz de fora e aos vereadores que<br />
atendendo ao costume vigente de sentarem-se os governadores e seus ajudantes de<br />
ordens sob o arco do cruzeiro da igreja matriz e Porto Alegre quando das festividades<br />
oficiais decorridas no templo que o mesmo deveria se praticar. Dessa maneira<br />
“há por bem a mesma Exma. Junta prevenir aos Senhores Dr. Juiz de Fora Presidente<br />
e oficiais da Câmara desta Capital que nas Festividades a que o Governo assistir<br />
na Matriz terá imediatos a si, e logo abaixo do Arco Cruzeiro os seus Ajudantes de<br />
Ordens, e oficiais do Estado Maior”. 28 A decisão desabonava os vereadores que se<br />
consideravam detentores da distinção de sentarem-se no mesmo local, considerado<br />
de maior prestígio.<br />
Outro propiciador de sociação operava fora do nível local e envolvia apenas<br />
o grupo mais restrito de sujeitos que estudaram na Universidade de Coimbra. A vida<br />
27 KÜHN, Fábio. Gente da Fronteira: família, sociedade e poder no sul da América Portuguesa – século<br />
XViii. Niterói: Tese de Doutorado, PPG em História da Universidade Federal Fluminense, 2006.<br />
28 AHRS. Carta da Junta de Governo Provisório para a Câmara de Porto Alegre, códice A 1-11, fl. 329v-330.<br />
209
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
universitária que se desenvolvia para os jovens estudantes abarcava não somente a<br />
formação intelectual muito acima da média da população, mas igualmente a socialização<br />
com indivíduos de fora do círculo familiar e da comunidade local. “Em Coimbra,<br />
a formação em Direito era um processo de socialização destinado a criar um<br />
senso de lealdade e obediência ao rei”. 29 Para além do serviço ao rei a vida acadêmica<br />
forjava elos entre os estudantes que por anos conviviam mais entre si do que com<br />
suas famílias ou parentes. Em Coimbra o uso do uniforme universitário distinguia<br />
os estudantes dos demais habitantes da cidade, sendo os primeiros famosos por suas<br />
bebedeiras e confusões, elementos que geravam atrito com os moradores. Essas<br />
experiências comuns, muitas delas não acadêmicas, delimitavam o grupo dos estudantes<br />
e futuros bacharéis como algo autônomo da sociedade, mas compartilhando<br />
vivências entre si. 30 Afastados de suas famílias e das solidariedades mais imediatas os<br />
universitários desenvolviam sob forma de amizade e coleguismo – ao mesmo tempo<br />
que por rixas e concorrência – formas de sociabilidade que não necessariamente<br />
dependiam de estratégias de obtenção de prestígio ou de interesses práticos, mas<br />
muitas vezes do afeto e do reconhecimento entre iguais. Ou seja, formas autônomas<br />
de sociabilidade definidas pela “satisfação de estar justamente sociabilizado”. 31<br />
Esse tipo de socialização e de elos formados ao tempo da universidade já<br />
haviam sido mapeados para período anteriores e posteriores às três primeiras décadas<br />
do século XIX. 32 Em todos os casos, entretanto, ficava aberta a possibilidade de<br />
outras alianças a serem formadas, por vezes de caráter pessoal. Não seria este o caso<br />
dos juízes que se casaram com mulheres do extremo sul? “Mais ainda, os magistrados<br />
podiam também servir de mediadores entre grupos ou outras fontes de poder<br />
conflitantes entre si estabelecendo, dessa forma, uma série de alianças temporárias”. 33<br />
Nossa leitura busca justamente interpretar que tais casamentos incorporavam uma<br />
política de mediação a qual era estimulada pela Coroa na medida em que autorizava<br />
os matrimônios de seus ministros. Considerando que Teixeira Bragança serviu em<br />
Porto Alegre como juiz de fora estando previamente casado com uma moradora da<br />
vila, bem como Caetano Xavier que seguiu no mesmo cargo após desposar Francisca<br />
Godinho, podemos facilmente questionar quão desligada de contendas locais<br />
sua atuação se tornara. Mendonça Peçanha, por exemplo, após seu matrimônio veio<br />
29 SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979. P. 60.<br />
30 Idem, ibidem. KIRKENDALL, Andrew J. Mates. Male student culture and the making of a political class<br />
in nineteenth-century Brazil. Lincoln London: University of Nebraska Press, 2002.<br />
31 SIMMEL, Georg. Op. Cit. P. 64.<br />
32 CARVALHO, José Murilo. A Construção da Ordem: a elite política imperial & Teatro de Sombras: a política<br />
imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. SCWARTZ, Stuart. Op. Cit. VARGAS, Jonas Moreira.<br />
Entre a paróquia e a corte: uma análise da elite política do Rio Grande do Sul (1868-1889). Porto Alegre: Dissertação<br />
de Mestrado, PPGH-UFRGS, 2007.<br />
33 SCWARTZ, Stuart. Op. Cit. P. 63.<br />
210
a assumir a ouvidoria da comarca, a mais alta posição judiciária do Rio Grande de<br />
São Pedro, na mesma época que se sogro, o marechal João de Deus Menna Barreto,<br />
exercia a presidência da Junta de Governo Provisório. Ambos seriam, inclusive,<br />
acusados de valer-se da onipresença familiar no aparato de governo e da Justiça para<br />
perseguir desafetos político. 34<br />
Pois a vivência de Mendonça Peçanha em Coimbra havia lhe garantido ao<br />
menos uma experiência singular e particularmente radical. Estudando em Coimbra<br />
à época da invasão francesa ele integrou o Corpo Acadêmico e a 7ª Brigada de Ordenanças<br />
que atuaram no combate ao inimigo. O tenente-coronel que estava encarregado<br />
do comando do Corpo Acadêmico era então José Bonifácio de Andrada e<br />
Silva, que lhe elogiou a atuação militar. 35 Anos mais tardes ambos estariam envolvidos<br />
na defesa das idéias de autonomia do reino do Brasil frente ao de Portugal, ainda<br />
que a atuação de Peçanha passasse muito menos percebida que a de José Bonifácio.<br />
Essa aventura militar não apenas colocou-o em proximidade ao futuro “patriarca<br />
da independência” como pode ainda ter angariado a simpatia de seu futuro sogro,<br />
homem calejado nos combates platinos.<br />
Ao considerarmos tais sociabilidades, afastando-as da busca imediata pela<br />
ampliação de redes e de alcance a recursos sociais, podemos conceber como os laços<br />
entre sujeitos se davam muitas vezes de forma casual e não premeditada. Ao mesmo<br />
tempo, se consideramos a vida cotidiana com seus encontros e desencontros, mesmo<br />
que dotada de regras de convívio e rituais, deixamos de entender os sujeitos somente<br />
como oficiais da administração ou potentados locais para dotá-los de maior humanidade.<br />
Eles estavam envolvidos não somente com a administração pública ou mesmo<br />
com a gerência de suas riquezas, mas estavam constantemente sendo requisitados<br />
pelos diferentes relacionamentos que haviam construído. Por vezes os mesmos se<br />
fundiam em suas demandas. Retornando aos exemplos práticos que selecionamos,<br />
os juízes e ouvidores não restringiam suas vidas aos seus ofícios, conquanto socialmente<br />
fossem avaliados também pelos cargos que desempenhavam. Devemos aqui<br />
recordar a noção de Fredrik Barth de que os atores sociais são compostos de status<br />
múltiplos e que os mesmos são ativados ou solicitados conforme as transações concretas<br />
vão se sucedendo. Esta avaliação requer grande sensibilidade a fim de evitar<br />
uma leitura funcionalista. Para tanto, vale lembrar a idéia de que os sujeitos buscam<br />
soluções para seus dilemas primeiro dentro do seu círculo de relações.<br />
For great number of our purposes we do not use random methods, or<br />
classified directories, to locate suitable alters; on the contrary, we turn<br />
34 Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Vol. 8. Porto Alegre, AHRS, 1984. P. 159-166.<br />
35 BNRJ. José Maria de Sales Gameiro Mendonça Peçanha, Setor de Manuscritos, Coleção de Documentos Biográficos,<br />
C 667,7.<br />
211
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
precisely to those persons about whom we already have information<br />
incidentally obtained in other connections, i.e., that we ‘know’, to provide<br />
us with a range of potential candidates. 36<br />
Portanto, a seleção de candidatos aos intentos dos sujeitos passa, antes de<br />
mais nada, pelas relações pré-estabelecidas e estas, por sua vez, dependem da progressão<br />
de relacionamentos simples a outros mais complexos. Significa que os espaços<br />
de sociabilidade da época tinham o importante papel de contatar sujeitos pela<br />
primeira vez ou de multiplicar os status envolvidos entre os mesmos. Assim sendo,<br />
muitos dos relacionamentos que permitiam a construção de articuladas redes sociais<br />
que viriam a determinar posicionamentos políticos e favorecimentos surgiam como<br />
resultado da interação cotidiana, muitas vezes despida da intenção de ampliar tais<br />
laços, mas que permitia o florescer de novos elos.<br />
Um espaço de interação social, em particular, mostrava-se propício ao estabelecimento<br />
de novas relações por meio da sociação desligada de outros interesses<br />
e em particular ao desenvolvimento dos importantes matrimônios que explicitamos<br />
acima, os bailes e jantares sociais. O século XIX conheceu um aumento neste tipo<br />
de atividade, calcado em grande medida à chegada da família real ao Rio de Janeiro<br />
e ao início das galas na Corte. Os anos de 1810 e 1820 assistiram na nova Corte a<br />
propagação dos bailes particulares, jantares sociais e chás que reuniam as famílias<br />
mais ricas, os comerciantes e os membros do corpo político. Não somente junto ao<br />
aparato da realeza, mas igualmente em diversas casas de particulares os recepções<br />
sociais se multiplicavam.<br />
Notadamente na década de 1820, crescia também entre essa gente o<br />
hábito de festas privadas, fossem jantares, bailes ou chás, em que se<br />
encontravam as famílias mais abastadas, negociantes ricos e muitos<br />
dos integrantes da sociedade política da época. Estavam aí os indícios<br />
do surgimento de sociabilidade de tipo cortesã. 37<br />
Conquanto não possam ser descritos como acontecimentos cotidianos eles<br />
não deixavam de inserir-se na normalidade da sociedade e neles, por vezes, atavamse<br />
novos nós das redes de relacionamentos ou apertavam-se os pré-existentes. Ainda<br />
assim é necessária cautela na comparação destes eventos como condizentes com<br />
uma sociedade de corte ou definindo um “processo civilizador” tal como o descreve<br />
Norbert Elias, pois no Brasil esse fenômeno não seria endógeno, mas resultante da<br />
sobreposição de valores europeus aos hábitos propriamente americanos. 38<br />
36 BARTH, Fredrik. “Scale and Network in Urban Western Society”. In. BARTH, Fredrik (ed.). Scale and Social<br />
Organization. Oslo: Universitetforlaget, 1978. P. 168.<br />
37 SLEMIAN, Andréa. Vida política em tempo de crise. Op. Cit. P. 61.<br />
38 SLEMIAN, Andréa. Op. Cit. ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Volume 1. Uma história dos costumes.<br />
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993. ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da<br />
realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. MALERBA, Jurandir. A corte no exílio:<br />
civilização e poder no Brasil às vésperas da independência (1808-1821). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.<br />
212
Maria Fernanda Martins percebeu o papel de tais momentos lúdicos para a<br />
sociabilidade dos sujeitos e seus efeitos sobre a política do II império brasileiro. “A<br />
convivência nos salões da moda, nos grandes eventos sociais, nas reuniões de família<br />
e até mesmo nos bancos escolares e universitários aproximava o grupo”. 39 A autora<br />
sugere mesmo que tais ocasiões influenciavam tomadas de decisões referentes à política<br />
nacional, uma vez que oportunizava-se a participação de indivíduos não ligados<br />
diretamente à esfera política. “Em tais ocasiões a vida social misturava-se à política,<br />
permitindo o acesso às mais destacadas personalidades da Corte”. 40 Entre danças e<br />
contradanças a proximidade afetiva e social permitia sugerir indicações de cargos e<br />
posicionamentos partidários. Contudo, para além da possibilidade de definir parte<br />
da vida pública por meio da vida privada esses eventos possibilitavam aos indivíduos<br />
interagir uns com os outros pelo simples prazer da convivência e da companhia de<br />
seus correspondentes sociais. Em outras palavras muito do que interpretamos como<br />
políticas de ascensão social e manutenção de prestígio ocorria em contatos triviais e<br />
por vezes não premeditados. 41<br />
Em Porto Alegre, ainda que carecesse do esplendor da Corte, a vida social<br />
possuía certo dinamismo. Não lhe faltavam nem as festas públicas nem as privadas.<br />
O viajante francês Auguste de Saint-Hilaire após um mês na vila escreveu em seu<br />
diário que<br />
Aqui não há tanta vida social como nas cidades européias; porém há<br />
muito mais do que nas outras cidades do Brasil.<br />
São freqüentes as reuniões nas residências para saraus, e algumas senhoras<br />
tocam, com maestria, o violão e o piano, instrumento este desconhecido<br />
no interior, por causa das dificuldades de seu transporte. 42<br />
Os pianos estavam entre os bens arrolados em alguns dos inventários de nossos<br />
investigados, assim como os aparelhos de chá. 43 A posse desse instrumento demonstra<br />
que se investia no refinamento da educação das mulheres, mas indica que<br />
esses proprietários estavam entre os anfitriões de alguns dos saraus acima descritos,<br />
ainda que não nos sejam dados nomes. Domingos José de Araújo Bastos (vereador<br />
em 1810 e membro do Conselho Geral da Província entre 1830 e 1833) possuía não<br />
um, mas dois pianos arrolados em suas posses, sendo um deles pertencente a uma<br />
39 MARTINS, Maria Fernanda Vieira. A velha arte de governar: um estudo sobre política e elites a partir do<br />
Conselho de Estado (1842-1889). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007. P. 168.<br />
40 “Em tais ocasiões a vida social misturava-se à política, permitindo o acesso às mais destacadas personalidades da<br />
Corte”. Idem, ibidem.<br />
41 Os bailes e jantares sociais podem em boa medida ser descritos enquanto atos e eventos. Significa que são simultaneamente<br />
acontecimentos que passíveis de descrição objetiva e interpretáveis à luz dos valores sociais. BARTH,<br />
Fredrik. “Por um maior naturalismo na concepção das sociedades”. In. O guru, o iniciador e outras variações<br />
antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000. P. 173.<br />
42 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. Cit. P. 72.<br />
43 COMISSOLI, Adriano. “Serão os números a certeza da História?”. Op. Cit.<br />
213
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
de suas filhas, que muito provavelmente recebera aulas. 44 Francisco de Sá e Brito<br />
(vereador em 1811 e 1816) também possuía dois pianos, um descrito como usado e<br />
outro como “antigo escangalhado”, o que talvez implique em adquirir um produto<br />
de segunda mão. 45 O de João Coelho Neves (procurador da Câmara em 1806, 1810,<br />
1813 e 1828) estava ainda “em bom uso” quando de sua morte. 46 Manuel Gomes<br />
Coelho do Vale, Manuel José de Freitas Travassos, Manuel José Pires da Silveira Casado<br />
eram outros proprietários deste tipo de instrumento, inexistente em inventários<br />
do século XVIII no Rio Grande de São Pedro. 47 A popularização dos pianos indica<br />
novos níveis de riqueza, mas igualmente demonstra a busca por entretenimento e a<br />
promoção de reuniões sociais. A menção a conjuntos de porcelana para o chá aponta<br />
tanto uma preocupação em seguir a tendência da propagação dessa cerimônia<br />
quanto em promover a reunião íntima dos círculos de convivência. Nesse sentido,<br />
os eventos sociais estavam ainda muito ligados ao universo da sociedade de Corte,<br />
pois que se reduziam ao âmbito privado das casas abastadas.<br />
Saint-Hilaire nos descreve algumas das reuniões a que teve oportunidade de<br />
comparecer. Um baile ocorrido em Porto Alegre, outros dois em Rio Grande e um<br />
jantar em homenagem ao governador da capitania, também na última vila. Ao de Porto<br />
Alegre ele não hesitou em atender o convite por saber tratar-se “de que essa casa<br />
era uma das mais prestigiosas” da vila. O anfitrião do evento foi certo Sr. Patrício, ao<br />
qual não foi possível identificar, mas que poderia muito bem tratar-se de Patrício José<br />
Correia da Câmara, alto oficial militar e futuro Visconde de Pelotas. Segundo o viajante<br />
tratava-se de “uma reunião de trinta a quarenta pessoas, entre homens e mulheres. Em<br />
se tratando de parentes e amigos íntimos não havia luxo nos trajes”. O que significa<br />
que o pequeno baile se deu entre pessoas já com prévio conhecimento uns dos outros<br />
em sua maioria, com exceção do narrador da festa que se encontrava na vila não havia<br />
muito e que se surpreendeu com os hábitos da sociedade local. 48<br />
As senhoras conversavam sem constrangimento com os homens; estes<br />
as cercavam de gentilezas, mas não demonstravam desvelo ou desejo<br />
de agradar, qualidade, aliás, quase exclusiva dos franceses. Desde<br />
que estou no Brasil ainda não tinha visto uma reunião semelhante. No<br />
interior, como já o afirmei centenas de vezes, as mulheres se escondem;<br />
não passam de primeiras escravas da casa. 49<br />
44 APERS. Inventário de Domingos José de Araújo Bastos, 1º Cartório do Cível e Crime de Porto Alegre, maço10,<br />
processo 175, ano 1844.<br />
45 APERS. Inventário de Francisco de Sá e Brito, 1º Cartório de órfãos de Porto Alegre, maço 63, processo 1285,<br />
ano 1839.<br />
46 APERS. Inventário de João Coelho Neves, 1º Cartório de órfãos de Porto Alegre, maço 42, processo 995, ano<br />
1829.<br />
47 APERS. Inventário de Manuel Gomes Coelho do Vale, 2º Cartório de órfãos de Porto Alegre, maço 6, processo<br />
79, ano 1853. Inventário de Manuel José de Freitas Travassos, 2º Cartório de órfãos de Porto Alegre, maço 86, processo<br />
1809A, ano 1877. Inventário de Manuel José Pires da Silveira Casado, 1º Cartório de órfãos de Porto Alegre,<br />
maço 53, processo 1142, ano 1833.<br />
48 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. Cit. P. 64.<br />
49 Idem, ibidem.<br />
214
A reunião não se deteve somente em conversações, pois houve danças e “algumas<br />
senhoras tocaram piano, outras cantaram com muita propriedade, acompanhadas<br />
ao violão, e o sarau terminou em jogos de salão”. 50 Portanto, o que o francês<br />
nos descreve é um ambiente de divertimento e descontração, dentro do qual<br />
a sociação desinteressada se mostra bastante propícia. Logicamente que a mesma<br />
obedecia a certos códigos e condutas, visto que o fenômeno da sociabilidade tende a<br />
polir as atitudes dos envolvidos, evitando excessos. Para Simmel, a conversa, o jogo<br />
e mesmo a sedução são formas de sociabilidade com fim em si mesmas, isto é, não<br />
precisam necessariamente se ligar à busca de interesses específicos. Contudo, quanto<br />
mais íntimo o grau de sociabilidade mais os sujeitos estão envolvidos como indivíduos<br />
e tendem a regular características subjetivas da personalidade para permitir a<br />
interação sociável, isto é, o compartilhamento mútuo de conteúdos. 51 Jurandir Malerba<br />
faz ressalva, entretanto, quanto à obediência dos habitantes do Rio de Janeiro<br />
à etiqueta, quer à mesa, quer em outras ocasiões, destacando um desprezo comum à<br />
mesma. Ainda assim demonstra a preocupação com a regulação dos modos. Como<br />
o autor adverte não é possível afirmar se os utensílios descritos nos inventários eram<br />
utilizados no uso diário, mas eles se tornavam cada vez mais freqüentes em meio aos<br />
bens da camada mais abastada da população. 52 Em Porto Alegre a interação social<br />
era elogiada, pelo naturalista francês, como superior à maior parte do Brasil, onde<br />
os hábitos lhe pareceram mais rudes e tacanhos. Na vila meridional, surpreendeulhe<br />
que as senhoras conversassem diretamente com os homens, um elemento a ser<br />
considerado com atenção dentro do quadro de possibilidades de sociação da época.<br />
A esse baile numa das casas mais prestigiosas de Porto Alegre certamente<br />
foram convidadas as figuras mais destacadas da comunidade. Poderíamos aventar<br />
a hipótese de se fazer presente o governador-geral, os oficiais militares de altas patentes<br />
ou os “homens bons” da Câmara local. Saint-Hilaire fora convidado por um<br />
negociante francês o que demonstra que os estrangeiros e a classe profissional dos<br />
mercadores não se via excluída. Ele anuncia que um dos bailes na vila de Rio Grande<br />
foi promovido justamente por um rico comerciante ali estabelecido. Alguns dos<br />
proprietários de pianos que encontramos representam justamente a classe dos negociantes<br />
e os integrantes habituais da Câmara, o que aponta a convergência entre<br />
nossos investigados e os freqüentadores dos eventos que analisamos. Ainda considerando<br />
a posse dos instrumentos musicais é sensato supor nossos investigados<br />
também promoviam suas confraternizações, visto serem “freqüentes as reuniões nas<br />
residências para saraus”. É factível, por fim, supor uma competição entre os anfitri-<br />
50 Idem , ibidem.<br />
51 SIMMEL, Georg. Op Cit. P. 65-67. Sobre etiqueta ver. ELIAS, Nobert. A sociedade de corte. Op. Cit. Cap. V.<br />
52 MALERBA, Jurandir. Op. Cit.<br />
215
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
ões no intuito de impressionar os convidados e destacar-se frente à nata da sociedade<br />
local. Neste sentido a mobília, a decoração, a comida, o serviço e a competência<br />
das mulheres a mostrar suas habilidades de entretenimento serviam de medida ao<br />
sucesso da festa. Se, como afirmou Malerba, não é possível averiguar o uso cotidiano<br />
das louças e prataria localizada nos inventários é mais do que razoável que a mesma<br />
fosse utilizada nos eventos sociais a fim de receber adequadamente os convidados e<br />
causar boa impressão frente aos pares de elite.<br />
O tenente-general Manuel Marques de Souza, que logo chefiaria uma série<br />
de motins em 1821, demonstrou possuir o necessário para se fazer admirar por sua<br />
generosidade e bom gosto ao promover um jantar de recepção ao governador geral,<br />
o Conde da Figueira, quando da passagem deste por Rio Grande, antes de deixar a<br />
capitania. 53 Segundo um de seus detratores Marques de Souza era não somente um<br />
mestre da guerra, mas um hábil cortesão, pois “impõem para a Corte de homem de<br />
bem por suas expressões estudadas e astuciosas”. 54 Ele talvez não praticasse essas<br />
expressões estudadas somente para bajular as autoridades que lhe eram superiores,<br />
mas igualmente para fazer jus ao legado de seus antepassados “os quais os pais e<br />
avós foram pessoas nobres das famílias de Souzas e Marques, que neste Reino foram<br />
Fidalgos de Linhagem, Cota de Armas e de Valor conhecido como tais se trataram<br />
com cavalos, criados, e toda a mais ostentação própria da Nobreza”. 55 Neste<br />
caso, suas ações seriam não somente dissimulação de suas atitudes ilegais – como<br />
o contrabando – como demonstração de qualidade social. E assim recebeu em ao<br />
governador, a Saint-Hilaire e demais convivas “num lindo salão”, no qual ofereceu<br />
uma grande diversidade de pratos entre ensopados, carnes e massas, aos quais sucederam<br />
“uma sobremesa magnífica, composta de uma variedade de bombons e doces”,<br />
finalizando com café e licores. O ambiente era bastante festivo e descontraído<br />
e bebeu-se em grande quantidade. “A reunião prolongou-se até alta madrugada e a<br />
maioria dos convivas estava de pileque quando se retirou”. Ao dia seguinte estavam<br />
todos “tristes e fatigados”, claramente devido aos excessos da noite anterior. Este é<br />
um caso muito bem descrito do que afirmamos sobre impressionar os pares da sociedade<br />
sulista. Ao oferecer um “esplêndido jantar” em homenagem ao governador<br />
Manuel Marques de Souza de destacava enquanto anfitrião competente demonstrando<br />
igualmente sua generosidade e liberalidade ao acolher seus iguais e garantir-lhes<br />
53 COMISSOLI, Adriano. “Pescadores que explicam estancieiros ou mais uma sobre história e antropologia”, Métis:<br />
história & cultura. Revista de História da Universidade de Caxias do Sul, v.7, n. 14, jul/dez 2009, Caxias do<br />
Sul, RS: EDUCS, 2009. No prelo.<br />
54 BNRJ. Coleção Augusto de Lima Júnior, II – 35, 34,12.<br />
55 APERS. Registro de uma Carta Régia de Padrão de Armas Nobreza e Fidalguia ao Coronel da Legião da Cavalaria<br />
deste Continente hoje Brigadeiro Manuel Marques de Souza, 5 de maio de 1800, Fundo Câmara, Registros Diversos,<br />
Câmara de Porto Alegre livro 1 Fl. 19v.-21.<br />
216
somente o melhor. Esta breve passagem demonstra que o fazer-se elite no sul do<br />
Brasil no oitocentos passava não somente pelo controle dos homens e pela riqueza<br />
material, mas igualmente pelo oferecimento de cortesia e pela demonstração de bons<br />
modos frente à classe dominante. Se Marques de Souza, um militar experiente e<br />
ambicioso, era capaz de demonstrar seu atrelamento à etiqueta e promover uma tão<br />
bem sucedida recepção então os tempos de uma sociedade rústica e agreste faziam<br />
definitivamente parte do passado.<br />
Uma semana mais tarde um baile foi promovido pelo sargento-mor Mateus<br />
da Cunha Teles com novos divertimentos, danças e a participação de uma orquestra.<br />
Embora elogiasse os trajes dos participantes Saint-Hilaire achou o baile um tanto<br />
aborrecido. Digno de nota se mostrou seu comentário crítico de que uma “jovem<br />
dançou solo, mas, embora reconhecendo sua graciosidade, não pude deixar de lamentar<br />
que uma mãe honesta expusesse sua filha aos olhares de todos”. 56 Contudo,<br />
considerando a qualidade dos convidados, que envolviam o governador, seus oficiais<br />
e os vários comerciantes de Rio Grande, a apresentação da jovem pode ganhar<br />
novos contextos, destacadamente a exibição de qualidades visando o matrimônio.<br />
Jonas Vargas apresentou, embora não sistematicamente, a importância dos bailes<br />
como momentos de sociabilidade das elites tanto da Corte fluminense como sul<br />
rio-grandense. A função dos bailes no mercado matrimonial da segunda metade<br />
do século XIX foi um dos elementos sugeridos em sua leitura. Seria as festas uma<br />
oportunidade de conhecer as moças das mais abastadas famílias da sociedade do<br />
Rio de Janeiro, elemento importante tanto na construção de laços sociais quanto na<br />
obtenção de progressão profissional e de posses materiais. 57 O que a descrição de<br />
Saint-Hilaire nos oferece é a possibilidade de pensar estas práticas como difundidas<br />
já no início do século XIX.<br />
Extrapolando o raciocínio que estamos desenvolvendo podemos imaginar<br />
que este tipo de festividade pode ter servido de palco para que o magistrado Luís<br />
Correia Teixeira de Bragançaviesse a ser apresentado à “brigadeira” Josefa Eulália<br />
de Azevedo. Não parece fora de propósito supor que quando de sua chegada a<br />
Porto Alegre, ainda como ouvidor, ele fosse recebido com algum baile ou jantar de<br />
boas-vindas. Considerando que a seleção dos convidados passava por critérios de<br />
afinidade (“parentes e amigos”), mas igualmente de projeção social (“uma das casas<br />
mais prestigiosas”) não seria despropositado supor que a viúva do lendário Brigadeiro<br />
Rafael Pinto Bandeira viesse a estar presente no mesmo convescote ao qual<br />
comparecesse o seu futuro segundo marido. Neste tipo de evento poderiam ser apre-<br />
56 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. Cit. P. 86 e 92-93.<br />
57 VARGAS, Jonas. Op. Cit. P. 46.<br />
217
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
sentados por intermédio de conhecido mútuo ou ter iniciado qualquer conversação<br />
por livre iniciativa, se confiarmos na descrição de Saint-Hilaire de que mulheres e<br />
homens conversavam sem qualquer embaraço em tais episódios.<br />
Não há dados empíricos para comprovar o encontro entre os dois personagens,<br />
mas podemos considerar alguns fatores desta sociedade. O primeiro refere-se<br />
ao potencial sociável dos eventos lúdicos, pois os mesmos serviam para introduzir<br />
novos membros à sociedade ao mesmo tempo em que reforçavam os laços entre os<br />
já socializados. A interação entre homens e mulheres conhecia aqui um momento<br />
especial, pois afastados da governança pública e gozando da companhia (supostamente)<br />
agradável de seus pares eles podiam entreter-se a conversar com as senhoras,<br />
admirar as mesmas a tocar instrumentos musicais ou divertir-se dançando. É<br />
bastante crível que o primeiro contato dos magistrados que mais tarde se casaram<br />
com filhas de potentados locais sul rio-grandenses se efetuasse em tais ambientes<br />
de bailes, saraus ou jantares. Neste sentido, a análise dessas interações lúdicas serve<br />
para evitar uma interpretação puramente funcionalista das políticas de matrimônio,<br />
ao mesmo tempo que nos permite supor um espaço no qual o papel feminino deixa<br />
de ser passivo.<br />
Os bailes e jantares oportunizavam às mulheres em idade matrimonial mostrar<br />
sua educação artística e sua capacidade de convívio. Indo mais longe eram o<br />
momento ideal para familiares e amigos intercederem pelas moças de suas redes de<br />
relações. Ainda considerando a liberdade que as mulheres porto-alegrenses tratavam<br />
com os homens é interessante ponderar o papel de uma personagem em particular,<br />
a madrinha. Os eventos sociais podiam muito se tornar uma arena na qual uma madrinha<br />
habilidosa soubesse aproximar-se dos partidos masculinos e dirigir a atenção<br />
dos mesmos à sua afilhada. Ou talvez para incitar as moças a dançar solo, atitude<br />
que Saint-Hilaire condenou por considerar de excessiva exposição. Contudo, tal exposição<br />
talvez mesclava deleitar a audiência tanto quanto impressioná-la. Em termos<br />
mais amplos eram avaliadas não somente a habilidade pessoal das jovens, mas igualmente<br />
o comprometimento de seus pais no investimento de sua educação. Se o mesmo<br />
ocorresse então a sociabilidade lúdica se rompia e valores objetivos começavam<br />
a ser avaliados permitindo interações que sugeriam mais do que a simples convivência<br />
agradável. As políticas matrimoniais começavam a se desenhar nas conversações<br />
aparentemente desinteressadas e adentrava-se outro espaço de sociabilidade, mais<br />
conformado pela etiqueta cortesão na qual apesar das gentilezas e das cortesias todos<br />
medem a todos a fim de saber mais do que revelar. O contato de recém chegados<br />
com a sociedade por meio de bailes, saraus, chás e a jantares, portanto, retomava o<br />
interessa em casamentos e na ampliação de redes sociais. Nas primeiras décadas<br />
do oitocentos a opção das famílias de elite sul rio-grandense em recrutar para seu<br />
seio os magistrados régios não somente incidia sobre recrutamento social como<br />
218
igualmente apresentava uma nova opção ao grupo. Não investindo na formação universitária<br />
de seus próprios membros essas famílias optaram por recrutar os bacharéis<br />
naturais de outras regiões, fato que lhes garantia mediadores adequados ao trato com<br />
a Corte e a estes a chance de projeção política. Tal assunção parece correta não somente<br />
para o juiz Luís Correia Teixeira de Bargança, mas igualmente para Caetano<br />
Xavier Pereira de Brito e para José Maria de Sales Gameiro Mendonça Peçanha. De<br />
tal forma, os espaços de sociabilidade serviram à inserção desses agentes na sociedade<br />
sulista e no conseqüente protagonismo político que desempenharam.<br />
219
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
220<br />
REFERêNCIAS DOCUMENTAIS<br />
AHCMPA – Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre<br />
Autos de justificação de matrimônio<br />
- Domingo de Almeida lemos Peixoto e Luís Joaquina da Silveira, 1790/18.<br />
- José Antônio da Silva Neves e Inocência Martins de Oliveira, 1795/55.<br />
- Caetano Xavier Pereira de Brito e Francisca Godinho de Oliveira Valdez, 1822/62.<br />
Livro 3º de casamentos da freguesia de Rio Pardo, fl. 163.<br />
AHRS – Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul<br />
A.1-11. Registro de correspondência para autoridades da capitania Carta da Junta de<br />
Governo Provisório para a Câmara de Porto Alegre.<br />
Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Vol. 8. Porto Alegre, AHRS,<br />
1984.<br />
AHU - Arquivo Histórico Ultramarino<br />
Manuscritos Avulsos da Capitania do Rio Grande do Sul 1732-1825 (CD-ROM do<br />
Projeto Resgate Barão do Rio Branco)<br />
Manuscritos Avulsos da Capitania de Santa Catarina (CD-ROM do Projeto Resgate<br />
Barão do Rio Branco)<br />
ANRJ – Arquivo Nacional do Rio de Janeiro<br />
Desembargo do Paço, Caderno de Informadores de 1814, cx. 187, PAC. 2, doc. 18.<br />
Desembargo do Paço, Caderno de Informadores de 1818, cx. 187, PAC. 2, doc. 18.<br />
APERS – Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul<br />
Inventários<br />
-Antônio Bernardes Machado, 1º Cartório de órfão de Porto Alegre, maço 33, processo<br />
818, ano 1824.<br />
-Domingos José de Araújo Bastos, 1º Cartório do Cível e Crime de Porto Alegre,<br />
maço10, processo 175, ano 1844.
-Francisco de Sá e Brito, 1º Cartório de órfãos de Porto Alegre, maço 63, processo<br />
1285, ano 1839.<br />
-João Coelho Neves, 1º Cartório de órfãos de Porto Alegre, maço 42, processo 995,<br />
ano 1829.<br />
-José Antônio da Silva Neves, 1° Cartório de órfãos de Porto Alegre, processo 701,<br />
maço 28, ano 1820.<br />
-José Antônio de Azevedo, 2° Cartório do Cível e Crime Porto Alegre, maço 8, processo<br />
196, ano 1833.<br />
-Manuel Gomes Coelho do Vale, 2º Cartório de órfãos de Porto Alegre, maço 6,<br />
processo 79, ano 1853.<br />
-Manuel José de Freitas Travassos, 2º Cartório de órfãos de Porto Alegre, maço 86,<br />
processo 1809A, ano 1877.<br />
-Manuel José Pires da Silveira Casado, 1º Cartório de órfãos de Porto Alegre, maço<br />
53, processo 1142, ano 1833.<br />
-Rafael Pinto Bandeira, 1º Cartório de órfãos de Porto Alegre, maço 12, processo<br />
188, ano 1796.<br />
Fundo Câmara, Registros Diversos, Câmara de Porto Alegre livro 1 Fl. 19v.-21.<br />
Revista do Archivo Publico do Rio Grande do Sul, n. 7, set. 1922.<br />
BNRJ – Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro<br />
Setor de Manuscritos<br />
- Coleção Augusto de Lima Júnior, II – 35, 34,12.<br />
- Coleção de Documentos Biográficos.<br />
REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de<br />
Janeiro: Contra Capa, 2000.<br />
BARTH, Fredrik. Process and form in social life. Selected essays of Fredrik<br />
Barth: volume i. London: Routledge & Kegan Paul, 1981.<br />
BARTH, Fredrik (ed.). Scale and Social Organization. Oslo: Universitetforlaget,<br />
1978.<br />
CARVALHO, José Murilo. A Construção da Ordem: a elite política imperial<br />
& Teatro de Sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,<br />
2003.<br />
221
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
COMISSOLI, Adriano. “A Casa da família Pinto Bandeira: estratégias familiares de<br />
perpetuação de poder no Rio Grande de São Pedro (sécs. XVIII-XIX)”. In: Vi Fórum<br />
FAPA, 2007, Porto Alegre. Cadernos FAPA - Especial : VI Fórum FAPA, 2007.<br />
COMISSOLI, Adriano. “A vila coroada: perfil social dos vereadores de Porto Alegre<br />
(1808-1828)”, in. Anais: produzindo história a partir de fontes primárias. Vii<br />
mostra de pesquisa do Arquivo Público do Rio Grande do Sul. Porto Alegre:<br />
Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas – CORAG, 2009.<br />
COMISSOLI, Adriano. “O juiz de dentro: magistratura e ascensão social no extremo<br />
sul do Brasil, 1808-1831”, in. V Jornadas Regionais GT Mundos do Trabalho/Revista<br />
AEDOS, v. 2, nº 4, novembro 2009.<br />
COMISSOLI, Adriano. “O juiz de fora que veio para ficar: um estudo sobre circulação<br />
e enraizamento de oficias da Justiça no império luso-brasileiro de Dom João<br />
e Dom Pedro”, in. Revista Territórios e Fronteiras. V. 1 N. 1, Programa de Pósgraduação<br />
- Mestrado em História, jan-jun 2008, pp. 244-262.<br />
COMISSOLI, Adriano. “Pescadores que explicam estancieiros ou mais uma sobre<br />
história e antropologia”, Métis: história & cultura. Revista de História da Universidade<br />
de Caxias do Sul, v.7, n. 14, jul/dez 2009, Caxias do Sul, RS: EDUCS,<br />
2009. No prelo.<br />
COMISSOLI, Adriano. Os “homens bons” e a Câmara Municipal de Porto<br />
Alegre (1767-1808). Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008.<br />
ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da realeza<br />
e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.<br />
ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Volume 1. Uma história dos costumes.<br />
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.<br />
KIRKENDALL, Andrew J. Mates. Male student culture and the making of<br />
a political class in nineteenth-century Brazil. Lincoln London: University of<br />
Nebraska Press, 2002.<br />
KÜHN, Fábio. Gente da Fronteira: família, sociedade e poder no sul da América<br />
Portuguesa – século XViii. Niterói: Tese de Doutorado, PPG em História da<br />
Universidade Federal Fluminense, 2006.<br />
MAGALHãES, Manoel Antônio de. “Almanack da Vila de Porto Alegre”, in: Revista<br />
do instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 30, 1867.<br />
MALERBA, Jurandir. A corte no exílio: civilização e poder no Brasil às vésperas<br />
da independência (1808-1821). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.<br />
MARTINS, Maria Fernanda Vieira. A velha arte de governar: um estudo sobre<br />
política e elites a partir do Conselho de Estado (1842-1889). Rio de Janeiro:<br />
Arquivo Nacional, 2007.<br />
222
PICCOLO, Helga Iracema Landgraff. “O processo de independência numa região<br />
fronteiriça: o Rio Grande de São Pedro entre duas formações históricas”, In. JANC-<br />
Só, Istvan. independência: história e historiografia, São Paulo, Ed. Hucitec/<br />
FAPESP, 2005.<br />
PICCOLO, Helga Iracema Landgraff. O processo de independência no Rio Grande<br />
do Sul, in. MOTA, Carlos Guilherme (org.). 1822 – Dimensões, São Paulo, Editora<br />
Perspectiva, 1972.<br />
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado<br />
Federal, Conselho Editorial, 2002.<br />
SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. São Paulo: Editora<br />
Perspectiva, 1979.<br />
VARGAS, Jonas Moreira. Entre a paróquia e a corte: uma análise da elite política<br />
do Rio Grande do Sul (1868-1889). Porto Alegre: Dissertação de Mestrado,<br />
PPGH-UFRGS, 2007.<br />
SIMMEL, Georg. Questões fundamentais de sociologia: indivíduo e sociedade.<br />
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006<br />
SLEMIAN, Andréa. Vida política em tempo de crise: Rio de Janeiro (1808-<br />
1824). São Paulo: Hucitec, 2006.<br />
WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva.<br />
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1994.<br />
223
PAi MonArquistA, filho rePubliCAno: ProPAgAndA<br />
rePubliCAnA, eleições e relAções fAMiliAres<br />
A PArtir dA trAjetóriA de joAquiM frAnCisCo<br />
de Assis brAsil (1877-1889)<br />
Jonas Moreira Vargas*<br />
Tassiana Maria Parcianello Saccol**<br />
Resumo: Joaquim Francisco de Assis Brasil foi o único deputado eleito pelo Partido Republicano<br />
Rio-grandense durante o período monárquico. O presente artigo busca analisar como o mesmo<br />
conseguiu eleger-se, assim como a sua atuação na Assembléia Legislativa Provincial. Tal episódio foi<br />
importante para fortalecer a propaganda republicana no Rio Grande do Sul, apesar da força dos partidos<br />
monárquicos. A análise das atas das eleições e das famílias dos principais propagandistas revela<br />
que os republicanos estavam vinculados à elite monárquica por diferentes laços de parentesco, o que<br />
acabou auxiliando a vitória de Assis Brasil. Além disso, a partir da sua trajetória é possível perceber que<br />
a região da campanha era um forte reduto dos estancieiros conservadores e não somente dos liberais<br />
como se costuma afirmar.<br />
Palavras-chave: Assis Brasil – Partido Republicano Rio-grandense – Propaganda republicana<br />
– Elite política<br />
Aos 19 dias de janeiro de 1885, o jornal A Federação, órgão oficial do<br />
Partido Republicano Rio-grandense (PRR), trazia em suas páginas um<br />
entusiástico editorial parabenizando o jovem advogado Assis Brasil<br />
pela vitória nas eleições provinciais¹. Certamente foi um duro combate. Foram necessários<br />
dois pleitos nos fins de 1884 e início de 1885 para consagrá-lo como o<br />
primeiro e único deputado eleito pelo PRR ao longo da monarquia. Contando com<br />
apenas 27 anos, Joaquim Francisco era natural de São Gabriel, município da região<br />
* Doutorando do Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bolsista<br />
CNPq. E-mail: jonasmvargas@yahoo.com.br<br />
** Graduanda do curso de História da Universidade Federal de Santa Maria<br />
¹ A Federação. 19.01.1885. Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa.<br />
225
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
da campanha, cuja base econômica era essencialmente pecuarista. Ainda adolescente,<br />
foi fazer os estudos preparatórios em Porto Alegre e mais tarde formou-se em<br />
Direito na faculdade de São Paulo. Com o diploma na mão, Assis Brasil retornou<br />
para a sua cidade natal, onde abriu banca de advogado e dedicou os próximos anos<br />
de sua vida ao Partido Republicano, do qual foi um dos principais líderes².<br />
O autor do empolgante artigo que comemorava a eleição de Assis Brasil era<br />
Júlio de Castilhos, seu colega de faculdade em São Paulo, onde o Republicanismo<br />
se difundia aceleradamente. Amigos inseparáveis, acabaram tornando-se cunhados,<br />
pois Assis Brasil casou-se com a irmã de Júlio. A data escolhida para o matrimônio<br />
foi o dia 20 de setembro de 1885, ou seja, nos 50 anos de comemoração do início da<br />
Revolução Farroupilha. A memorável Guerra que havia tornado o Rio Grande uma<br />
república por quase 10 anos era referência marcante para a mocidade republicana<br />
rio-grandense³.<br />
A estréia de Assis Brasil no Parlamento, em novembro de 1885, encheu de orgulho<br />
seus correligionários e a notícia correu por todas as províncias onde existiam<br />
partidos republicanos. Os defensores da abolição da escravidão, do federalismo, do<br />
republicanismo, do sufrágio universal, entre outros, multiplicavam-se em todo o país.<br />
Certamente, em poucas épocas na história do Brasil, viveu-se e respirou-se um fluxo<br />
de idéias estrangeiras, teorias sociais, projetos e ações políticas tão diversas e intensas<br />
como nos anos 1870 e 1880 do século XIX 4 . No entanto, aquela geração que agia<br />
em nome de seus ideais não podia romper totalmente com o mundo considerado<br />
“arcaico” e que tanto combatiam. Se a monarquia e a escravidão estavam em crise,<br />
como os mesmos declaravam, elas eram fundamentais para manter a posição política<br />
e econômica de muitos de seus familiares e eleitores, por exemplo. Portanto, ingressar<br />
na elite política provincial por vias legais, como Assis Brasil o fez, exigia apoio e<br />
conivência com parte das práticas política vigentes, muito embora, no discurso, os<br />
mesmos adotassem uma postura mais radical.<br />
O eleitorado republicano era pequeno, oscilando entre 10% e 15% da província,<br />
e permaneceu assim até a queda da monarquia 5 . A ênfase na trajetória de Assis<br />
2 Os principais dados biográficos sobre Assis Brasil estão presentes em REVERBEL, Carlos. Assis Brasil. Porto<br />
Alegre: IEL, 1996 e AITA, Carmen. Perfil biográfico de Assis Brasil. In: ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ES-<br />
TADO DO RIO GRANDE DO SUL. Perfis Parlamentares: Joaquim Francisco de Assis Brasil. Porto Alegre:<br />
ALRS, 2006, p. 17-207.<br />
³ Tamanha importância resultou num livro, A História da República Rio-grandense, publicado por Assis Brasil sob encomenda<br />
do Club 20 de setembro – que reunia rio-grandenses que estudavam direito em São Paulo.<br />
4 Ver, por exemplo, ALONSO, Ângela. idéias em movimento: a Geração de 1870 na crise do Brasil-império.<br />
São Paulo: Paz e Terra, 2002.<br />
5 É bem verdade que nas eleições gerais de agosto de 1889, os liberais preencheram todas as cadeiras e os conservadores<br />
foram pela primeira vez ultrapassados pelos republicanos, que ficaram em segundo lugar. Entretanto, tal<br />
façanha foi conseqüência da enorme conversão de saquaremas para as hostes do PRR, após o Partido Liberal ter<br />
subido ao poder em julho e da nomeação de Silveira Martins para presidente da província.<br />
226
Brasil e na análise das eleições que o elegeram nos ajuda a iluminar a história do próprio<br />
PRR, da propaganda republicana e do mundo da política no século XIX. Mas<br />
antes disso é preciso compreender como o jovem gabrielense conseguiu eleger-se<br />
num forte reduto de estancieiros monarquistas.<br />
I – DAVI CONTRA GOLIAS OU DE COMO<br />
ASSIS BRASIL CONSEGUIU VENCER OS LIBERAIS<br />
NA REGIãO DA CAMPANHA<br />
O sucesso de uma candidatura no período monárquico dependia da combinação<br />
de uma série de fatores. Os mais importantes eram convencer o eleitorado<br />
local e os líderes dos partidos das suas competências e propostas. A livre consulta<br />
aos eleitores por meio de palestras individuais e excursões políticas era fundamental,<br />
assim como os pedidos de votos através da imprensa. Mas antes disso era necessário<br />
conquistar o apoio dos líderes locais e principais chefes do partido que, caso aceitassem,<br />
emitiam dezenas de circulares aos eleitores mais influentes aconselhando-os a<br />
acolherem às candidaturas. Entretanto, conquistar a confiança dos chefes do partido<br />
e dos eleitores não era fácil. Ter um diploma de curso superior e pertencer a uma<br />
família tradicional e rica na região eram pré-requisitos importantes. Quanto maiores<br />
os vínculos pessoais com os grandes líderes e obviamente a aceitação de sua política,<br />
maiores eram as chances. Firmando-se as alianças eleitorais, os estancieiros e demais<br />
eleitores empregavam toda a sua clientela local e influência na Guarda Nacional,<br />
nos juizados de paz e de direito, na delegacia de Policia e na Câmara municipal para<br />
vencer os pleitos. Como as eleições eram bastante freqüentes (praticamente todo<br />
ano se votava), as alianças tinham que ser renovadas continuamente, pois os eleitores<br />
trocavam de candidatos tornando todo o processo bastante complexo 6 .<br />
Assis Brasil teve a oportunidade de pular ao menos uma etapa deste complexo<br />
processo, pois ele constituía-se num dos principais chefes do PRR, ou seja,<br />
não precisava conquistar a aceitação dos mesmos. Entretanto, teve que legitimar<br />
tal liderança entre seus pares e a mesma foi conquistada intelectualmente desde a<br />
época em que era estudante de Direito 7 . A primeira vez que Assis Brasil concorreu<br />
6 Ver, por exemplo, GRAHAM, Richard. Clientelismo e Política no Brasil do Século XiX. Rio de Janeiro: UFRJ,<br />
1997. Para a dinâmica no Rio Grande do Sul, com muitos exemplos, ver VARGAS, Jonas Moreira. Os políticos de<br />
aldeia: eleições, negociações e prática política nas paróquias do Rio Grande do Sul (1868-1889). In: Vi Mostra de Pesquisa do<br />
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: CORAG, 2008, p. 39-57.<br />
7 É necessário lembrar que por trás da fundação do PRR, em 1882, não estavam somente os jovens estudantes como<br />
Assis Brasil e Júlio de Castilhos. O Partido apenas agregou republicanos espalhados esparsamente em “clubes”<br />
municipais e trouxe para o seu interior antigos e insistentes militantes, como Venâncio Ayres e Apolinário Porto<br />
Alegre, entre outros. Entretanto, ninguém pode negar que os jovens bacharéis egressos de São Paulo renovaram as<br />
bases ideológicas do Republicanismo rio-grandense, pois os mesmos auxiliaram na difusão de idéias intensamente<br />
debatidas entre os políticos e intelectuais paulistas, como o positivismo e o evolucionismo, entre outros.<br />
227
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
às eleições provinciais foi em dezembro de 1883 8 . A Assembléia Legislativa reunia<br />
30 deputados, sendo 5 para cada um dos 6 círculos eleitorais em que o território do<br />
Rio Grande do Sul estava dividido e cada eleitor votava em apenas um candidato.<br />
O 3º círculo, pelo qual Assis Brasil concorria, estava composto pelos municípios de<br />
Alegrete, Quarai, Itaqui, São Gabriel, Santo Ângelo, São Luís Gonzaga, Rosário, São<br />
Borja, Santiago, São Vicente, São Francisco de Assis e Uruguaiana. Sua estréia foi<br />
decepcionante, pois os pleitos resultaram numa vitória esmagadora do Major Geraldo<br />
de Faria Corrêa (liberal) que recebeu 592 votos em toda a região contra 72 de<br />
Assis Brasil, que ficou em segundo lugar 9 .<br />
Para ampliar os votos do partido, a estratégia seria intensificar a propaganda<br />
pela imprensa e negociar o apoio de estancieiros da região. Em janeiro de 1884, os<br />
republicanos fundaram o jornal A Federação, e Venâncio Ayres assumiu a chefia<br />
da redação. Uma nova batalha estava marcada para dezembro de 1884, nas eleições<br />
provinciais. O resultado das urnas foi o seguinte: Egídio Barbosa Itaqui (384), Severino<br />
Ribeiro (361), Propício Barreto (331), Francisco Azevedo e Souza (319), Assis<br />
Brasil (277), Eduardo Lima (52) e Jayme Couto (03) 10 . A Lei mandava considerar<br />
eleitos somente os deputados que atingissem o quoficiente eleitoral. Portanto, o<br />
liberal Egídio e o conservador Severino receberam seus diplomas de deputados e<br />
os outros foram alçados ao 2º escrutínio, onde somente três candidatos poderiam<br />
tornar-se deputados.<br />
No dia 12 de janeiro de 1885, nas diferentes paróquias do 3º círculo, os eleitores<br />
foram mais uma vez escolher os outros três deputados da região. Como Egídio<br />
e Severino já estavam eleitos, aqueles eleitores que votaram em ambos teriam que<br />
escolher novos candidatos para deputado. Abria-se, assim, uma brecha para todo e<br />
qualquer tipo de negociação. Desta vez o resultado foi o seguinte: Francisco Aze-<br />
8 Nesta ocasião, as eleições foram organizadas para eleger somente um deputado, pois uma cadeira havia ficado vaga<br />
na Assembléia Provincial.<br />
9 Livros de Registros Diversos, Primeiro Tabelionato de Alegrete, Fundo 2, Estante 24, 1881-1890 (APERS). Os<br />
conservadores parecerem ter agido em abstenção. Os resultados das eleições no 3º círculo citado daqui em diante<br />
estão contidos nos mesmos livros.<br />
10 Egídio Barbosa Itaqui era advogado na cidade que adotou como sobrenome e membro do Partido Liberal na<br />
região. Severino Ribeiro também era advogado em Alegrete. Neto de Banto Manoel Ribeiro, foi o um dos políticos<br />
mais influentes na região da campanha e chefe conservador de enorme prestígio. Francisco de Azevedo e Souza<br />
também era conservador e pertencia a uma família de ricos charqueadores pelotenses. Propício Pinto era proprietário<br />
em São Gabriel e representante liberal do município. Eduardo Lima também era advogado em Itaqui, mas<br />
seu posicionamento em 1885 é uma incógnita. Pertenceu ao PRR em 1882 e neste ano foi candidato no 3º círculo.<br />
Mas em 1884, perdeu esta posição para Assis Brasil e é provável que tenha rompido com o partido e concorrido<br />
como dissidente, algo não raro na época. Também é possível que tenha feito alianças com os liberais, pois parece ter<br />
recebido muitos votos deles no 2º escrutínio.<br />
228
vedo e Souza (549), Propício Barreto (517), Assis Brasil (429), Eduardo Lima (272).<br />
Assis Brasil conquistara a última vaga do círculo e estava eleito! Mas como conseguiu<br />
ampliar tanto os seus votos em poucos dias?<br />
A historiografia gaúcha costuma mencionar que Assis Brasil elegeu-se com o<br />
auxílio dos conservadores, mas demonstraremos tal apoio empiricamente. A quantificação<br />
dos votos revela que os eleitores do conservador Severino Ribeiro foram<br />
fundamentais na vitória de Assis Brasil. Dos 4 candidatos que passaram para o 2º escrutínio<br />
somente Francisco Souza era conservador. Se os 361 eleitores conservadores<br />
que votaram em Severino Ribeiro no 1º escrutínio também tivessem votado em<br />
Francisco ele teria somado 680 votos, mas não foi isto que ocorreu, pois ele obteve<br />
apenas 549. Portanto, 131 conservadores não votaram no candidato do seu próprio<br />
partido e decidiram apoiar outro11 . Ora, de 277 votos recebidos no 1º escrutínio,<br />
Assis Brasil saltou para 429, conseguindo, portanto, o apoio de 157 eleitores em<br />
poucos dias. E como sabemos que estes votos foram dados pelos conservadores?<br />
Dias depois da apuração, o próprio Assis Brasil admitiu ao escrever para um amigo,<br />
esboçando certo desconforto pelo apoio saquarema:<br />
“Os cento e tantos votos que o Severino mandou-me dar não importaram<br />
retribuição alguma. Este teve em vista evitar que fossem<br />
eleitos dois liberais, preferindo um oposicionista a um governista. Eu<br />
nem sequer tive ciência disto, senão nas vésperas da eleição, e nunca<br />
dei grande crédito ao que diziam os conservadores, mesmo porque<br />
entendi que eles me queriam passar mel pelos beiços” 12 .<br />
É importante notar que se estes conservadores tivessem votado em Eduardo<br />
Lima, a vitória de Assis Brasil poderia ter naufragado, o que evidencia mais ainda<br />
a importância da aliança momentânea13 . Os liberais, indignados, denunciaram que<br />
conservadores e republicanos estavam na verdade trocando votos, pois Severino<br />
estaria retribuindo o apoio que havia recebido do PRR nas eleições para deputado<br />
geral, alguns dias antes. Nesta ocasião, ele disputou e venceu as eleições contra o<br />
liberal Egídio Itaqui. Na carta que Assis Brasil escreveu a Aparício Mariense, ele parecia<br />
estar dando satisfações ao mesmo e negou tal negociação: “Se nós tivéssemos<br />
protegido o Severino sequer com um terço da votação republicana, o que seria do<br />
11 Também é possível que alguns eleitores que no 1º escrutínio votaram em Francisco, Assis Brasil, Propício e Eduardo<br />
tenham alterado seu voto no 2º escrutínio, mas tal ação deve ter sido pouco significativa.<br />
12 Carta de Assis Brasil a Aparício Mariense. São Gabriel, 29.01.1885 apud RAMOS, Eloísa H. Capovilla. O Partido<br />
Republicano Rio-grandense e o poder local no litoral norte do Rio Grande do Sul (1882-1895). Porto Alegre:<br />
Dissertação de Mestrado. PPG em História - UFRGS, 1990, p. 245-249.<br />
13 A maioria dos eleitores que votou no liberal Egídio Itaqui converteu seu apoio ao também liberal Propício Barreto<br />
e ao “dissidente” Eduardo Lima, que, por ser advogado em Itaqui, devia possuir eleitores em comum com Egídio.<br />
229
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
nosso Itaqui?”. Era um tanto constrangedor que republicanos estivessem votando<br />
em líderes saquaremas que defendiam o escravismo, o senado vitalício e o Poder<br />
Moderador. Mas ao falar dos correligionários, o próprio Assis Brasil acabou admitindo<br />
que “3 votaram no Severino em 1º escrutínio e mais 4 em 2º, para deputado geral,<br />
mas por excesso de dedicação ao partido republicano. Erraram, mas não praticaram<br />
a infâmia de se deixarem arrastar pelo vil interesse” 14 . O fato é que Severino venceu<br />
Egídio supostamente com votos republicanos e decidiu retribuir a “gentileza” elegendo<br />
Assis Brasil 15 .<br />
Mas seriam somente 3 ou 4 eleitores republicanos os que votaram em Severino?<br />
Analisando as atas de duas eleições para deputado geral, em 1886, é possível<br />
observar não apenas que este número era bem maior, mas também que a aliança<br />
entre conservadores e republicanos manteve-se por muito tempo. Na primeira delas,<br />
em abril de 1886, novamente o conservador Severino Ribeiro enfrentou o liberal<br />
Egídio Itaqui por uma vaga na câmara dos deputados na Corte. Severino venceu,<br />
mas faleceu dias depois. Por conseqüência da fatalidade, novas eleições foram convocadas<br />
para setembro, mas desta vez os conservadores, representados pelo Dr.<br />
Borges Fortes, foram derrotados pelos liberais que escolheram Francisco Antunes<br />
Maciel como candidato 16 . A prova de que os republicanos votaram nos conservadores<br />
pode ser verificada através do cruzamento das atas eleitorais destas duas eleições<br />
com outra realizada no fim do mesmo ano. Examinando as eleições provinciais de<br />
dezembro de 1886, quando Assis Brasil foi reeleito, é possível notar que ele venceu<br />
todos os outros 8 candidatos monárquicos em dois municípios: São Vicente e São<br />
Luís (1º distrito). Em São Vicente, ele obteve 17 dos 19 votos, o que revela que a<br />
localidade era um forte reduto do republicanismo 17 . Entretanto, nas eleições de abril<br />
e setembro, em que o PRR não possuía candidatos concorrendo, como os eleitores<br />
de São Vicente se comportaram?<br />
A análise das referidas atas de abril e setembro de 1886 revela que o eleitorado<br />
do pequeno município apoiou em massa os conservadores: Severino 38 X 02 Egídio;<br />
Borges Fortes 45 X 01 Antunes Maciel. Ou seja, os republicanos de São Vicente<br />
empenharam-se bastante para eleger os candidatos saquaremas. Em São Luís, onde<br />
14 Carta de Assis Brasil a Aparício Mariense. São Gabriel, 29.01.1885 apud RAMOS, Eloísa H. Capovilla. Op. Cit.<br />
15 Apesar disso, os liberais, que eram governistas, deram um jeito de caçar o mandato de Severino na Comissão de<br />
Verificação de Poderes na Corte e Egídio acabou assumindo.<br />
16 Tanto nesta eleição como na anterior, Assis Brasil não atingiu a votação necessária para ser alçado ao 2º escrutínio.<br />
Isto revela que quando os cargos principais estavam em jogo (deputado geral e senador), o PRR não tinha muitas<br />
chances.<br />
17 Em 1883, cinco dos seis vereadores de São Vicente eram republicanos. No congresso do PRR do mesmo ano, Assis<br />
Brasil participou como representante do município, o que indica as íntimas relações que possuía com o mesmo.<br />
230
o propagandista Pinheiro Machado era líder político de destaque, aconteceu algo semelhante,<br />
embora com menor intensidade. É possível que em outras localidades os<br />
republicanos também tenham prestado seu apoio aos conservadores, contrariando<br />
o que Assis Brasil argumentou. As explicações do jovem deputado eram coerentes<br />
com a decisão dos republicanos na primeira convenção do partido, em fevereiro de<br />
1882. Nesta ocasião, seus líderes estipularam que em todas as localidades os republicanos<br />
deveriam concorrer às urnas para eleger seus correligionários, mas “no caso<br />
de naufragar no 1º escrutínio”, a ordem era a “abstenção no 2º”. Para o PRR, o 2º<br />
escrutínio era “um meio de facilitar essas transações por demais perigosas e nocivas<br />
à boa ordem do Partido” 18 . Entretanto, como demonstramos, tal prática não foi<br />
respeitada.<br />
Tais acordos revelam que os republicanos não estavam “isolados” das lutas<br />
faccionais entre os monarquistas. Na prática, não tinha como jogar o jogo eleitoral<br />
sem flertar com as regras monárquicas estabelecidas. Assis Brasil foi ainda mais longe.<br />
Na longa carta transcrita abaixo, notamos que para aumentar o número de eleitores<br />
do PRR, ele orientou os clubes republicanos do 3º círculo a criarem um fundo<br />
que arrecadasse dinheiro para fraudar documentos comprobatórios e necessários na<br />
qualificação:<br />
“Aqui estou afiando-me para a qualificação. Pretendo meter pelo menos<br />
mais 30 eleitores neste município. Na qualificação está o segredo<br />
da causa. Não se descuidem lá. Se é preciso eu ir é só avisarem-me.<br />
Mas São Borja é o município onde há bons companheiros em maior<br />
número: façam tudo por si. É bom desde logo irem organizando uma<br />
lista dos cidadãos que se podem qualificar, para que tudo se facilite<br />
na ocasião. Tive aqui uma idéia excelente, que espero que dará os<br />
melhores resultados. É sabido que há companheiros excelentes que<br />
não se podem qualificar por não poderem provar a renda. A minha<br />
idéia consiste no modo de arranjar a prova, que é a seguinte: Desde<br />
já os clubes das diferentes localidades irão formando por meio de<br />
donativos, benefícios, mensalidades, enfim, como melhor puderem,<br />
um fundo destinado à qualificação. No mês de agosto deste ano, os<br />
correligionários que possuírem terras passarão escrituras no valor de<br />
2 contos de réis aos que tem deficiência de renda. O fundo do clube<br />
será empregado no pagamento da siza e da escritura. As propriedades<br />
vendidas podem ser as mais insignificantes, marcando-se as divisas, a<br />
siza de 2 contos à 140 réis, e, por conseguinte, um conto e quatrocentos<br />
dão para 10 eleitores. Destes, muitos já terão escrituras de menor<br />
MONTEIRO, Hiram Ayres. Venâncio Ayres: o cavaleiro do ideal. São Paulo: Editora Grill, 1997, p. 322-323. O<br />
Partido não condenava o recebimento de votos dos monarquistas, pois isto era visto como um indício de possível<br />
conversão do eleitorado. Entretanto, o contrário não era recomendado.<br />
231
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
valor, e, nesse caso a que se passar está no que basta para inteirar os<br />
2 contos. Outros poderão pagar por si, senão tudo, ao menos parte.<br />
Assim é que não será necessário que os clubes reúnam exatamente os<br />
1.400 réis para fazerem por esta forma 10 eleitores. Temos 10 clubes<br />
no círculo; se todos fizerem isto são 100 eleitores que vamos ter de<br />
mais, e boa gente, porque está claro que devemos escolher companheiros<br />
muito firmes para esta jogada” 19 .<br />
O Assis Brasil que escreveu esta carta é o mesmo que, anos antes, condenou<br />
a diminuição do número de eleitores implementada pela Lei Saraiva, em 1881. O sufrágio<br />
restrito, para ele, concretizava um privilégio e apenas beneficiava algumas classes<br />
em detrimento de outras. “A prática do sufrágio censitário é digna do princípio<br />
de onde emana. Proposital ou não, o alvo dos governos, estabelecendo as exclusões<br />
em massa é corromper mais facilmente o corpo eleitoral. Mais depressa se corrompe<br />
e disciplina um pequeno do que um grande número de eleitores (...)” 20 . Assis Brasil<br />
estava correto, mas esqueceu de mencionar que ele poderia ser o principal disciplinador<br />
dos eleitores. Na mesma carta, ele destacou como seu plano deveria ser executado:<br />
“Tudo se deve fazer em segredo, que é para os adversários não nos imitarem<br />
(...). Estas coisas só deves comunicar a bons companheiros (...). A alma do negócio<br />
é o segredo” 21 . Concluindo a missiva, Assis Brasil defendeu-se argumentando que<br />
não havia nenhuma ilegalidade no procedimento, pois para ele todos possuíam a<br />
renda necessária, embora não tivessem como comprová-la. A renda de 200 mil réis<br />
anuais de fato era baixa, mas não justifica que as transações de terras forjadas com<br />
a finalidade de adquirir comprovantes de rendas não fossem consideradas fraudes.<br />
Portanto, existiam muitas coisas em comum entre monarquistas e republicanos.<br />
E o apoio que estes últimos deram aos conservadores, assim como a retribuição<br />
saquarema, também poderia ter outra motivação bastante significativa. Severino Ribeiro<br />
e Borges Fortes possuíam íntimas ligações com importantes lideranças republicanas<br />
por meio do vínculo mais elementar do mundo da política: a própria família.<br />
232<br />
II – OS FILHOS PRóDIGOS: PAI MONARQUISTA,<br />
FILHO REPUBLICANO<br />
Não apenas Assis Brasil, mas toda a mocidade republicana, por intermédio de<br />
seus familiares, estava conectada ao eleitorado de suas respectivas regiões de origem.<br />
19 Carta de Assis Brasil a Aparício Mariense. São Gabriel, 29.01.1885 apud RAMOS, Eloísa H. Capovilla. Op. Cit.<br />
20 ASSIS BRASIL, Joaquim F. de. A República Federal. In: Senado Federal (Org.). A Democracia representativa<br />
na República: antologia. Brasília: Senado Federal, 1998, Ed. Fac-similar, p. 82.<br />
21 Carta de Assis Brasil a Aparício Mariense. São Gabriel, 29.01.1885 apud RAMOS, Eloísa H. Capovilla. Op. Cit.
Este eleitorado, não é difícil imaginar, era monarquista e votava ou nos liberais ou<br />
nos conservadores, únicas possibilidades na década de 1870. Portanto, seus familiares<br />
não estavam descolados da elite local, mas sim, profundamente vinculados à<br />
mesma, visto que manter um filho estudando em alguma academia do Império era<br />
um investimento bastante custoso. A análise de algumas trajetórias é reveladora.<br />
Podemos começar por Júlio de Castilhos. Se o pai era um estancieiro de considerável<br />
fortuna em São Martinho, “pelo lado materno descendia de família aristocrática”.<br />
O avô de Castilhos era o Capitão Fidelis Nepomuceno Prates, grande estancieiro<br />
em São Gabriel, que chegou a ajudar financeiramente os rebeldes farrapos e foi deputado<br />
na Constituinte da República Rio-grandense. Outros dois parentes também<br />
ligavam a família à elite provincial. O primeiro deles foi Dom Feliciano José Rodrigues<br />
Prates, primeiro bispo do Rio Grande do Sul e cuja influência política devia ser<br />
grande 22 . O segundo foi Fidêncio Nepomuceno Prates, médico em São Gabriel e<br />
deputado provincial entre 1848 e 1859 e geral entre 1853 e 1856. As redes sociais da<br />
família de Castilhos estenderam-se até o mundo da Corte quando Fidêncio casou-se<br />
com a filha do Barão de Antonina. Este era senador do Império pela província do<br />
Paraná e já havia sido deputado em São Paulo, para onde enviava tropas de mulas.<br />
O Barão de Antonina era irmão do Barão de Ibicuí, rico estancieiro com terras em<br />
Cruz Alta, São Martinho, Palmeira e Santo Ângelo. Ambos os irmãos foram importantes<br />
chefes conservadores 23 .<br />
Outro exemplo foi José Gomes Pinheiro Machado. Propagandista da região<br />
missioneira, era filho de Antônio Pinheiro Machado, advogado renomado em São<br />
Paulo e que ao se envolver com a Revolta de 1842, teve que refugiar-se na região<br />
serrana do Rio Grande, onde já possuía parentes e negócios com tropas de animais.<br />
Fixados em São Luís, os Pinheiro Machado tornaram-se ricos estancieiros. Antônio<br />
foi deputado provincial (1858 a 1864) e geral (1864 a 1866) – quando defendeu os<br />
progressistas e derrotou Silveira Martins. Os Pinheiro Machado eram parentes dos<br />
Oliveira Ayres, família a qual pertencia o também paulista Venâncio Ayres, cunhado<br />
de José Gomes, e que contribuiu muito com a propaganda republicana na Província,<br />
após ter sido deputado em São Paulo, pelo Partido Conservador.<br />
Vejamos os exemplos dos Abbott e dos Ribeiro de Almeida. Os Abbott<br />
eram uma família de estancieiros e médicos com base em São Gabriel e eleitores<br />
do Partido Conservador. Fernando e João foram os principais membros da família<br />
22 SOARES, Mozart Pereira Soares. Júlio de Castilhos. Porto Alegre: IEL, 1996, p. 9.<br />
²³ Todas as referências aos laços de parentesco envolvendo os indivíduos nobilitados pertencem a CARVALHO,<br />
Mário Teixeira de. Nobiliário Sul-riograndense. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1937.<br />
233
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
a aderirem ao republicanismo na década de 1880. Ambos eram cunhados de João<br />
Borges Fortes Filho, cujo pai era o grande chefe do Partido Conservador na região<br />
da campanha. O Doutor Borges Fortes foi deputado provincial (1850 a 1863; 1869 a<br />
1872 e 1887 a 1888) e geral (1857 a 1860) 24 . Os Ribeiro de Almeida eram uma família<br />
igualmente conservadora com forte influência em Alegrete, Quarai, Uruguaiana e<br />
Livramento, onde possuíam estâncias. Severino Ribeiro foi o chefe político máximo<br />
da família, tornando-se deputado provincial (1885-1886) e geral (1877; 1882-1884;<br />
1886). O republicano da família foi seu irmão caçula, Vitorino, que havia sido colega<br />
de Assis Brasil e de Castilhos na faculdade de Direito. Ambos eram filhos do Barão<br />
de São Borja – comandante de destaque na Guerra do Paraguai e um dos principais<br />
chefes conservadores da região da campanha – e netos de Bento Manoel Ribeiro,<br />
estancieiro que pegou em armas em 1835, mas passou para o lado legalista por duas<br />
vezes. A partir destas linhas é possível considerar que os laços de parentesco devem<br />
ter facilitado com que Severino Ribeiro convencesse seus eleitores a votarem no<br />
amigo de seu irmão Vitorino, Assis Brasil, e os republicanos retribuírem apoiando<br />
Borges Fortes e o próprio Severino, como demonstramos antes.<br />
Podemos citar outros casos de forma mais resumida. Ramiro Barcellos, por<br />
exemplo, era sobrinho do Barão de Viamão, o principal chefe conservador de Cachoeira,<br />
e primo de Borges de Medeiros, outro importante propagandista e que, na<br />
República, governou o Rio Grande por 25 anos. Joaquim Pereira da Costa era sobrinho<br />
e acabou tornando-se genro do Barão de Nonoai, rico estancieiro e importante<br />
chefe conservador em Cruz Alta. Joaquim foi colega de Faculdade de Castilhos e<br />
ambos acabaram tornando-se cunhados. João Jacintho Mendonça pertencia a uma<br />
importante família de charqueadores saquaremas de Pelotas e Demétrio Ribeiro era<br />
sobrinho do Barão de Santana do Livramento, antigo líder conservador de Alegrete,<br />
mas que por desavenças com os Ribeiro de Almeida tornou-se o principal chefe gasparista<br />
da região. Possidônio Cunha era sobrinho do Barão de Corrientes, capitalista<br />
e charqueador pelotenses, e Marçal Escobar, neto do poderoso Barão de São Lucas<br />
– rico estancieiro são borjense.<br />
Muitos destes propagandistas pertenciam ao “Club 20 de setembro”, que<br />
reunia estudantes republicanos rio-grandenses na academia de São Paulo. Examinando<br />
a lista dos sócios e pesquisando suas vidas percebemos que outros membros<br />
deste grupo também possuíam trajetória semelhante aos citados anteriormente. Alfredo<br />
Lobo d’Eça era filho do Barão de Batovi, estancieiro com enorme destaque<br />
24 Além disso, uma das filhas do Doutor Borges Fortes casou-se com Carlos Prates de Castilhos que provavelmente<br />
era um parente próximo de Júlio. (CARVALHO, Mário Teixeira. Op. Cit., p. 92).<br />
234
na campanha do Paraguai e com terras em São Gabriel. Enéias Galvão era filho do<br />
Visconde de Maracajú, outro militar que chegou a ser ministro da Guerra, e que era<br />
irmão do Barão de Rio Apa, principal repressor da Revolta do Vintém, na Corte. O<br />
Barão de Candiota, outro importante estancieiro gabrielense que possuía terras em<br />
diversos municípios da região da campanha e que era primo do Senador e Ministro<br />
Henrique D’Avila, era pai de José Maria Chagas. E Adolpho Osório era filho do<br />
General Osório e Marquês do Herval, principal chefe político do Rio Grande do Sul<br />
nos anos 1870.<br />
Outros exemplos poderiam ser dados e Assis Brasil também se encaixa no<br />
perfil descrito. Filho do estancieiro Francisco de Assis Brasil, a família era aparentada<br />
com os Jobim – conservadores e íntimos do Imperador. Um de seus membros<br />
ilustres era o Barão de Cambaí, tio-avô de Assis Brasil e que na juventude foi negociante<br />
no Rio de Janeiro e depois se tornou estancieiro em São Gabriel. Irmão<br />
da Viscondessa de Sabóia e filho do Senador José Cruz Jobim, o Barão era “senhor<br />
de avultados bens de fortuna” e “contribuiu, largamente, para a campanha do Paraguai”<br />
25 . Na década de 1870, Assis Brasil também se tornou cunhado do estancieiro<br />
Antônio de Castro Jobim, casado com sua irmã Felisberta.<br />
Filhos, netos, sobrinhos, em suma, parentes de barões, viscondes e marqueses.<br />
Pode-se dizer que a grande maioria destes propagandistas pertencia às famílias<br />
mais nobres do Império. Tinham ascendentes conhecidos no mundo da Corte, seja<br />
pelos títulos de nobreza, seja pelos altos cargos ocupados, e respiravam a política<br />
desde a sua infância. Provenientes de famílias da elite monárquica é possível considerar<br />
que sua conversão ao republicanismo tenha acontecido em algum momento<br />
de suas vidas, seja na adolescência, nas escolas preparatórias, seja na juventude, já na<br />
academia. Esta simples constatação evidencia que ao retornarem para sua terra natal,<br />
estes jovens republicanos viam-se como membros de uma extensa parentela de<br />
monarquistas. Devido às novas posições políticas trazidas para o interior da família,<br />
o relacionamento com seus pais podia tornar-se problemático. Mas por outro lado,<br />
caso fosse tolerado, um possível apoio da família nas negociações políticas do filho<br />
recém chegado poderia facilitar seus contatos iniciais.<br />
O fato é que o convívio com outros estudantes mais velhos e o contato com<br />
novas idéias mexiam com a cabeça dos rapazes. No caso dos rio-grandenses, muitas<br />
vezes o calor do republicanismo já era sentido nos estudos preparatórios realizados<br />
em Porto Alegre, no Colégio de Fernando Gomes, por exemplo. Este professor era<br />
25 CARVALHO, Mário Teixeira de. Op. Cit., p. 51.<br />
235
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
republicano e abolicionista declarado e ensinava a doutrina de Comte aos seus jovens<br />
alunos. Freqüentaram suas aulas Júlio de Castilhos, Assis Brasil, Barros Cassal,<br />
Ernesto Alves, entre outros26 . Posteriormente, nas Escolas Militares ou nas Academias<br />
de Medicina e Direito eles tinham contato com as elites de todo o Brasil, suas<br />
experiências se renovavam e eles conheciam um caldeirão de idéias, por muitos consideradas<br />
subversivas. Um trecho das memórias do abolicionista Joaquim Nabuco<br />
ilustra o impacto deste encontro:<br />
“QUANDO ENTREI PARA A ACADEMIA, LEVAVA A MINHA<br />
FÉ CATóLICA VIRGEM; SEMPRE ME RECORDAREI DO ES-<br />
PANTO, DO DESPREZO, DA COMOçãO COM QUE OUVI<br />
PELA PRIMEIRA VEZ TRATAR A VIRGEM MARIA EM TOM<br />
LIBERTINO; EM POUCO TEMPO, PORÉM, NãO ME RESTA-<br />
VA DAQUELA IMAGEM SENãO Pó DOURADO DE SAU-<br />
DADE (...) AS MINHAS IDÉIAS ERAM, ENTRETANTO, UMA<br />
MISTURA E UMA CONFUSãO; HAVIA DE TUDO EM MEU<br />
ESPíRITO. ÁVIDO DE IMPRESSõES NOVAS, FAZENDO OS<br />
MEUS PRIMEIROS CONHECIMENTOS COM OS GRANDES<br />
AUTORES, COM OS LIVROS DE PRESTíGIO, COM AS IDÉIAS<br />
LIVRES, TUDO O QUE ERA BRILHANTE, ORIGINAL, HAR-<br />
MONIOSO, ME SEDUZIA E ARREBATAVA POR IGUAL”. 27<br />
No Rio Grande do Sul, no fim dos anos 1870 e início dos anos 1880, não era<br />
novidade para as elites que a faculdade de Direito de São Paulo estava tornandose<br />
um reduto de jovens rio-grandenses convertidos ao republicanismo. Da turma<br />
formada em 1878, retornaram para o Rio Grande os propagandistas José Gomes<br />
Pinheiro Machado e Marçal Escobar. Da turma de 1880, foi a vez de Wenceslau Escobar,<br />
Alexandre Cassiano do Nascimento e Antônio Pinheiro Machado Júnior. Em<br />
1881, formaram-se Eduardo Lima, Júlio de Castilhos e João Mendonça. Cruzando<br />
a lista dos formados nas turmas posteriores com a dos propagandistas, percebemos<br />
que a grande maioria dos formados já voltava ao Rio Grande pronta para abastecer<br />
as fileiras do PRR. Mas o que os pais monarquistas vinham pensando sobre isto?<br />
Resolvemos construir um gráfico demonstrando o número de rio-grandenses<br />
diplomados em Direito a cada ano. Como os anos indicados são os da formatura,<br />
devemos considerar que os pais enviaram seus filhos para a academia sempre cinco<br />
anos antes da conclusão do curso. O gráfico apresenta quatro momentos em que a<br />
elite rio-grandense reduziu o envio dos filhos para São Paulo. Três delas tem nítida<br />
26 RIBEIRO, Célia. Fernando Gomes: um mestre no século XiX. Porto Alegre: LP & M, 2008.<br />
27 NABUCO, Joaquim. Minha Formação. Brasília. UnB, 1963, p. 10-11.<br />
236
vinculação com as épocas em que o Rio Grande do Sul envolveu-se em guerras. A<br />
primeira queda brusca nos envios inicia-se em 1842, o que evidencia que a partir<br />
de 1837, os rio-grandenses foram cada vez menos estudar na Academia Paulista.<br />
A segunda queda inicia-se em 1857, ou seja, cinco anos depois da Guerra contra<br />
Oribe e Rosas. Esta queda foi pequena, assim como o impacto da mesma Guerra. A<br />
terceira queda, relacionada com a Guerra do Paraguai, foi igualmente brusca como a<br />
primeira. Ela inicia-se em 1872 e demonstra que a partir de 1867 os rio-grandeses diminuíram<br />
o envio de seus filhos para São Paulo. Estes três ciclos de queda demonstram<br />
que as guerras provocaram significativa crise política e econômica e acabaram<br />
alterando o projeto de muitas famílias, reduzindo as possibilidades de manterem um<br />
filho estudando fora da Província, algo muito custoso. Mas como explicar a enorme<br />
diminuição iniciada em 1887?<br />
Não houve nenhuma guerra no início da década de 1880 e nem é possível<br />
falar de uma grande crise econômica que inviabilizasse tal investimento familiar. A<br />
mencionada crise nas charqueadas é discutível. O número de estabelecimentos saladeris<br />
em 1882, por exemplo, era maior que na década anterior e as vendas do produto<br />
não caíram tanto 28 . A população rio-grandense continuou a crescer bastante e as<br />
exportações de alimentos da região colonial também aumentavam a cada ano. Nossa<br />
hipótese é que um dos motivos pelo qual os rio-grandenses diminuíram o envio de<br />
filhos para São Paulo se deu exatamente pela explosão do movimento republicano.<br />
As primeiras manifestações de Castilhos e Assis Brasil, a fundação do PRR e a defesa<br />
de idéias perigosas, como a abolição da escravidão, por exemplo, deve ter incomodado<br />
muitos estancieiros monarquistas e charqueadores fiéis à Coroa. A academia paulista<br />
estava se tornando um espaço anti-monárquico e é provável que pais de famílias<br />
da elite proprietária não quisessem ver seus filhos convertidos a “tais” doutrinas.<br />
28 O estudo das charqueadas pelotenses constitui-se no tema atual de pesquisa de Jonas Vargas. Resultados parciais<br />
podem ser acompanhados em VARGAS, Jonas Moreira. A elite charqueadora de Pelotas (1850-1890): algumas notas<br />
sobre as suas estratégias familiares e a transmissão de propriedade. In: GARCIA, Graciela B. (Org.). Anais do ii<br />
Encontro do GT de História Agrária (ANPUH-RS). Porto Alegre, 2009, CD-ROM, p. 1-20.<br />
237
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
238<br />
Gráfico – Bacharéis em direito rio-grandenses<br />
formados em São Paulo (1832-1895)<br />
Fonte: FRANCO, Sérgio da Costa. Gaúchos na Academia de Direito de São Paulo no século XIX in:<br />
Revista Justiça & História. Porto Alegre: CEMJUG, 2001, pp. 107-129.<br />
Muitas famílias, no Brasil inteiro, devem ter vivido este dilema. Pais monarquistas<br />
e filhos republicanos. Pais escravocratas e filhos abolicionistas. Pais excessivamente<br />
religiosos e filhos anti-clericais. As famílias se desentendo ou se acertando,<br />
em conflitos com diferentes intensidades, muitas vezes dentro da própria casa. Mas<br />
para Júlio de Castilhos, Assis Brasil, Pinheiro Machado, Ramiro Barcellos, Vitorino<br />
Monteiro, e talvez alguns outros, contornar a vontade paterna não foi problema,<br />
pois os mesmos eram órfãos de pai quando foram estudar em São Paulo 29 . Tal fatalidade<br />
pode ter contribuído para favorecer uma militância mais livre de tensões dentro<br />
da própria casa. Além disso, ter ficado órfão desde a juventude deve ter exigido<br />
dos mesmos uma precoce e constante busca por padrinhos políticos. A ausência<br />
da figura paterna trazia dificuldade para muitas coisas, mas acabava abrindo outras<br />
portas. Nenhum biógrafo declarou, mas conforme a mãe de Assis Brasil, o mesmo<br />
seria encaminhado à carreira da medicina, para a qual possuía “caracterizada vocação”<br />
30 . Não sabemos se este era seu desejo, mas com a morte do pai, ele acabou indo<br />
estudar Direito. O mesmo pode ser dito de Vitorino Ribeiro. O pai enviou-o para<br />
estudar na Academia Militar da Corte, mas tendo falecido, em 1877, Vitorino acabou<br />
transferindo-se para São Paulo, o que talvez fosse sua verdadeira vontade 31 . Se tais<br />
29 Com exceção de Ramiro, formado em medicina na Corte.<br />
30 Inventário de Francisco de Assis Brasil. Processo 247, maço 12, ano 1872, São Gabriel, Cartório de órfãos e<br />
ausentes (APERS), p. 62.<br />
31 VARGAS, Jonas Moreira. Entre a paróquia e a Corte: os mediadores e as estratégias familiares da elite<br />
política do Rio Grande do Sul (1868-1889). Santa Maria: Editora da UFSM/ Anpuh-RS, 2010.
fatalidades não tivessem ocorrido é provável que a relação de ambos com Castilhos,<br />
efetivadas em São Paulo, não tivessem se estreitado tanto.<br />
As relações familiares dentro do mundo da política eram importantes tanto<br />
para os monarquistas quanto para os republicanos e tais vínculos acabavam conectando<br />
a todos. As alianças eleitorais entre conservadores e republicanos, portanto,<br />
também deve ter sido fruto de uma retribuição parental só perceptível quando se<br />
analisa a fundo as famílias desta elite. Na região da campanha esta ligação parece<br />
ter sido mais forte. Assis Brasil, Fernando Abbott e Vitorino Ribeiro, por exemplo,<br />
tinham importantes lideranças conservadoras na própria família, o que pode ter<br />
facilitado a aliança partidária e os votos depositados em Assis Brasil. Para muitos,<br />
portanto, o ódio familiar contra Silveira Martins e seu séquito já vinha de família,<br />
mesmo antes da década de 1870 e foi apenas reatualizado na fase da propaganda<br />
republicana e elevada a uma nova etapa na Revolução Federalista (1893-1895). Os<br />
inimigos de Gaspar eram bem-vindos nas hostes republicanas. Isto ajuda a explicar<br />
porque os parentes do General Osório e todos os liberais expurgados por Silveira<br />
Martins foram acolhidos no seio do PRR. Quando Assis Brasil tomou a palavra na<br />
sessão parlamentar do dia 8 de dezembro de 1885 e enfrentou Silveira Martins de<br />
forma impetuosa é provável que muitos membros da velha guarda saquarema da<br />
província, que tanto sofrera nas mãos do intransigente tribuno liberal, estivessem<br />
satisfeitos, certos de que fizeram um bom negócio ao apoiar ocasionalmente aquele<br />
rapaz de apenas 28 anos.<br />
III – JOAQUIM NA COVA DOS LEõES: UM<br />
REPUBLICANO NO PARLAMENTO PROVINCIAL<br />
As sessões da Assembléia Legislativa provincial duravam pouco mais que<br />
dois meses, mas era a oportunidade dos partidos implementarem a sua política. Na<br />
leitura dos anais do parlamento é possível perceber que Assis Brasil demonstrouse<br />
bastante ativo na defesa da região da campanha. A hipótese que defendemos<br />
é que não apenas os votos conservadores o deram a vitória, mas também a habilidade<br />
com que o mesmo preencheu um espaço que estava aberto para novos<br />
representantes daquela região. Logo que foi eleito, em janeiro de 1885, ele escreveu<br />
ao mesmo Aparício Mariense convidando-o para a convenção do Partido na<br />
capital: “Espero que cumpras a palavra que me deste, sendo representante de São<br />
Borja. É um passeio que dás a Porto Alegre e com isso aproveitas a ver funcionar<br />
a Assembléia, onde já vai tomar parte um republicano”. E na mesma carta deixou<br />
clara a insatisfação dos eleitores da fronteira: “Não podemos continuar, nós da<br />
239
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Campanha, a ser representados por gente da capital. É o amor ao partido que exige<br />
a tua ida, ou de algum de nossos bons companheiros daí” 32 .<br />
Mas porque “gente da capital”? A insatisfação de Assis Brasil apenas refletia<br />
o fato de que muitos candidatos monarquistas que concorriam com ele nas eleições<br />
residiam em Porto Alegre. Albino Pinto e Egídio Itaqui, embora fossem naturais da<br />
campanha, há muito haviam trocado sua residência para a capital, onde advogavam.<br />
O engenheiro Adriano Ribeiro fizera o mesmo. Mas outros concorrentes como José<br />
Bittencourt, Francisco Souza e Hemetério Silveira nem da campanha eram e pretendiam<br />
representá-la no parlamento. O próprio Silveira Martins e seus seguidores<br />
como Joaquim Salgado e Eleuthério de Camargo, constituíam-se em homens que<br />
haviam migrado para a capital. O Partido Liberal era forte em Porto Alegre. Em<br />
1882, por pressão dos comerciantes da capital que reclamavam do contrabando na<br />
fronteira oeste, Silveira Martins empenhou-se em aprovar no Senado a tarifa especial<br />
que favorecia aqueles negociantes, em detrimento dos da campanha. Muito comemorado<br />
na capital, Gaspar teve seu retrato exposto na sala de reuniões da Associação<br />
Comercial de Porto alegre 33 . Soma-se a isto o fato de que Silveira Martins já nem<br />
concorria mais às eleições pelos círculos eleitorais da campanha. Na década de 1880,<br />
ele sempre se elegeu pelo 6º círculo, que reunia a região de colonização alemã, além<br />
de importantes cidades como Rio Pardo, Santa Maria e Cachoeira.<br />
Assis Brasil, portanto, parecia estar tentando legitimar um discurso onde ele<br />
seria o verdadeiro representante da região da campanha. Jamais saberemos o conteúdo<br />
de suas conversas pessoais com os eleitores da fronteira, mas é provável que ele<br />
estivesse utilizando isto para conseguir votos. As críticas aos deputados monarquistas<br />
daquela região já vinham sendo realizadas antes dele, o que deve ter facilitado<br />
a sua missão. Anos antes, Wenceslau Escobar, advogado em São Borja, e Propício<br />
Barreto Pinto, proprietário em São Gabriel, acusavam o próprio partido que representavam,<br />
o liberal, de ter abandonado a campanha. Eleuthério de Camargo, em<br />
defesa, tentou contornar a situação, mas não apresentou argumentos capazes de<br />
contrariar os dois jovens 34 . Meses mais tarde, Wenceslau acabou ingressando no<br />
PRR. Talvez esta nova agremiação fosse uma saída para aqueles homens da campa-<br />
32 Carta de Assis Brasil a Aparício Mariense. São Gabriel, 29.01.1885 apud RAMOS, Eloísa H. C. da Luz. Op. Cit.,<br />
p. 245-249.<br />
33 FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre e seu comércio. Porto Alegre: Associação Comercial de Poa, 1983,<br />
p. 78.<br />
34 Anais da Assembléia Legislativa Provincial, sessão de 21 de abril de 1881. Eleuthério dizia que as críticas eram<br />
coisas de jovens radicais, mas Antônio Ribas, um velho deputado de Itaqui concordou com eles. Eleuthério admitiu<br />
o abandono e concluiu que o Partido não governava por localidades, mas sim pelo crescimento de toda Província,<br />
discurso muito comum entre os situacionistas.<br />
240
nha que estavam descontentes com a administração dos liberais e de sua política para<br />
com aquela região. Estes e outros episódios devem ter contribuído para o aumento<br />
do eleitorado republicano na campanha. Conforme Eloísa Ramos, a maioria das adesões<br />
ao PRR, logo após a sua fundação, em 1882, aconteceu na região da campanha.<br />
Em quase todos os municípios eles conseguiram eleger um vereador, sendo que, em<br />
Alegrete, assumiram dois 35 .<br />
Algumas das manifestações de Assis Brasil foram em defesa dos estancieiros<br />
daquela região. Favorecendo São Gabriel, por exemplo, ele tentou aumentar sua<br />
arrecadação ao propor uma lei obrigando todo o gado vindo da região missioneira<br />
para Pelotas a pagar pedágio na ponte recém criada sobre o Vacacaí 36 . Em outro<br />
discurso, ele buscou vetar o projeto de lei encaminhado pelos liberais para diminuírem<br />
o corpo policial na fronteira. Segundo ele, o mal para as estâncias da campanha<br />
era exatamente a falta de policiamento. Assis Brasil acrescentava: “Venho de lá do<br />
interior da província, onde vejo com os meus olhos (...) o descrédito com que os<br />
homens públicos aparecem aos olhos dos nossos patrícios, desiludidos de promessas<br />
(...)” 37 . Em abril de 1886, ele defendeu a criação de gado como a principal fonte de<br />
riqueza da província e atacou todos os deputados por não estarem se empenhando<br />
na melhoria da atividade pecuária. E ao condenar ambos os partidos monárquicos<br />
por este abandono, ele enfatizava: “não falo desta legislatura; refiro-me a todas (...)<br />
Pouco se tem feito pelo bem real da província, e pela indústria pastoril particularmente<br />
quase nada” 38 .<br />
Com relação à abolição da escravidão Assis Brasil também foi um parlamentar<br />
ativo. No ano de 1886, a única medida legislativa relativa à questão servil foi<br />
enviada por ele, que encaminhou uma emenda ao projeto de orçamento das câmaras<br />
municipais onde dizia: “de cada individuo que tiver escravos ou libertos, com cláusu-<br />
35 A autora acrescenta que nesta região fronteiriça os assinantes d’A Federação, jornal oficial do partido, também eram<br />
bastante numerosos. Esta inclinação ao republicanismo só poderia significar uma insatisfação com os representantes<br />
políticos liberais e conservadores, além de servir como mais um espaço às elites paroquiais alijadas da política local.<br />
(RAMOS, Eloísa H. C. da Luz. Op. cit, p. 109-110).<br />
36 Anais da Assembléia Legislativa do RS. Sessão do dia 9 de novembro de 1885.<br />
37 Anais da Assembléia Legislativa do RS. Sessão do dia 20 de novembro de 1885.<br />
38 Anais da Assembléia Legislativa. Sessão do dia 02.04.1886. Assis Brasil, habilmente, estava preenchendo um<br />
espaço aberto à “mediação”. Era bom orador e palestrante e, de fato, preocupava-se com os problemas relativos<br />
à criação de gado, como demonstram os livros que escreveu já no século XX. Tornara-se, aos 28 anos, um jovem<br />
líder político com uma clientela formada a todo custo. Mas buscava ampliá-la e com isto deveria beneficiar a comunidade<br />
local, cujos estancieiros eram seus principais chefes. O reconhecimento dos mesmos legitimava a posição de<br />
Assis Brasil, que conectava a região da campanha com a capital – centro administrativo da província e da qual os<br />
estancieiros esperavam favores e cargos. Mas esta era uma tarefa difícil e muitos cobiçavam o seu posto de mediador<br />
político. Para uma reflexão teórico-metodológica do papel do mediador nas sociedades agrárias e pré-industriais ver<br />
VARGAS, Jonas Moreira. Op. Cit., 2010.<br />
241
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
la de prestação de serviços por mais de três anos se cobrará 50$000 por cada escravo<br />
ou liberto”. A emenda foi vetada pela maioria. Um ano depois, em novembro de<br />
1887, dois deputados propuseram a criação de um imposto de 500$000 sobre cada<br />
escravo que fosse importado em qualquer município rio-grandense. Assis Brasil novamente<br />
ofereceu uma emenda, ampliando os impostos a todos os escravos, quer de<br />
passagem de um município para outro, quer fixos em um só município, sugerindo o<br />
imposto de 100$000 sobre cada liberto com a condição de servir. Encontrando nova<br />
oposição, Assis Brasil retirou sua emenda para não prejudicar a aceitação de todo o<br />
projeto. Incansável, o jovem republicano propôs outra emenda juntamente com o<br />
liberal Severino Prestes, sob “o imposto de 200$000 a que ficam sujeitas as cartas de<br />
alforria concedidas da data desta lei em diante com a cláusula de serviços por mais<br />
de três anos”. Desta vez a emenda foi aprovada e incorporada à lei 39. .<br />
Assis Brasil vinha-se demonstrando empenhado em representar a região da<br />
campanha, mas não conseguiu se reeleger em 1888. É provável que a abolição da<br />
escravidão, em maio deste ano, tenha auxiliado no afastamento entre conservadores<br />
e republicanos, pois ambos ocupavam posições distintas com relação ao delicado<br />
tema 40 . Além disso, a votação que ele obteve no 1º escrutínio de 1884 foi praticamente<br />
a mesma que em 1886, o que demonstra que o Partido não havia crescido<br />
em quase nada, mas pelo contrário, perdido seu potencial eleitoral, pois em 1888,<br />
sua candidatura naufragou. Estaria Assis Brasil afastando-se do seu eleitorado da<br />
fronteira? O fato é que nos dois únicos discursos publicados nos Anais para o ano<br />
de 1888, ele defendeu interesses de outras regiões. Numa delas, propôs a criação de<br />
uma aula pública num distrito rural de Santa Maria. Na outra, ele estava representado<br />
“os mais respeitáveis comerciantes e proprietários” de Porto Alegre, e exigindo a<br />
restituição total de impostos supostamente cobrados de forma ilegal 41 . Ele que tanto<br />
criticara os representantes da campanha que estavam vinculadas à capital, agora estava<br />
ligado aos ricos negociantes de Porto Alegre.<br />
No entanto, outro fator contribuiu para que o mesmo não fosse eleito. Aprovada<br />
em 1887, entrou em vigor no ano seguinte a “lei do terço”, que havia sido abandonada<br />
em 1881, mas retornava como salvação para a representação das minorias.<br />
Ela exigia que cada eleitor ao invés de votar num candidato, votasse em 2/3 das ca-<br />
39 Em dezembro de 1887, Assis Brasil e Albino Pereira Pinto apresentaram um projeto, logo aprovado, que dispensava<br />
“das dívidas provenientes da taxa de escravos os senhores que derem ou deram liberdade incondicional aos<br />
escravos sobre os que versaram as dívidas”, bem como as pessoas que desistirem dos serviços dos libertos com cláusula<br />
(BAKOS, Margaret Marchiori. RS: escravismo & abolição. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982, p. 63-77).<br />
40 Muito embora alguns conservadores tenham participado do movimento abolicionista e outros republicanos fossem<br />
mais receosos a cerca da abolição.<br />
41 Anais da Assembléia Legislativa do RS. Sessões dos dias 29 e 30 de novembro de 1888.<br />
242
deiras a serem preenchidas, ou seja, cada eleitor votaria em 4 candidatos. Os liberais<br />
e conservadores que antes tinham que escolher apenas um candidato do seu partido<br />
para votar, agora podiam votar em quatro. A minoria beneficiada acabou sendo a<br />
conservadora e os republicanos não elegeram nenhum candidato. É provável que o<br />
PRR não estivesse suportando todo o peso de jogar o jogo eleitoral completamente<br />
controlado pelos monarquistas. A nova lei foi mais um indício de que o sistema político<br />
monárquico precisava ser derrubado. Não foi coincidência que meses depois,<br />
em março de 1889, na fazenda da Reserva, eles passaram a aceitar a via revolucionária,<br />
muito embora ela ainda não fosse considerada a principal 42 .<br />
IV – ALGUMAS NOTAS CONCLUSIVAS<br />
Costuradas lenta e habilmente ao longo da década de 1880 e em parte herdadas<br />
de seus pais e parentes estabelecidos na região, as alianças e relações de amizade<br />
que os jovens propagandistas estabeleceram com estancieiros e eleitores foi uma<br />
exigência para a sua sobrevivência política. Por serem novatos na cena política, muitas<br />
destas ligações tiveram que ser realizadas com lideranças monarquistas ou recém<br />
convertidas ao republicanismo. Tanto estas alianças quanto inúmeras dissidências no<br />
interior das facções locais eram tomadas de posição conjunturais, sendo que algumas<br />
acabavam tornando-se mais duradouras. Mas toda e qualquer transação, sem importar<br />
o partido ou credo em questão, tinha como principais protagonistas elementos<br />
pertencentes às elites de cada município, fosse no papel de candidatos, fosse no<br />
papel de eleitores 43 . Elites estas formadas por ricos estancieiros, comerciantes, charqueadores,<br />
profissionais liberais e empregados públicos civis e militares distribuídos<br />
em suas diferentes facções e muitas vezes vinculados por laços de parentesco.<br />
É importante fazermos tal consideração, pois o quadro construído por Celi<br />
Pinto ainda mantém-se com significativa importância historiográfica, visto que sínteses<br />
mais recentes, como a realizada por Ricardo Pacheco, seguem na íntegra tal<br />
42 “Reconhecendo a necessidade de organizar a oposição em qualquer terreno ao futuro terceiro reinado (...) e a<br />
necessidade de preparar elementos para, no momento oportuno, garantir o sucesso da revolução, declaramos que<br />
temos nomeado nossos amigos, José Gomes Pinheiro Machado, Júlio de Castilhos, Fernando Abbott, Assis Brasil,<br />
Ramiro Barcellos e Demétrio Ribeiro para trabalharem para que consiga aqueles fins, empregando livremente os<br />
meios que escolherem. Nós juramos não nos deter diante de dificuldade alguma, a não ser o sacrifício inútil de<br />
nossos cidadãos. Excluída esta hipótese, só haveremos de parar diante da vitória ou da morte”. PESSOA, Reynaldo<br />
Carneiro (Org.). A idéia republicana no Brasil através de documentos. São Paulo: Alfa-ômega, 1973, p. 93.<br />
43 Com isto não estamos querendo dizer que as camadas subalternas da sociedade e pequenos e médios estancieiros<br />
e comerciantes não tinham participação ativa. Para uma análise mais completa acerca da participação dos mesmos<br />
ver VARGAS, Jonas Moreira. Op. Cit., 2010. Em especial o capítulo segundo.<br />
243
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
análise. Para Celi Pinto, o perfil dos propagandistas era o de um grupo de indivíduos<br />
muito jovens e com uma instrução educacional “excepcional” para a época em que<br />
viviam. Em sua grande maioria, eles pertenciam à “classe média urbana” e não estavam<br />
envolvidos diretamente nos interesses do grupo dominante da campanha ou<br />
das regiões mais pobres do norte da Província. A autora conclui enfatizando que a<br />
propaganda republicana foi feita à revelia destes segmentos da sociedade 44 .<br />
Ora, a maioria destas afirmações está equivocada e ao longo do texto foi possível<br />
demonstrá-las. As mesmas são tributárias de um tipo de interpretação bastante<br />
em voga nos anos 1970, que vinculava, de forma simplista, a história das idéias a um<br />
determinismo de classe e geográfico. Primeiramente, a instrução escolar dos políticos<br />
monárquicos também era bastante alta. Entre os líderes monarquistas da política<br />
provincial, 80% possuíam formação superior. Entre os deputados gerais este índice<br />
ultrapassava os 90%, e para os ministros e senadores ele era ainda maior 45 . Segundo,<br />
a relação “juventude = republicanismo” deve ser relativizada, pois ela aconteceu<br />
justamente porque as academias estavam tornando-se importantes focos de crítica à<br />
monarquia e, obviamente, era um reduto de estudantes. Fora dali, e até mesmo naquele<br />
espaço, existiam jovens monarquistas e republicanos de idade mais avançada.<br />
Terceiro, depois de tudo que foi visto aqui não é possível afirmar que os propagandistas<br />
pertencessem a uma “classe média urbana” e sem vínculos com a região da<br />
campanha, pois foi exatamente nesta região que o republicanismo cresceu ao ponto<br />
de eleger o único deputado do PRR.<br />
A tese de Celi Pinto estava em perfeita sintonia com aqueles autores que buscaram<br />
analisar os partidos monárquicos no Segundo Reinado. Todos estes autores<br />
insistiam em afirmar que o Partido Liberal era o representante dos interesses dos<br />
estancieiros da campanha 46 . Nas páginas escritas até aqui, foi possível perceber que a<br />
44 PINTO, Celi Regina Jardim. Contribuição ao Estudo do Partido Republicano Rio-Grandense. Porto Alegre,<br />
UFRGS. Dissertação de mestrado. PPG – Ciência Política da UFRGS, 1979. O texto referido é o de PACHECO, Ricardo<br />
de Aguiar. Conservadorismo na tradição liberal: movimento republicano (1870-1889). In: PICCOLO, Helga e PADOIN,<br />
Maria M. História Geral do Rio Grande do Sul: Império. Porto Alegre: Editora Méritos, 2007, v. 2, p. 139-153.<br />
45 VARGAS, Jonas Moreira. Op. Cit., 2010.<br />
46 Como, por exemplo, GUTFREIND, Ieda. Rio Grande do Sul: 1889-1896. A Proclamação da República e a<br />
reação liberal através da sua imprensa. Dissertação de mestrado. PPG em História da PUCRS, 1979; ISAIA,<br />
Arthur. A imprensa liberal rio-grandense e o regime eleitoral do império: 1878-1889. Dissertação de mestrado.<br />
PPG em História da PUCRS, 1988; ALVES, Francisco das Neves. O Discurso político partidário sul-rio-grandense<br />
sob o prisma da imprensa rio-grandina (1868-1895). Tese de Doutorado. Porto Alegre: PPG em História<br />
da PUCRS, 1998; CARNEIRO, Newton Luis Garcia. A identidade inacabada: o regionalismo políticos no Rio<br />
Grande do Sul. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000; TARGA, Luiz R. (org.). Gaúchos e Paulistas: dez escritos de<br />
história regional comparada. Porto Alegre: Fundação de Economia e Estatística, 1996, p. 81-92; KLIEMANN,<br />
Luíza H. Schmitz. RS: Terra & Poder. História da Questão Agrária. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986; TRIN-<br />
DADE, Helgio & NOLL, Maria Izabel. Rio Grande da América do Sul: Partidos e eleições (1823-1990). Porto<br />
Alegre: EDUFRGS/Sulina, 1991; PESAVENTO, Sandra. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado<br />
Aberto, 1997, 8.a edição; FONSECA, Pedro Dutra. Economia e conflitos políticos na República Velha. Porto<br />
Alegre: Mercado Aberto, 1983; FÉLIX, Loiva Otero. Coronelismo, Borgismo e cooptação política. Porto Alegre:<br />
Mercado Aberto, 1987; FRANCO, Sérgio da Costa. Julio de Castilhos e sua época. Porto Alegre: EDUFRGS,<br />
1996.<br />
244
campanha estava repleta de conservadores. Sem estes, Assis Brasil não teria sido eleito.<br />
Na realidade, na década de 1880, os conservadores venceram muitas eleições para deputado<br />
geral e provincial no 3º círculo – o coração da campanha 47 Tal esquematismo<br />
é tributário do antigo mito do gaúcho amante da liberdade, farroupilha quase que por<br />
natureza, seguidor de Silveira Martins, guerreiro e, que logicamente, não teria outra<br />
posição política a não ser votar nos liberais. É interessante que esta mesma raiz farrapa<br />
também serviu para Assis Brasil naturalizar o republicanismo entre os rio-grandenses<br />
48 . A memória da Guerra acabou sendo disputada por liberais e republicanos. O<br />
preço de tais interpretações foi pago pelos legalistas e conservadores que caíram num<br />
secular ostracismo historiográfico, pois nenhuma pesquisa buscou investigar de forma<br />
profunda os saquaremas da província. Entretanto, não havia nada que impedisse um<br />
estancieiro de ser conservador, nem mesmo em nível discursivo 49 .<br />
Este esquematismo teve forte influência sobre a vinculação que se fez entre<br />
o movimento abolicionista e a participação do PRR, por exemplo. Margareth Bakos<br />
afirmou que se para os castilhistas, que se baseavam ampla e profundamente nos<br />
fundamentos de Comte, a posição tomada era a de abolição imediata e sem indenização,<br />
a posição de Assis Brasil e Ramiro Barcellos na Assembléia mostrava um outro<br />
caminho a ser seguido. Sua atuação se deu no sentido de propor emendas e projetos<br />
que onerassem a posse de escravos e nesse sentido, dificultassem a continuação da<br />
instituição escravocrata. Bakos argumentou que as posições de Assis e Ramiro foram<br />
conseqüência destes serem grandes proprietários de terra, enquanto os “representantes<br />
padrão do partido republicano provincial”, eram pertencentes em sua maioria<br />
ao “setor médio urbano” 50 . Ora, cremos que a posição de Assis Brasil deve ser compreendida<br />
na medida em que ele sabia que um projeto mais radical evidentemente<br />
seria vetado na Assembléia, assim como outras propostas dele já haviam sido. Além<br />
disso, ele não podia desagradar seu eleitorado da região da campanha, onde a ausência<br />
de mão-de-obra já vinha sendo sentida há anos 51 . Sua defesa a favor da abolição<br />
se deu, ainda que de forma mais gradual, onerando a posse de escravos, ou seja, da<br />
forma que era possível dentro da Assembléia.<br />
47 Mesmo antes disso, Severino Ribeiro acumulou mandatos para deputado geral no círculo. Durante a época em<br />
que os liberais estiveram no poder (1878-1885), Severino venceu-os por duas vezes, exatamente na região em que<br />
se diz que os liberais eram imbatíveis.<br />
48 Ver, por exemplo, GRIJó, Luiz Alberto. Articuladores do Partido Republicano se apropriam da “Revolução”. Artigo apresentado<br />
como Comunicação no Vi Encontro Estadual de História da ANPUH/RS. Passo Fundo, 2002. dat.<br />
49 Para uma análise mais aprofundada do perfil sócio-econômico dos conservadores no Rio Grande do Sul, ver<br />
VARGAS, Jonas Moreira. Op. Cit., 2010.<br />
50 BAKOS, Margareth. Op. Cit., p. 63-77.<br />
51 FARINATTI, Luis Augusto. Confins Meridionais: Famílias de Elite e Sociedade Agrária na Fronteira Sul<br />
do Brasil (1825-1865). Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: PPG em História Social do IFCS-UFRJ, 2007.<br />
245
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Portanto, os partidos monárquicos não eram partidos classistas e nem se pretendiam<br />
como tal. Todos os setores sócio-econômicos estavam representados nas<br />
três agremiações políticas da província, com possíveis variações que respeitavam<br />
conjunturas específicas e peculiaridades regionais. Existiam importantes lideranças<br />
liberais entre os setores médios urbanos, estancieiros republicanos sem educação<br />
superior e conservadores mandando e desmandando na região da campanha. O<br />
descaso para com a composição social dos membros dos partidos monárquicos é<br />
conseqüência de uma história política somente preocupada com as idéias defendidas<br />
pelos partidos monárquicos, construídas a partir da leitura dos editoriais de<br />
imprensa, dos anais da Assembléia Legislativa e dos programas partidários 52 . Mas<br />
todas estas pesquisas possuem seus méritos e, a partir delas, podemos afirmar que a<br />
principal diferença entre republicanos e monarquistas estava no terreno ideológico e<br />
não no sócio-econômico e geográfico. Em alguns momentos podia haver uma concentração<br />
de votos num partido em uma determinada região, mas estes fenômenos<br />
conjunturais não podem ser essencializados e a busca da sua contrapartida enriquece<br />
ainda mais o panorama político do oitocentos. Novas pesquisas devem ser realizadas<br />
para deixar mais nítidas as aproximações e os afastamentos entre republicanos e<br />
monarquistas, levando em conta suas incoerências e sem mitificar nenhum dos seus<br />
líderes. A partir do que foi exposto aqui, as alianças e conflitos ocorridos entre a Proclamação<br />
da República e a Revolução Federalista, por exemplo, podem ser revistos e<br />
contados sob outro ponto de vista.<br />
52 Como as pesquisas de PICCOLO, Helga. A Política Rio-Grandense no ii império (1868-1882). Porto Alegre:<br />
UFRGS, 1974; CARNEIRO, Newton. Op cit.<br />
246
FONTES<br />
Anais da Assembléia Legislativa Provincial. Anos de 1885, 1886, 1887 e 1888. Biblioteca<br />
do Solar dos Câmara – ALRS.<br />
Jornal A Federação. Edição de 19.01.1885. Museu de Comunicação Social Hipólito<br />
José da Costa.<br />
Inventário de Francisco de Assis Brasil. Processo 247, maço 12, ano 1872, São Gabriel,<br />
Cartório de órfãos e ausentes (APERS).<br />
Livros de Registros Diversos, Primeiro Tabelionato de Alegrete, Fundo 2, Estante<br />
24, Livros 8 ao 13, 1881-1890 (APERS)<br />
BIBLIOGRAFIA<br />
AITA, Carmen. Perfil biográfico de Assis Brasil. In: ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA<br />
DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Perfis Parlamentares: Joaquim<br />
Francisco de Assis Brasil. Porto Alegre: ALRS, 2006, p. 17-207.<br />
ALONSO, Ângela. idéias em movimento: a Geração de 1870 na crise do Brasilimpério.<br />
São Paulo: Paz e Terra, 2002.<br />
ALVES, Francisco das Neves. O Discurso político partidário sul-rio-grandense<br />
sob o prisma da imprensa rio-grandina (1868-1895). Tese de Doutorado. Porto<br />
Alegre: PPG em História da PUCRS, 1998.<br />
ASSIS BRASIL, Joaquim F. de. A República Federal. In: Senado Federal (Org.). A<br />
Democracia representativa na República: antologia. Brasília: Senado Federal,<br />
1998, Ed. Fac-similar.<br />
BAKOS, Margaret Marchiori. RS: escravismo & abolição. Porto Alegre: Mercado<br />
Aberto, 1982.<br />
CARNEIRO, Newton Luis Garcia. A identidade inacabada: o regionalismo políticos<br />
no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.<br />
CARVALHO, Mário Teixeira de. Nobiliário Sul-riograndense. Porto Alegre: Oficinas<br />
Gráficas da Livraria do Globo, 1937.<br />
247
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
FARINATTI, Luis Augusto. Confins Meridionais: Famílias de Elite e Sociedade<br />
Agrária na Fronteira Sul do Brasil (1825-1865). Tese de Doutorado. Rio de<br />
Janeiro: PPG em História Social do IFCS-UFRJ, 2007.<br />
FÉLIX, Loiva Otero. Coronelismo, Borgismo e cooptação política. Porto Alegre:<br />
Mercado Aberto, 1987.<br />
FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre e seu comércio. Porto Alegre: Associação<br />
Comercial de Poa, 1983.<br />
FRANCO, Sérgio da Costa. Julio de Castilhos e sua época. Porto Alegre: EDU-<br />
FRGS, 1996.<br />
FRANCO, Sérgio da Costa. Gaúchos na Academia de Direito de São Paulo no século<br />
XIX. In: Revista Justiça & História. Porto Alegre: CEMJUG, 2001, pp. 107-129.<br />
FONSECA, Pedro Dutra. Economia e conflitos políticos na República Velha.<br />
Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983.<br />
GRAHAM, Richard. Clientelismo e Política no Brasil do Século XiX. Rio de<br />
Janeiro: UFRJ, 1997.<br />
GRIJó, Luiz Alberto. Articuladores do Partido Republicano se apropriam da “Revolução”.<br />
Artigo apresentado como Comunicação no Vi Encontro Estadual de História da<br />
ANPUH/RS. Passo Fundo, 2002. dat.<br />
GUTFREIND, Ieda. Rio Grande do Sul: 1889-1896. A Proclamação da República<br />
e a reação liberal através da sua imprensa. Dissertação de mestrado. PPG<br />
em História da PUCRS, 1979.<br />
ISAIA, Arthur. A imprensa liberal rio-grandense e o regime eleitoral do império:<br />
1878-1889. Dissertação de mestrado. PPG em História da PUCRS, 1988.<br />
KLIEMANN, Luíza H. Schmitz. RS: Terra & Poder. História da Questão Agrária.<br />
Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986. TRINDADE, Helgio & NOLL, Maria<br />
Izabel. Rio Grande da América do Sul: Partidos e eleições (1823-1990). Porto<br />
Alegre: EDUFRGS/Sulina, 1991.<br />
MONTEIRO, Hiram Ayres. Venâncio Ayres: o cavaleiro do ideal. São Paulo:<br />
Editora Grill, 1997.<br />
NABUCO, Joaquim. Minha Formação. Brasília. UnB, 1963.<br />
PACHECO, Ricardo de Aguiar. Conservadorismo na tradição liberal: movimento<br />
republicano (1870-1889). In: PICCOLO, Helga e PADOIN, Maria M. História Geral<br />
do Rio Grande do Sul: império. Porto Alegre: Editora Méritos, 2007, v. 2, p.<br />
139-153.<br />
PESAVENTO, Sandra. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado<br />
Aberto, 1997.<br />
248
PESSOA, Reynaldo Carneiro (Org.). A idéia republicana no Brasil através de<br />
documentos. São Paulo: Alfa-ômega, 1973.<br />
PICCOLO, Helga. A Política Rio-Grandense no ii império (1868-1882). Porto<br />
Alegre: UFRGS, 1974.<br />
PINTO, Celi Regina Jardim. Contribuição ao Estudo do Partido Republicano<br />
Rio-Grandense. Porto Alegre, UFRGS. Dissertação de mestrado. PPG – Ciência<br />
Política da UFRGS, 1979.<br />
RAMOS, Eloísa H. Capovilla. O Partido Republicano Rio-grandense e o poder<br />
local no litoral norte do Rio Grande do Sul (1882-1895). Porto Alegre: Dissertação<br />
de Mestrado. PPG em História - UFRGS, 1990.<br />
REVERBEL, Carlos. Assis Brasil. Porto Alegre: IEL, 1996.<br />
RIBEIRO, Célia. Fernando Gomes: um mestre no século XiX. Porto Alegre: LP<br />
& M, 2008.<br />
SOARES, Mozart Pereira Soares. Júlio de Castilhos. Porto Alegre: IEL, 1996.<br />
TARGA, Luiz R. (org.). Gaúchos e Paulistas: dez escritos de história regional<br />
comparada. Porto Alegre: Fundação de Economia e Estatística, 1996, p. 81-92.<br />
VARGAS, Jonas Moreira. Os políticos de aldeia: eleições, negociações e prática política<br />
nas paróquias do Rio Grande do Sul (1868-1889). In: Vi Mostra de Pesquisa<br />
do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: CORAG,<br />
2008, p. 39-57.<br />
VARGAS, Jonas Moreira. A elite charqueadora de Pelotas (1850-1890): algumas notas<br />
sobre as suas estratégias familiares e a transmissão de propriedade. In: GARCIA,<br />
Graciela B. (Org.). Anais do ii Encontro do GT de História Agrária (ANPUH-<br />
RS). Porto Alegre, 2009, CD-ROM, p. 1-20.<br />
VARGAS, Jonas Moreira. Entre a paróquia e a Corte: os mediadores e as estratégias<br />
familiares da elite política do Rio Grande do Sul (1868-1889). Santa<br />
Maria: Editora da UFSM/ Anpuh-RS, 2010.<br />
249
Poder e PArentesCo nos Confins dA AMériCA<br />
PortuguesA: uMA Análise sobre A rede de CoMPAdrios<br />
do governAdor veigA CAbrAl dA CâMArA<br />
(Porto Alegre, 1774-1798)<br />
Márcio Munhoz Blanco¹<br />
Resumo: Este trabalho estuda a inserção social do governador Sebastião Xavier da Veiga Cabral<br />
da Câmara na capitania do Rio Grande de São Pedro. Para tal, observa os compadrios estabelecidos<br />
na freguesia Nossa Senhora Madre de Deus de Porto Alegre, o que ocorreu entre os anos de 1774 e<br />
1798. O principal corpus documental são os registros de batismo nos quais esse administrador aparece<br />
apadrinhando infantes. Através do método onomástico procurou-se identificar o lócus ocupado<br />
naquela sociedade pelos compadres do governador, a fim de entender quais foram as estratégias que<br />
nortearam a criação daqueles vínculos. Discute-se a importância do parentesco e das relações inerentes<br />
a ele para a formação de redes sociais na Época Moderna.<br />
Palavras-chave: redes sociais – parentesco – compadrio – poder – Antigo Regime<br />
Governar nunca foi tarefa simples. O poder não advém meramente<br />
de uma posição de mando, uma lei ou do esforço de um espírito<br />
elevado; ele precisa ser conquistado, ou ao menos negociado. Poder<br />
é movimento. As relações de poder são uma via de mão dupla, onde para cada ação<br />
existirá uma reação. Mesmo nos tempos do Antigo Regime, quando homens singravam<br />
os oceanos em nome de Sua Majestade Fidelíssima para administrar os povos<br />
do Império Ultramarino português, era necessário legitimar-se perante aquelas populações,<br />
fossem elas autóctones ou reinóis migrantes. Alguns obtiveram êxito, outros<br />
quebraram por não quererem se dobrar. Assim aconteceu ao longo dos séculos,<br />
do Rio de Janeiro à índia, do Maranhão a Sacramento.<br />
Esta pesquisa se dedica a um desses governantes do período colonial: Sebastião<br />
Xavier da Veiga Cabral da Câmara. Este militar fidalgo administrou a capitania<br />
¹ Graduado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: mm.marcioblanco@<br />
hotmail.com. Telefone: (51) 9307-9814.<br />
251
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
do Rio Grande de São Pedro, no extremo-Sul da América lusitana, entre 1780 e 1801.<br />
Foi o governante do século XVIII que permaneceu mais tempo no cargo. Datam de<br />
seu período de gestão o princípio da produção de charque, produto que dinamizou<br />
a economia local, tornando-se o grande elemento de exportação rio-grandense no<br />
século seguinte. Incentivou o cultivo da cochonilha, criação de ovelhas e plantio de<br />
trigo. Foi Sebastião, ainda, o comissário português responsável pela demarcação do<br />
Tratado de Santo Ildefonso, assinado em 1777, mas cujos trabalhos iniciaram-se apenas<br />
alguns anos mais tarde. Esse acordo firmado entre Portugal e Espanha redefinia<br />
os limites meridionais dos dois impérios, devolvendo a Colônia de Sacramento ao<br />
domínio castelhano. Embora seu governo tenha sido um período de paz, Sebastião<br />
dedicou seus últimos dias à retomada das Missões, em 1801, empreitada na qual<br />
faleceu sem poder ver o resultado.<br />
Não há nenhum estudo específico sobre sua trajetória, figurando sempre<br />
como coadjuvante em obras sobre o Rio Grande do Sul colonial. Normalmente são<br />
ressaltados, em poucas páginas, os aspectos político-administrativos de sua gestão<br />
ou seus feitos militares, em obras que se dedicam à formação ou afirmação da identidade<br />
sul-riograndense. Tratam-se de olhares similares², que retratam um homem<br />
que, em certo sentido, esteve à frente do seu tempo.<br />
Neste estudo, entretanto, busca-se um homem de seu tempo, um homem de<br />
Antigo Regime. A partir da proposta de Giovanni Levi, procuro ver um sujeito<br />
histórico dotado de uma racionalidade específica do contexto em que vivia, “porém<br />
não em termos de uma realidade cultural inconsciente destinada a sufocá-lo progressivamente.<br />
Esta racionalidade pode ser mais bem descrita se admitirmos que ela [...]<br />
fosse também empregada na obra de transformação e utilização do mundo social<br />
[...].”³ Observo um indivíduo que, apesar de possuir visibilidade naquela sociedade,<br />
precisou se adaptar e inserir nos modos de ser e viver das pessoas da localidade que<br />
fora governar, o que por vezes esteve de acordo com as práticas as quais era acostumado<br />
e em outras se mostrou conflituosa. Sobre essa inserção, os laços mais segura-<br />
² À exceção de Tiago Luís Gil e Adriano Comissoli, que mostraram esse governador em outro viés, lançando algumas<br />
das bases para minha análise. Nessas duas pesquisas Veiga Cabral da Câmara figura como um indivíduo ciente<br />
da conjuntura em que vivia e que agia conforme as exigências do momento. Teria uma postura política coerente<br />
com a rede administrativa da qual faria parte e tato suficiente para um bom relacionamento com homens poderosos<br />
do Rio Grande de São Pedro. Ver: GIL, Tiago Luís. Infiéis transgressores: os contrabandistas da fronteira (1760-1810).<br />
(Dissertação de mestrado)Universidade Federal do Rio de Janeiro: Rio de Janeiro, 2002; COMISSOLI, Adriano. Os<br />
“homens bons” e a Câmara de Porto Alegre (1767-1808). (Dissertação de mestrado) Universidade Federal Fluminense,<br />
Niterói, 2006.<br />
³ LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização<br />
brasileira, 2001, p. 45.<br />
252
mente observáveis são os estabelecidos através do compadrio, importante mecanismo<br />
de sociabilidade no Antigo Regime, dado a importância que as relações de cunho<br />
familiar possuíam naquele período. Portanto, o Sebastião Xavier da Veiga Cabral da<br />
Câmara que procuro é, parafraseando Jacques Revel, o homem ao “rés-do-chão” 4 .<br />
O texto que o leitor tem em mãos originou-se de uma pesquisa modesta e<br />
baseada em dados fragmentados, visando acender algumas fagulhas para iluminar a<br />
historiografia sobre o Rio Grande colonial, introduzindo um número de variáveis e<br />
destacando algumas ambigüidades, conflitos e contradições existentes na época. Feitas<br />
essas considerações, façamos um esforço de voltar nossas mentes para o passado<br />
a fim de olhar mais detidamente, a partir de agora, alguns fragmentos das ações de<br />
Sebastião no Rio Grande de São Pedro.<br />
O HOMEM QUE VEM D’ALÉM-MAR<br />
Sebastião nasceu no povoado de Santa Maria do Soutello, pertencente à província<br />
de Chaves, ao norte de Portugal. Viveu sob o signo de uma distinta família<br />
daquele Reino, cresceu em meio a alguns homens que se dedicaram ao mando nos<br />
territórios d’El-Rey. Trata-se de uma família cuja trajetória se mistura com a história<br />
da administração do Império Ultramarino português, e revela mecanismos de ascensão,<br />
distinção social e poder.<br />
Essa trajetória familiar começa com Sebastião da Veiga Cabral, o velho. Foi<br />
mestre de campo general e governador de armas de Trás-os-Montes. Descendente<br />
da “nação hebréia” por via paterna, conseguiu o hábito da ordem de Cristo em<br />
1667, graças à dispensa papal. Tornou-se fidalgo da Casa Real e comendador das<br />
Comendas de Beilão, Robeal e Santa Maria de Bragança 5 . Trata-se de uma forma<br />
de reconhecimento que certamente beneficiou os que dele descendiam. Teve dois<br />
filhos, Francisco, filho legítimo, e Sebastião, filho natural, isto é, fruto de uma relação<br />
extraconjugal. O primeiro é o pai de nosso personagem e o segundo, por possuir o<br />
mesmo nome, será chamado aqui como Sebastião, o tio, para fins de melhor entendimento.<br />
Pois é este Sebastião, o tio, o primeiro a levar o nome da família para o Novo<br />
Mundo. Nascido em Bragança, começou a carreira como um simples soldado e foi<br />
4 REVEL, Jacques. A história ao “rés-do-chão”. In: LEVI, Giovanni, op. cit. p. 7- 37.<br />
5 SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra. Política e administração na América portuguesa do século XVIII. São Paulo:<br />
Companhia das letras, 2006, p. 261.<br />
253
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
galgando postos na hierarquia militar devido a seus feitos. Como retribuição aos seus<br />
serviços foi nomeado governador da Colônia de Sacramento, ponto extremo meridional<br />
do Império lusitano. Ocupou o posto entre os anos de 1699 e 1705. Procurou<br />
estratagemas para se manter no cargo, supostamente interessado no gado bovino e<br />
negócios de couro, muito lucrativos na época. Sua gestão foi tida como competente.<br />
Durante o tempo em que esteve no governo batizou diversos índios. Após voltar ao<br />
Reino pleiteou, sem êxito, os cargos de governador de Minas Gerais e São Paulo. Em<br />
1720 encontrava-se novamente na América portuguesa, mais especificamente em<br />
Vila Rica, onde participou do levante conhecido como Revolta de Felipe dos Santos.<br />
Possuía muito interesse nas Minas Gerais, supostamente pela possibilidade de acumulação<br />
de riquezas, assim como alguns governantes daquela capitania obtiveram 6 .<br />
O outro filho de Sebastião, o velho. Sobre ele possuo poucas informações: sei<br />
que exerceu o mesmo cargo de seu pai e foi governador da província de Chaves; teve<br />
cinco filhos varões. Em 1742 7 , veio ao mundo Sebastião, nosso personagem, que<br />
muito possivelmente cresceu vendo o pai exercer seus cargos administrativos, e em<br />
meio às memórias dos feitos do avô e histórias do tio sobre o Novo Mundo. Não é<br />
difícil supor que o pequeno respirava o poder e status que sua família gozava, o que<br />
provavelmente lhe serviu como escola para a maneira de proceder quando chegasse<br />
a sua vez de cruzar o mar.<br />
O certo é que Sebastião tornou-se engenheiro geógrafo e em 1767, com 25<br />
anos de idade, rumou para a América portuguesa. Na ocasião exercia a patente de<br />
tenente-coronel do Regimento de Infantaria de Bragança, estabelecendo-se no Rio<br />
de Janeiro. Em 1774 seguiu para a capitania do Rio Grande de São Pedro 8 para, sob<br />
o comando do general João Henrique Böhm, combater as tropas castelhanas que há<br />
uma década ocupavam a metade sul daquela capitania 9 .<br />
254<br />
COISAS SAGRADAS E PROFANAS: FORMAS DE<br />
SOCIABILIDADE (PAUSA)<br />
Façamos uma pequena pausa em nossa história, pois para entender a inserção<br />
social de Veiga Cabral da Câmara no Rio Grande de São Pedro é mister entender<br />
6 SOUZA, op. cit. p. 253- 283.<br />
7 BARRETO, Abeillard. Bibliografia sul-riograndense: a contribuição portuguesa e estrangeira para o conhecimento e a integração do<br />
Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1973-1976, p. 254-255.<br />
8 BENTO, Cláudio Moreira. A guerra de restauração. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército editora, 1996, p. 261- 262.<br />
9 Em 1763, tropas vindas de Buenos Aires comandadas por Dom Pedro de Cevallos invadiram a Vila de Rio Grande<br />
afugentando a população para a margem norte do rio Jacuí e tomando posse da metade sul da capitania. Durante<br />
treze anos a região foi palco de batalhas entre portugueses e espanhóis.
o cotidiano das relações sociais durante o Antigo Regime. As sociabilidades desse<br />
período calcavam-se na reciprocidade entre as partes, onde para cada benefício material<br />
ou simbólico feito a alguém haveria a obrigação de retribuir. Essa forma de<br />
relacionamento, que perpassava todos os segmentos da sociedade chegando até o<br />
rei, encontrava na família um suporte. Por família trato aqui não apenas o grupo<br />
consangüíneo, de filiação e que compartilha o mesmo sobrenome, mas também toda<br />
a parentela, isto é, o conjunto de laços de parentesco fundados na consangüinidade,<br />
sobrenome, matrimônio ou laço espiritual (tal como o compadrio) 10 .<br />
A família atuava como base para as demais formas de sociabilidade, pois<br />
constituía-se no primeiro lócus onde um indivíduo encontra o apoio e laços de que<br />
necessitava. Era no seio da família que se realizavam os primeiros fenômenos de<br />
mobilidade em uma sociedade de ordens. As estratégias pessoais se enquadravam na<br />
convicção de que as decisões tomadas reverberariam nos demais membros do grupo.<br />
Essa constatação tente a reforçar a solidariedade do coletivo, sem, no entanto,<br />
ignorar toda gama de conflitos e tensões passíveis de ocorrer entre seus membros 11 .<br />
O conjunto de relações de um individuo constitui o que se denomina redes sociais.<br />
Michel Bertrand define rede social como uma “estructura construída por la<br />
existencia de lazos o de relaciones entre diversos individuos [...] sería también un<br />
sistema de intercambios en el seno del cual los vínculos o las relaciones permiten<br />
la realización de la circulación de bienes e de servicios.” Numa rede, nem todas as<br />
relações entre os atores sociais se manifestam da mesma maneira, existem relações<br />
efetivas, que se traduzem em trocas constituindo um vínculo de fato; e relações potenciais,<br />
que podem vir a ser mobilizadas - dependendo das circunstâncias - dando<br />
lugar a um intercâmbio¹².<br />
Os vínculos entre os membros de uma rede se enquadram na economia do dom 13 .<br />
No entanto, a tríade de obrigações (dar, receber e restituir) não significa igualdade<br />
entre as partes, isso dependeria da posição social de cada indivíduo. Havia a tendência<br />
de relações simétricas entre sujeitos pertencentes à mesma camada social. Já entre<br />
indivíduos de camadas distintas a tendência era haver uma relação de desigualdade,<br />
onde um pólo deve mais; a esse tipo de laço chamamos de clientelar. Insisto que reciprocidade<br />
não pode ser tomada como igualdade. Nesse caso, o dom estabelece um<br />
elo que para o pólo dominante (credor), se traduz na disponibilidade de quem dá um<br />
10 BERTRAND, Michel. De la família a la red de sociabilidad. In: Revista Mexicana de Sociología. Vol. 61, n°. 2., Abr.<br />
- Jun., 1999, p.117- 118.<br />
11 Idem, p. 134.<br />
¹² Idem, p. 119- 120.<br />
¹³ Ver: XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, António Manuel. As redes clientelares. In: MATTOSO, José (dir).<br />
História de Portugal: o Antigo Regime. Lisboa: editorial Estampa, s/d. p. 381-393<br />
255
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
benefício e não exige uma contrapartida expressa e/ou imediata, e, do lado do pólo<br />
do dominado (devedor), está associada às idéias de “respeito”, “serviço”, “atenção”,<br />
significando a disponibilidade para prestar serviços futuros e incertos 14 .<br />
Estes e outros hábitos e formas de sociabilidade se estenderam aos quatro<br />
cantos do Império ultramarino português. A sociedade formada no Rio Grande de<br />
São Pedro ao longo do século XVIII viveu sob os costumes e valores da desse mundo,<br />
tanto nos planos material quanto simbólico, mundano e sagrado. Se no Reino a<br />
religião oficial era o catolicismo, a sombra da cruz se projetou para as colônias no<br />
ultramar. Assim, são interessantes para a compreensão de meu objeto de estudo<br />
algumas considerações acerca da doutrina católica e significados do batismo.<br />
De acordo com o dogma católico, quando Adão provou o fruto proibido<br />
perpassou seu pecado a todos os seus descendentes. Dessa maneira, o ser humano<br />
nasceria impuro, e todos os aspectos desse nascimento carnal estariam vinculados ao<br />
pecado, imperfeição, vergonha e introspecção. A concepção de uma criança restringe-se<br />
à cópula do casal, realizada em local privado e longe de olhares. O parto é um<br />
momento de dor, onde a mãe perde muito sangue e só há o testemunho do médico<br />
ou parteira. O pós-parto é um período delicado, pois ainda há o risco de morte tanto<br />
da mãe quanto do recém-nascido. Devido a essas máculas, seria necessário um renascimento,<br />
não mais no plano material, mas espiritual. Essa é a função do batismo,<br />
o primeiro dos sete sacramentos da Igreja Católica. A criança batizada renasceria<br />
no mundo espiritual, purificando-se do pecado original através da imersão em água<br />
benta e demais atos do ritual. Se o nascimento carnal era feito quase às escondidas<br />
e marcado por dor e lágrimas, o nascimento espiritual era um momento de alegria<br />
realizado numa cerimônia pública. O ato do batismo é a representação sacramental<br />
tanto da paixão de Cristo (pois haveria a morte no plano carnal e renascimento espiritual)<br />
quanto da sua natureza ao mesmo tempo humana e divina 15 .<br />
Para o renascer espiritual seria necessário uma outra filiação, e essa é a função<br />
dos padrinhos. No rito de batismo são eles que respondem as perguntas em nome<br />
do infante (ainda incapaz para tal) dando-lhe fiança aos olhos de Deus. Se padrinhos<br />
tornavam-se pais espirituais do rebento, por conseqüência tornavam-se irmãos espirituais<br />
dos pais biológicos. Padrinhos estabelecem laços imateriais, portanto, tanto<br />
com seus afilhados quanto com seus compadres 16 .<br />
14 XAVIER, Ângela Barreto, HESPANHA, António Manuel. op. cit. p. 382.<br />
15 HAMEISTER, Martha Daisson. Para dar calor á nova povoação: estudo sobre estratégias sociais e familiares a partir de registros<br />
batismais da vila do Rio Grande (1738-1763). (Tese de doutorado). Universidade Federal do Rio de Janeiro: Rio de<br />
Janeiro, 2006, p.185-214.<br />
16 Idem.<br />
256
Mas o batismo e os vínculos intrínsecos a ele, de acordo com Stephen Gudeman,<br />
possuem duas faces: uma voltada para a esfera do sagrado e outra voltada para<br />
a esfera das relações sociais 17 . “O pecado original purgado das almas dos batizandos<br />
os insere, ao mesmo tempo, no rebanho divino e no mundo social. Os pais dão à<br />
criança o ser e os padrinhos dão o ser social no seio da cristandade.” 18 Percebe-se,<br />
então, o quão importante era para aquela sociedade formada sob o signo da Igreja<br />
Católica o ato do batismo e os vínculos estabelecidos por ele. Ficaria a cargo dos padrinhos<br />
cuidar da educação, acompanhamento religioso, conselhos, encaminhamento<br />
para profissão e matrimônio de seus afilhados, que, em contrapartida, deveriam<br />
apoio, respeito e obediência. O vínculo estabelecido entre os compadres (chamado<br />
de compadrio) deveria ser de solidariedade mútua.<br />
Mas se aos olhos de Deus havia igualdade entre as partes, aos olhos dos homens<br />
os vínculos originados do batismo se revestiam da mesma hierarquia e diferenças<br />
existentes naquela sociedade. Privilegio em minha análise o caráter mundano<br />
do compadrio, por considerá-lo o mais relevante para o entendimento das questões<br />
propostas. Parto do pressuposto que ao escolher os padrinhos para seus filhos, os<br />
indivíduos o faziam de acordo com seus interesses de aproximação social, o mesmo<br />
valendo para o aceite do compadrio.<br />
O elo espiritual criado com o batismo projeta-se para a o plano material,<br />
originando a cadeia de préstimos e retribuições revestidas das mesmas hierarquias<br />
existentes naquela sociedade. Essa relação de afinidade, chamada de parentesco fictício,<br />
segundo Giovanni Levi, tem tanto a função de reforçar os vínculos já existentes<br />
entre as partes quanto de criar outros novos. Estes vínculos podem se manifestar<br />
de forma horizontal (ou simétrica) se estabelecido entre amigos e parentes do mesmo<br />
status, ou vertical (ou assimétrico) se evolvendo pessoas de categorias distintas.<br />
Membros das elites tenderiam a buscar o compadrio entre seus pares, servindo<br />
como estratégia de proteção e demarcação de seu prestígio, bem como a exclusão de<br />
indivíduos de categoria considerada inferior. Essas alianças poderiam mobilizar créditos<br />
e contatos. Por seu turno, pessoas de estratos sociais mais baixos tenderiam a<br />
procurar estabelecer compadrios verticais, isto é, com pessoas de uma categoria mais<br />
alta, formando um vínculo patrão-cliente. Esse tipo de ligação, apesar dos deveres<br />
mencionados acima, pode ser encarado como uma estratégia de ascensão social por<br />
parte do pólo inferior 19 . Nota-se que, embora os compadres fossem iguais aos olhos<br />
17 GUDEMAN, Stephen. Spiritual relationship and selecting godparent. In: Man, new series. Vol. 10 (2), Jun. 1975.<br />
Royal Anthropological Institute of Great Britain and Ireland, 1975,p 222.<br />
18 HAMEISTER, Martha daisson, op. cit., p. 208.<br />
19 LEVI, Giovanni. Family and kin- a few thoughts. In: Journal of family history. Vol. 15, n° 4, 1990. p. 571- 572<br />
257
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
de Deus, estavam à mercê do mesmo tipo de diferenças e desigualdades criadas pelos<br />
homens.<br />
Feitas essas digressões, voltemos agora à história de Sebastião ao sul dos trópicos.<br />
258<br />
ENTRE A CORTE E A ALDEIA<br />
Após o traslado para o Rio Grande, escrevia o cirurgião-mor do 1° Regimento<br />
de Infantaria do Rio de Janeiro:<br />
Amenizava nosso afastamento do Rio, virmos na companhia do Sr,<br />
Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara, comandante das tropas<br />
do Sul, pelo seu gênio amável, pelas suas virtudes admirado e<br />
pelo seu ilustre nome respeitado20 .<br />
Nessa correspondência se evidencia o prestígio que Sebastião gozava entre<br />
seus pares, características essas que parecem ter sido reconhecidas por outras pessoas.<br />
Logo após a sua chegada às paragens sulinas, o casal Tomás José da Costa e<br />
Souza e Ana Joaquina da Costa e Souza, convidou-o para apadrinhar seu pequeno<br />
rebento. Sebastião aceitou o convite para conduzir o menino (que recebeu o nome<br />
do padrinho) à pia batismal²¹. Não possuo registros de quem seja esse referido casal,<br />
mas com certeza queriam que seu filho fosse bem representado aos olhos de Deus<br />
e da sociedade, pois para madrinha convidaram dona Clara Maria de Oliveira, viúva<br />
do ilustre Francisco Pinto Bandeira e mãe do prestigiado Rafael.<br />
Essa simples ação denota que Veiga Cabral da Câmara, embora não tenha<br />
contraído matrimônio nem deixado filhos, tentou estabelecer imediatamente laços<br />
com a população local, procurando formar sua rede de relações. Afinal de contas,<br />
deveria ter consciência de que apenas o fato de ser fidalgo não era garantia suficiente<br />
para boas sociabilidades na América meridional. Assim como aquelas pessoas da<br />
elite precisavam constantemente reafirmar seus espaços através de ações, o mesmo<br />
servia para ele. Era preciso provar a fidalguia, conquistar um lugar. Era preciso, de alguma<br />
maneira, tornar-se parte daquela elite. E foi isso que, ao que parece, Sebastião<br />
20 BENTO, op. cit., p. 261.Grifo meu.<br />
21 1° livro de batismos de Porto Alegre, fl. 9, 07.08.1774. In: NEUMANN, Eduardo; KÜHN, Fábio (coord.). Projeto<br />
resgate de fontes paroquiais. Porto Alegre- Viamão (século XVIII).
começou a construir desde seus primeiros momentos no Rio Grande. Certamente<br />
era importante para um forasteiro, mesmo que detentor de boa fama e títulos sociais,<br />
ser reconhecido como alguém que fez par à pia batismal com a referida dona Clara<br />
Maria.<br />
Esse patrimônio imaterial, cuja construção iniciou-se logo após a chegada<br />
ao Continente do Rio Grande, se efetivou no campo de batalha. Segundo Bento,<br />
Sebastião atuou com bravura na reconquista dos territórios perdidos aos espanhóis,<br />
tendo tomado parte ativa no assalto à Vila de Rio Grande, batalha que selou a vitória<br />
portuguesa em 1776. Devido a esse feito foi promovido a brigadeiro²². Certamente<br />
um ato dessa importância era razão de prestígio frente aos companheiros de caserna.<br />
Possivelmente essa boa fama se estendia à população em geral, devido aos ares de<br />
guerra que aquela gente se acostumara a respirar. Vemos então, que Sebastião desde<br />
cedo procurou conquistar seu lugar naquela sociedade, valendo-se de sua fidalguia e<br />
ações militares como catalisadores para bons relacionamentos.<br />
Quatro anos mais tarde Veiga Cabral da Câmara foi nomeado governador da<br />
capitania do Rio Grande de São Pedro²³. O número de batismos realizados por ele<br />
esteve intimamente ligado à sua práxis administrativa, que pode ser dividida em duas<br />
fases: antes e depois da demarcação do Tratado de Santo Ildefonso, que embora<br />
tenha sido assinado em 1777 foi efetivado entre 1784 e 1792.<br />
Quadro 1<br />
Compadrios e fases da administração de Veiga Cabral da Câmara, 1774-1801<br />
Fontes: 1° e 2° livros de batismos de Porto Alegre. In: Projeto resgate de fontes paroquiais (2009)<br />
Após ter sido nomeado governador em 1780 o número de batismos aumentou<br />
significativamente, como evidencia o Quadro 1. Sebastião ficou oito anos afas-<br />
22 BENTO, Cláudio Moreira. Canguçu, reencontro com a história. Um exemplo de reconstrução da memória comunitária. Porto<br />
Alegre: Instituto estadual do livro, 1983, p. 40.<br />
²³ Projeto Resgate- Arquivo Histórico Ultramarino- Capitania do Rio Grande do Sul. Cx. 2, doc. 206.<br />
259
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
tado da governança, situação em que foi substituído pelos interinos Rafael Pinto<br />
Bandeira e Joaquim José Ribeiro da Costa. Se levarmos em conta esse afastamento,<br />
podemos ter uma boa idéia acerca da relação entre compadrio e exercício do poder<br />
por parte do governador fidalgo. Analisando os registros batismais de Porto Alegre,<br />
detectei que Sebastião batizou 21 crianças e um adulto, tornando-se compadre de 20<br />
casais 24 . Trata-se de um número bastante expressivo se comparado ao seu antecessor<br />
José Marcelino de Figueiredo –que batizou seis crianças- 25 e um pouco inferior aos<br />
28 batismos efetuados pelo Provedor da Fazenda Real Inácio Osório Vieira 26 . Segundo<br />
Kühn, quando governou o Rio Grande José Marcelino procurou estabelecer<br />
compadrio com oficiais militares e burocratas, em detrimento de membros da elite<br />
mercantil e agrária 27 . Veiga Cabral da Câmara, no entanto, adotou outras estratégias.<br />
Observando o Quadro 2, evidencia-se que Sebastião Xavier da Veiga Cabral<br />
da Câmara, durante a primeira fase de seu governo, optou em estabelecer compadrio<br />
com companheiros de armas. Desses compadres nenhum ocupou cargos na administração<br />
pública ou ofícios no Senado da Câmara. Embora todos possuíssem patente<br />
inferior a de Sebastião, tomo os laços estabelecidos como de cunho horizontal,<br />
confirmando a busca de reconhecimento e prestígio junto a militares. Alguns nomes<br />
de visibilidade naquela sociedade figuraram junto ao de Sebastião nas cerimônias<br />
de batismo, mostrando como esse governante procurou, num primeiro momento,<br />
cercar-se de pessoas com status. Trata-se, portanto, do estabelecimento de vínculos<br />
entre seus pares.<br />
24 O governador batizou Sebastião e Inácio, ambos filhos do casal Francisco Rodrigues da Silva e Angélica de Jesus.<br />
2° livro de batismos de Porto Alegre, fl. 8v, 21.12.1792; fl. 84v, 21.04.1797. In: NEUMANN, Eduardo; KÜHN,<br />
Fábio (coord.). Projeto resgate de fontes paroquiais. Porto Alegre- Viamão (século XVIII).<br />
25 KÜHN, Fábio. Os homens do governador: relações de parentesco e redes sociais no Continente do Rio Grande<br />
((1769- 1780). In: GUAZZELLI, César Augusto Barcellos; FLORES, Mariana Flores da Cunha Thompson; AVI-<br />
LA, Arthur Lima de. Fronteiras americanas: teoria e práticas de pesquisa. Porto Alegre: Suliani letra e vida, 2009, p.34- 48.<br />
26 NEUMANN, Eduardo; KÜHN, Fábio (coord.). Projeto resgate de fontes paroquiais. Porto Alegre- Viamão (século<br />
XVIII).<br />
27 KÜHN, Fábio. op. cit. p. 45.<br />
260
Quadro 2<br />
Relações de compadrio do governador Veiga Cabral da Câmara, 1780- 1784<br />
Fontes: 1° livro de batismos de Porto Alegre. In: Projeto resgate de fontes paroquiais (2009)<br />
A terceira criança que Veiga Cabral da Câmara batizou foi a pequena Clara,<br />
filha de Felisberto Pinto Bandeira e sua primeira esposa, dona Ana Clara do Espírito<br />
Santo 29 . Se a ligação com essa poderosa família da capitania já havia dado seus<br />
primeiros passos quando Sebastião e dona Clara Maria de Oliveira batizaram o filho<br />
do casal Costa e Souza, agora ela se tornava mais sólida. Novamente dona Clara<br />
Maria apadrinhou uma criança ao lado do governador fidalgo, no entanto quem<br />
a representou na cerimônia foi ninguém menos que seu primogênito Rafael. Esse<br />
vínculo estabelecido com Felisberto pode ser mais significativo do que parece. Os<br />
Pinto Bandeira não eram apenas uma linhagem descendente dos primeiros conquistadores<br />
do Rio Grande e uma das famílias mais ricas e prestigiadas daquele lugar, mas<br />
também o único grupo responsável pelo contrabando de couros e gados naquela<br />
fronteira. Felisberto era um dos líderes “menores” do bando liderado por seu irmão<br />
Rafael 30 , e utilizava sua chefia militar como um facilitador para os negócios ilícitos<br />
que conduzia.<br />
Penso o compadrio entre Felisberto Pinto Bandeira e Sebastião Xavier da Veiga<br />
Cabral da Câmara como um indício que corrobora a afirmação de Gil de que Ra-<br />
28 GIL, Tiago Luís. Infiéis transgressores: os contrabandistas da fronteira (1760-1810). (Dissertação de mestrado)Universidade<br />
Federal do Rio de Janeiro: Rio de Janeiro, p. 140.<br />
29 1° livro de batismos de Porto Alegre, fl. 57v, 16.07.1780. In: NEUMANN, Eduardo; KÜHN, Fábio (coord.).<br />
Projeto resgate de fontes paroquiais. Porto Alegre- Viamão (século XVIII).<br />
30 GIL, Tiago Luis, op. Cit., p. 152.<br />
261
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
fael Pinto Bandeira e os seus teriam nesse governante um aliado. Assim, a tentativa<br />
de Sebastião em embargar uma investigação contra os negócios escusos de Rafael no<br />
ano de 1784, torna-se mais compreensível. O vínculo de compadrio entre Felisberto<br />
e o governador selou a aliança entre uma das famílias mais poderosas do Rio Grande<br />
e um dos governantes mais prestigiados do período colonial. Logo, trata-se de um<br />
laço de cunho horizontal, onde as nobrezas do Rio Grande e de Portugal se saudaram.<br />
Isso não significa, necessariamente, que Veiga Cabral da Câmara tivesse alguma<br />
participação efetiva no contrabando, mas certamente a amizade com a referida família<br />
foi um dos principais passos para fazer-se elite de fato nas paragens meridionais.<br />
Outro vínculo importante foi com Patrício José Correia da Câmara e sua<br />
esposa dona Joaquina Leocádia. É bem possível que Patrício e Sebastião tenham se<br />
conhecido nas batalhas de reconquista dos territórios rio-grandenses que estavam<br />
sob o jugo dos castelhanos até 1776. Naquela ocasião Patrício ainda ocupava a patente<br />
de sargento-mor e não estava bem articulado nos arranjos locais de poder. 31 Foi<br />
esse mesmo Patrício que representou, através de procuração em outubro de 1780,<br />
o governador na cerimônia de batismo do filho do tenente de Dragões Francisco<br />
Barreto Pereira Pinto e sua mulher Eulália Joaquina de Oliveira. 32 Trata-se de uma<br />
demonstração do bom relacionamento entre Correia da Câmara e o governador. Em<br />
março do ano seguinte, a recém-nascida Rita (primeira filha de Joaquina e Patrício)<br />
receberia os santos óleos de Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara. Duas semanas<br />
após essa cerimônia, Patrício Câmara ingressava na Irmandade do Santíssimo<br />
Sacramento, ordem religiosa local da qual fazia parte seu mais recente compadre 33 .<br />
Não tenho como precisar se a entrada de Patrício na confraria e o compadrio com<br />
o governador foram mera coincidência, mas é bem possível que o tenente-coronel<br />
tenha sido indicado por seu compadre fidalgo. Se Patrício era à época das escaramuças<br />
contra os espanhóis alguém ainda sem arranjos locais de poder, em poucos anos<br />
essa situação se modificou: galgou diversos postos na hierarquia militar, passando de<br />
sargento-mor a tenente-coronel, era compadre do ilustre governador da capitania e<br />
ingressara em uma ordem religiosa, denotando seu reconhecimento como pertencente<br />
à elite local.<br />
31 HAMEISTER, Martha Daisson; GIL, Tiago Luís. Fazer-se elite no extremo-Sul do Estado do Brasil: uma obra em<br />
três movimentos. Continente do Rio Grande de São Pedro (século XVIII). In: FRAGOSO, João; ALMEIDA, Carla<br />
Maria Carvalho de; SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Conquistadores e negociantes: histórias de elites no Antigo Regime nos<br />
trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2007, p. 292.<br />
32 1° livro de batismos de Porto Alegre, fl. 60, 14.10.1780. In: NEUMANN, Eduardo; KÜHN, Fábio (coord.). Projeto<br />
resgate de fontes paroquiais. Porto Alegre- Viamão (século XVIII).<br />
³³ AHCMPA. Livro de entrada de irmãos da Irmandade do Santíssimo Sacramento de Porto Alegre, 1774- 1798,<br />
fl. 1- 3v, 10v.<br />
262
Ainda em 1781, Sebastião batizou o filho do tenente João Carneiro da Fontoura<br />
e sua esposa Josefa Bernardina 34 . Na cerimônia a madrinha não pode comparecer<br />
e foi representada pelo Provedor da Fazenda Inácio Osório Vieira. Esta era<br />
a primeira vez que Osório e Veiga Cabral da Câmara estariam lado a lado na pia<br />
batismal. Em 1792 ambos apadrinhariam (de fato, não apenas como representante<br />
de outra pessoa) o filho de Francisco Rodrigues da Silva e Teresa Angélica de Jesus 35 ,<br />
que recebera o nome do governador. Cinco anos mais tarde Sebastião batizaria outro<br />
filho desse mesmo casal, mas desta vez como único padrinho 36 .<br />
Durante o período em que Veiga Cabral da Câmara esteve afastado do governo<br />
devido às demarcações do Tratado de Santo Ildefonso, batizou apenas duas<br />
crianças. Uma delas é o acima mencionado filho do casal Francisco e Teresa Angélica;<br />
a outra é a infanta Maria, filha de Antero José Ferreira de Brito e Bernardina<br />
Azevedo Lima 37 . Esse segundo casal merece nossa atenção.<br />
Antero nasceu no Rio de Janeiro e estudou em Coimbra, formando-se em<br />
Leis. Com muito esforço, conseguiu o Hábito da Ordem de Cristo em 1768. Foi<br />
secretário no gabinete do Marquês de Pombal, mas devido a desentendimentos com<br />
este passou sete anos no cárcere, recuperando a liberdade após a ascensão de dona<br />
Maria I. Em seguida rumou para o Rio Grande, assumindo as propriedades que herdara<br />
de um tio. Ao sul dos trópicos era conhecido como “doutor Antero”, por ser<br />
um dos poucos homens letrados naqueles tempos onde a maioria da população era<br />
analfabeta. Casara com Bernardina, filha do capitão Domingos da Lima Veiga, juiz<br />
de órfãos e escrivão da Fazenda Real, homem de vistosa reputação 38 . Era, portanto,<br />
um casal de notáveis este com quem Veiga Cabral da Câmara estabeleceu compadrio.<br />
Após retornar às funções de governador, no entanto, o governador adotou critérios<br />
diferentes para a escolha de seus compadres. Atentemos para o quadro a seguir.<br />
34 1° livro de batismos de Porto Alegre, fl. 72v, 24.11.1781. In: NEUMANN, Eduardo; KÜHN, Fábio (coord.).<br />
Projeto resgate de fontes paroquiais. Porto Alegre- Viamão (século XVIII).<br />
35 2° livro de batismos de Porto Alegre, fl. 8v, 21.12.1792. In: NEUMANN, Eduardo; KÜHN, Fábio (coord.). Projeto<br />
resgate de fontes paroquiais. Porto Alegre- Viamão (século XVIII).<br />
36 2° livro de batismos de Porto Alegre, fl. 111v, 12.05.1785. In: NEUMANN, Eduardo; KÜHN, Fábio (coord.).<br />
Projeto resgate de fontes paroquiais. Porto Alegre- Viamão (século XVIII).<br />
37 1° livro de batismos de Porto Alegre, fl. 72v, 24.11.1781. In: NEUMANN, Eduardo; KÜHN, Fábio (coord.).<br />
Projeto resgate de fontes paroquiais. Porto Alegre- Viamão (século XVIII).<br />
38 KÜHN, Fábio. Gente da fronteira : família, sociedade e poder no sul da América Portuguesa - século XVIII. (Tese de doutorado).<br />
Universidade Federal Fluminense: Niterói, 2006, p. 367- 370.<br />
263
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Quadro 3<br />
Relações de compadrio do governador Veiga Cabral da Câmara, 1793- 1798<br />
264<br />
Fontes: 1° e 2° livros de batismos de Porto Alegre. In: Projeto resgate de fontes paroquiais (2009);<br />
COMISSOLI (2006).<br />
Dos doze 39 indivíduos com quem Veiga Cabral da Câmara estabeleceu compadrio<br />
na segunda fase de seu governo não sei a ocupação de nove. Para tal seria ne-<br />
39 No Quadro 2 são indicados 13 batismos, pois levamos em consideração o caso de Tomás, homem inglês de 30<br />
anos para quem não consta filiação ou demais informações sobre sua procedência. Devido à carência de dados<br />
exclui esse indivíduo da análise, embora, pelas informações que constam no registro batismal trate-se de um sujeito<br />
sem reconhecimento social naquela localidade, indicando mais uma relação clientelar.
cessário consultar registros matrimoniais, testamentos e inventários post-mortem para<br />
verificar suas atividades, o que extrapola os limites deste artigo. No entanto, desses<br />
nove com ocupação desconhecida, sei que três40 integraram a Câmara Municipal,<br />
todos em mais de uma ocasião, o que significa que eram homens de cabedal e reconhecimento<br />
social, portanto, membros da elite sócio-econômica local. Daqueles que<br />
tenho conhecimento da atividade à qual se dedicavam, um era capitão de Dragões,<br />
outro era comerciante e o terceiro dividia seu tempo entre as atividade militares e a<br />
mercancia.<br />
Este terceiro é André Álvares Pereira Viana, um dos únicos oito comerciantes<br />
do Continente do Rio Grande a ser agraciado com o Hábito da Ordem de Cristo.<br />
Sabe-se que nasceu em Portugal e ainda rapaz transferiu-se para a cidade do Rio de<br />
Janeiro, residindo na casa do comerciante João Gomes da Costa, com quem aprendeu<br />
as artes do comércio. Quando seu tutor faleceu, André veio a casar-se com a<br />
viúva. Era reconhecido como um sujeito de grandes créditos e avultado cabedal. 41<br />
Observemos outro exemplo. Sobre o negociante Antônio Monteiro de Barros<br />
não tenho como precisar o volume de seus negócios e o valor de seu patrimônio.<br />
Todavia, o fato de ter composto a Câmara em quatro ocasiões, prova que era um<br />
homem de posses. Reinol nascido na cidade do Porto42 e casado com Ana Maurícia,<br />
natural de Viamão, é provável que, assim como André Álvares Pereira Viana, tenha<br />
realizado o trajeto Portugal- Rio de Janeiro- Rio Grande. Segundo Osório, esta rota<br />
foi a mais usual, pois diversos jovens seguiram a trilha das gerações anteriores, saindo<br />
sobretudo de localidades ao norte de Portugal, ainda em tenra idade, para a casa<br />
de parentes, padrinhos ou conhecidos sediados no Rio de Janeiro para aprender as<br />
lidas do trato mercantil. O início mais comum da carreira era através da função de<br />
caixeiro na expectativa de uma futura ascensão. Frequentemente esses negociantes<br />
migravam, ou enviavam seus representantes para diversas praças mercantis, sendo<br />
que os bem sucedidos normalmente retornavam ao Rio de Janeiro. Os negociantes<br />
de menor cabedal e com maior espírito de aventura tendiam a se fixar pelas paisagens<br />
sulinas 43<br />
40 Na listagem de oficiais da Câmara elaborada por Comissoli consta um tal Francisco Rodrigues de Almeida e Silva,<br />
que talvez seja o já mencionado Francisco Rodrigues da Silva, por duas vezes compadre do governador. Na dúvida,<br />
consideramos prudente tratar como camaristas apenas aqueles em que há certeza da participação em tal instituição.<br />
Ver: COMISSOLI, Adriano. Os “homens bons” e a Câmara de Porto Alegre (1767-1808). (Dissertação de mestrado) Universidade<br />
Federal Fluminense, Niterói, 2006, anexo II.<br />
41 OSóRIO, Helen. O império português no sul da América: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: Editora da<br />
UFRGS, 2007, p. 288.<br />
42 2° livro de batismos de Porto Alegre, fl. 68v, 09.06.1796. In: NEUMANN, Eduardo; KÜHN, Fábio (coord.).<br />
Projeto resgate de fontes paroquiais. Porto Alegre- Viamão (século XVIII).<br />
43 OSóRIO, Helen. op. cit., p. 277- 299.<br />
265
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Levando em consideração esses homens que participaram da governança local<br />
ou que conheço as atividades, é possível perceber como Veiga Cabral da Câmara<br />
modificou suas estratégias de escolha de compadres. Se num primeiro momento a<br />
escolha recaia sobre militares, num segundo momento os homens bons e indivíduos<br />
de reconhecimento social parecem ter caído nas graças do governador. É possível<br />
que essa tenha sido uma tentativa de Sebastião em se espraiar por um lócus ainda<br />
não “conquistado” por ele: a Câmara Municipal. A capitania do Rio Grande de<br />
São Pedro contava com apenas uma Câmara, situada em Porto Alegre. Os laços do<br />
governador com integrantes dessa instituição podem ter sido uma tentativa de harmonização<br />
política, procurando evitar conflitos entre poderes administrativos, tais<br />
como os que ocorreram entre os camaristas e o governador José Marcelino44 .<br />
Sobre os outros seis compadres que não compuseram a Câmara local em nenhuma<br />
ocasião, é difícil precisar suas atividades e esboçar uma trajetória sem consultar<br />
inventários e testamentos. Poderiam ser pessoas que se dedicassem ao comércio,<br />
à criação de animais ou agricultura. Se a participação na Câmara é um indicativo de<br />
riqueza e prestígio, o fato de não compor essa instituição não é, necessariamente,<br />
sinônimo de qualquer tipo de marginalização, pois, poderia ser uma escolha desses<br />
homens não atuar na governança local. Mesmo sem consultar os mencionados inventários,<br />
fiz um levantamento dessa documentação visando a continuidade dessa<br />
pesquisa, e dos seis sujeitos em questão, localizei o inventário apenas de um, Vitorino<br />
Pereira Coelho. A inexistência dos demais inventários pode indicar a pobreza<br />
daqueles homens que nada, ou muito pouco, tinham a legar para seus herdeiros.<br />
Também é possível que estes indivíduos tenham inventariado seus bens em outras<br />
regiões da Colônia, caso se tratassem de migrantes.<br />
Vê-se aqui, mais uma mudança nas estratégias do compadre governador: a<br />
aliança com as camadas baixas da sociedade, denotando uma relação de clientelismo.<br />
É difícil saber exatamente qual a contrapartida que estes homens poderiam dar ao<br />
governador, entretanto<br />
o acto de “dar” podia corresponder a um importante investimento de<br />
poder, de consolidação de certas posições sociais, ou a uma estratégia<br />
de diferenciação social. O “dar” com liberalidade, com caridade e com<br />
magnificência parece, por outro lado, essencial para o próprio impacte<br />
[sic] político do acto45 44 Para informações sobre a Câmara Municipal e atritos entre seus integrantes e o governador José Marcelino de<br />
Figueiredo, ver: COMISSOLI, Adriano, op. cit.<br />
45 XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, António Manuel. op. cit. p. 388.<br />
266
Apadrinhar filhos de pessoas de pouca visibilidade naquele tipo de sociedade<br />
era um ato de nobreza, fundamental para um fidalgo que tem que provar seu valor<br />
ao sul dos trópicos. Ato essencial para quem se torna elite. Além de aumentar seu<br />
prestígio, no jogo de relações sociais o governador conquistava alguns curingas, indivíduos<br />
que lhe prestariam serviços quando necessário. Portanto, esses indivíduos<br />
de baixos estratos sociais parecem orbitar a periferia da rede de relacionamentos do<br />
governador, constituindo-se não como relações efetivas de fato, mas como relações<br />
potenciais.<br />
Se, em tese, o vínculo entre compadres deveria ser de solidariedade mútua,<br />
isso não significa que na prática assim o fosse. Apesar de eternos e igualitários no<br />
mundo espiritual, os laços de compadrio eram traspassado por todas as hierarquias<br />
existentes no mundo dos homens. Reitero que reciprocidade não significa igualdade.<br />
E mesmo as relações horizontais poderiam se desmanchar em meio a raios e tempestades.<br />
QUEM SE ALIANçA AOS OLHOS DE<br />
DEUS E DOS HOMENS<br />
Devido ao caráter estratégico dos vínculos entre os compadres criados ou reforçados<br />
através do batismo, os padrinhos escolhiam bem quais crianças receberiam<br />
a nova filiação aos olhos de Deus e da sociedade a qual faziam parte. Nos tempos<br />
do Antigo Regime, os valores de cor e prestígio se misturavam. Indígenas e negros<br />
(bem como sua descendência) eram considerados como categoria inferior, vivendo,<br />
via de regra, à margem do mundo dos brancos.<br />
Olhemos para a recém-nascida Sebastiana, que recebeu os santos óleos do<br />
governador Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara em julho de 1794. A pequena<br />
era filha de Inácio José Filgueira e Rosa Ferreira, ambos pardos livres. Sobre<br />
os avós nada é informado, o que serve como indício de que se tratavam de pessoas<br />
de baixa importância para aquela sociedade. Segundo Faria, os pardos tiveram maior<br />
possibilidade de incorporação aos padrões do mundo livre, em especial no referente<br />
a práticas católicas. Netos de forros que casassem com pessoas da mesma condição<br />
já não receberiam nenhuma referência após seus nomes 46 . É possível que fosse esse<br />
o caso do casal Rosa e Inácio, ou ainda que mesmo sem ter o referido distancia-<br />
46 FARIA, Sheila de Castro A Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova fronteira,<br />
1998, p. 305.<br />
267
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
mento dos antepassados escravos, o simples fato de ter uma filha apadrinhada pelo<br />
governador fidalgo fosse o suficiente para constarem nos registros com designação<br />
de pardos, demonstrando o processo de “branqueamento” social.<br />
Mas o que o batismo de crianças pardas pode nos indicar? Por se tratarem<br />
de pessoas de categoria considerada inferior, os laços estabelecidos pelo compadrio<br />
com indivíduos do alto escalão administrativo (como era o caso de Sebastião)<br />
tendem a ser verticais, onde os brancos estariam na posição superior, para quem os<br />
respectivos compadres deveriam lealdade e prestação de serviços e favores. Essa<br />
tendência se torna especialmente forte no caso de Veiga Cabral da Câmara, por ser<br />
ele fidalgo.<br />
Analisando os registros batismais percebe-se ainda que grande parte dos batismos<br />
não era realizado por marido e esposa, mas pessoas de casais diferentes. Vejo<br />
essa prática como a valorização dos laços de reciprocidade entre compadres, pois<br />
assim os pais da criança, ao invés de estabelecerem laços com uma única família<br />
(o caso de marido e esposa) estabeleceriam com duas. Mas além de compadres e<br />
afilhados o ato do batismo proporcionava um laço entre os padrinhos. No caso<br />
do padrinho e da madrinha não serem casados, o fato de numa cerimônia pública<br />
estarem lado a lado batizando uma criança, reconhecendo-a como filha espiritual,<br />
representa o reconhecimento do status um do outro, como na cerimônia referida<br />
algumas páginas atrás, em que Veiga Cabral da Câmara e Clara Maria de Oliveira<br />
estiveram lado a lado.<br />
268<br />
A GRAçA DO ESPíRITO E A VIDA ALÉM DO SER<br />
O caro leitor já deve ter percebido que o governador Sebastião batizou diversas<br />
crianças que receberam a seu nome. Dos seus 21 afilhados, onze meninos<br />
chamaram-se Sebastião e duas meninas foram nomeadas como Sebastiana. Hameister<br />
comenta que segundo as normas da Santa Madre Igreja o nome de uma criança<br />
deveria ser escolhido pelo padrinho, mas no entanto não há como precisar se na<br />
prática era de fato o que ocorria ou se a nomeação era decidida pelos pais e apenas<br />
ratificada pelos padrinhos 47 . De qualquer forma, seja pela autopromoção de seu<br />
nome ou por homenagem dos compadres, a criança receber o nome do padrinho é<br />
sinônimo de prestigio deste frente aos novos irmãos espirituais.<br />
47 HAMEISTER, Martha Daisson. op. cit. p. 78- 137.
Era recomendado ainda que o nome escolhido fosse cristão ou nome de um<br />
santo. De acordo com a lenda, São Sebastião foi um soldado romano brutalmente<br />
assassinado por defender os cristãos, tornando-se um mártir. O nome Sebastião, de<br />
origem grega, significa venerável, sagrado, características essas coincidentemente coerentes<br />
com a postura do governador em questão. Não sei se na América portuguesa<br />
setecentista havia preocupação com a etimologia do nome, mas certamente havia<br />
preocupação do rebento possuir o nome de alguém importante naquela localidade,<br />
pois<br />
nomear, estabelecer uma nomenclatura familiar e pessoal, nessas circunstâncias,<br />
é uma prática social que visa, antes de mais nada, estabelecer<br />
e perpetuar o “nicho” de certos homens e famílias no grupo ao<br />
qual pertenciam e ante outros grupos, podendo assumir, assim, um<br />
aspecto místico48 .<br />
Dessa forma, dar ao filho o nome do valoroso governador, herói na reconquista<br />
de territórios frente aos espanhóis, pode ser visto como uma tentativa de<br />
preservar ou conquistar um lugar de destaque na sociedade, uma vez que a família<br />
já planejava o matrimônio e carreira da criança, visando o engrandecimento familiar.<br />
Esta deve ter sido a intenção do capitão José Ferreira da Silva Santos, ao talvez planejar<br />
a brilhante carreira militar de seu pequeno Sebastião, cujas façanhas preservariam<br />
a reputação da família. O comerciante Antônio Monteiro de Barros possivelmente<br />
pensou algo parecido, visando a prosperidade dos negócios familiares e uma venerada<br />
posição no alto da hierarquia social. Estes são dois exemplos de homens de elite<br />
que prestigiavam Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara, comprovando como<br />
este foi conquistando seu lócus entre as camadas dominantes com o passar dos anos.<br />
Para Hameister, o nome tinha por finalidade promover a continuidade do<br />
indivíduo em termos simbólicos. “Eram dois e ao mesmo tempo um, pois continuavam-se<br />
um no outro. O nome não era apenas desinência de um indivíduo; antes,<br />
designava uma espécie de entidade, entidade esta pertencente à família ou ao grupo<br />
no qual estavam inseridos.” 49 Nomear uma criança era a tentativa de transmitir-lhe<br />
as qualidades do dono do primeiro nome, servindo de inspiração para a vida adulta.<br />
Da mesma forma que a atribuição do nome era usada para a manutenção de<br />
determinados padrões de vida e status por indivíduos pertencentes às elites, poderia<br />
ser utilizada como um mecanismo - ainda que as vezes de forma um tanto quimérica<br />
– de ascensão social e busca de um nicho por parte da arraia miúda. Não esqueçamos<br />
de Sebastiana, filha do casal de pardos Inácio e Rosa. O legado que a vida lhe dera<br />
48 HAMEISTER, Martha Daisson, op. cit., p. 118.<br />
49 Idem, p. 108.<br />
269
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
não era nada auspicioso. Embora livre, nascera mulher, pobre e com ascendência<br />
africana. A perspectiva de vida dessa menina não era das mais animadoras, e talvez o<br />
único bem que seus pais pudessem lhe legar fosse um nome, que não era o deles ou<br />
dos ancestrais, mas de um homem importante naquele Rio Grande do século XVIII.<br />
Era o nome de um fidalgo, herói e governador. Rosa e Inácio devem ter projetado<br />
na filha seu desejo de uma vida melhor. Mesmo na pobreza, Sebastiana poderia<br />
arrogar-se de possuir um nome imponente e de ser a extensão, metafórica, de um<br />
padrinho importante. Esse exemplo ilustra que Veiga Cabral da Câmara também se<br />
fez presente entre as camadas subalternas da sociedade colonial, verticalizando sua<br />
rede de relacionamentos.<br />
Assim como os compadres do governador procuraram conquistar ou manter<br />
um lugar ao sol através do nome de seus filhos, esse administrador também imortalizou<br />
a si e a sua família através desses rebentos. Sebastião faleceu em 1801, aos 59<br />
anos de idade, durante as batalhas de retomada dos Sete Povos das Missões; naquele<br />
momento já havia sido nomeado capitão-general de Pernambuco. 50 Seu nome continuou<br />
sendo lembrado e utilizado pelos anos que se seguiram. Embora não mais no<br />
plano dos homens, Sebastião continuou vivendo através de seus afilhados.<br />
270
FONTES PRIMÁRIAS<br />
1° e 2° livros de batismos de Porto Alegre. NEUMANN, Eduardo; KÜHN, Fábio<br />
(coord.). Projeto resgate de fontes paroquiais. Porto Alegre- Viamão (século XVIII).<br />
AHCMPA- Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre. Livro de<br />
entrada de irmãos da Irmandade do Santíssimo Sacramento de Porto Alegre, 1774-<br />
1798, fl. 1- 3v, 10v.<br />
AHU- Arquivo Histórico Ultramarino- Projeto Resgate- RS. Caixa 2, documento<br />
206.<br />
REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
BARRETO, Abeillard. Bibliografia sul-riograndense: a contribuição portuguesa e estrangeira<br />
para o conhecimento e a integração do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Conselho Federal<br />
de Cultura, 1973-1976, p. 254-255.<br />
BENTO, Cláudio Moreira. A guerra de restauração. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército<br />
editora, 1996<br />
BERTRAND, Michel. De la família a la red de sociabilidad. In: Revista Mexicana de<br />
Sociología. Vol. 61, n°. 2, Abr. - Jun., 1999. p. 107-135.<br />
CESAR, Guilhermino. História do Rio Grande do Sul. Período colonial. Porto Alegre:<br />
Martins livreiro, 2002.<br />
COMISSOLI, Adriano. Os “homens bons” e a Câmara de Porto Alegre (1767-1808). (Dissertação<br />
de mestrado) Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2006.<br />
FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial.<br />
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.<br />
FRAGOSO, João. Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da<br />
terra do Rio de Janeiro (1600- 1750). In: FRAGOSO, João; ALMEIDA, Carla Maria<br />
Carvalho de; SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Conquistadores e negociantes: histórias<br />
de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro:<br />
Civilização brasileira, 2007, p. 35- 120.<br />
FRAGOSO, João; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de ; SAMPAIO, Antônio<br />
271
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Carlos Jucá de. Conquistadores e negociantes: histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos.<br />
América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização brasileira,<br />
2007.<br />
FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVêA, Maria de Fátima. Uma<br />
leitura do Brasil colonial: as bases da materialidade e da governabilidade no Império.<br />
In: Penélope, Oeiras, v. 23, 2000.<br />
_____ (orgs). O Antigo Regime nos trópicos. A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-<br />
XVIII). Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2001.<br />
HAMEISTER, Martha Daisson. Para dar calor á nova povoação: estudo sobre estratégias<br />
sociais e familiares a partir de registros batismais da vila do Rio Grande (1738-1763). (Tese de<br />
doutorado). Universidade Federal do Rio de Janeiro: Rio de Janeiro, 2006.<br />
_____; GIL, Tiago Luís. Fazer-se elite no extremo-Sul do Estado do Brasil: uma<br />
obra em três movimentos. Continente do Rio Grande de São Pedro (século XVIII).<br />
In: FRAGOSO, João; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de; SAMPAIO, Antônio<br />
Carlos Jucá de. Conquistadores e negociantes: histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos.<br />
América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2007, p. 265-<br />
310<br />
GIL, Tiago Luís. Infiéis transgressores: os contrabandistas da fronteira (1760-1810). (Dissertação<br />
de mestrado)Universidade Federal do Rio de Janeiro: Rio de Janeiro, 2002.<br />
GINZBURG, Carlo. O nome e o como. Troca desigual e mercado historiográfico.<br />
In: A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1989.<br />
_____. O queijo e os vermes. O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição.<br />
São Paulo: Companhia das Letras, 2006.<br />
_____. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas, sinais. Morfologia<br />
e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.<br />
GUDEMAN, Stephen. Spiritual relationship and and selecting godparent. In: Man,<br />
new series. Vol. 10 (2), Jun. 1975. Royal Anthropological Institute of Great Britain and<br />
Ireland, 1975, p. 221- 237.<br />
KÜHN, Fábio. Gente da fronteira : família, sociedade e poder no sul da América Portuguesa -<br />
século XVIII. (Tese de doutorado). Universidade Federal Fluminense: Niterói, 2006.<br />
_____. Os homens do governador: relações de parentesco e redes sociais no Continente<br />
do Rio Grande ((1769- 1780). In: GUAZZELLI, César Augusto Barcellos;<br />
FLORES, Mariana Flores da Cunha Thompson; AVILA, Arthur Lima de. Fronteiras<br />
americanas: teoria e práticas de pesquisa. Porto Alegre: Suliani letra e vida, 2009. p.34- 48.<br />
LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII.<br />
Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2001.<br />
272
_____. Family and kin- a few thoughts. In: Journal of family history. Vol. 15, n° 4, 1990.<br />
p. 568- 578.<br />
OSóRIO, Helen. O império português no sul da América: estancieiros, lavradores e comerciantes.<br />
Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007.<br />
SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra. Política e administração na América portuguesa<br />
do século XVIII. São Paulo: Companhia das letras, 2006.<br />
XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, António Manuel. As redes clientelares. In:<br />
MATTOSO, José (dir). História de Portugal: o Antigo Regime. Lisboa: editorial Estampa,<br />
s/d. p. 381-393.<br />
273
eM noMe de “nossos AMigos PolítiCos”:<br />
vinCulos PessoAis, Poder e influênCiA<br />
Ao teMPo do iMPério do brAsil<br />
Miguel Ângelo Silva da Costa<br />
Resumo: o presente trabalho dedica-se ao tema dos vínculos pessoais, das redes sociais e da<br />
ação política de seus protagonistas sob a perspectiva do historiador de ofício. Para tanto, adotará como<br />
recorte analítico as tramas constituintes da política local, do poder e da influência nos idos do Império<br />
do Brasil a partir de duas linhas de raciocínio: a) as relações de poder embutidas em vínculos pessoais<br />
como canais transacionais de lealdades por proteção social e b) os intercâmbios recíprocos entre indivíduos<br />
com recursos e necessidades similares, dentro de um espaço de sociabilidade e (des)confiança,<br />
como as facções políticas.<br />
Palavras-Chave: Redes Sociais – Ação Política – Política Local – Império do Brasil.<br />
PRIMEIRAS PALAVRAS<br />
Partindo da assertiva de que o social é feito de relações, inicialmente<br />
poderíamos indagar como os indivíduos se relacionam entre si e com<br />
as instituições do social. Evidentemente, essas indagações e o debate<br />
na qual se inscrevem não são novos no âmbito intelectual. Seria demasiado pretensioso<br />
e desnecessário querer explorar genealogicamente um conceito amplamente<br />
debatido por intelectuais filiados à sociologia, antropologia, economia, psicologia<br />
social, geografia humana, história, entre outras ciências dedicadas à compreensão da<br />
complexidade que permeia o que convencionalmente chamamos de sociedade. Porém,<br />
não resta dúvida de que, independente da filiação disciplinar, faz-se necessário<br />
definir um quadro de referência em relação ao objeto de estudo e as lentes com quais<br />
se vai observá-lo. Portanto, partiremos da idéia defendida por José Maria ímizcoz<br />
de que<br />
La trame d’une société, ce sont les liens et les réseaux de relations<br />
entre individus et/ ou collectivités. Ils organisaient les individus selon<br />
des modes de fonctionnement déterminés en fonction d’actions<br />
précises, de telle sorte que chaque société se caractérisaint par<br />
275
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
l´existence d´um systèma de relations particulier ou muni de caractéristiques<br />
propres.¹<br />
Parafraseando Peter Burke, também poderíamos indagar-nos qual a utilidade<br />
das teorias formuladas no campo das ciências sociais para os historiadores. A resposta<br />
dessa aparente simples questão não é óbvia, pois, como observou Burke, “diferentes<br />
historiadores, ou tipos de historiadores, reconheceram a utilidade das diferentes<br />
teorias em formas diversas, algumas como um arcabouço abrangente e outras como<br />
um problema específico”². No entanto, tratando-se do espaço de reflexão no qual<br />
se encontra o debate sobre redes sociais e sua aplicabilidade no campo da pesquisa<br />
histórica, o que seria possível apreender em termos de instrumentalização analítica?<br />
Qual a especificidade deste “olhar” sobre as sociedades do passado? Por que a metodologia<br />
tem atraído um número cada vez maior de historiadores?<br />
Responder essas indagações não é tarefa fácil. Contudo, ao ocuparem lugar na<br />
agenda de pesquisa, parece indiscutível a necessidade de refletirmos sobre elas. Esse,<br />
portanto, é o objetivo mais amplo desse trabalho. O esforço consistirá em condensar<br />
algumas reflexões que orientam nossa pesquisa de doutoramento. Para tanto, buscaremos<br />
balizar nossa contribuição para a VIII Amostra de Pesquisa do Arquivo Público do<br />
Estado do Rio Grande do Sul – APERS, explorando algumas possibilidades de análise<br />
acerca dos vínculos pessoais de amizade e seus desdobramentos no campo das disputas<br />
políticas locais.<br />
276<br />
“COM ELE DE ENVOLTA FOMOS TODOS OS SEUS<br />
AMIGOS E PARENTES”<br />
Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, década de 1860. O contexto<br />
era de guerra contra o Paraguai, ecoavam valores construídos em torno da figura<br />
idealizada do intrépido guerreiro sul-rio-grandense e pulverizava-se o chamado à<br />
peleja. No rastro do recrutamento de quem iria seguir destacado para o campo de<br />
batalha, setores diversos da população, cada qual ao seu modo, sentiam os efeitos<br />
da intensa mobilização de tropas para o teatro de operações. Sujeitos com influência<br />
política local – comandantes ou não dos corpos militares –, empregavam diferentes<br />
formas de ação para formar e dar sustentabilidade às suas clientelas. Não raro, lançavam<br />
mão de indulgências paternalistas para atender os interesses de seus subordi-<br />
¹ IMíZCOZ, José Maria. Communauté, réseau social, élites. L’armature sociale de l’Ancien Régime. In: CAS-<br />
TELLANO, J. L.; DEDIEU, J. P. Réseaux, familles et pouvoirs dans le monde ibérique à la fin de l’Ancien Régime. Paris: CNRS<br />
Éditions, 2002. p. 36<br />
² BURKE, Peter. História e Teoria Social. São Paulo: UNESP, 2002. p. 11.
nados. De modo associado ao patronato que exerciam ou que pretendiam exercer,<br />
buscavam enfraquecer seus adversários qualificando seus desafetos políticos para<br />
as tropas da ativa.³ Foi no centro de um movimento de mão dupla, recheado por<br />
histórias absolutamente banais e ao mesmo tempo sintomáticas dos mecanismos<br />
sociais que virtualmente estruturavam as engrenagens de funcionamento do poder<br />
político local, que um sujeito chamado Francisco Pinto Porto, amigo próximo do<br />
General José Joaquim de Andrade Neves, assim se dirigiu ao Dr. Francisco Ignácio<br />
Marcondes Homem de Mello, à época presidente da província:<br />
Rio Pardo, 9 de março de 1867.<br />
[...] Desgraçadamente, nesta localidade a intolerância política e a sede<br />
ardente de mando não se têm extinguido diante da grave situação<br />
porque passa o país. Duas facções antes que dois partidos dividem a<br />
população deste termo: à frente de uma sempre se achou o General<br />
Andrade Neves, que há mais de dois anos está em campanha, tendo levado<br />
consigo a maior parte de nossos amigos particulares e políticos;<br />
os poucos que restamos, ou são de lá vindos inválidos, enfermos ou os<br />
que não ocuparam postos estão para marchar. [...] À frente da segunda<br />
facção, o Coronel reformado da Guarda Nacional João Luis Gomes,<br />
tristemente celebridade desde a revolução desta província, depois que<br />
obteve posição e alguns meios que lhe facilitou seu protetor e cunhado<br />
o General Andrade Neves, declarou-lhe uma guerra de extermínio.<br />
Nada poupou àquele que lhe serviu de pai! Na praça pública como na<br />
imprensa o general Andrade Neves foi atacado miseravelmente; com<br />
ele de envolta fomos todos os seus amigos e parentes. V.Exa., crerá<br />
talvez que tanta ousadia terá fonte em uma robusta coragem; perfeito<br />
engano: é apenas uma regateira que quer disputar os foros de honra!<br />
Fez-se cercar este Chefe de indivíduos que adrede colocou em posições<br />
oficiais por meio de seus patronos o Sr. Desembargador Sayão,<br />
falecido Oliveira Bello e Dr. João Mendonça, o acaso lhe trouxe mais<br />
um juiz ad hoc que lhe serviu de guia, pois que perfeito saúde-o, era<br />
então assessorado por um mestre escola. Entre os de sua escolta está<br />
o comandante superior interino, que sendo reformado foi nomeado<br />
chefe do Estado Maior. É homem de bons precedentes, creio mesmo<br />
ser honesto, mas sem energia alguma e pronto a subscrever o que diz<br />
o seu chefe de Partido. [...] 4<br />
³ Diversos autores já enfocaram a questão. Todavia, entre os trabalhos mais recentes sobre o tema no Rio Grande<br />
do Sul, ver: FERTIG, André Atila. Clientelismo político em tempos belicoso : a Guarda Nacional da Provincia do Rio Grande<br />
do Sul na defesa do Estado Imperial centralizado (1850-1873). Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul.<br />
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em História, Tese de Doutorado. 2003 e<br />
RIBEIRO, José Iran. Quando o serviço os chamava: os milicianos e os guardas nacionais gaúchos (1825-1845). Santa Maria. E.<br />
UFSM. 2005.<br />
4 Correspondência enviada por Francisco Pinto Porto ao Dr. Francisco Ignácio Marcondes Homem de Mello,<br />
09/03/1867. AHRS – GN. 22º C. Cav. Rio Pardo, maço n.º 97.<br />
277
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Michel Foucault já observou que o poder deve ser analisado como algo que<br />
circula, que funcionada em forma de cadeia e sem localização precisa. Não está<br />
nas mãos de ninguém, de forma fluída transita entre os indivíduos. Em suas redes<br />
e numa relação dialética, estes mesmos indivíduos estão constantemente em vias<br />
de exercitar ou de sofrer seus impactos. De modo reticular e de forma inerente às<br />
relações sociais, o poder apresenta-se como elemento de conexão entre os sujeitos.<br />
Ou seja, o poder não está aqui ou ali, ele flui transversalmente entre os indivíduos 5 .<br />
Sem dúvida, este é um dos conceitos que nas palavras de Jacques Revel “fascina<br />
os historiadores e os cientistas sociais”. Mas o historiador adverte que aqueles que<br />
o estudam, constantemente o alocam ao “lado do comando, de um capital de estima<br />
ou de fidelidade, do lado da detenção de um capital de bens materiais e culturais, ou<br />
ainda nos esforçamentos para demonstrar que todos esses capitais obedecem a uma<br />
lei tendencial de concentração, que eles se acumulam de acordo com regras mais ou<br />
menos complexas”. Todavia, o poder não é um atributo dos atores, mas sim uma<br />
relação sobre a qual confluem interesses. Neste caso, se a definição de poder não<br />
pode ser pensada de modo descolado de um “campo onde agem forças instáveis<br />
e que estão sempre sendo reclassificas” e, se ele, ou certas de suas formas, são as<br />
recompensas dos “que sabem explorar os recursos de uma situação, tirar partido<br />
das ambigüidades e das tensões que caracterizam o jogo social” 6 , François Xavier<br />
Guerra assevera que enquanto uma relação entre atores “cada actor lo es de una<br />
forma diferente según lá posición que ocupa con respecto a tal o cual outro actor, y<br />
o éxito en la práctica política se basa en un conocimiento, muy a menudo intiuitivo,<br />
de estas relaciones” 7 .<br />
Sob esta perspectiva poderíamos considerar que a carta enviada pelo Tenente<br />
Coronel Pinto Porto ao presidente Homem de Mello coloca em cena um sujeito que<br />
sabia o modo como seria possível acionar recursos e tirar vantagens das ambigüidades<br />
e tensões próprias de um jogo político que interconectavam sujeitos em redes de<br />
poder. Consciente das regras e dos dispositivos inerentes à prática política, falou em<br />
5 Segundo Roberto Machado, o que Foucault procurou demonstrar em sua microfísica do poder foram as formas como<br />
os poderes de diferentes ordens se efetuam em distintos níveis do corpo social. Gestos, atitudes, comportamentos,<br />
hábitos, discursos são algumas das formas de manifestação. Assim sendo, ao pensar em poder e na sua análise, devese<br />
levar em conta seu caráter relacional e suas múltiplas formas de exercício. Trata-se, portanto, de refletir sobre seus<br />
mecanismos e seus efeitos, seus domínios e suas extensões no corpo social e sobre os agentes que nele interagem.<br />
MACHADO, Roberto. Por uma genealogia do poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro:<br />
Edições Graal, 1981. p.XII.<br />
6 REVEL, Jacques. Prefácio à Herança Imaterial: In: LEVI, Giovanni. A Herança Imaterial. Rio de Janeiro: Civilização<br />
Brasileira, 2000. p. 31-33.<br />
7 GUERRA, François Xavier. México: Del Antiguo Régimen a la Revolución. Tomo I. México: Fondo de Cultura Económica,<br />
1988. p. 127.<br />
278
nome de seus “amigos políticos”. Sua mobilização assinala o apelo de quem acompanhava<br />
o gradual fortalecimento de uma facção contrária a sua, pois, segundo suas<br />
palavras, “uma grande parte senão todos que foram com o General Andrade Neves<br />
nos eram dedicados”. Não obstante, sua correspondência ainda lança luzes sobre o<br />
modo como se processavam agências da política e do poder local. Na senda da “intolerância<br />
política” e sobre a “sede ardente de mando”, convergia um intricado e dinâmico<br />
processo atravessado por interesses, alianças e interdependências, no qual os<br />
indivíduos e os grupos implicados mobilizavam diferentes formas de ação política.<br />
A narrativa de caráter retrospectivo nos fornece pistas importantes sobre a<br />
forma como o parentesco e a amizade, as fidelidades e as traições, os favores e os<br />
desfavores permeavam a história do dia-a-dia das relações sociais e políticas. A objetividade<br />
das informações prestadas ao presidente da província dispensa qualquer<br />
comentário quanto ao clima de disputas pelo poder na localidade. Para os objetivos<br />
desse trabalho, mais proveito são os sinais que Pinto Porto nos fornece acerca das<br />
relações de poder imersas num “campo onde agem forças instáveis”, permeadas<br />
por intercâmbios recíprocos entre indivíduos com recursos e necessidades similares.<br />
Suas impressões sobre o comportamento de um sujeito que após ter obtido<br />
“posição” à custa de seu “protetor e cunhado abriu-lhe uma guerra de extermínio”,<br />
são indicativos pontuais de que os vínculos mais característicos de nossa formação<br />
social oitocentista não eram simplesmente relações interpessoais entre indivíduos<br />
de uma sociedade atomizada que se associavam segundo uma adesão livre ou voluntária.<br />
Eram, pois, vínculos alinhavados por diferentes formas: por nascimento,<br />
pertencimento a uma família, comunidade; ou contraídos como laços de amizade,<br />
de alianças matrimoniais, compadrio ou relações de clientela que exigiam pautas de<br />
comportamento baseadas em trocas de obrigações. Como tais, esses vínculos foram<br />
particularmente estruturantes, pois, por um lado, articulavam de forma privilegiada<br />
a autoridade, a integração e a subordinação, os direitos e obrigações, os negócios,<br />
economias e intercâmbios de serviços; por outro, aglutinavam sujeitos em grupos ou<br />
redes que atuavam habitualmente de forma solidária no campo social, em negócios<br />
comuns, conflitos e lutas pelo poder, ou se quisermos, traduzem em parte as la trame<br />
d’une société.<br />
A questão abordada pelo nosso informante era profunda e envolvia disputas<br />
internas localizadas entre membros de uma família política local cindida. É correto<br />
afirmar que os laços parentais (sanguíneos ou rituais) eram canais facilitadores no<br />
processo de formatação das redes políticas. Em torno de um indivíduo com reconhecida<br />
expressividade no campo político como o General Andrade Neves – o<br />
mesmo se poderia dizer para outros campos do social – gravitavam “todos os seus<br />
amigos e parentes”. No grupo relacional entravam todos: irmãos, primos, sobrinhos,<br />
filhos, tios, cunhados, amigos, etc. Também é verdadeira a assertiva de que<br />
279
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
as relações baseadas em parentesco de sangue certamente eram mais sólidas e, por<br />
natureza, hereditárias. Na maioria dos casos, denotavam laços afetivos intensos que<br />
se reforçavam pela confluência de interesses, pois os membros da família tendiam<br />
a ser solidários tanto no êxito, como no fracasso de seus entes. Poderíamos afirmar<br />
que não era por acaso que as famílias políticas regionais investiam decididamente em<br />
alianças vantajosas. A permanência de uma família numa determinada região não<br />
resultava exclusivamente das fortunas distribuídas entre os seus membros (terras,<br />
escravos, propriedades em geral), mas também do interesse de manterem, agregarem<br />
e redistribuírem suas heranças imateriais: a influência política e a capacidade de<br />
manipularem amplos repertórios relacionais.<br />
Em segundo lugar, o parentesco sanguíneo poderia ser reforçado com uma<br />
aliança matrimonial. O matrimônio poderia colocar fim a determinadas rivalidades,<br />
pois não se convertiam apenas em aliança entre cônjuges, mas entre famílias ou<br />
grupos supostamente rivais. Poderia é o termo mais apropriado, pois, como bem o<br />
observou Francisco Pinto Porto, um cunhado poderia abrir uma verdadeira “guerra<br />
de extermínio” contra quem há pouco havia lhe garantido posição e lhe servido de<br />
pai. Todos esses laços de parentesco acabam revelando conjuntos humanos extremante<br />
amplos, com manifestações inesperadas, favorecidas pela existência de famílias<br />
numerosas. No espaço relacional não só se objetivavam laços de amizade e de<br />
relações de clientela de diferentes formas, como também se produziam interações<br />
que poderiam convergir tanto para a coesão como desagregação social.<br />
Em linhas gerais, poderíamos considerar que os vínculos políticos ao imporem<br />
direitos e deveres que justificavam ações e comportamentos, também reforçavam<br />
laços já existentes de amizade, de interesse e de clientela. Contudo, as relações<br />
não tinham o mesmo significado nem a mesma virtualidade aglutinadora. Dentro<br />
da abordagem das redes sociais, as relações clientelares e paternalistas são consideradas<br />
verdadeiros protótipos do vínculo vertical. Através daquelas formas relacionais<br />
se configurava uma relação implicitamente pautada por trocas e obrigações<br />
mais ou menos explícitas cujos estatutos normativos se baseavam numa situação<br />
de dominação e de dependência. Todavia, tanto a prática do clientelismo como do<br />
paternalismo são apenas alguns dos caminhos possíveis de observação das relações<br />
entre desiguais, relações que nem sempre correspondem às características de antemão<br />
convencionadas historiograficamente. Ao invertermos a lógica de abordagem<br />
das relações verticais que se desenvolviam quando existia diferença, mas não necessariamente<br />
distância social, podemos contemplar a existência de vínculos individuais<br />
que colocam em relação sujeitos com status sociais distintos. 8<br />
8 IMíZCOZ, José Maria. Actores sociales y redes de relaciones: reflexiones para una historia global. In: Revista da<br />
Faculdade de Letras e História. Porto: III Série, Vol. 05, 2004. pp. 115-140.<br />
280
Essas questões se inserem num universo de pesquisa no qual os historiadores<br />
tem buscado dar conta das relações entre família, poder, política e sociedade. Penso<br />
não ser necessário enveredar na direção de uma ampla revisão sobre os diferentes<br />
percursos que os estudiosos da questão trilharam, até porque outros historiadores<br />
bem mais habilitados já o fizeram. 9 Entretanto, gostaria de apenas observar alguns<br />
aspectos que poderão contribuir para evitar algum tipo de confusão quanto ao nosso<br />
propósito, pois, de antemão, devemos esclarecer que não se trata de um trabalho dedicado<br />
à família em si, antes às redes de interação social e de articulação política segundo<br />
as quais, famílias e sujeitos diversos compartilhavam suas experiências. Nesse<br />
sentido, como observou Sheila de Castro Faria, “ao invés de demarcar a família<br />
como um objeto em si mesmo, deve-se levar em conta a sociedade à sua volta” 10 . Ou<br />
seja, atentaremos para as redes de relações sociais e o amplo espectro de sociabilidade<br />
em que o indivíduo se inscreve.<br />
Sob este aspecto, a amizade coloca-se como um elemento importante para a<br />
questão. As amizades engendram-se nas intricadas disputas políticas, mesclam-se às<br />
famílias e às unidades faccionais. Pode converter-se num instrumento político, uma<br />
espécie de “amizade política”, uma relação recíproca entre pessoas onde se entrelaçam<br />
direitos e deveres reconhecidos pelos diferentes estratos sociais. Nas relações<br />
verticais, os direitos e deveres não assumem o mesmo peso e significado para os<br />
intervenientes. Do lado dos protegidos, quanto mais baixa a posição social do ator,<br />
maiores são os deveres: mobilização dos “amigos” por um chefe político para oferecer<br />
oposição numa disputa política local, para obter informações, para reafirmar<br />
manifestações de adesão ao poder ou para apoiar um representante oficial daquele<br />
mesmo poder. De parte dos personagens proeminentes, seus dependentes esperam<br />
intervenções ante as autoridades para obter exceções a lei e a disposições gerais teo-<br />
9 Para uma revisão sobre os diferentes percursos que os estudiosos da questão tem trilhado, além de FARIA, Sheila<br />
de Castro. A Colônia em Movimento... 1998, também ver, entre outros: MUAZE, Maria de Aguiar Ferreira. O Império<br />
do retrato: família, riqueza e representação social no Brasil oitocentista. Tese Doutorado em História - Programa de Pós-<br />
Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, Niterói. 2006; CASTELLANO, J. L.; DEDIEU, J. P.<br />
Réseaux, familles et pouvoirs dans le monde ibérique à la fin de l’Ancien Régime. Paris: CNRS Éditions. 2002. Para o<br />
caso especifico do Rio Grande do Sul, entre outros trabalhos, KUHN Fábio. Gente da Fronteira: família, sociedade e poder<br />
no Sul da América Portuguesa – Século XVIII. Tese Doutorado em História - Programa de Pós-Graduação em História<br />
da Universidade Federal Fluminense, Niterói. 2006, HAMEISTER, Martha Daisson. Para dar calor à nova povoação:<br />
estudo sobre estratégias sociais e familiares a partir dos registros batismais da vila do Rio Grande (1738-1763). Tese de Doutorado.<br />
Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ. Rio de Janeiro, 2006; FARINATTI, Luís Augusto Ebling.<br />
Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na Fronteira Sul do Brasil (1825-1865). Rio de Janeiro: Universidade<br />
Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais: Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação<br />
em História Social, 2007; VARGAS, Jonas Moreira. Entre a paróquia e a Corte: Uma análise da elite política do Rio Grande do<br />
Sul (1868-1889). Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Dissertação de Mestrado, PPGH, 2007.<br />
10 FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento.... p. 43.<br />
281
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
ricamente aplicáveis a todos. O recrutamento militar, enquanto instrumento político<br />
utilizado pelos chefes para coerção dos menos favorecidos e proteção de seus apaniguados,<br />
é um exemplo cabal de relações perpetradas em torno desses elos sociais.<br />
Debaixo de uma forte propaganda que incentivava a deserção, as autoridades locais<br />
do grupo em oposição abrigavam seus dependentes em torno de si mesmos. Não<br />
raro, chegavam a abrirem as portas de suas próprias casas para abrigá-los.<br />
Expressando seu desabafo, o sectário e amigo do General Andrade Neves reiterou<br />
a necessidade de uma intervenção firme do presidente e também correligionário<br />
daquele “distinto e bravo general”. Francisco Pinto Porto despediu-se do Dr.<br />
Homem de Mello dizendo-lhe que<br />
independentemente destes entraves que adrede se levanta para desprestigiarmos,<br />
a reunião seria mesquinha, mas ainda assim se poderia<br />
fazer; com estas armas porém, e tendo o fiel da balança um companheiro<br />
dedicado desse perturbador nada se fará. No destacamento<br />
da Guarda Nacional, às ordens do comandante da Guarnição e do<br />
Delegado de Polícia, em casa do Coronel João Luis Gomes e outros,<br />
existem indivíduos maiores de 20 e menores de 30 anos, solteiros e robustos<br />
que não foram e nem serão designados para marchar, a menos<br />
que isso terminantemente VExa o não faça.<br />
VExa relevará o tempo precioso que lhe roubei; preciso ser franco<br />
e por isso fui prolixo; sirva em desculpas a causa em que todos os<br />
bons brasileiros se empenham e VExa tão patrioticamente tem sabido<br />
sustentar.<br />
VExa se dignará dar-me as ordens que entender a respeito.<br />
Reitero a VExa minha mais alta consideração e sou de VExa atento e<br />
venerador criado. Tente. Coronel Francisco Pinto Porto.<br />
Não seria nenhum exagero insinuar que é no território dos diálogos sociais –<br />
sejam estes no sentido literal ou metafórico – entre amigos ou camaradas que podemos<br />
observar iniciativas voluntárias, espontâneas, imprevisíveis e, que, eventualmente,<br />
podem apresentar uma mudança de sentido da situação de dependência. Desde a<br />
antiguidade romana, a palavra amigo é uma das palavras chaves do vocabulário político.<br />
Contudo, lembra-nos Xavier Guerra que assim como em Roma, é providencial<br />
desconfiarmos do termo, “pues puede designar tanto personajes de un nível semejante<br />
a quien emplea este calificativo, como a hombres situados mucho abajo en la<br />
escala social, y cujas relaciones no pueden poseer la igualdad relativa de condiciones<br />
que hacem posible la verdadera amistad”. Por conseguinte, o cuidado para não cairmos<br />
em generalizações exige que tenhamos atenção redobrada no que diz respeito<br />
aos vínculos que de alguma forma nos remetam à relações provenientes destes tipos<br />
enlaces sociais. Em seu Clientelismo e política no Brasil do século XIX, o brasilianista Richard<br />
Graham já observou a complexidade inerente às teias de relações que ligavam<br />
282
sujeitos com recursos desiguais¹¹, também observou o peso dos vínculos verticais<br />
para sustentabilidade das redes clientelares e o modo como se buscava conferir legitimidade<br />
para a diferença entre os intervenientes. Assim, poderíamos considerar<br />
que onde se produzem relações entre homens de níveis sociais diferentes o termo<br />
clientela parece mais adequado. Já o termo amizade, demonstra-se uma referência e/<br />
ou elemento de conexão entre atores de níveis sociais equivalentes¹². Ainda assim, a<br />
distinção na prática não é fácil, visto ser possível a existência de elementos afetivos<br />
entre atores desiguais. Talvez, um desses exemplos possa ser um caso que mobilizou<br />
o coronel João Luis Gomes, desafeto político de Pinto Porto e de outros sectários<br />
do General Andrade Neves, na Rio Pardo dos tempos de Pedro II.<br />
ENTRE O CORONEL E O DELEGADO HAVIA “UM<br />
PRETO QUE SE DIZIA ESCRAVO PARA NãO PRESTAR<br />
SERVIçO ALGUM À NAçãO”<br />
Em 5 de agosto de 1860, na esteira do velho hábito da conscrição compulsória,<br />
um sujeito chamado Francisco Cardoso foi preso por outro de nome Juvêncio<br />
Juvino do Rego Rangel. No centro da questão havia um terceiro, ninguém menos<br />
que o tão mencionado coronel João Luis Gomes, com quem o primeiro apresentava<br />
laços de camaradagem e contra quem o segundo guardava mágoas difíceis de serem<br />
digeridas. Cardoso era negro, morador do Distrito de São Sepé e andava por Rio<br />
Pardo “intitulando-se escravo para não prestar serviço algum à Nação”¹³. Rangel era<br />
formado em Direito pela Faculdade de Pernambuco, havia chegado à localidade em<br />
1855 para ocupar a vaga de juiz municipal, mas na ocasião desempenhava as funções<br />
de delegado de polícia daquele termo e tinha ligações políticas com o Liberal<br />
Progressista José Joaquim de Andrade Neves. João Luis Gomes da Silva era filho<br />
do português Francisco Gomes da Silva Guimarães e de Dona Ana Bernardina da<br />
Silva Jacques, era homem de expressividade política nas fileiras locais do Partido<br />
Conservador.<br />
O núcleo urbano do município não apresentava grandes dimensões e a aparente<br />
arbitrariedade praticada pelo delegado Rangel circulou rapidamente pela localidade.<br />
Talvez mais rápido por se tratar de um ato que poderia reanimar uma querela<br />
¹¹ GRAHAM, Richard. Clientelismo e Política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997, p. 37.<br />
¹² GUERRA, François Xavier. México: Del Antiguo Régimen a la Revolución..., p. 150<br />
¹³ APERS – Comarca de Rio Pardo, Cível e Crime, n.º 4704, maço 94, ano 1860.<br />
283
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
antiga entre membros das facções que disputavam o controle político local. João<br />
Luis Gomes havia se ausentado por alguns dias da cidade, mas, ao desembarcar na<br />
rampa do rio Jacuí, foi informado de que Francisco havia sido recolhido ao xadrez.<br />
Na companhia de seu informante, o alferes João Francisco de Moraes, saiu à cata de<br />
Juvêncio Rangel “afim de se saber por qual motivo estava preso o seu camarada” 14 .<br />
Não precisou muito para que aqueles homens se encontrassem. Ao avistar Rangel<br />
na casa de negócio do vereador Bernardo Gomes Souto, o coronel não hesitou em<br />
lhe exigir posicionamento sobre a detenção do preto Francisco. Tenazmente interpelado,<br />
o delegado respondeu em altas vozes que “como recruta e que não tinha que<br />
lhe dar satisfação!!!” 15 . Faltou pouco para que o bate boca chegasse às vias de fato.<br />
Publicamente chamado de “biltre” e acusado de praticar as mais descabidas canalhices,<br />
Juvêncio Rangel sentiu o ímpeto de um sujeito que buscava constantemente<br />
reiterar sua posição social e capacidade de mando. O alarido ganhou a rua, atraiu<br />
vários espectadores e em meio à troca de ofensas recíprocas, gritos e “deixa disso”,<br />
o delegado não teve outra alternativa a não ser evocar o nome de “Sua Majestade o<br />
Imperador” e dar voz de prisão ao seu inimigo capital.<br />
Essa é outra daquelas situações cotidianas que, apesar de serem absolutamente<br />
banais, podem auxiliar a detectar o modo como a solidariedade e o conflito<br />
transitavam pelos fios que interconectavam tanto homens de alto como de baixo escalão<br />
social. O recurso microanalítico de relações tecidas no centro de antagonismos<br />
equilibrados e móveis, coloca-se com uma alternativa metodológica que possibilita a<br />
observação das diferentes formas de ativação tanto dos vínculos como dos próprios<br />
antagonismos sociais. Não se trata aqui de uma inovação sob o ponto de vista mais<br />
amplo da produção historiográfica, até porque os estudos desenvolvidos na área têm<br />
contribuído para que o tema das relations interpesonnelles se consolide cada vez mais<br />
como um véritable objet historiographique. 16 Em grande medida, os trabalhos dedicados<br />
a refletirem sobre o que tange os diferentes tipos sociabilidades (culturais, políticas e<br />
econômicas) encontram-se associados às reflexões nascidas no âmbito da antropologia<br />
social. Sobretudo, a que postula o tecido social como uma rede de interações,<br />
negociações e conflitos sociais concretos. Como lembra M. Gribaudi,<br />
14 Auto de depoimento de João Luis Gomes. APERS – Comarca de Rio Pardo, Cível e Crime, n.º 4704, maço 94,<br />
ano 1860. fls 40-41.<br />
15 Auto de depoimento do comerciante Bernardo Gomes Souto. APERS – Comarca de Rio Pardo, Cível e Crime,<br />
n.º 4704, maço 94, ano 1860. fls 9-10.<br />
16 DEDIEU, Jean-Pierre; MOUTOUKIAS, Zacarias. Approche de la théorie des réseaux sociaux: intoductcion. In:<br />
CASTELLANO, Juan Luis; DEUDIEU, Jean-Pierre. Réseaux, familles et pouviers dans le monde ibérique. Paris: CNRS<br />
Éditions. 2002, p. 07.<br />
284
dans réseaux de relations se lisent les traces de l’histoire des interactions<br />
et des négociations qui ont eu lieu entre chaque individu et les<br />
mileux dont il est issu et qui’l a traversés tout au long de son parcours<br />
social. Les itinéraires se déroulent à l’interieur d’espaces differentement<br />
articulés , maqués par formes et des logiques de cohésion differentes.<br />
17<br />
É no centro desses espaços de interlocução social (nas redes de relações)<br />
que se encontra o locus onde podemos observar a história das interações entre os<br />
indivíduos, suas margens de negociação, seus itinerários em fluxos de diferentes<br />
sociabilidades e de distintas lógicas de coesão social. A estrutura de funcionamento<br />
das redes sociais baseia-se nos vínculos – horizontais e verticais –, firmados entre os<br />
atores implicados. Mas, como observou Michel Bertrand, “on peut définir un réseau<br />
comme un système de liens permettant d’englober et aussi de dépasser l’ensemble<br />
des relations ou des liens noués par un individu membre d’un lignage”. Ao chamar<br />
a atenção para um sistema de laços efetivos que podem englobar e ultrapassar o<br />
conjunto de relações ou de laços agregados por um indivíduo membro de uma linhagem,<br />
o historiador francês nos faz refletir sobre os vínculos que configuram as<br />
relações, os intercâmbios (simétricos e assimétricos) que, articulados entre si, operam<br />
como elementos de composição do tecido social. Assim, poderíamos considerar<br />
que numa sociedade atravessada por redes relacionais sobrepostas é justamente a<br />
existência dessas redes “qui determine la configuration et e’lexistence d’une société”<br />
18 . Ainda poderíamos considerar que a sobreposição de redes e suas combinações<br />
acabam conferindo sentido a cultura política. Isso significa dizer que na medida em<br />
que os repertórios culturais reforçam e legitimam as estruturas das redes, eles incluem<br />
manifestações que refletem as normas, os códigos, os costumes sociais, entre<br />
outros elementos imateriais constitutivos das estruturas relacionais. Em síntese, o<br />
fluxo dessas interconexões evidencia referencias importantes sobre os mecanismos<br />
de consciência que, por sua vez, subsidiam as formas de (inter)agir dos atores.<br />
Foi baseado num sistema relacional alicerçado pela lógica do favor e da cooperação<br />
que poucos dias após o ocorrido supracitado, Juvêncio Rangel dirigiu-se ao<br />
promotor público Joaquim José da Silveira, sujeito cujo currículo trazia notícias de<br />
sua destacada atuação nas hostes farroupilhas durante os arrancos de 1835. O con-<br />
17 GRIBAUDI, Maurizio. Les descontinuités du social: un modéle configurationnel. In: LEPETIT, Bernard (direction).<br />
Les formes de l’expérience: une autre histoire sociale. Paris, Éditions Albin Michel, 1995.p. 192.<br />
18 BERTRAND. Michel. Familles, fidèles et réseaux: les relations sociales dans une société d’Acien Régime. In:<br />
CASTELLANO, Juan Luis; DEDIEU, Jean-Pierre. Réseaux, familles et pouviers dans le monde ibérique. Paris: CNRS<br />
Éditions. 2002. p. 182.<br />
19 APERS – Comarca de Rio Pardo, Cível e Crime, n.º 4704, maço 94, ano 1860.<br />
285
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
teúdo do documento não só refletia o desgosto e a vergonha que perturbavam seu<br />
raciocínio, como, também, sua dúvida em relação ao resultado do processo crime<br />
que movia por injúrias verbais e desacato contra João Luis Gomes da Silva19 . Rangel<br />
empenhava-se “por todos meios, colhendo indícios e provas” para “desagravar a<br />
força moral” de sua autoridade. Impor os rigores da lei a um sujeito cuja capacidade<br />
política e eficiência em arregimentar clientes eram reconhecidas entre seus pares se<br />
fazia necessário. Mas, para isso, era preciso mobilizar os laços políticos alinhavados<br />
com homens que também tinham interesses nos enfrentamentos com João Luis<br />
Gomes. Diante daquela constatação, o delegado observou ao promotor que<br />
[...] Esse coronel, fiado no patronato político de uma facção de<br />
quem se tem constituído cabeça, animou-se a ir publicamente<br />
ameaçar-me com gritos e insultos para que mandasse soltar um<br />
seu peão ou agregado que havia sido recrutado. Foi tal o modo insólito<br />
com que exigiu essa soltura que tendo-lhe dado em flagrante delito<br />
vozes de prisão não encontrei nenhuma pessoa que então me coadjuvasse;<br />
sendo cercado de empenhos para desistir fiquei tão coagido e aterrado<br />
por me ver assim isolado e ameaçado que quatro cidadãos se empenharam<br />
por aquela desistência. 20<br />
Mas além do promotor público Joaquim da Silveira, o delegado contava com<br />
outros interlocutores solidários à causa. Em “nome da verdade, da justiça e dos<br />
nobres sentimentos de homem que preza a honra e a dignidade social”, rogou ao<br />
capitão Joaquim José de Brito que não se deixasse “trepidar um só momento em<br />
proclamar mesmo que com receio do compromisso e considerações que possam<br />
fazer calar a voz da sua consciência” os insultos e ameaças praticados pelo coronel<br />
João Luis Gomes ao “negociante português José Francisco da Silva, cidadão respeitável<br />
pela sua avançada idade e por iguais predicados”. Mesmo “retraído de julgar os<br />
atos do coronel João Luis Gomes”, o capitão não se esquivou da solicitação e, em<br />
reposta ao “afetuoso amigo”, asseverou que<br />
estava este ancião sentado à porta da casa de minha residência, quando<br />
para ele dirigiu-se o supradito coronel agredindo-o de palavras e ameaçando<br />
dar-lhe com um chicote, ao que eu e mais pessoas que comigo<br />
então se achavam nos apressamos metendo-nos de permeio a eles<br />
acomodando-os, o que podemos conseguir antes que chegasse a vias<br />
de fato, retirando-se para logo o agressor conduzido pelo seu cunhado<br />
o Brigadeiro José Joaquim de Andrade Neves. Se não me consta que<br />
20 Ofício apresentado ao promotor público Joaquim José da Silveira, pelo delegado de polícia Juvêncio Juvino do<br />
Rego Rangel. 16/08/1860. APERS – Comarca de Rio Pardo, Cível e Crime, n.º 4704, maço 94, ano 1860. fls 31- 32.<br />
21 Correspondência enviada por Juvêncio Juvino do Rego Rangel ao capitão Joaquim José de Brito. Sem data.<br />
APERS – Comarca de Rio Pardo, Cível e Crime, n.º 4704, maço 94, ano 1860. fls 35. A resposta do capitão encontrase<br />
no verso da correspondência.<br />
286
o agressor fosse responsabilizado pelo respectivo fato. É o que, por<br />
amor a verdade e aos princípios por vossa senhoria encovados em seu<br />
apelo, posso declarar sobre o fato que dá origem a esta resposta. Com<br />
a mais perfeita consideração sou de VSa afetuoso amigo e criado, Joaquim<br />
José de Brito. 21<br />
Entre os outros interlocutores de Rangel se encontrava Patrício Falkenback e<br />
José Joaquim de Andrade Neves, ambos cunhados de João Luis Gomes.<br />
Em resposta a “desinteligência havida entre o coronel e o cidadão José Francisco<br />
de Silva”, Falkenback observou “que cumpria-lhe dizer que é certo que este<br />
cidadão foi insultado pelo dito coronel, que armado de um chicote veio repreendê-lo<br />
em frente de uma obra que o mesmo Silva estava fazendo na rua da Imperatriz, cuja<br />
repreensão não foi mais adiante por ter intervindo diversas pessoas que presentes se<br />
achavam” 22 . Andrade Neves foi mais contundente e além de corroborar as informações<br />
de Brito e Falkenback considerou ser “com grande pesar que respondo a carta<br />
retro por meu presente punho sobre os atropelos que tem praticado contra mim e<br />
outros cidadãos o homem de que fala vossa senhoria, do qual é meu inimigo como<br />
todo o Rio Pardo e Província sabem” 23 .<br />
Mais uma vez estava criada uma situação sobre a qual convergia todo um<br />
intricado jogo de interesses, de entrosamento e de adesão social. Há poucos meses,<br />
um embate travado entre João Luis Gomes e Juvêncio Rangel descortinou nuanças<br />
de um processo em que seus protagonistas se mobilizaram, acionaram alianças e<br />
investiram com afinco na defesa de seus objetivos. Mas, no centro do novo atrito<br />
estava um sujeito que ocupava um lugar pouco privilegiado na hierarquia daquela sociedade.<br />
É verdade que o preto Francisco Cardoso não dispunha dos mesmos recursos<br />
que seus contemporâneos bem afortunados, tampouco tinha acesso às mesmas<br />
regalias dos senhores da boa sociedade. No entanto, tal posição lhe exigia colocar<br />
em prática as especificidades de uma rede de sentidos que consubstanciava ações<br />
de sujeitos que viviam sob as tensões próprias de um refinado sistema de controle<br />
social. Em outras palavras, o embrulho em que se viu metido suscitou que aquele<br />
praticamente invisível homem de cor colocasse em prática o aprendizado compartilhado<br />
em larga escala com seus contemporâneos.<br />
Infelizmente não foi possível obter maiores informações sobre quem exatamente<br />
era Francisco Cardoso. Apesar disso, quis o destino que Juvêncio Rangel<br />
²² Correspondência enviada por Patrício Falkenback a Juvêncio Juvino do Rego Rangel. 13/08/1860. APERS –<br />
Comarca de Rio Pardo, Cível e Crime, n.º 4704, maço 94, ano 1860. fl 36.<br />
²³ Correspondência enviada por José Joaquim de Andrade Neves a Juvêncio Juvino do Rego Rangel. 9/08/1860.<br />
APERS – Comarca de Rio Pardo, Cível e Crime, n.º 4704, maço 94, ano 1860. fl 37.<br />
287
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
deixasse registrado na documentação anexa ao processo crime movido contra o<br />
coronel João Luis Gomes, um detalhe que lança luzes sobre o recurso acionado na<br />
tentativa de exercer algum tipo de pressão sobre o delegado num momento crucial<br />
de sua vida. Mesmo sem saber os reais motivos que o levaram à cidade, o delegado<br />
observou que se tratava de um agregado de João Luis Gomes que andava pelas ruas<br />
da localidade. Mas tão logo recebeu voz de prisão, intitulou-se “escravo pra não<br />
prestar serviço algum à Nação” 24 .<br />
Sem querer empregar um tom impressionista a atitude de Francisco Cardoso,<br />
a frase é digna de ser repetida. Justifica-se na medida em que demonstra sua habilidade<br />
para mover-se num mundo pautado por relações de deferência e subordinação.<br />
Com eficiência, colocou-se entre o coronel e o delegado acionando o que definimos<br />
como uma espécie de deferência calculada/ instrumental. Ou seja, Francisco sabia que<br />
sua existência social estava atrelada a sua inserção em redes de dependência e de proteção<br />
próprias a uma sociedade que diferenciava seus membros, atribuindo-lhes poderes<br />
e competências, e para nela mover-se, se fazia necessário acionar uma prática<br />
política sutil e inteligentemente articulada ao interesse de agir por entre as eventuais<br />
brechas de relações alicerçadas sob os princípios da autoridade e da subordinação 25 .<br />
Valer-se do vínculo de camaradagem alicerçado com João Luis Gomes e ao<br />
mesmo tempo recorrer à rede de dependência que envolvia senhores e cativos são<br />
subsídios que nos permitem insinuar sobre os cálculos cotidianos de um homem<br />
que conhecia de perto a lógica da autoridade e da subordinação. Neste caso, o que<br />
menos importa é se Francisco era ou não escravo, mas sim o modo como instrumentalizou<br />
politicamente sua condição social de subordinado e de supostamente<br />
cativo do desafeto de Rangel. Este, no mínimo, parece ter sido um fator que influiu<br />
no raciocínio do delegado, pois naquele mesmo dia cinco de agosto, após os desentendimentos<br />
com o coronel, o algoz de Francisco ordenou ao carcereiro João<br />
Bernardino de Abreu que o soltassem “imediatamente, visto ser o mesmo recrutado,<br />
segundo me consta, peão ou agregado do Coronel João Luis Gomes, o qual é meu<br />
inimigo capital” 26 .<br />
24 Auto de denúncia apresentado ao promotor público Joaquim José da Silveira, pelo delegado de polícia Juvêncio<br />
Juvino do Rego Rangel. APERS – Comarca de Rio Pardo, Cível e Crime, n.º 4704, maço 94, ano 1860. 06/08/1860.<br />
fls 4-5.<br />
25 THOMPSON, E.P. Costumes em Comum. Estudos sobre a Cultura Popular Tradicional. São Paulo: Companhia das Letras,<br />
2005, p. 57.<br />
26 Auto de soltura [sic] do preto Francisco Cardoso, expedido pelo delegado de polícia Juvêncio Juvino do Rego<br />
Rangel. 05/08/1860. APERS – Comarca de Rio Pardo, Cível e Crime, n.º 4704, maço 94, ano 1860. fls 34.<br />
288
Francisco saiu novamente de cena, não foi ouvido no processo. Contudo, a<br />
pendenga entre aqueles homens ainda teria novas repercussões. Outrossim, mesmo<br />
que o panorama daquela polêmica de cor política nos remeta a um conflito nascido<br />
na fronteira entre facções locais, parece lícito imaginar que tais embates não forma<br />
protagonizados por indivíduos mecânicos ou demasiadamente racionais, mas por<br />
indivíduos cujos comportamentos eram atravessados por um repertório de sentimentos<br />
variados, nascidos nos bojo de tensões anteriores à prisão daquele simples<br />
homem de cor.<br />
“AMEAçA-ME ESSE JUIZ COM UM PROCESSO,<br />
O QUE RESPONDO COM UMA RISADA...”<br />
Os embates pessoais entre João Luis Gomes e Juvêncio Juvino do Rego Rangel<br />
não eram tão recentes. Até onde sabemos, eles se agudizaram numa acalorada<br />
qualificação eleitoral. Mais especificamente, no dia 25 de abril de 1859, quando no<br />
consistório da igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário do Rio Pardo, o então juiz<br />
municipal Juvêncio Rangel foi surpreendido pelo coronel. Na ocasião, o líder da facção<br />
saquarema não só observou ao juiz que vinha pessoalmente receber as sentenças<br />
dos recursos eleitorais despachados, como, também, intrepidamente meteu a mão<br />
no bolso e sobre a mesa jogou um maço de papel cujo conteúdo lançava suspeita sob<br />
a isenção política do presidente do conselho municipal de recursos eleitorais27 . Instilado<br />
pelo que definiu como fruto de uma “acintosa arquitetura política” esboçada<br />
a partir do dia em que a junta de qualificação havia sido instalada, João Luis Gomes<br />
não economizou palavras para também atacar o coronel José Joaquim de Andrade<br />
Neves. Conhecendo intimamente seu principal adversário político e consciente de<br />
que sua influência teria peso na lista final de votantes, João Luis Gomes assim se<br />
dirigiu aos “Ilustríssimos senhores do Conselho Municipal de Recurso”:<br />
[...]Esse juiz trata de respeitável a junta de qualificação sem saber talvez<br />
o que exercem, porque para qualquer tribunal se torna respeitável<br />
é preciso que não se deixe corromper por empenhos, utilidades próprias,<br />
ou partidos políticos; e desde o dia que essa junta se instalou, já<br />
se fazia recomendações para não haver esquecimento de qualificarem<br />
o Tenente [Miguel Pereira de Oliveira] Meireles que estava em Porto<br />
Alegre. Sendo por fim o nome dele mandado escrever no final da lista<br />
geral dos votantes pelo Chefe desorganizador deste município às cin-<br />
27 Depoimento de Francisco de Paula Liz, escrivão do judicial e notas do município. APERS – Comarca de Rio<br />
Pardo, Júri, Maço: 02, Processo Crime, n.º 47, 1859, fls.29v e 30r.<br />
289
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
co horas da tarde da véspera do dia que deveria assinar esta lista o que<br />
submissamente animaram os membros da junta esquecendo-se assim<br />
do cumprimento da lei e só tendo em vista a obediência à vontade<br />
desse que reconheciam como por seu chefe [...];Agora, ameaça-me<br />
esse juiz com um processo, o que respondo com uma risada, pois só<br />
teria medo de processo quando me forem eles instaurados por prevaricações<br />
ou outros crimes semelhantes. [...] Rio Pardo, vinte e cinco de<br />
abril de 1859. João Luis Gomes. 28<br />
Embora longo, o documento não poderia deixar de ser citado praticamente<br />
na íntegra. Não é demais referir a escassez de fontes como os recursos eleitorais,<br />
mais ainda por se tratarem de documentos que podem nos oferecer pistas sobre os<br />
grupos que disputavam palmo a palmo o controle político local. Além disso, é possível<br />
visualizar relances de um ambiente atravessado por conchavos e manobras que<br />
se colocavam em evidência ao longo das etapas de preparação dos pleitos eleitorais.<br />
Ainda que a lei conferisse o direito de recurso eleitoral a qualquer cidadão, a<br />
prerrogativa transcendia as especificidades legais. Habituados a buscar subterfúgios<br />
para denunciar seus adversários, sobretudo quando urgia a necessidade de firmar<br />
oposição, sujeitos com certa influência já adquirida se valiam dessas prerrogativas<br />
institucionalizadas para denunciar publicamente os membros da facção no poder.<br />
Normalmente à frente de uma facção alternativa, um líder político rival testava o<br />
poder de seu competidor acusando-o de atos ilegais nas etapas que antecediam os<br />
pleitos ou nas eleições propriamente ditas. 29 Foi o que João Luis Gomes não deixou<br />
de fazer ao acusar Juvêncio Rangel de mandachuva político de Joaquim José de Andrade<br />
Neves, por ele reconhecido como “chefe desorganizador” do município. Sob<br />
este ponto de vista, o recurso eleitoral apresentado além de um direito de contestação<br />
ao poder de mando exercido pelo Liberal Progressista Andrade Neves, também<br />
pode ser pensado como um instrumento político acionado contra a “opinião pública<br />
corrupta” e de reivindicação da “honra, dignidade e ordem”.<br />
João Luis Gomes sabia que desafiar uma liderança local e seus seguidores<br />
exigia certa capacidade de enfretamento, principalmente por se tratar de sujeitos<br />
aquilatados politicamente. Em outras palavras, e com certa obviedade, é coerente<br />
considerar que o coronel não iria aventurar-se ao enfrentamento caso não tivesse<br />
consciência dos recursos que para tanto dispunha. Questionar a conduta pública do<br />
28 Documento apresentado por João Luis Gomes ao Conselho Municipal de Recursos Eleitorais. APERS – Comarca<br />
de Rio Pardo, Júri, Maço: 02, Processo Crime, n.º 47, 1859. Anexo, fls.21 – 25. (grifo meu)<br />
29 GRAHAM, Richard. Clientelismo e Política no Brasil do século XIX..., p. 165.<br />
290
juiz Juvêncio Rangel e também fustigar seu cunhado José Joaquim de Andrade Neves<br />
talvez fosse uma ação estimulada pelo seu interesse de expor e reiterar prestígio,<br />
o que poderia evidenciar sua capacidade para enfrentar publicamente seus adversários.<br />
Por outro lado, fazer-se ver capaz para tanto aos olhos de seus concidadãos<br />
e das autoridades superiores do Império era parte integrante e necessária de toda a<br />
parafernália que constituía a luta política, pois, de outro modo, somente com ações<br />
de violência explícita poderia evidenciar sua capacidade de criar uma clientela e fazer<br />
parte do jogo político graúdo.<br />
Mas Juvêncio Rangel não estava sozinho naquela peleja. Ciente da necessidade<br />
de reiterar constantemente sua imagem enquanto homem público e imbuído pelo<br />
propósito de honrar os compromissos firmados com seus sectários, o bacharel não<br />
teve outra alternativa a não ser aceitar o confronto e, em face das “injúrias, insultos<br />
e insinuações” amargamente digeridas, contra-atacar o coronel no campo da justiça.<br />
Sua queixa foi acolhida pelo juiz municipal suplente Manoel Assumpção Vianna e<br />
João Luis Gomes viu seu nome citado numa intimação judicial. Porém, o coronel<br />
optou em esquivar-se da audiência marcada para o dia 21 de maio daquele ano de<br />
1859 30 . Talvez, a necessidade de estabelecer adequada estratégia para enfrentar a escaramuça<br />
tenha concorrido para que decidisse não comparecer em juízo³¹.<br />
Ainda que João Luis Gomes não tivesse comparecido à audiência, as testemunhas<br />
arroladas por Juvêncio Rangel foram ouvidas em juízo. O primeiro a depor<br />
foi o vereador municipal Antônio José Martins de Menezes, à época com 28 anos de<br />
idade e praticante do ofício de comerciante. Menezes pouco ou quase nada disse sobre<br />
o ocorrido. Apenas considerou que havia ouvido ruídos sobre o desentendimento<br />
entre aqueles cidadãos e que no caso “dela testemunha passar por situação idêntica,<br />
também se sentiria injuriado”. Com mesma opinião se manifestou o comerciante<br />
e capitão da Guarda Nacional Antônio José Landim. Em seu depoimento salientou<br />
30 Intimação expedida pelo juiz municipal suplente Manoel Assumpção Vianna, 18 de maio de 1859. APERS – Comarca<br />
de Rio Pardo, Júri, Maço: 02, Processo Crime, n.º 47, 1859.<br />
31 A intimação foi assim respondia pelo Coronel João Luis Gomes: Acho-me doente de um pé desde que cheguei a<br />
este lugar [Fazenda das Ouveiras] e sem poder montar a cavalo, por isso não compareço no dia 21 do corrente como<br />
quer o senhor tenente coronel reformado, que, por má conduta habitual e o mais que consta do Conselho de Guerra<br />
a que respondeu não lhe tremeu a mão quando assinou um mandado para citar um coronel que sempre trilhou a<br />
estrada da honra a quem ora trata de criminoso. [...] E que talvez saiba de alguns bons bocados passados na Guarda<br />
Nacional do Rio Pardo, quando efetivamente exerceu o lugar de chefe do Estado Maior. Por isso senhor tenente<br />
coronel, se vossa senhoria tivesse dignidade, sendo nós como somos adversários há muito tempo, não deveria de<br />
aceitar ser juiz em pendência que comigo se movesse; mas cá, deste meu retiro das Ouveiras, eu bem calculei que só<br />
Vossa Senhoria no meu Rio Pardo poderia querer ser juiz no tal processo Juvêncio. Lembre-se, porém, que este processo<br />
não há de ser tão gostoso como foi o da dispensa do serviço de destacamento do filho do finado José Ferreira<br />
da Costa Terra. Fazenda das Ouveiras, 19 de maio de 1859. Coronel João Luis Gomes. Resposta à intimação expedida<br />
pelo juiz municipal suplente, o tenente coronel José Manoel de Assunção Viana ao coronel João Luis Gomes da<br />
Silva, em 18/05/1859. APERS – Comarca de Rio Pardo, Júri, Maço: 02, Processo Crime, n.º 47, 1859. fls. 26 e 27.<br />
291
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
que se inteirou dos fatos após ser noticiado por várias pessoas da localidade, todavia,<br />
concordava com o queixoso na medida em que se a ele testemunha fosse dirigida<br />
ofensa semelhante também se sentiria injuriado. O último a depor foi o tabelião do<br />
judicial e de notas Francisco de Paula Liz, homem de 44 anos e única testemunha<br />
ocular do desentendimento. Aparentemente bem relacionados, o tabelião e o coronel<br />
haviam se encontrado logo cedo na residência do primeiro, de onde seguiram<br />
para igreja pouco antes das nove horas. Contudo, mesmo com “mágoa”, revelou<br />
“não poder deixar de confessar” que as expressões utilizadas pelo amigo denotaram<br />
“injúrias graves”³². O processo correu a revelia do coronel João Luis Gomes e, ao<br />
que parece, a economia de palavras das testemunhas refletiu-se sobre o seu desfecho.<br />
É verdade que o embate no âmbito formal da justiça se polarizou entre o<br />
coronel e o juiz. Porém, um “dossiê” montado pelo bacharel e seus correligionários<br />
não só ilustra que àqueles pólos conflitantes sujeitos outros estavam associados,<br />
como, também, revela a manobra política utilizada para comprovar os traços temperamentais<br />
e os abusos praticados por João Luis Gomes, inclusive contra alguns de<br />
seus pares na pirâmide social. Conforme observou o juiz na queixa crime, constava<br />
no currículo do “odioso homem que tem por norma habitual e costume insultar<br />
impulsivamente a quase todos”, a forma desrespeitosa com que tratou “os restos<br />
mortais do infeliz Major João Manoel de Lima e Silva, então general dos dissidentes,<br />
durante a desgraçada revolução que assolou esta leal e valorosa província”. Contando<br />
com o auxilio de Andrade Neves, então comandante do Estado Maior da Guarda<br />
Nacional de Rio Pardo e Encruzilhada, Rangel teve acesso a cópia da ordem do dia<br />
na qual constava o relaxamento da prisão do à época capitão João Luis Gomes 33 .<br />
Mas Andrade Neves fez mais. Demonstrando efetiva solidariedade política a<br />
Rangel “rogou” ao Tenente-Coronel Manoel Assumpção Vianna para que o militar<br />
dissesse “quem foi o oficial que foi à Vila e desmanchou o túmulo ou catacumba do<br />
falecido Major João Manuel de Lima e Silva, então general dos rebeldes”; solicitou<br />
ainda que fosse informado por escrito sobre a “maneira por que foi desmancha-<br />
32 APERS – Comarca de Rio Pardo, Júri, Maço: 02, Processo Crime, n.º 47, 1859. fls. 29 e 30.<br />
33 “Exmo. Senhor Barão de Caxias, presidente e comandante em chefe do Exército, [...] manda publicar para que<br />
se cumpra o seguinte: Seja relaxado da prisão em que se acha o Sr. Capitão do 11º Corpo de Cavalaria de Guardas<br />
Nacionais João Luis Gomes da Silva e repreendido pela falta de subordinação com que se houve para com seu Major,<br />
como se acha provado no conselho de investigação que se procedeu sobre a parte dada pelo senhor dito Major.<br />
Sua Exa. está convencida de que a simples cerceação [sic] que tem sofrido o dito capitão Gomes da Silva será mais<br />
do que suficiente para por termo as suas maneiras pouco atenciosas para com seus superiores”. Quartel General<br />
do Comando em chefe do Exército, nesta leal cidade de Porto Alegre. 30 de dezembro de 1842. Ordem do dia n.º<br />
11.Documento anexo à queixa crime. APERS – Comarca de Rio Pardo, Júri, Maço: 02, Processo Crime, n.º 47, 1859.<br />
34 Carta de José Joaquim e Andrade Neves a Manoel Assumpção Vianna. Rio Pardo, 8 de fevereiro de 1859. Documento<br />
anexo à queixa crime. APERS – Comarca de Rio Pardo, Júri, Maço: 02, Processo Crime, n.º 47, 1859.<br />
292
do”. Finalizou o pedido reiterando ao seu sectário para que não se negasse de dizer<br />
a verdade, assim como “considerar-me a apresentar a resposta disto quando seja<br />
preciso” 34 . Andrade Neves obteve a reposta de Manoel Vianna tão logo às suas<br />
mãos chegou a correspondência. Sem titubear e “com estima e particular amizade”<br />
considerou que em 1841, quando marchava com 2º Batalhão de Caçadores de<br />
Linha, encontrou uma “força de Cavalaria a pé” na Vila de Caçapava; não ocasião,<br />
“disseram-lhe que iam arrasar o Túmulo do General dos Farrapos o Major João<br />
Manoel de Lima e Silva debaixo do comando do capitão então seu ajudante de nome<br />
João Luis Gomes”. 35<br />
Não obstante o desejo de oferecer outras notícias sobre os meandros do atentado<br />
praticado contra os restos mortais do farroupilha João Manoel de Lima e Silva,<br />
acredito não ser o caso de fazê-lo neste momento. Outrossim, parece claro que independentemente<br />
do lado em que “rebeldes” ou “valorosos legalistas” estavam, alguns<br />
códigos de conduta se impunham aos contemporâneos daquela sociedade. O episódio<br />
ficou registrado na memória regional, pois, como lembrou Juvêncio Rangel,<br />
representou um “feito estranho e horroroso nos anais da história das nações cultas”.<br />
Quanto aos documentos propriamente ditos, José Joaquim de Andrade Neves não<br />
deixou de observar ao juiz Rangel que o mesmo poderia “fazer o uso que desta quiser<br />
fazer”. De forma astuta, também informou seu sectário que possuía mais duas<br />
cartas com o mesmo teor emitidas por “dois cidadãos distintos, sendo um General<br />
que me escreveu”. Blefe ou não, o futuro Barão do Triunfo registrou que não as<br />
mandaria por cópia em virtude de não tê-las em “[seu] poder nesta Vila”, contudo,<br />
“para o que convier asseguro a VSa serem do mesmo teor do que diz esta” 36 .<br />
Circunstancialmente em desvantagem, o coronel João Luis Gomes acabou<br />
condenado “a quatro meses e meio de prisão e multa correspondente a metade do<br />
tempo de reclusão” 37 . Mas valendo-se do direito de recurso, apelou da sentença ao<br />
juiz de direito da Comarca de Rio Pardo, o Dr. Antônio Cerqueira Lima Júnior. Sem<br />
poder, contudo, contar diretamente com os “préstimos” do recém conhecido magistrado,<br />
visto ter se afastado temporariamente do cargo sob a justificativa de “atacar<br />
35 Carta de Manoel Assumpção Vianna a José Joaquim e Andrade Neves. Rio Pardo, sem data. Documento anexo à<br />
queixa crime. APERS – Comarca de Rio Pardo, Júri, Maço: 02, Processo Crime, n.º 47, 1859<br />
36 Correspondência emitida por José Joaquim e Andrade Neves a Juvêncio Rangel. Rio Pardo, 28/04/1859. Documento<br />
anexo à queixa crime. APERS – Comarca de Rio Pardo, Júri, Maço: 02, Processo Crime, n.º 47, 1859<br />
37 Sentença pronunciada pelo juiz municipal suplente Joaquim Manoel de Assumpção Vianna, 23/05/1859. APERS<br />
– Comarca de Rio Pardo, Júri, Maço: 02, Processo Crime, n.º 47, 1859, fl. 30.<br />
38 Carta emitida por João Luis Gomes a Pedro Rodrigues Chaves. Rio Pardo, 23 de maio de 1859. AINSPRP -Borrador<br />
de correspondências de João Luis Gomes.<br />
293
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
a moléstia que lhe acometia o peito” 38 , João Luis Gomes apresentou o recurso ao<br />
segundo suplente Dr. Júlio Armando de Castro, então juiz municipal de Cachoeira.<br />
Ao poucos, o embate travado na justiça foi oferecendo novas pistas sobre as<br />
redes de relações que aqueles sujeitos entretinham. Juvêncio Rangel era “amigo íntimo”<br />
de Armando de Castro, havia sido inclusive “testemunha” de seu casamento.<br />
O elo de amizade entre aqueles bacharéis foi observado por João Luis Gomes como<br />
um impedimento legal para que o juiz de Cachoeira apreciasse sua apelação. 39 Nestes<br />
termos, o julgamento ficou aos encargos de João Thomaz de Menezes, substituto<br />
imediato do compadre de Rangel.<br />
Até onde foi possível saber, não há elementos suficientes para deduzir que<br />
o juiz de direito suplente da comarca de Rio Pardo tivesse algum tipo de laço mais<br />
sólido (parental ou não) com o coronel João Luis Gomes. Nesse sentido, também<br />
fica a dúvida quanto ao tipo de relação que Menezes e Rangel poderiam ter e se é<br />
que tiveram alguma. De qualquer forma, o fato é que, apesar do esforço mobilizado<br />
em torno da condenação de João Luis Gomes, a sentença foi reformada no dia 25<br />
de junho de 1859. Thomaz de Menezes considerou que o processo não obedeceu<br />
às aplicações ordinárias da lei. No seu entender, a circunstância exigia que antes da<br />
efetiva pronúncia criminal, a parte acusatória “pedisse explicações” ao acusado “em<br />
juízo ou fora dele, como exige o artigo 240” do Código Criminal do Império. 40 Não<br />
tendo Rangel “satisfeito a este preceito da lei para que se pudesse verificar a existência<br />
do delito”, o juiz observou que a “causa” correu a revelia de Gomes, “ficando ele<br />
inibido de defender-se no juízo de primeira instância”. Além das questões de ordem<br />
prática que a lei impunha, o “meritíssimo julgador” sublinhou a subjetividade inerente<br />
aos termos “insolente”, “insolência” e “orgulho”. Segundo o juiz, as diversas<br />
acepções, “umas inofensivas e outras injuriosas”, impunham e ao mesmo tempo<br />
reforçavam a caráter duvidoso do sentido que foram empregados nos documentos.<br />
Diante disso, considerou infundada a acusação e a respectiva sentença 41 .<br />
É elementar a assertiva de que o historiador não pode se deixar contagiar pelo<br />
conteúdo da informação instantaneamente oferecida pela fonte. Todavia, indepen-<br />
39 Auto de protesto apresentado pelo coronel João Luis Gomes da Silva, 11/06/1859. APERS – Comarca de Rio<br />
Pardo, Júri, Maço: 02, Processo Crime, n.º 47, 1859, fl. 36.<br />
40 O coronel João Luis Gomes havia sido pronunciado pelo crime de injúrias verbais e a ele imputado “o grau máximo<br />
das penas do art. 237 § 2º do Código Crime, combinado com art. 238 do mesmo código”.<br />
41 Auto de julgamento de segunda instância. Cachoeira, 27/06/1959. APERS – Comarca de Rio Pardo, Júri, Maço:<br />
02, Processo Crime, n.º 47, 1859. fls 56-57.<br />
42 SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Língua Portuguesa. Tomo 2, Lisboa, Tipografia Lacerdina, 1813, p. 173<br />
294
dentemente do acesso às pistas pontuais sobre as motivações que levaram Thomaz<br />
de Menezes a absolver João Luis Gomes, aparentemente não foi a quebra da rotina<br />
jurídica exigida pelo Código de Processo Crime, tampouco a ambigüidade dos termos<br />
utilizados pelo coronel os elementos determinantes no julgamento do magistrado<br />
de Cachoeira. Resta bastante claro que o termo “insolente” utilizado pelo coronel<br />
torna-se sinônimo acusatório de um suposto “crime de grande escândalo” 42 público<br />
a que Rangel havia se prestado. Também não resta incerteza quanto ao qualificativo<br />
utilizado para contrapor pessoalmente os despachos efetuados por Rangel. Ao afirmar<br />
que o juiz presidente do Conselho de Recursos não sabia “respeitar a honra de<br />
seus semelhantes, caindo no mesmo vício de seus algozes e irrogando ao apelante<br />
as mais atrozes injúrias”, fica claro que o coronel interpretou o ato de seu desafeto<br />
como uma “insolência” no sentido de um “desaforo, atrevimento, arrogância, arrojamento<br />
extraordinário” 43 ; no seu entendimento, algo que feriu o “orgulho” 44 de um<br />
homem de alma elevada que se tinha como “nobre”, “pessoa egrégia, condecorada”<br />
e que deveria ser tratada “com toda a urbanidade”.<br />
O caso foi encerrado no âmbito da justiça e o senhor da Fazenda das Ouveiras<br />
demonstrou sua capacidade de firmar oposição ao bando político liderado por<br />
Andrade Neves. Contudo, não seria muito difícil supor que aqueles homens ainda<br />
iriam protagonizar novos reboliços na Rio Pardo dos tempos de Pedro II, ainda mais<br />
se considerarmos que o episódio se desenvolveu no rastro de tensões animadas por<br />
acirradas disputas em torno do controle político local. Essas possibilidades de fato<br />
viraram realidade, pois, como vimos, a correspondência do Tenente Coronel Pinto<br />
Porto, assim como a prisão de Francisco Cardoso e os embates entre João Luis<br />
Gomes e Juvêncio Rangel são alguns dos eventos que nos ajudam a refletir sobre<br />
aqueles jogos de disputas políticas locais e ainda se encontram a espera de análises<br />
que ampliem o microscópio de observação para além do recorrente estudo das elites<br />
como principais agenciadores das tramas do social. Em proximidade com homens<br />
de elite, os populares em geral (livres ou cativos) também eram agentes reais de<br />
histórias aparentemente fragmentadas, porém constituídas a partir de expectativas<br />
levadas a efeito na senda de uma deferência instrumental. Portanto, seus comportamentos<br />
e formas de interação social também denotavam protagonismo político.<br />
43 SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Língua Portuguesa... p. 174.<br />
44 “Orgulho: ufania; soberba, elevação da alma, nobre ou repreensível segundo os motivos [...]”. SILVA, Antonio<br />
de Moraes. Diccionario da Língua Portuguesa... p. 369.<br />
295
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
296<br />
PALAVRAS FINAIS<br />
Em tempos que a historiografia volta-se cada vez mais para as dimensões<br />
políticas das tramas do social, parece possível falarmos numa história social das culturas<br />
políticas decididamente voltada para o enfoque dos comportamentos, sentidos<br />
e ações dos atores sociais. Focada na idéia de que por trás da ação social existem<br />
repertórios culturais com os quais, e em relação aos quais, os atores se movem, a<br />
recente historiografia tem demonstrado que as ações individuais e/ou coletivas não<br />
se situam em nível superficial, mas que possuem um determinado sentido anterior,<br />
um sentido que é adquirido e ressignificado de forma gradual pelos atores sociais.<br />
Sob essa perspectiva, amplia-se o espectro de análise em relação ao comportamento<br />
individual, aos mecanismos de consciência e aos significados atribuídos pelo atores<br />
em relação a uma dada realidade e forma de ação. Em outras palavras, significa dizer<br />
que toda a ação individual pode ser considerada uma ação social e política ao mesmo<br />
tempo, pois se origina de uma acumulação de conhecimentos e de interações concretas<br />
entre os atores implicados numa dada configuração relacional.<br />
De um modo geral, poderíamos considerar que não faltam motivos para que o<br />
social seja interrogado sob novas lentes. Do ponto de vista da história social, destaca-se<br />
o interesse cada vez maior pelos grupos e suas dinâmicas sociais; no amplo espectro<br />
de abordagem do social não interessa apenas quem são os indivíduos (se senhores,<br />
populares, comerciantes, militares, escravos ou trabalhadores em geral), mas o que<br />
esses indivíduos fazem, suas práticas sociais (com quem casam, com quem comerciam,<br />
com quem se aliam ou quem se enfrentam). Convertida em história do poder e suas<br />
práticas, a nova historiografia da política tem buscado indagar com maior precisão que<br />
tipos de poderes existem numa dada formação social, sobre suas bases legitimadoras,<br />
suas formas de exercício, linguagens e conteúdos convertidos em ação política 45 .<br />
Assim sendo, perseguir respostas em torno do processo de formação de<br />
clientelas, da prática política paternalista de integração e de dominação exige que o<br />
pesquisador leve em conta os aspectos concernentes às interações sociais efetivas<br />
que ligam sujeitos com recurso (materiais e imateriais) desiguais. Quando nos deparamos<br />
com um emaranhado de ligações entre sujeitos imersos em relações de poder<br />
como as que fundamentam as redes de ordem clientelar e paternalistas, nos damos<br />
conta de que seus comportamentos não podem ser considerados como decorrentes<br />
de um simples “agregado de relações sociais”. Talvez, mais proveitoso possa ser buscar<br />
compreendê-las a partir de uma concepção de rede de relações sociais que seja<br />
capaz de privilegiar as interações contínuas das diferentes estratégias individuais 46 .<br />
45 PILAR, Ponce Leiva; ARRIGO, Amadori. Historiografía sobre élites en la América Hispana: 1992-2005. Chronica<br />
Nova. n.º32. Granada, 2006.<br />
46 BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro/RJ: Contra Capa Livraria, 2000.<br />
p. 170.
Nesse sentido, a ênfase de observação recai sobre os vínculos (temporários ou duradores)<br />
que se estabelecem entre os indivíduos suas formas de ação social baseadas<br />
nesses vínculos.<br />
Assim pensadas, as relações interpessoais passam a ser interpretadas como<br />
um espaço de interação política que articula diferentes esferas da sociabilidade. Todavia,<br />
as unidades sociais (sujeitos, famílias ou facções) não podem ser consideradas<br />
de modo isolado, como links relacionados às normas que definem um conjunto<br />
de práticas e expectativas recíprocas, mas como um espaço de interação que liga o<br />
poder, a cooperação e o conflito em uma determinada configuração social 47 . Talvez<br />
não seja demasiado considerar que a análise das relações interpessoais pode nos<br />
oferecer possibilidades para descrevermos os comportamentos e ações sociais de<br />
sujeitos singulares diante das limitações de uma realidade normativa intrínseca à<br />
sociedade (ou sistema social) estudada, pois, como observou Giovanni Levi, “toda<br />
ação social é vista como resultado de uma constante negociação, manipulação, escolhas<br />
e decisões do indivíduo, diante de uma realidade normativa que, embora difusa,<br />
não obstante oferece muitas possibilidades de interpretações e liberdade pessoais”.<br />
Portanto, a questão conforme Levi, passa a ser a de “como definir as margens – por<br />
mais estreitas que possam ser – da liberdade garantida a um indivíduo pelas brechas<br />
e contradições dos sistemas normativos” 48 .<br />
Definir empiricamente essas interações, assim como as margens de liberdade<br />
e de ação dos atores sociais não resta tarefa simples. Ainda mais se tratando de formas<br />
relacionais configuradas entre sujeitos que viveram num tempo relativamente<br />
distante do nosso e que infelizmente não temos como entrevistá-los como fazem os<br />
antropólogos ou cientistas políticos. Enquanto historiadores nos restam apenas possibilidades<br />
de acessar fragmentos, restos, vestígios instantâneos daquelas interações<br />
sociais. Giovanni Levi já observou que “los hombres son todos iguales y, en teoría,<br />
todos tienen la razón, aunque producen comportamientos y actuaciones distintas,<br />
dependiendo de la cantidad de información que poseen” 49 . Nesse sentido, para além<br />
dos limites impostos pela distância temporal parece ser a utilização criativa dos fragmentos<br />
que nos chegam através de papéis envelhecidos depositados em diferentes<br />
fundos documentais as ferramentas que poderão nos auxiliar a detectar não apenas<br />
como operavam as interconexões sociais, senão, como essas se convertiam em vínculos,<br />
informações, recursos através do quais se efetivava distintas racionalidades.<br />
47 MOUTOUKIAS, Z; DEDIEU, J. P.. Introduction. In: CASTELLANO, J. L.; DEDIEU, J. P. Réseaux, familles et<br />
pouvoirs dans le monde ibérique à la fin de l’Ancien Régime. Paris: CNRS Éditions. 2002. p. 09.<br />
48 LEVI, Giovanni. Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter. A escrita da História: novas perspectivas. Trad. Magda<br />
Lopes. São Paulo: UNESP. 1992. p. 135<br />
49 LEVI, Giovanni. Antropologia y microhistoria... In: Revista Manuscrits, Barcelona nº 1, Enero,1993, p.24.<br />
297
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Portanto, podemos concluir que no campo de reflexão no qual se encontra<br />
o debate sobre redes sociais e sua aplicabilidade na pesquisa histórica, os vínculos<br />
sociais situam-se como elementos fundamentais da análise. Pois o que interessa ao<br />
pesquisador são as formas como eles operam na constituição de um corpo político,<br />
nas redes de poder e no modo como são transmitidos e/ou redistribuídos recursos,<br />
serviços e saberes; em fim, como essas articulações colocam os atores sociais em<br />
dinâmicas e processos históricos.<br />
Assim observadas, as sociedades do passado poderão ser compreendidas de<br />
um modo mais próximo da realidade vivida. Estudar os atores sociais a partir de uma<br />
perspectiva mais abrangente e dedicada a compreender os diálogos sociais efetivos,<br />
exige que se leve em conta a globalidade dos elementos que constituem os atores<br />
sociais e que sobre suas relações convergem: os contextos e os processos sociais.<br />
Conforme observou José Maria Imízcoz, será deste modo que a história de homens<br />
e mulheres como atores históricos poderá ser uma historia social da política, das instituições,<br />
da economia, da sociedade e da cultura. Em síntese, sob o ponto da vista<br />
dos estudos históricos, os modelos de análise focados nos atores sociais e em suas<br />
redes deve atentar para tudo o que os historiadores e cientistas sociais tem aprendido<br />
com o tempo:<br />
la relación entre acção racional y habitus, la relacipon entre decisión<br />
individual y sistemas normativos; la relacipon entre redes de indivíduos<br />
e instituiciones politicas y sociales; la relación entre las realidades<br />
económicas materiales y las visiones de los actores sociales; las experiencias<br />
productivas, laborales, societarias y la generación de formas<br />
de conciencia, de ideología y de acción social y política; la historia diferencial<br />
de grupos con dinámicas y endogamias diferentes que puedem<br />
convivir tangencialmente, sin encontrarse apenas, hasta que se intersectan<br />
y entran em conflicto abierto o en procesos revolucionarios50 .<br />
Certamente não seria nos espaço deste texto o momento para oferecermos<br />
resultados finais de uma pesquisa em andamento. Antes, nossa expectativa é a de<br />
apenas abrir espaço para o debate sobre as potencialidades que o recurso analítico<br />
das redes pode oferecer para a análise dos vínculos sociais entre os quais entram<br />
os de amizade e camaradagem, assim como sobre seus desdobramentos no campo<br />
das disputas políticas locais. Por meio de correspondências e de processos criminais<br />
buscamos oferecer indícios sobre eventos que envolveram sujeitos com diferentes<br />
gradações sociais. Com essa perspectiva tentamos oferecer vestígios de relações de<br />
50 IMíZCOZ, José Maria. Introducción: Actores sociales y redes de relaciones: reflexiones para una historia global.<br />
________(dir.). Redes familiares y patronazgo. Aproximación al entramado social del País Vasco y Navarra en el Antiguo Régimen<br />
(siglos XV-XIX). Bilbao: Universidad del País Vasco, 2001, p. 29.<br />
298
poder imersas em relações pessoais nas quais se negociavam lealdades por proteção<br />
social, como a que envolveu João Luis Gomes da Silva e seu camarada Francisco<br />
Cardoso; sobre os intercâmbios recíprocos entre indivíduos com recursos e necessidades<br />
similares dentro de um contexto de sociabilidade e de confiança, como foi<br />
o caso do apoio oferecido por Joaquim José de Brito, Patrício Falkenback e José<br />
Joaquim de Andrade Neves à causa de Juvêncio Rangel. Na senda dessas dinâmicas<br />
relacionais também pensamos ter consegui desvelar alguns fragmentos do jogo de<br />
poder e influência que atravessava e, ao mesmo tempo, interconectava as facções<br />
políticas locais no campo das disputas por facilidades de acesso aos intercâmbios de<br />
serviços entre poderosos e seus dependentes.<br />
299
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
300<br />
SiglaS<br />
AHRS - Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul<br />
APERS - Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul<br />
Acervo da Irmandade de Nosso Senhor dos Passos – Rio Pardo<br />
C.Cav. - Corpo de Cavalaria<br />
GN - Guarda Nacional<br />
FONTES PESQUISADAS<br />
Correspondência 22º C.Cav. maço n.º 97. Guarda Nacional - Rio Pardo – AHRS<br />
Processo Crime n.º 4704, maço 94, ano 1860. Cível e Crime, Comarca de Rio Pardo<br />
– APERS.<br />
Processo Crime, n.º 47, maço 02, ano 1859. Júri, Comarca de Rio Pardo - – APERS.<br />
Borrador de correspondências de João Luis Gomes (sem especificação) – AINS-<br />
PRP<br />
REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro/RJ:<br />
Contra Capa Livraria, 2000.<br />
BERTRAND. Michel. Familles, fidèles et réseaux: les relations sociales dans une<br />
société d’Acien Régime. In: CASTELLANO, Juan Luis; DEUDIEU, Jean-Pierre.<br />
Réseaux, familles et pouviers dans le monde ibérique. Paris: CNRS Éditions, 2002.<br />
BURKE, Peter. História e Teoria Social. São Paulo: UNESP, 2002.<br />
CASTELLANO, J. L.; DEDIEU, J. P. Réseaux, familles et pouvoirs dans le monde ibérique<br />
à la fin de l’Ancien Régime. Paris: CNRS Éditions, 2002.<br />
COMISSOLI, Adriano. Os ‘homens bons’ e a Câmara Municipal de Porto Alegre (1767-<br />
1808). Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2008.<br />
DEUDIEU, Jean-Pierre; MOUTOUKIAS, Zacarias. Approche de la théorie des
éseaux sociaux: intoductcion. In: CASTELLANO, Juan Luis; DEUDIEU, Jean-<br />
Pierre. Réseaux, familles et pouviers dans le monde ibérique. Paris: CNRS Éditions. 2002<br />
FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento. Fortuna e família no cotidiano colonial.<br />
Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998.<br />
FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária<br />
na Fronteira Sul do Brasil (1825-1865). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio<br />
de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais: Tese de Doutorado, Programa<br />
de Pós-Graduação em História Social, 2007.<br />
FERTIG, André Atila. Clientelismo político em tempos belicoso : a Guarda Nacional da Provincia<br />
do Rio Grande do Sul na defesa do Estado Imperial centralizado (1850-1873). Porto<br />
Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Filosofia e Ciências<br />
Humanas. Programa de Pós-Graduação em História, Tese de Doutorado. 2003<br />
FRAGOSO, João. A nobreza vive em bandos: a economia das melhores famílias da terra<br />
do Rio de Janeiro, século XVII. Topoi. Rio de Janeiro: n.º 15, pp.11-35, jul. dez. 2003.<br />
_______.Afogando em Nomes: temas e experiências na história econômica. Topói.<br />
Rio de Janeiro: UFRJ, n. 5. 2002<br />
GIL, Tiago Luis. Os infiéis transgressores: contrabando e sociedade nos limites imperiais (Rio<br />
Grande e Rio Pardo, 1760-1810). Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado, PPGHIS-<br />
UFRJ. 2003.<br />
GRAHAM, Richard. Clientelismo e Política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro:<br />
UFRJ, 1997.<br />
GRIBAUDI, Maurizio. Les descontinuités du social: un modéle configurationnel. In:<br />
LEPETIT, Bernard (direction). Les formes de l’expérience: une autre histoire sociale. Paris,<br />
Éditions Albin Michel, 1995.p. 192.<br />
GUERRA, François Xavier. México: Del Antiguo Régimen a la Revolución. Tomo I.<br />
México: Fondo de Cultura Económica, 1988.<br />
HEMEISTER, Marta Daison. O continente do Rio Grande de São Pedro: homens, suas redes<br />
de relações e suas mercadorias semoventes. (c. 1727-c.1763). Rio de Janeiro: Dissertação de<br />
Mestrado, PPGHIS-UFRJ, 2002.<br />
_______. Para dar calor à nova povoação: estudo sobre estratégias sociais e familiares a partir dos<br />
registros batismais da vila do Rio Grande (1738-1763). Tese de Doutorado. Programa de<br />
Pós-graduação em História Social da UFRJ. Rio de Janeiro, 2006.<br />
IMíZCOZ, José Maria. Actores sociales y redes de relaciones: reflexiones para una historia<br />
global. In: Revista da Faculdade de Letras e História. Porto: III Série, Vol. 05, 2004.<br />
_______. Communauté, réseau social, élites. L’armature sociale de l’Ancien Régime.<br />
In: CASTELLANO, J. L.; DEDIEU, J. P. Réseaux, familles et pouvoirs dans le monde ibérique<br />
à la fin de l’Ancien Régime. Paris: CNRS Éditions, 2002.<br />
301
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
________. Introducción: Actores sociales y redes de relaciones: reflexiones para una<br />
historia global. ________(dir.). Redes familiares y patronazgo. Aproximación al entramado<br />
social del País Vasco y Navarra en el Antiguo Régimen (siglos XV-XIX). Bilbao: Universidad<br />
del País Vasco, 2001.<br />
KÜHN, Fábio. Gente da Fronteira: família, sociedade e poder no Sul da América Portuguesa<br />
– Século XVIII. Tese Doutorado em História - Programa de Pós-Graduação em<br />
História da Universidade Federal Fluminense, Niterói. 2006.<br />
LEVI, Giovanni. Antropologia y microhistoria... In: Revista Manuscrits, Barcelona nº<br />
1, Enero,1993.<br />
____________. Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter. A escrita da História: novas<br />
perspectivas. Trad. Magda Lopes. São Paulo: UNESP. 1992.<br />
MACHADO, Roberto. Por uma genealogia do poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica<br />
do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1981.<br />
MOUTOUKIAS, Z; DEDIEU, J. P.. Introduction. In: CASTELLANO, J. L.; DE-<br />
DIEU, J. P. Réseaux, familles et pouvoirs dans le monde ibérique à la fin de l’Ancien Régime.<br />
Paris: CNRS Éditions. 2002.<br />
MUAZE, Maria de Aguiar Ferreira. O Império do retrato: família, riqueza e representação<br />
social no Brasil oitocentista. Tese Doutorado em História - Programa de Pós-Graduação<br />
em História da Universidade Federal Fluminense, Niterói. 2006.<br />
PILAR, Ponce Leiva; ARRIGO, Amadori. Historiografía sobre élites en la América<br />
Hispana: 1992-2005. Chronica Nova. n.º32. Granada, 2006.<br />
REVEL, Jacques. A história ao rés-do-chão: prefácio: In: LEVI, Giovanni. A Herança<br />
Imaterial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.<br />
RIBEIRO, José Iran. Quando o serviço os chamava: os milicianos e os guardas nacionais gaúchos<br />
(1825-1845). Santa Maria. E. UFSM. 2005.<br />
SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Língua Portuguesa. Tomo 1, Lisboa, Tipografia<br />
Lacerdina, 1813.<br />
______. Diccionario da Língua Portuguesa. Tomo 2, Lisboa, Tipografia Lacerdina, 1813.<br />
THOMPSON, E.P. Costumes em Comum. Estudos sobre a Cultura Popular Tradicional. São<br />
Paulo: Companhia das Letras, 2005.<br />
VARGAS, Jonas Moreira. Entre a paróquia e a Corte: Uma análise da elite política do Rio<br />
Grande do Sul (1868-1889). Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul.<br />
Dissertação de Mestrado, PPGH, 2007.<br />
302
do Provedor à rede de soCiAbilidAde<br />
Paula Andrea Dombkowitsch Arpini<br />
Resumo: O artigo busca analisar algumas redes de sociabilidade de Inácio Osório Vieira, que<br />
foi provedor da Capitania do Rio Grande de São Pedro, subalterna do Rio de Janeiro, durante mais<br />
de 30 anos, no período que se entende aproximadamente de 1765 até 1799. O recorte temporal da<br />
pesquisa será de 1760, com a chegada de Inácio Osório a Capitania de São Pedro, até 1798, com o fim<br />
definitivo da Provedoria da Fazenda Real. Mediante a trajetória individual de Inácio Osório Vieira, buscaremos<br />
evidenciar como as práticas individuais deste oficial régio podem revelar aspectos importantes<br />
da trama social, contribuindo para entendermos como ele foi tecendo suas relações sociais, em constantes<br />
negociações com as elites locais e seus subalternos para viabilizar sua administração enquanto<br />
provedor da Fazenda Real.<br />
Palavras-chave: Provedor – Espaços de Interação – Redes de Sociabilidade<br />
INTRODUçãO<br />
O<br />
presente artigo tem por objetivo contribuir com algumas<br />
considerações sobre as redes de sociabilidade existentes na<br />
configuração do Império Ultramarino Português. O trabalho versa<br />
especialmente sobre o provedor Inácio Osório Vieira e as redes de sociabilidade nas<br />
quais esteve envolvido, enfocando suas relações de compadrio e sua participação das<br />
Confrarias Religiosas.<br />
A escolha de Inácio Osório se fez pelos atributos que definiam esse personagem,<br />
tais como as suas relações de poder, seus compadrios, seu status de provedor,<br />
além da reflexão que podemos fazer acerca do mando da Coroa no ultramar, as<br />
práticas da monarquia corporativa, como a concessão de dons e mercês e as tensões<br />
entre o público e o privado, típicas de sociedades de Antigo Regime. Sua trajetória,<br />
só interessa na medida em que foi provedor da fazenda, pois as opções de Osório<br />
estavam disponíveis a outros sujeitos desde que ocupassem seu cargo.<br />
O PROVEDOR<br />
Natural da cidade de Lamego, em Portugal, Inácio Osório Vieira era um homem<br />
de origem nobre que veio para Brasil, ao que tudo indica, com sua mãe, suas<br />
303
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
duas irmãs e um irmão, após a morte de seu pai, na tentativa de obter algum meio de<br />
sobrevivência. Ao vir para a América, Inácio Osório detinha consigo a possibilidade<br />
de alargamento de seu cabedal material. Numa percepção de mundo de sociedade<br />
hierarquizada Osório veio buscar meios para sobreviver mais conducentes “ao sangue<br />
de seus progenitores”¹.<br />
Já na colônia, Osório consegue ocupar alguns cargos em Santo Antonio de Sá<br />
no Rio de Janeiro² e na Ilha do Desterro de Santa Catarina³. Vem então para o Rio<br />
Grande de São Pedro onde se estabelece como Juiz de órfãos4 , Escrivão da Câmara5 e, posteriormente, provedor da Fazenda Real. 6<br />
órgão administrativo muito importante, a provedoria7 proporcionava inúmeros<br />
privilégios8 , bem como detinha uma determinada autonomia, podendo recorrer,<br />
em suas decisões, diretamente ao Vice-rei do Brasil. Segundo Cunha9 , o atributo<br />
central da função de um provedor “era em boa medida relacionada com sua posição<br />
econômica privilegiada e o crédito que gozava entre os outros homens de negócio”.<br />
Desta maneira, o cargo de provedor da Fazenda era muito valorizado, tanto devido<br />
às honras e liberdades de que dispunha, quanto pelo status social que proporcionava.<br />
A imagem de Inácio Osório como Provedor da Real Fazenda é a de um funcionário<br />
cumpridor e atento às determinações régias, dedicado, zeloso e honesto.<br />
No momento em que defendia os interesses da Coroa, Osório defendia, portanto,<br />
¹ AHU- Rio de Janeiro, Cx 67, doc. 15.784, Requerimento 14 de Abril de 1752.<br />
² AHRS Códice 1244, p. 121r-121v.<br />
³ AHU, Rio de Janeiro Caixa 58 doc. 13573. Requerimento, 15 de julho de 1748.<br />
4 Carta do ouvidor da Comarca Duarte de Almeida Sampaio, em que faz referência ao Juiz de órfãos Inácio Osório<br />
Vieira. ANRJ. Fundo Vice-Reinado. caixa 749, pct. 03, fl.41-52. Material fornecido pelo meu orientador professor<br />
Fábio Kühn.<br />
5 Registro de uma Provisão. AHRS. Códice F1243, p. 36, 36v, 37.<br />
6 AHPAMV. Códice 1.26, p. 60- 61v.<br />
7 A Provedoria da Fazenda Real do Rio Grande de São Pedro foi criada em 1748, juntamente com as Provedorias<br />
da Colônia do Sacramento e Santa Catarina. Um dos órgãos que viabilizaram o mando português na América foi<br />
o responsável por tudo que dissesse respeito aos contratos e rendas reais, como pagamento de côngruas e pelo<br />
recebimento do valor relativo à arrematação dos contratos de cobrança dos dízimos eclesiásticos. Além disso, ficava<br />
com um terço do valor recolhido pela Câmara do arrendamento do direito de exploração de seus bens e serviços<br />
públicos. Era responsável também pelo pagamento e munício de tropas, pagamento de clérigos, auxílio de povoadores<br />
e arrecadação de recursos para as despesas na manutenção do território. MIRANDA, Márcia Eckert. Continente<br />
do Rio Grande de São Pedro: a administração pública no período colonial. Porto Alegre: Assembléia Legislativa do Estado do<br />
Rio Grande do Sul. Ministério Público do Estado do RS/ CORAG, 2000, p. 89.<br />
8 Privilégios políticos, sociais ou mesmo mercantis. In: FRAGOSO, João. BICALHO, Maria Fernanda e GOUVêA,<br />
Maria de Fátima (Org.). O Antigo Regime nos Trópicos: A dinâmica imperial portuguesa. (Séculos XVI – XVIII). Civilização<br />
Brasileira: Rio de Janeiro, 2001, p. 44.<br />
9 CUNHA, Alexandre Mendes. Minas Gerais, da capitania à província: elites políticas e a administração fazendária em um espaço<br />
em transformação.Tese de Doutorado. UFF: Niterói, 2007, p. 263.<br />
304
o bem comum 10 . Na maioria dos documentos, além de expor seu zelo em relação<br />
ao Rei, coloca sua apurada “limpeza de mãos” 11 , denunciando os comércios ilícitos<br />
na Capitania, como o contrabando de mulas. Nesse sentido, era muito importante o<br />
“zelo” pelos assuntos régios, bem como o “desinteresse” diante de possíveis ambições<br />
particulares. O Rei, por ser justo, deve ter um bom vassalo, e este, por sua vez,<br />
deve responsabilidade com seu monarca.<br />
Esses dirigentes administrativos, como o provedor, obedeciam às determinações<br />
emanadas do poder central, e, ao mesmo tempo, teciam relações que recriavam<br />
o contexto político da prática cotidiana. Por isso, é necessário entendermos como<br />
funcionava essa monarquia corporativa e como essas redes sociais e políticas atravessavam<br />
variados espaços de interação.<br />
OS ESPAçOS DE INTERAçãO DA MONARQUIA<br />
CORPORATIVA<br />
Em uma monarquia corporativa como a do Antigo Regime era necessário que<br />
a Coroa tivesse capacidade de lidar e negociar com as elites coloniais, seja por distribuição<br />
de honrarias, títulos, concessão de privilégios ou mercês. Segundo Maria<br />
Fernanda Martins 12 essas estratégias de ação “não devem ser vistas como um projeto<br />
predeterminado, como um conjunto de ações coerentes e homogêneas por parte<br />
das elites”, mas sim como um movimento baseado em relações sociais em constante<br />
tensão. A concessão de mercês no ultramar - sistema de benesses – ou Economia de<br />
Serviços é uma prática comum que se estabelece a partir de redes de reciprocidade. A<br />
elite, então constituída por beneficiários do rei, monopolizava os principais cargos,<br />
em troca de serem bons súditos, ou vassalos. Nesse paradigma corporativista, o Rei é<br />
patrono e a sociedade é vista como um todo, onde as partes têm funções específicas<br />
e dependem umas das outras.<br />
10 A economia de bem comum pode ser entendida como um tipo de economia de serviços em que a elite monopolizava<br />
os principais cargos e ofícios. A partir do século XV, essa prática começou a ser transmitida no ultramar.<br />
A Coroa portuguesa concedia então postos administrativos ou militares, que proporcionavam além de ordenados,<br />
privilégios, isenções alfandegárias e honras. Essa prática de concessão de dons e mercês era muito comum na<br />
monarquia corporativa. FRAGOSO, João. A nobreza da República: nota sobre a origem da primeira elite senhorial do Rio de<br />
Janeiro (séculos XVI e XVII), Topi, número 1, Rio de Janeiro: 7Letras, 2000, pp. 94-101. FRAGOSO, 2001, pp. 43-50.<br />
11 AHRS. Códice F1244 , p.147.<br />
12 MARTINS, Maria Fernanda. Os tempos da Mudança: elites, poder e redes familiares no Brasil, séculos XVIII e<br />
XIX. In: FRAGOSO, João. CARVALHO de ALMEIDA, Carla Maria e SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de (org.).<br />
Conquistadores e Negociantes. : História de elites no Antigo Regime dos Trópicos. América Lusa, Séculos XVI a XVIII. Rio de<br />
Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 430.<br />
305
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
A intricada rede de cargos e jurisdições que viabilizavam a presença da<br />
autoridade régia, identificando o bom governo à aplicação da justiça,<br />
constituía-se numa extensa rede de clientela cujo patrono era o próprio<br />
rei, pessoalmente ou na figura de seus conselhos ou tribunais. [...]<br />
é a partir dessa relação que se pode caracterizar a lógica comum que<br />
informava as estratégias dos diferentes agentes na disputa por ganhos<br />
materiais ou simbólicos13 .<br />
Percebemos assim, que as redes clientelares se estabelecem nas práticas desse<br />
universo político do Antigo Regime, perpassando inclusive a sua dimensão política<br />
(formal), na flexibilidade da economia de favores (informal). Essa economia reforçava<br />
e legitimava a hierarquia social, na medida em que colaborava para o processo de<br />
constituição e reprodução das redes clientelares. Nessa perspectiva, existia a disputa<br />
de cargos, que possibilitava para os vassalos uma determinada mobilidade social,<br />
com ganhos simbólicos ou/e materiais. O Rei ou benfeitor tinha flexibilidade para<br />
se fazer valer disso, mantendo um determinado poder sobre as ações de restituição<br />
e redistribuição de mercês. “Mais do que um rei acima das disputas, tem-se um rei<br />
imerso nelas” 14 .<br />
Em vista disso, esses benfeitores poderiam ser intermediários, como o Vice-<br />
Rei do Brasil, ou o governador, o provedor, um agente da Câmara, ou até mesmo<br />
um estancieiro. A questão é que, em relação ao rei, sempre serão intermediários15 . A<br />
política então, não era algo descolado da sociedade, mas estava imersa nas próprias<br />
relações sociais. As redes de poder não pressupunham apenas relações políticas, pois<br />
antes de estruturar a política elas se organizavam no próprio tecido social.<br />
Desta forma, as práticas clientelares e as redes que estas alimentaram exerceram<br />
papel fundamental no próprio processo de centralização. Como poderes paralelos,<br />
poderiam funcionar como obstáculos à expansão do poder real, mas paradoxalmente,<br />
uma vez controlados, abriam caminho para um maior domínio da política e<br />
para o próprio reforço da unidade central16 .<br />
Nesse sentido, a concentração de poderes não ficava apenas nas mãos do monarca,<br />
mas abarcava todos seus súditos. Essa “identidade corporativa” atravessava o<br />
âmbito público e se ressignificava em outras associações, como redes de parentesco,<br />
compadrio ou alianças políticas e religiosas.<br />
13 BARROS, Edval de Souza. Redes de Clientela, Funcionários Régios e Apropriação de renda no Império Português<br />
(séculos XVI- XVIII). In: Revista de Sociologia e Política. nº 17. 2001, p. 135.<br />
14 “Ao dar, o benfeitor ou patrono confirmava sua posição social, e tais atos deveriam ser marcados pela liberalidade,<br />
e magnificência, garantindo o impacto político desejado.” Ibid., p. 132.<br />
15 XAVIER & HAESPANHA, XAVIER & HESPANHA, Antônio Manuel. In: MATTOSO, José (dir.). História de<br />
Portugal. O Antigo Regime. Lisboa: Ed. Estampa, vol. 4, 1993, p. 381-389.<br />
16 MARTINS, 2007, p. 421.<br />
306
Nesse contexto, podemos pensar a trajetória de Inácio Osório Vieira nos diversos<br />
cargos que ocupou até se tornar provedor. A concessão de pequenos cargos,<br />
como o tabelião de notas e escrivão da Câmara, demonstra que esses administradores<br />
régios realizavam um determinado percurso, passando por cargos mais modestos<br />
até chegarem aos cargos mais disputados. Por outro lado, esses cargos menores eram<br />
concedidos por um tempo mais curto, geralmente três anos, e, embora muitas vezes<br />
não tivessem nenhum ordenado, ou ganhos materiais imediatos, colaboravam para<br />
arrecadação de emolumentos 17 . Já o posto de Capitão da Ordenança, graça recebida<br />
em 1764 pelo futuro provedor, 18 significou não apenas ganhos simbólicos, mas também<br />
privilégios, honras e isenções. Portanto, esses pequenos e médios cargos eram<br />
estratégicos, na medida em que serviam de elo para posições mais distintas. Mesmo<br />
o Rio Grande de São Pedro não ser uma região de muita atração, tendo em vista que<br />
era uma Capitania subalterna do Brasil, tornar-se provedor da Fazenda Real significava<br />
uma posição de preeminência. Esse posto de maior prestígio, junto com todo<br />
seu percurso, possibilitou Osório não apenas acumular relações, mas estabelecer<br />
vínculos permanentes com muitos membros da elite na Capitania.<br />
OS COMPADRES DE INÁCIO OSóRIO VIEIRA<br />
Ao detectarmos os compadres de Inácio Osório pudemos verificar melhor o<br />
quão importante são esses laços numa rede de reciprocidade. Analisando essas relações<br />
compreendemos melhor a dimensão desses vínculos, além da sólida estratégia<br />
de manutenção nos estatutos sociais. Segundo Fábio Kühn, o compadrio pode ter<br />
uma dupla função:<br />
Por um lado, ele reforça os vínculos prévios existentes entre as pessoas<br />
[o caso dos cunhados que também eram compadres, por exemplo],<br />
por outro ele cria laços entre as famílias de elite e indivíduos de prestígio<br />
naquela sociedade19 .<br />
17 Para João Fragoso, nesse sistema de benesses na forma de ofícios, o que estava em jogo não eram tanto os salários<br />
pagos pela Fazenda Real, mas sim, e principalmente, os emolumentos que deles, entre outras possibilidades,<br />
poderiam auferir. FRAGOSO, 2001, p. 45. Entretanto, verificamos em um documento sobre rendimentos públicos,<br />
que o ordenado do provedor da Real Fazenda regulava-se m 640 mil réis, enquanto os emolumentos eram em torno<br />
de 50 mil réis. Isso significa que os emolumentos, no caso do cargo de provedor da fazenda, equivalia a menos de<br />
10% do valor do ordenado. ANRJ. Códice 68. Vol. 5. [1782]. Correspondência dos Vice-Reis para Corte. Material<br />
concedido por Adriano Comissoli.<br />
18 Este cargo não recebe soldo algum, mas goza de graças, privilégios, liberdades e isenções. A pessoa que assume<br />
o posto também fica obrigada a residir na Vila ou no distrito solicitado. Registro de patente. AHPA. Códice 1.26<br />
p. 27v- 28v.<br />
19 KÜHN, Fábio. Gente da fronteira: família, sociedade e poder no sul da América Portuguesa - século XVIII. UFF. Tese de<br />
Doutorado em História. 2006, p. 236.<br />
307
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
No caso de Osório, acreditamos que suas relações se estabeleceram de forma<br />
a aproximar os vínculos existentes com outros indivíduos. Ao total, encontramos<br />
nos registros de batismos 45 afilhados20 , o que demonstra que ser afilhado de um<br />
provedor, cargo de prestígio e distinção social tinha grande significado. Para além<br />
disso, ao batizar alguém, Inácio Osório Vieira estabelecia relações que poderiam<br />
reforçar laços já existentes ou que estavam para ser cultivados. Nesse sentido, o<br />
compadrio aparece como uma prática que colaborava para o provedor cercear-se de<br />
uma rede de reciprocidade e até mesmo estruturá-la. Era uma forma de reforço no<br />
seu círculo relacional, que garantia sua própria lógica de governação.<br />
Apesar de ter vindo para o Brasil com as irmãs, o irmão e a mãe, não encontramos<br />
nenhum documento referente a possíveis casamentos das irmãs e irmão e,<br />
sendo assim, nenhum laço com cunhados. Ao que tudo indica, Osório Vieira era<br />
solteiro21 e não se casou, bem como não aparece morando com familiares. Tal constatação<br />
sugere que o provedor não tenha tido filhos, e, portanto, sua grande lista<br />
de afilhados pode nos levar a crer que o provedor estivesse querendo formar uma<br />
clientela. Desta forma, sua presença freqüente nos livros de batismo, e o quadro de<br />
relacionamentos que a partir disso se cria, podem sugerir uma estratégia de garantir<br />
apoio, decorrentes de contatos, para manter sua governabilidade.<br />
Nesse sentido, podemos acrescentar que no compadrio de Osório se estabeleceram<br />
relações horizontais, entre seus pares da elite, e verticais, quando se formava<br />
uma clientela. Evidentemente, os laços verticais podem sugerir o quão poderoso era<br />
o provedor, que acabava por estabelecer esses laços de dependência pessoal, e um<br />
séqüito de subordinados, como coloca o governador José Marcelino de Figueiredo22 .<br />
Esse séqüito, como bem expõe Kuhn, “talvez não servisse para ampliar seu poderio, mas<br />
tinha um significado simbólico importante naquela sociedade, tão impregnada pelos conceitos de<br />
distinção e valorizadora do prestígio decorrente desses marcadores sociais”. 23<br />
Analisando seus batismos, verificamos que dos 45 afilhados Osório tinha 37<br />
compadres, pois, em alguns casos, batizava mais de um filho do respectivo, como<br />
foi o caso de Domingos de Lima e Veiga, José Francisco de Faria, Leandro José da<br />
Costa e Manuel Fernandes Vieira. Outro ponto importante é que, pelo que podemos<br />
20 KÜHN, Fábio; NEUMANN, Eduardo (org). Projeto Regate de Fontes Paroquiais. Porto Alegre – Viamão (século<br />
XVIII). Porto Alegre: UFRGS, 2009. CD-ROM. Livro 1º de batismos de Porto Alegre (1772 – 1797); 2° Livro de<br />
Batismos de Porto Alegre (1792-1799) Livro 2º de batismos de Viamão (1759 – 1765), Livro 3º batismos de Viamão<br />
(1769- 1782) ,Livro 4º batismos de Viamão (1782-1799).<br />
21 Na maioria dos batismos, Osório aparecia como solteiro.<br />
22 Carta de José Marcelino para o Vice-Rei Marques do Lavradio, Porto Alegre 06/02/1775. BNL. Divisão dos<br />
Reservados. Cód. 10854.<br />
23 KÜHN, op. cit, p. 245.<br />
308
verificar, em torno de 70% dos afilhados de Osório são de estratos sociais inferiores<br />
ao provedor, estabelecendo, assim, relações assimétricas (verticais). Essa extensa<br />
rede de protegidos nos leva a pensar como Osório Vieira conseguia influenciar não<br />
apenas em âmbito público, mas perpassando também em âmbito privado, a partir de<br />
relações sociais estabelecidas com subalternos, que se subordinavam em função da<br />
hierarquia social. Da mesma forma, não nos parece coincidência o fato de que 14,<br />
de seus 45 afilhados, chamavam-se Inácio ou Inácia, nos levando a supor a homenagem<br />
do nome ao padrinho provedor.<br />
(...) a noção de ‘prestígio’ vinculava-se à capacidade de dispor de recursos<br />
(fossem eles pessoais ou do aparelho de Estado), gerando assim<br />
uma ‘economia de favores’, de dom e contra-dom; em outras palavras,<br />
de reciprocidade social envolvendo desiguais. Ao benfeitor cabia conceder<br />
e ao beneficiado cabia ser fiel, não sendo esse gesto visto como<br />
um desvio da ‘norma’, mas sim como sua corporificação. 24<br />
Já entre seus pares, encontramos nomes como o de Domingos de Lima Veiga25<br />
, que foi escrivão da Fazenda Real durante muitos anos, o Capitão e oficial da<br />
Câmara Manuel Fernandes Vieira26 , o Capitão José Francisco da Silveira Casado27 ,<br />
Antônio José de Alencastro28 , André Pereira Maciel29 , José Francisco de Faria30 , o Tenente<br />
de Dragões João Carneiro da Fontoura, entre outros. Nesse período, Osório<br />
Vieira também apadrinhou, por procuração, afilhados de Sebastião Xavier da Veiga<br />
Cabral, um dos governadores da Capitania, o Tenente João Alberto de Miranda,<br />
José Gomes de Faria, o Coronel Gaspar José de Matos Ferreira31 , João Alberto de<br />
Miranda, Antônio Guedes da Silva e Domingos Borges Freire32 . Da mesma forma,<br />
24 VENÂNCIO, Renato Pinto, SOUSA, José Ferro, PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves. O Compadre Governador:<br />
redes de compadrio em Vila Rica de fins do século XVIII. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 26, nº 52, 2006,<br />
p. 273-294.<br />
25 Domingos de Lima Veiga foi nomeado escrivão da fazenda real em 1770. F1243 p. 224-224v. Registro de um<br />
provimento.<br />
26 Manuel Fernandes Vieira ocupou diversos cargos: Tabelião e Escrivão de órfãos da Vila de Rio Grande em 1752,<br />
vereador, juiz e almotacé nas décadas de 1770 e 1780. Era cunhado de Francisco Pires Casado e Manuel Bento da<br />
Rocha. Foi Contratador dos dízimos e arrematante do contrato do munício de carne para as tropas. COMISSOLI,<br />
2008, p. 86-87 e 178. OSóRIO, 1990, p. 200.<br />
27 Francisco da Silveira Casado também era um homem de governança. Foi Vereador; juiz, procurador, almotacé,<br />
tesoureiro da Santa Casa, almoxarife da Fazenda Real, Juiz de órfãos, entre outros cargos. Era sócio de Manuel Bento<br />
da Rocha e irmão de Francisco Pires Casado. COMISSOLI, op. cit. , p. 87-88 e 91.<br />
28 Oficial da Câmara. Ibid, p. 175.<br />
29 Maciel foi Guarda-mor, procurador. Almotacé. Ibid, p. 175. AHRS. F1198.<br />
30 Oficial da Câmara. Ibid., p. 176.<br />
31 Gaspar era mesmo homem de confiança do Vice-Rei Lavradio e serviu sob suas ordens no regimento de Cascais,<br />
em Portugal. Veio para o Brasil junto com o Marquês e no Rio de Janeiro se tornou inspetor da guarda vice-reinal.<br />
Veio posteriormente para o Rio Grande de São Pedro em 1774. Entre 1780 e 1796 serviu como coronel do Regimento<br />
de Dragões do Rio Grande. ALDEN, Dauril. Royal Government in Colonial Brazil. Berkeley: University of<br />
Califórnia Press, 1968, p. 451-452, nota 17.<br />
32 Oficial da Câmara. COMISSOLI, op. cit., p. 176.<br />
309
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
deu procuração para Antonio José de Alencastro, também seu compadre, para que<br />
este batizasse um de seus afilhados. Ao se formalizar um batismo por via de procuração,<br />
automaticamente se estabelece uma relação de confiança entre o padrinho e a<br />
pessoa que vai substituí-lo. Isso significa dizer que é provável que Osório detivesse<br />
com esses últimos, um certo vínculo relacional.<br />
Outro ponto bastante importante das relações políticas e sociais formalizadas<br />
através dos batismos do provedor é a data que ele começa a apadrinhar: partir de<br />
1765, ano em que assumiu o posto de Provedor da Fazenda. Antes disso, não se<br />
tem nenhum registro de batismo de Osório 33 . Isso pode significar que muitas vezes<br />
o compadrio não se fazia apenas no convívio social, mas pelo posto assumido do<br />
padrinho, de distinção social. Assim, a própria escolha da figura de Inácio Osório<br />
se faz nas circunstâncias políticas do momento. O prestígio do provedor se faz na<br />
medida em que é capaz de dispensar ou retribuir benefícios 34 .<br />
Dentro do período, que engloba seus mais de trinta anos no poder, verificamos<br />
que o provedor manteve-se com uma média de pelo menos um batismo anual.<br />
Além disso, podemos dizer que o maior número de apadrinhamentos se faz nesses<br />
primeiros vinte anos, que aqui consideramos como um momento em que Osório se<br />
estabelece enquanto um homem de grande importância na sociedade do Rio Grande.<br />
Após seu afastamento definitivo do cargo, verificamos que Osório não estabelece<br />
mais relações de compadrio, comprovando a hipótese de que a escolha da figura do<br />
provedor como padrinho se faz nas circunstancias das relações de poder e prestígio<br />
social.<br />
310<br />
PARTICIPAçãO NAS CONFRARIAS RELIGIOSAS<br />
Inácio Osório Vieira era membro de duas importantes confrarias religioas: A<br />
Ordem Terceira de São Francisco em Viamão e a Irmandade do Santíssimo Sacramento.<br />
A Ordem Terceira era uma associação religiosa que congregava boa parte da<br />
elite do Continente e tinha critérios rígidos de seleção e, por isso, seus membros<br />
gozavam de um estatuto mais elevado em relação às demais irmandades. 35<br />
33 Não verificamos os Livros de Batismos da Vila do Rio Grande. Somente a partir da ida de Osório para Viamão.<br />
34 XAVIER & HESPANHA, 1993, p. 340.<br />
35 KÜNH, Fábio. Um corpo, ainda que particular: Irmandades legais e Ordens Terceiras no Rio Grande do Sul Colonial. 2009,<br />
p. 15. No prelo.
Não por acaso, muitos dos mais destacados membros da elite colonial<br />
pediam para ser sepultados no hábito do “seráfico padre São Francisco”,<br />
prova contundente da sua distinção social e abastança. Sabe-se<br />
que “a profissão nas ordens terceiras era sinônimo de status e privilégios<br />
das classes dominantes. 36<br />
Pertencentes às camadas superiores da sociedade, os integrantes de uma Ordem<br />
Terceira gozavam de elevada distinção social que os sustentavam como membros<br />
da elite.<br />
No Rio Grande de São Pedro existiu uma única Ordem Terceira de São Francisco<br />
atuante, com filiais estabelecidas em Viamão, Rio Grande e Rio Pardo. Inácio<br />
Osório Vieira, não apenas era membro da Ordem Terceira, como também Ministro<br />
dela, sendo forte seu controle na mesa diretora. Sua rede de relações novamente se<br />
faz presente, e entre os membros da Ordem encontramos Manuel Bento da Rocha,<br />
poderoso homem de negócios do Continente, além de outros membros do bando<br />
dos cunhados37 .<br />
As irmandades, assim como a Ordem Terceira, eram espaços de sociabilidade<br />
de diferentes sujeitos sociais e colaborava, assim como o compadrio, para manutenção<br />
de relações.<br />
Ser membro de uma irmandade do Santíssimo Sacramento era não<br />
só pertencer a uma organização social. Significava também ter acesso<br />
ao interior dos estratos superiores de uma sociedade, evidenciando<br />
assim, status aos seus membros, status esse que vinha acompanhado<br />
de privilégios e graças. Independente de a irmandade ser de negros<br />
ou da elite local, cada uma, dentro de suas possibilidades, dava essas<br />
facilidades aos seus membros38 .<br />
Inácio Osório Vieira era um dos integrantes da Irmandade do Santíssimo<br />
Sacramento da freguesia de Porto Alegre. Com isso, verificamos que alguns de seus<br />
compadres também eram membros da Irmandade do Santíssimo como João Carneiro<br />
da Fontoura, Manuel Fernandes Vieira, capitão Francisco Pires Casado, Manuel<br />
Marques de Sampaio e Patrício José Correia da Câmara. Compartilhavam desse mesmo<br />
espaço de sociabilidade Manuel Bento da Rocha, bem como Sebastião Xavier da<br />
Veiga Cabral, que também mantinham boas relações com o provedor.<br />
36 Ibid., p. 15.<br />
37 Manuel Bento da Rocha era o líder e um dos integrantes do chamado bando dos cunhados, uma facção política<br />
composta pelos mais importantes homens de negócio do Rio Grande de São Pedro, cujos membros tinham ampla<br />
participação na Câmara. COMISSOLI, 2008, p.86-95.<br />
38 MONTEMEZZO, Laura Ferrari. A Irmandade do Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora Madre Deus de Porto Alegre e<br />
seus membros: um estudo prosopográfico. (1774-1780). Monografia. 2007.<br />
311
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Observamos, desta forma, que o estreitamento dos vínculos se fazia na ajuda<br />
mútua entre seus membros, nos apadrinhamentos e nos laços de amizade. Essa<br />
prática relacional colaborava para a própria ascensão social, ou, pelo menos, para<br />
manutenção da escala social, pois era tida “como uma atividade dignificante e enobrecedora”.<br />
39<br />
A própria seleção desses laços se fazia presente no caráter seletivo de inserção<br />
na Irmandade, como o pagamento de admissão e ser de origem nobre, com a exclusão<br />
dos indivíduos que não tivessem a devida “limpeza de sangue” 40 . Desta maneira,<br />
a maioria dos homens da Irmandade do Santíssimo eram homens proeminentes,<br />
como oficiais camarários, militares, dirigentes administrativos, homens de negócios<br />
e estancieiros.<br />
Assim, podemos dizer que tanto os compadrios, como as confrarias religiosas<br />
em que Osório estava inserido, faziam parte das esferas da sociedade colonial do Rio<br />
Grande de São Pedro. Observar a dinâmica dessas redes é importante na medida<br />
em que não se estabeleciam apenas a partir de relações políticas e econômicas, mas<br />
de relações sociais, que buscavam naquilo a extensão de laços, para a conservação<br />
daquela sociedade hierarquizada de Antigo Regime.<br />
312<br />
CONSIDERAçõES FINAIS<br />
Ao concluirmos esse artigo, podemos dizer que homens como Inácio Osório<br />
Vieira detinham em suas mãos poderes administrativos relativamente autônomos,<br />
para sobrepujar a imensa distância existente entre as colônias e a Metrópole. Era<br />
um “viver em colônia”, repleto de estranhamentos e pertencimentos, que fazia com<br />
que exercessem essa prática governativa cotidiana constituindo redes de alianças<br />
e sociabilidade. A questão não era apenas governar, mas governar com as pessoas<br />
existentes nas capitanias, saber lidar com a elite colonial e também com os possíveis<br />
inimigos internos 41 , utilizando os instrumentos que tinha a sua disposição diante<br />
da distância do poder real 42 . Ou seja, a própria heterogeneidade de laços políticos<br />
39 KÜNH, 2009, p. 7.<br />
40 Ibid., p.5.<br />
41 No caso de Inácio Osório, sua relação conturbada com o governador da capitania, José Marcelino de Figueiredo<br />
e o ouvidor da Comarca Duarte de Almeida Sampaio, devido, principalmente, à ausência de linhas hierárquicas e de<br />
jurisdição claras, gerando conflitos (diretos e indiretos) constantes entre as autoridades locais.<br />
42 Aqui nos referimos tanto a distância da metrópole lusa, Portugal, quando da sede do vice-reinado, Rio de Janeiro.
nos vários níveis do aparelho ultramarino impedia o estabelecimento de uma regra<br />
uniforme de governo, estabelecendo assim, limites entre o poder da Coroa e seus<br />
administradores periféricos. 43<br />
Entender isso significa pensar o quanto esses sujeitos, como Osório, dependiam<br />
fortemente de seu conjunto de relações sociais. Dentro de uma pluralidade<br />
de campos e possibilidades, foi alternando progressivamente de cargos e regiões,<br />
criando diversas teias de relações sociais, formando uma “engenharia” política que<br />
garantia sua função administrativa régia. Os mecanismos de formação de redes de<br />
poder nos demonstram a questão não era apenas subir nos degraus do topo social,<br />
mas manter-se nessa posição. Dessa maneira, tão importante quanto o status e autoridade<br />
que a instituição fazendária possibilitava a Osório era a manutenção dessas<br />
redes de sociabilidade não-oficiais.<br />
Nessa perspectiva, sua longa permanência no exercício do cargo de provedor,<br />
como seu percurso nos dizem muito sobre os homens a quem cabia a administração<br />
fazendária e sobre as próprias Juntas da Fazenda Real. Inácio Osório estava inserido<br />
tanto no aparelho burocrático do Império ultramarino, com seu cargo de provedor<br />
, como também buscava apoio através de relações sociais, como os compadrios, sua<br />
relação com os homens bons e governadores, a inserção na Irmandade e na Ordem<br />
Terceira, entre outros. As redes clientelares auxiliam para entendermos o funcionamento<br />
da máquina administrativa em um período em que o público e o privado<br />
misturavam-se dentro de relações personalistas. Estas constituíam uma trama que<br />
atravessavam as instituições e orientavam seu próprio funcionamento44 .<br />
43 HESPANHA, Antônio Manuel. In: FRAGOSO, 2001, p. 166.<br />
44 MOUTOUKIAS, Zacharias. Redes personales y autoridad colonial: los comerciantes de Buenos Aires en el siglo<br />
XVIII. Revista Annales Histoire. Sciences Sociales. Paris: 1992,p. 6.<br />
313
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Documentos Manuscritos<br />
314<br />
REFERêNCIAS DOCUMENTAIS<br />
AHPAMV (Arquivo Histórico Moysés Velhinho)<br />
Fundo: Câmara. Códice 1.26 - Registros diversos (1765-1777)<br />
AHRS (Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul)<br />
Livro de Registro Geral da Fazenda Real do Rio Grande de São Pedro<br />
Códices F1243, F1244, F1249, F1250<br />
Livro de Registro de Alvarás e Provisões<br />
Códice B.2.001<br />
ANRJ (Arquivo Nacional do Rio de Janeiro)<br />
Secretaria de Estado do Brasil. Correspondência dos Vice-Reis para Corte. Códice<br />
68. Vol. 5. [1782].<br />
Fundo Vice-Reinado. caixa 749, pct. 03. fl.41-52.<br />
BNL (Biblioteca Nacional de Lisboa)<br />
Códice 10854. Coleção de Correspondência de José Marcelino de Figueiredo, governador<br />
do Rio Grande do Sul, para o Marquês do Lavradio, Vice-rei do Brasil.<br />
Originais 1773 – 1778. Biblioteca Nacional de Lisboa [ca. 345 fls.]<br />
AHU ( Arquivo Histórico Ultramarino)<br />
Projeto Resgate<br />
Rio de Janeiro - AHU–RJ. Cx. 58, 67.<br />
Rio Grande do Sul - AHU-RS. Cx. 8.<br />
Documentos impressos<br />
KÜHN, Fábio; NEUMANN, Eduardo (org). Projeto Regate de Fontes Paroquiais.<br />
Porto Alegre – Viamão (século XVIII). Porto Alegre: UFRGS, 2009. CD-ROM.
REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
ALDEN, Dauril. Royal Government in Colonial Brazil. Berkeley: University of Califórnia<br />
Press, 1968.<br />
BARROS, Edval de Souza. Redes de Clientela, Funcionários Régios e Apropriação<br />
de renda no Império Português (séculos XVI- XVIII). In: Revista de Sociologia e Política.<br />
nº 17. 2001.<br />
BOXER,Charles. O império marítimo português 1415- 1825. São Paulo: Cia das Letras,<br />
2002.<br />
COMISSOLI, Adriano. Os homens-bons e a Câmara Municipal de Porto Alegre (1767-<br />
1808). Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008.<br />
CUNHA, Alexandre Mendes. Minas Gerais, da capitania à província: elites políticas e a administração<br />
fazendária em um espaço em transformação.Tese de Doutorado. UFF: Niterói, 2007.<br />
FRAGOSO, João. A nobreza da República: nota sobre a origem da primeira elite senhorial do<br />
Rio de Janeiro (séculos XVI e XVII), Topi, número 1, Rio de Janeiro: 7Letras, 2000, p.<br />
94.<br />
______, João. BICALHO, Maria Fernanda e GOUVêA, Maria de Fátima (Org.). O<br />
Antigo Regime nos Trópicos: A dinâmica imperial portuguesa. (Séculos XVI – XVIII). Civilização<br />
Brasileira: Rio de Janeiro, 2001.<br />
HESPANHA, Antonio Manuel. In: FRAGOSO, João. BICALHO, Maria Fernanda<br />
e GOUVêA, Maria de Fátima (Org.). O Antigo Regime nos Trópicos: A dinâmica imperial<br />
portuguesa. (Séculos XVI – XVIII). Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2001.<br />
KÜHN, Fábio. Gente da fronteira: família, sociedade e poder no sul da América Portuguesa -<br />
século XVIII. UFF. Tese de Doutorado em História. 2006.<br />
______, Fábio. Paper apresentado no Congreso Internacional Familia y organización<br />
social en Europa y América, siglos XV-XX. Murcia, Espanha, 2007. No prelo.<br />
______, Fábio. Um corpo, ainda que particular: Irmandades legais e Ordens Terceiras no Rio<br />
grande do Sul Colonial. 2009. No prelo.<br />
MARTINS, Maria Fernanda. Os tempos da Mudança: elites, poder e redes familiares<br />
no Brasil, séculos XVIII e XIX. In: FRAGOSO, João. CARVALHO de ALMEIDA,<br />
Carla Maria e SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de (org.). Conquistadores e Negociantes.<br />
: História de elites no Antigo Regime dos Trópicos. América Lusa, Séculos XVI a XVIII. Rio<br />
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.<br />
MIRANDA, Márcia Eckert. Continente do Rio Grande de São Pedro: a administração pública<br />
no período colonial. Porto Alegre: Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande<br />
do Sul. Ministério Público do Estado do RS/ CORAG, 2000.<br />
315
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
MONTEMEZZO, Laura Ferrari. A Irmandade do Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora<br />
Madre Deus de Porto Alegre e seus membros: um estudo prosopográfico. (1774-1780). Monografia<br />
de Técnica de Pesquisa. 2007.<br />
MOUTOUKIAS, Zacharias. Redes personales y autoridad colonial: los comerciantes<br />
de Buenos Aires en el siglo XVIII. Revista Annales Histoire. Sciences Sociales.<br />
Paris: 1992.<br />
OSóRIO, Helen. Apropriação da terra no Rio Grande de São Pedro e a formação do espaço<br />
platino. Dissertação de Mestrado. UFRGS. Porto Alegre, 1990.<br />
______, Helen, BERWANGER, Ana Regina e SOUZA, Susana Bleil de. Catálogo<br />
de Documentos Manuscritos Avulsos referentes à Capitania do Rio Grande do Sul existentes no<br />
Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa. IFCH/UFRGS: CORAG, Porto Alegre, 2001.<br />
VENÂNCIO, Renato Pinto, SOUSA, José Ferro, PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves.<br />
O Compadre Governador: redes de compadrio em Vila Rica de fins do século<br />
XVIII Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 26, nº 52, 2006.<br />
XAVIER & HESPANHA, XAVIER & HESPANHA, Antônio Manuel. In: MAT-<br />
TOSO, José (dir.). História de Portugal. O Antigo Regime. Lisboa: Ed. Estampa, vol.<br />
4, 1993.<br />
316
5<br />
históriA e eConoMiA<br />
no séCulo xix
fortunAs, bens e investiMentos: A CArACterizAção<br />
eConôMiCA de uMA elite PolítiCA MuniCiPAl A PArtir dos<br />
inventários Post-MorteM (finAl do séCulo xix)<br />
Carina Martiny¹<br />
Resumo: Os inventários post-mortem constituem importante fonte de pesquisa quando o<br />
intento do historiador é analisar características econômicas de um indivíduo ou grupo específico, uma<br />
vez que fornecem importantes e, muitas vezes, detalhadas informações acerca dos bens que os inventariados<br />
possuíam. Entretanto, se esta fonte apresenta inúmeras possibilidades de análise econômica<br />
e social, também possui alguns limites que precisam ser levados em conta. Assim, este artigo busca<br />
explorar algumas possibilidades de análise histórica a partir dos inventários post-mortem de membros da<br />
elite política do município de São Sebastião do Caí (RS), atentando também para algumas problemáticas<br />
intrínsecas à utilização desta fonte documental.<br />
Palavras-chave: Inventários post-mortem – Elite política municipal – Perfil econômico<br />
INTRODUçãO: OS CAMINHOS DA PESQUISA<br />
Aescolha do método a ser utilizado na análise documental está diretamente<br />
dependente dos objetivos da pesquisa e do conjunto documental<br />
trabalhado. Maria Yedda Leite Linhares bem observou que “ao<br />
historiador cabe elaborar suas técnicas de forma criativa, de acordo com o universo<br />
histórico de sua análise e segundo as fontes de que dispõe”². Este artigo constitui<br />
uma reflexão sobre alguns caminhos trilhados ao longo da pesquisa realizada para a<br />
elaboração da Dissertação de Mestrado. Nesta, analisamos uma parcela da sociedade<br />
do município de São Sebastião do Caí³: a elite política.<br />
¹ Mestre História pelo Programa de Pós-Graduação em História da UNISINOS. Este artigo constitui parte da análise<br />
desenvolvida no segundo capítulo de nossa Dissertação de Mestrado “Os seus serviços públicos e políticos estão de certo modo ligados<br />
à prosperidade do município” Constituindo redes e consolidando o poder: uma elite política local (São Sebastião do Caí, 1875-1900).<br />
² LINHARES, Maria Yedda Leite. Metodologia da história quantitativa: balanço e perspectivas. In: BOTELHO, Tarcísio<br />
Rodrigues et al. (Org.). História quantitativa e serial no Brasil: um balanço. Goiânia: ANPUH-MG, 2001. p. 17.<br />
³ O município de São Sebastião do Caí, localizado à margem esquerda do rio Caí, na zona colonial do Rio Grande<br />
do Sul, foi criado em 1875, através da lei provincial nº 995 de 1º de maio. O povoado de Porto do Guimarães – ou<br />
São Sebastião do Caí, como então já era conhecido em alusão ao padroeiro da paróquia – e as freguesias de São José<br />
do Hortêncio e Santana do Rio dos Sinos passaram a constituir o novo município, desanexado do de São Leopoldo,<br />
ao qual haviam pertencido desde 1846.<br />
319
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Baseados em José Murilo de Carvalho, para quem os membros de uma elite<br />
política são aqueles que tomam decisões políticas e que fazem, portanto, escolhas<br />
entre alternativas 4 consideramos que a partir do momento em que o novo município<br />
passou a contar com uma Câmara Municipal própria para administrar seus negócios,<br />
delineou-se, claramente, um grupo especial na sociedade local – uma elite política<br />
– constituído pelos vereadores, ou seja, pelos indivíduos que ocuparam os postos<br />
da Câmara Municipal. Assim, a análise que realizamos centra-se nos indivíduos que<br />
entre os anos de 1877 – ano em que assume a primeira Câmara Municipal – e 1900<br />
exerceram o cargo de vereador em São Sebastião do Caí, compreendendo este período,<br />
portanto, as primeiras sete primeiras formações camarárias de São Sebastião do<br />
Caí (1877 a 1880; 1881 a 1882; 1883 a 1886; 1887 a 1890; 1890; 1892 a 1896; e 1896-<br />
1900). 5 Analisamos, entre eleitos e suplentes que assumiram a tarefa de administrar<br />
o município, um total de 55 vereadores, que correspondem a 38 indivíduos, dado o<br />
fato de que alguns estiveram presentes em mais de uma formação camarária. 6 Temos<br />
assim, um grupo de elite a ser trabalhado.<br />
Ao definir elite, Fábio Kühn afirma que “De fato, uma elite se define por três<br />
atributos essenciais: riqueza, status e poder” 7 . Acerca do primeiro atributo o mesmo<br />
historiador destaca que “O primeiro aspecto é o mais óbvio de todos, condição preliminar<br />
para a própria existência do grupo” 8 . De fato, a riqueza criava condições favoráveis,<br />
ao permitir o acesso facilitado, por exemplo, a meios diversos de sociabilidade 9 ,<br />
4 CARVALHO, José Murilo de. A Construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de Sombras: a política<br />
imperial. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 19-20.<br />
5 As quatro primeiras composições camarárias correspondem às Câmaras Municipais do período imperial. A composição<br />
de 1890 refere-se à Junta Municipal nomeada pelo governo do Estado, com a instituição da República,<br />
para administrar provisoriamente o município. Desta, acompanhamos seus trabalhos até o dia 28 de junho do<br />
mesmo ano, uma vez que o livro de registros das sessões subseqüentes não foi localizado. O mesmo motivo explica<br />
a exclusão da análise da administração municipal entre os anos de 1891 e 1892, que também carecem de registros<br />
administrativos. Já as duas últimas composições analisadas, a de 1892 a 1896 e a de 1896 a 1900, correspondem aos<br />
Conselhos Municipais do período republicano.<br />
6 Contabilizamos apenas os vereadores que participaram, em cada composição analisada, de pelo menos cinco<br />
sessões da Câmara Municipal.<br />
7 O conceito de elite que apresenta Fábio Kühn está baseado na definição de Peter Burke, presente na obra Veneza<br />
e Amsterdã: um estudo das elites do século XVII (1991), para quem elites são grupos superiores definidos por três<br />
critérios: status, poder e riqueza (BURKE, Peter. Veneza e Amsterdã: um estudo das elites do século XVII. São<br />
Paulo: Brasiliense, 1991. p. 16). Kühn identifica estes três atributos na sociedade sul-rio-grandense do século XVIII<br />
(KÜHN, Fábio. Gente da fronteira: sociedade e família no sul da América portuguesa – século XVIII. In: GRIJó,<br />
Luiz Alberto et al. (Org.). Capítulos de História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2004. p. 62).<br />
8 KÜHN, Fábio. A prática do dom: família, dote e sucessão. In: GOLIN, Tau; BOEIRA, Nelson (Org.). CAMAR-<br />
GO, Fernando; GUTFREIND, Ieda; REICHEL, Heloisa (Coord.). Colônia. Passo Fundo: Méritos, 2006a. p. 226.<br />
9 Entendemos sociabilidade no sentido dado por Agulhon: “la aptitud de vivir en grupos y consolidar los grupos mediante la constituición<br />
de asociaciones voluntarias”, sendo necessário considerar tanto as formas de associação formal (que estão reguladas,<br />
como o são as associações) quanto informal (baseadas em relações tecidas pelos indivíduos no cotidiano) (AGULHON,<br />
Maurice. Historia vagabunda: etnologia y política en la Francia Contemporánea. México: Instituto Mora, 1994. p. 55).<br />
320
dava condições maiores de distribuição de favores, de possuir um maior número de<br />
dependentes e, assim, participar mais ativamente do caráter clientelista das relações<br />
políticas.<br />
Mas, como apreender a riqueza destes indivíduos? A que fontes recorrer?<br />
As fontes utilizadas na pesquisa, que buscou atentar para a ação e para as relações<br />
tecidas pela elite municipal de São Sebastião do Caí, foram essencialmente fontes<br />
oficiais, como atas da Câmara Municipal, suas correspondências e registros orçamentários,<br />
listas de qualificação de votantes, mapas de população e inventários. Juntos,<br />
estes documentos forneceram importantes informações acerca do perfil tanto<br />
dos indivíduos que compunham o grupo analisado quanto das instituições próprias<br />
da estrutura do Estado imperial e republicano na esfera municipal. Foram, porém,<br />
os inventários que nos forneceram importantes indícios sobre as condições econômicas<br />
e o modo de vida da elite caiense e é acerca das possibilidades, dos limites e da<br />
utilização desta fonte documental que está centrado o presente artigo.<br />
OS INVENTÁRIOS COMO FONTE DE PESQUISA:<br />
LIMITES E POSSIBILIDADES<br />
Ao utilizar os inventários post-mortem como fonte para a pesquisa histórica o<br />
historiador deve estar ciente não somente das possibilidades de trabalho que estes<br />
oferecem, como também dos limites a eles intrínsecos. O inventário nada mais é do<br />
que uma fotografia da fortuna de um indivíduo em um dado momento – o momento<br />
de seu falecimento -, o que nos priva de saber o que este possa ter feito antes, de que<br />
forma administrou ou mesmo distribuiu previamente seus bens. Sabemos que muitas<br />
práticas e estratégias de concentração de riqueza poderiam ser levadas a cabo por<br />
famílias que desejavam manter intactos seus patrimônios, ou mesmo como forma<br />
de ampliá-los. Como já demonstrado por Farinatti, mesmo que a legislação previsse<br />
uma divisão igualitária dos bens entre os herdeiros – a metade (“meação”) para o (a)<br />
viúvo(a) e a outra metade dividida “entre seus herdeiros necessários (descendentes e,<br />
se estes não existissem, os ascendentes)” -, muitos chefes de famílias buscavam, antes<br />
mesmo de morrer, beneficiar um ou outro filho para garantir a continuidade do<br />
poder econômico da família. Práticas de antecipação de herança são apontadas pelo<br />
historiador como muito comuns 10 . Também Marcos Witt observou que imigrantes<br />
10 FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na Fronteira Sul<br />
do Brasil (1825-1865). 2007. Tese (Doutorado em História) --Programa de Pós-Graduação em História. Universidade<br />
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, 2007.<br />
321
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
alemães fizeram uso de “mecanismos de transmissão e concentração de bens na figura<br />
de uma só pessoa” com o intuito de assegurar “o status de ‘exponencial’”¹¹. Ao<br />
que parece, a família Trein, uma das famílias por nós analisadas – uma vez que dois<br />
de seus membros foram vereadores em São Sebastião do Caí no período analisado:<br />
Christiano Jacob Trein e Felipe Carlos Trein – fez uso de uma destas estratégias de<br />
antecipação de herança visando preservar a unidade do patrimônio.<br />
Sabemos que Francisco Trein, imigrante, pai dos vereadores em questão,<br />
abriu, em 1847, uma casa de negócios em São José do Hortêncio, e uma filial, em<br />
1869, junto à povoação de Porto do Guimarães. Com seu falecimento a 8 de janeiro<br />
de 1883, seguiu-se a abertura do processo de seu inventário, no qual, porém, não<br />
consta nem a casa de negócios de São José do Hortêncio, nem a localizada em Porto<br />
do Guimarães, então Vila de São Sebastião do Caí. O inventário faz referência<br />
apenas a armários e balcões da casa de negócio, a uma balança decimal com pesos e<br />
a latas, sacos e 125 kg de banha, provavelmente pertencentes à casa de negócios de<br />
São José do Hortêncio 12 . E as demais mercadorias, porque não foram arroladas? E a<br />
casa de negócio existente na Vila? Tudo nos leva a supor que Francisco Trein tivesse<br />
passado, ainda em vida, tais propriedades a seus filhos. De acordo com Jean Roche,<br />
à frente da filial de Porto do Guimarães estava o filho Christiano Jacob Trein 13 . No<br />
que diz respeito à casa comercial de São José do Hortêncio, é possível que Frederico<br />
Guilherme Trein ou João Jacob Trein, ou ainda ambos, tivessem passado a administrar<br />
os negócios, já que esses dois filhos de Francisco Trein aparecem no alistamento<br />
eleitoral de 1890 como sendo negociantes moradores de São José do Hortêncio 14 .<br />
O mesmo podem ter feito os vereadores Carlos Berto Círio, Pedro Franzen Filho e<br />
Guilherme Zirbes, todos negociantes, mas que não têm arrolado em seus inventários<br />
o valor de bens referentes à casa comercial, o que nos leva a crer que estes tenham<br />
feito a transferência desta, ainda em vida, para algum filho ou herdeiro.<br />
11 WITT, Marcos Antônio. Em busca de um lugar ao sol: estratégias políticas, imigração alemã, Rio Grande do<br />
Sul, Século XIX. São Leopoldo: Oikos, 2008. p.116-117. p. 130. Ao analisar os inventários das famílias Voges e<br />
Grassmann, Witt constatou um “redirecionamento dos bens”, de modo que as propriedades se concentrassem nas<br />
mãos de poucos, não sendo divididas, mantendo assim o poder econômico e simbólico da família (WITT, 2008, p.<br />
130-135).<br />
12 TREIN, Francisco (Inventariado); TREIN, Catharina (Inventariante). [inventário]. São Sebastião do Caí, 1883<br />
[Manuscrito]. Localização: Cartório órfãos e Ausentes, Auto n. 150, Maço n. 6, Ano 1883, APERS.<br />
13 ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora Globo, 1969. p. 435.<br />
14 SãO SEBASTIãO DO CAí. Junta Municipal de São Sebastião do Caí. Alistamento dos eleitores do Município<br />
de São Sebastião do Caí. 1890 jun. 20 [Manuscrito]. Localização: AHMBM. f. 27v - 29.<br />
322
Outro problema com o qual o historiador pode se deparar ao trabalhar com<br />
inventários diz respeito à deturpação que pode ser realizada quando do arrolamento<br />
e avaliação dos bens inventariados. Em muitos casos, como pudemos observar, fica<br />
evidente a tentativa de subestimá-los, descrevendo-os de forma a desvalorizá-los,<br />
como se pode constatar no uso de alguns termos na descrição realizada, como “velho”,<br />
“em mau estado”, “usado” ou mesmo “em estado de ruína”, a eles atribuídos.<br />
Desta maneira, eram descritos tanto bens imóveis, quanto os móveis. Assim, tanto<br />
o não-arrolamento de alguns bens 15 quanto a subestimação de outros foram estratégias<br />
levadas a cabo por algumas famílias para diminuir o valor dos impostos a serem<br />
pagos por ocasião do processo de inventário.<br />
Entretanto, apesar das limitações que os inventários impõem à análise histórica,<br />
estes ainda constituem uma importante fonte documental. Mesmo que os protagonistas<br />
dos inventários (os inventariados) tenham utilizado diversos mecanismos<br />
que resultaram em um reagrupamento da fortuna de suas famílias de diferentes maneiras,<br />
o que dificilmente pode ser captado a partir dos inventários, as informações,<br />
mesmo que parciais ou deturpadas que esta fonte oferece permitem-nos traçar, ao<br />
menos aproximadamente, um padrão econômico de vida do grupo analisado, identificando<br />
alguns dos bens que possuíam e tendências de investimentos.<br />
Apesar de todas as problemáticas que uma análise baseada em inventários<br />
possa apresentar, no nosso caso, eles são fundamentais para demonstrar que a elite<br />
política de que tratamos faz parte de uma outra fração da elite municipal, que é a<br />
elite econômica. Ela é composta pelos indivíduos que detêm significativas fortunas<br />
e que ocupam e controlam os postos-chave da vida econômica local – no caso de<br />
São Sebastião do Caí, os que controlam a produção e comercialização de produtos<br />
agrícolas e bens agro-manufaturados e importam outros bens de consumo então<br />
vendidos à população local. Considerando que “os inventários post mortem são uma<br />
fonte que tende a sobre-representar as camadas mais favorecidas da sociedade” 16 ,e<br />
15 Nos inventários de Antônio Otto Rühee e de Guilherme Zirbes, por exemplo, não há qualquer bem móvel<br />
arrolado, fato que, supomos, possa ser atribuído a uma distribuição – feita previamente ao inventário – entre os<br />
herdeiros. RÜHEE, Antônio Otto (Inventariado); RÜHEE, Maria Júlia L. e outros (Inventariante). [inventário].<br />
São Sebastião do Caí, 1921 [Manuscrito]. Localização: Cartório do Cível, Auto n. 434, Maço n. 8, Ano 1921, APERS;<br />
e ZIRBES, Guilherme (Inventariado); ZIRBES, Margaria; e outros (Inventariante). [inventário]. São Sebastião do<br />
Caí, 1915 [Manuscrito]. Localização: Cartório do Cível, Auto n. 325, Maço n. 7, Ano 1915, APERS.<br />
16 FARINATTI, 2007, p. 91.<br />
323
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
levando em conta que tivemos acesso aos inventários de 23 dos 38 vereadores, podemos<br />
afirmar – com boa margem de acerto – que a elite econômica de São Sebastião<br />
do Caí, ao final do século XIX, era também uma elite política. 17<br />
324<br />
UMA ELITE POLíTICA QUE ERA<br />
TAMBÉM ELITE ECONÔMICA<br />
Uma vez cientes das limitações dos inventários enquanto fonte documental<br />
e acreditando que estes possam nos oferecer parâmetros gerais acerca do acúmulo<br />
de riquezas do grupo em estudo, passamos a analisar, a partir do arrolamento dos<br />
bens pertencentes ao inventariado e sua família e da avaliação destes no momento<br />
de elaboração do inventário, o perfil econômico da elite política de São Sebastião do<br />
Caí e alguns indícios de seu modo de vida.<br />
Infelizmente, não conseguimos localizar os inventários de todos os 38 vereadores<br />
em questão. Localizamos os inventários de 23 vereadores, sendo que em<br />
alguns casos encontramos o seu inventário, outras vezes apenas o de sua esposa e,<br />
em alguns casos, o de ambos. 18 No caso em que possuímos o inventário de ambos,<br />
adotamos o critério de utilizar, para a análise quantitativa, aquele que apresentava<br />
o maior capital, ou seja, o maior valor na soma total de bens avaliados somadas as<br />
dívidas ativas e deduzidas suas dívidas passivas.<br />
No Gráfico 1 agrupamos os vereadores por nível de fortuna, permitindo assim<br />
uma avaliação geral da fortuna da elite política.<br />
17 Esclarecemos que nossa busca se restringiu aos cartórios de São Sebastião do Caí, considerando que nosso<br />
objetivo foi o de evidenciar a atuação política de determinados indivíduos neste município, no quartel final dos Oitocentos.<br />
Acreditamos que alguns dos indivíduos, cujos inventários não localizamos, possam ter mudado de cidade<br />
ao longo das primeiras décadas do século XX, razão pela qual o processo de inventário pode não ter ocorrido em<br />
São Sebastião do Caí.<br />
18 Assim, trabalhamos com um total de 27 inventários.
Gráfico 1 - Níveis de fortunas dos vereadores de acordo com o total de bens<br />
arrolados nos inventários post-mortem (em nº)<br />
Elaborado pela autora com base nos Inventários post-mortem, São Sebastião do Caí (1868 a 1935)<br />
localizados no APERS.<br />
De acordo com o gráfico, a análise dos inventários post-mortem revelou que o<br />
grupo com o qual trabalhamos era, em boa medida, bastante heterogêneo economicamente.<br />
Ou seja, entre os vereadores encontramos alguns que possuíam pequenas<br />
fortunas, como Antônio Otto Rühee, cuja soma de bens em seu inventário era de<br />
4:500$000 (4 contos e 500 mil-réis) 19 e César Augusto Góes Pinto, cuja soma dos<br />
bens em 1890, era de 3:004$850 (3 contos, 4 mil e 850 réis) 20 . Outros, entretanto,<br />
possuíam um capital superior a 100 contos de réis, como Pedro Noll, que tem arrolado<br />
em seu inventário, datado de 1899, 210:899$500 (210 contos, 899 mil e 500<br />
réis)²¹. Mas, o gráfico também é revelador da boa condição econômica da elite política<br />
analisada, afinal, possuir um capital de 3 contos correspondia, na época, a uma<br />
considerável fortuna, como observou Roche.²²<br />
A tabela que segue nos permite analisar o perfil econômico da elite caiense<br />
com base em critérios como profissão e origem étnica.<br />
19 RÜHEE; RÜHEE, 1921.<br />
20 PINTO, César Augusto Góes (Inventariado); PINTO, Modestina Coutinho dos Santos (Inventariante). [Inventário].<br />
São Sebastião do Caí, 1890 [Manuscrito]. Localização: Cartório órfãos e Ausentes, Auto n. 308, Maço n. 11,<br />
Ano 1890, APERS.<br />
21 NOLL, Pedro (Inventariado); NOLL, Elisabetha (Inventariante). [inventário]. São Sebastião do Caí, 1899 [Manuscrito].<br />
Localização: Cartório órfãos e Ausentes, Auto n. 561, Maço n. 18, Ano 1899, APERS.<br />
²² ROCHE, 1969, p. 561- 562.<br />
325
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
TABELA 1 – Perfil econômico da elite política caiense com base no total de<br />
bens constante nos inventários post-mortem por profissão e origem étnica<br />
326<br />
Valor total de bens Fazendeiros e<br />
proprietários<br />
Menos de 10 contos<br />
de réis<br />
Mais de 10 e menos<br />
de 50 contos de réis<br />
Mais de 50 e menos<br />
de 100 contos de réis<br />
Mais de 100 contos<br />
de réis<br />
Negociantes Outros (ativ.<br />
mecânicas, náuticas<br />
e liberais)<br />
TOTAL<br />
Luso Teuto Luso Teuto Luso Teuto<br />
4 1 1 4 - 1 11<br />
2 1 - 3 - 2 8<br />
- - 1 1 - - 2<br />
- - - 2 - - 2<br />
Total parcial por<br />
origem étnica<br />
6 2 2 10 - 3<br />
Total por profissão 8 12 3 23<br />
Elaborado pela autora com base nos Inventários Post-Mortem (APERS).<br />
Uma primeira constatação é a de que dos 23 vereadores dos quais localizamos<br />
algum inventário, 12 (52,17%) eram negociantes, o que já sinaliza para a importância<br />
deste grupo na economia local, sendo que destes, 10 eram negociantes de origem<br />
teuta, indicando o sucesso que imigrantes e descendentes tiveram ao atuarem no comércio,<br />
sucesso econômico que muito possivelmente foi reconvertido para o campo<br />
político. No tocante à origem étnica, chama a atenção que 15 dos 23 vereadores dos<br />
quais temos inventários (ou 65,22%) eram teuto-brasileiros, o que demonstra que,<br />
não raro, imigrantes ou seus descendentes conseguiram alcançar sucesso econômico.<br />
Se utilizarmos como padrão de análise os critérios de Jean Roche, que classificou<br />
os colonos imigrantes em duas categorias, a dos pobres e a dos abastados – sendo<br />
que os primeiros eram os que possuíam um patrimônio inferior a 2 contos de réis,<br />
enquanto os abastados eram os que tinham um patrimônio superior a tal quantia –<br />
constataremos que a elite política caiense era formada por homens de muitas posses,<br />
constituindo-se, efetivamente, numa elite econômica. Se levarmos em conta o cálculo<br />
feito por Roche de que, em 1870, o valor médio dos patrimônios dos colonos<br />
abastados girava em torno de 3 contos de réis, então a análise dos inventários dos<br />
vereadores caienses demonstra que, tanto no caso de teuto-brasileiros quanto de<br />
luso-brasileiros, a fortuna ultrapassava, e muito, na maior parte dos casos, os 3 contos<br />
de réis aos quais Roche se refere.²³<br />
23 ROCHE, 1969, p. 561- 562.
Mas, do que se constituía a fortuna destes indivíduos? Mais uma vez os inventários<br />
nos servem de fonte. 24 Através do arrolamento e da avaliação dos bens constantes<br />
nestes processos podemos ter acesso a importantes informações de como<br />
vivia e o que possuía esta elite política. Através da listagem dos bens constantes nos<br />
inventários podemos também tecer algumas considerações acerca da tendência de<br />
investimentos da elite em análise.<br />
A NATUREZA DOS INVESTIMENTOS<br />
Certamente, as perspectivas surgidas com a criação do município e a possibilidade<br />
de um maior envolvimento com a administração municipal, levaram a<br />
um enraizamento dos indivíduos analisados no próprio município, refletindo-se em<br />
investimentos locais, assim como na aquisição de bens que lhes garantissem uma<br />
diferenciação social capaz de manter seu pretendido status de “elite” 25 . A análise dos<br />
inventários de alguns dos membros da elite caiense revela, por exemplo, que grande<br />
parte dos investimentos esteve concentrada em imóveis. Apesar da dificuldade que<br />
encontramos em identificar o percentual de riqueza que investiram em terras, uma<br />
vez que estas apareciam, na grande maioria das vezes, avaliadas de forma conjunta<br />
com as casas de moradia e outras benfeitorias, ainda assim é possível afirmar que,<br />
diante do altíssimo percentual de riqueza concentrada em imóveis e da constatação<br />
de que, em muitos casos, entre estes imóveis havia terras cultiváveis, terras de mato e<br />
campos, boa parte das fortunas estava concentrada em bens rurais. Tal constatação é<br />
compreensível se levarmos em conta que, no contexto do século XIX, a propriedade<br />
rural era um importante elemento de distinção social. Mesmo entre os negociantes,<br />
que representam pouco mais de 52% do total de inventários analisados, o investi-<br />
24 Em sua Tese, Fábio Kuhn faz uso dos inventários para determinar a fortuna do grupo em análise, mas também<br />
para desvendar seus bens materiais e seus hábitos, assim como para entender o funcionamento da prática costumeira<br />
do dote no Rio Grande do Sul do século XVIII (KÜHN, Fábio. Gente de fronteira: família, sociedade e poder no<br />
sul da América Portuguesa – século XVIII. 2006. Tese (Doutorado em História) -- Programa de Pós Graduação<br />
em História. Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, RJ, 2006b). Também Marcos Ferreira de Andrade se<br />
vale dos inventários para “destacar alguns aspectos do cotidiano das famílias da elite do sul de Minas, seguindo os<br />
passos do que antropólogos e arqueólogos definem como cultura material” (ANDRADE, Marcos Ferreira de. Elites<br />
regionais e a formação do Estado imperial brasileiro: Minas Gerais – Campanha da Princesa (1799-1850). Rio<br />
de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008. p. 115, grifo do autor).<br />
25 Afirmar que estes indivíduos buscaram manter um status compatível com o de uma “elite” é atribuir-lhes consciência<br />
de que constituíam a elite de São Sebastião do Caí. E é exatamente esta a hipótese que sustentamos: de que os<br />
homens envolvidos com a política municipal não somente tinham consciência do status diferenciado que possuíam<br />
e desfrutavam, como também empregaram meios diversos para mantê-lo, meios estes que se refletiram também na<br />
composição de suas fortunas.<br />
327
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
mento em imóveis é bastante significativo. Dos 12 negociantes, somente um não tinha<br />
a maior parte da riqueza investida em imóveis. Era Felipe Carlos Trein que, entre<br />
todos os analisados, possuía a menor parte de bens investida em imóveis (19,31%)<br />
e a maior parte investida na sua casa de negócios (62,17%) 26 . É interessante notar,<br />
também, que os demais negociantes – sobre os quais se tem informações a partir dos<br />
inventários – tinham uma percentagem bastante pequena da riqueza correspondente<br />
aos seus negócios. É o caso de João Stoffels, negociante de Kronenthal, no distrito<br />
de Santa Catarina da Feliz que, ao falecer, em 1903, tinha apenas 1% do total de bens<br />
referidos correspondente à casa de negócios que mantinha, enquanto 93,82% do<br />
total de seus bens aparecem convertidos em imóveis. 27 Assim, é possível supor que<br />
os negociantes, em sua maioria, convertiam o capital que adquiriam no comércio<br />
na aquisição de imóveis, entre terras rurais, terrenos urbanos, prédios residenciais e<br />
benfeitorias.<br />
A análise mais detalhada da composição das fortunas destes homens leva a<br />
crer que o investimento em novas terras, sobretudo lotes coloniais, tornou-se uma<br />
estratégia de aumento de riqueza. Witt observou que, a expansão dos núcleos iniciais<br />
de colonização e o surgimento de companhias particulares de colonização, associados<br />
à própria “pressão demográfica e a procura de novas terras, ampliaram e valorizaram<br />
o mercado imobiliário” 28 . Possivelmente, muitos dos indivíduos dentre os que<br />
analisamos compravam lotes coloniais com a finalidade de uma posterior revenda,<br />
mesmo porque a terra continuava sendo encarada como aquela capaz de gerar mais<br />
riquezas, razão pela qual procuraram aproveitar-se do processo de colonização para<br />
aplicar e multiplicar seu patrimônio. É este o caso de pelo menos seis dos vereadores<br />
analisados. Carlos Eckert possuía duas colônias no fim da linha São Salvador e meia<br />
colônia em Santo Amaro, no Termo de Taquari. 29 Já Frederico Arnoldo Engel era<br />
proprietário de 3 e meia colônias de terra cultivada no primeiro distrito do município<br />
de Taquara do Mundo Novo. 30 Reinhold Feix, aparece, no seu inventário, como<br />
dono de um quarto do lote colonial nº 9 da ex-colônia de Santa Maria da Soledade,<br />
no município de Montenegro. 31 Mais interessante nos parece ser o caso de Pedro<br />
26 TREIN; TREIN, 1899.<br />
27 STOFFELS, João (Inventariado); STOFFELS, Catharina (Inventariante). [inventário]. São Sebastião do Caí,<br />
1903 [Manuscrito]. Localização: Cartório órfãos e Ausentes, Auto n. 693, Maço n. 22, Ano 1903, APERS.<br />
28 WITT, 2008. p.116-117.<br />
29 ECKERT, Luiza (Inventariado); ECKERT, Carlos (Inventariante). [inventário]. São Sebastião do Caí, 1878 [Manuscrito].<br />
Localização: Cartório órfãos e Ausentes, Auto n. 57, Maço n. 2, Ano 1878, APERS. p. 11v-12.<br />
30 ENGEL, Frederico Arnoldo (Inventariado); ENGEL, Júlia Carolina (Inventariante). [inventário]. São Sebastião<br />
do Caí, 1904 [Manuscrito]. Localização: Cartório órfãos e Ausentes, Auto n. 719, Maço n. 23, Ano 1904, APERS.<br />
p. 4v.<br />
³¹ FEIX, Reinhold (Inventariado); FEIX, Anna Maria (Inventariante). [inventário]. São Sebastião do Caí, 1906<br />
[Manuscrito]. Localização: Cartório órfãos e Ausentes, Auto n. 808, Maço n. 25, Ano 1906, APERS. p. 3v-4.<br />
328
Noll que, além de um elevado número de colônias em Taquara do Mundo Novo –<br />
16 no total –, era proprietário de um pedaço de terra em São Vincenzo, na primeira<br />
légua de Caxias, portanto, em território de imigração italiana. 32<br />
Entretanto, esse negócio nem sempre resultava em lucros. Em alguns casos,<br />
tornou-se um grande prejuízo, como revelam os inventários de João Weissheimer<br />
e Felipe Carlos Trein. Weissheimer havia comprado 3 colônias em Lajeado, tendo<br />
descoberto, posteriormente, que tais colônias não existiam, como esclarece seu inventário:<br />
“O finado foi como muitos outros victima de uma cavalheiro de industria<br />
que, na qualidade de procurador de pessoa que talvez nem exista vendeu lhes tres<br />
colonias que dizia sitas no municipio de Lageado, mas cuja existência é igualmente<br />
problemática”. 33 Já a casa comercial que Felipe Carlos Trein tinha em sociedade com<br />
Adolfo Oderich adquiriu, em 6 de março de 1899, 30 colônias de Ernesto Mehring,<br />
situadas na Barra Funda, segundo distrito de Lajeado, pelo significativo valor de 8<br />
contos de réis. Tais colônias, entretanto, eram fictícias. Segundo Guilhermina Trein,<br />
viúva de Felipe Carlos Trein, o mesmo ocorrera com “muitos outros que compraram<br />
terras deste indivíduo, que não existem” 34 .<br />
De todo modo, lucrativos ou não, os negócios de compra de lotes coloniais<br />
realizados por alguns dos vereadores de São Sebastião do Caí os inserem num contexto<br />
de expansão do mercado imobiliário, em função da constante chegada e instalação<br />
de imigrantes europeus.<br />
Se o investimento em terras foi comum entre a elite, pudemos constatar, por<br />
outro lado, que poucos foram os indivíduos que possuíam capital em espécie arrolado<br />
nos inventários, pois encontramos referência a capital em conta corrente em apenas<br />
dois dos 23 vereadores com inventários. Eram eles, Pedro Noll e Felipe Carlos<br />
Trein, ambos negociantes. Noll possuía 7 contos de réis, o que representava 3,32%<br />
do total de seu patrimônio, depositado no Banco da Província. 35 Já Trein, possuía<br />
uma quantia bem maior, 21:443$490 réis, correspondentes a 12,84% de seus bens,<br />
depositados em conta corrente com Edmundo Dreher & Cia, de Porto Alegre, a 6%<br />
de juros ao ano. 36 O interessante é que nos dois únicos casos em que há referência a<br />
³² NOLL; NOLL, 1899, f. 10-10v.<br />
³³ WEISSHEIMER, João (Inventariado); WEISSHEIMER, Elisabetha (Inventariante). [inventário]. São Sebastião<br />
do Caí, 1900 [Manuscrito]. Localização: Cartório do Cível, Auto n. 92, Maço n. 3, Ano 1900, APERS. f. 14v.<br />
34 TREIN; TREIN, 1899, f. 14.<br />
35 NOLL; NOLL, 1900, f. 52.<br />
36 TREIN; TREIN, 1899, f. 54.<br />
329
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
dinheiro depositado em contas correntes, ambos eram negociantes, apontando para<br />
uma diferenciação importante quanto ao poder econômico e ao espírito investidor<br />
destes. Segundo Witt, tal procedimento [o depósito em dinheiro em conta corrente],<br />
“não estava ao alcance da maioria dos colonos em virtude das exigências e do conhecimento<br />
que o futuro cliente deveria ter para abrir a sua conta”. Witt completa que<br />
“Essa dificuldade ou temerosidade – de abrir conta bancária – chegou até a década<br />
de 1990” quando muitos, ao invés de o fazerem optavam por confiar quantias de<br />
dinheiro “aos donos da venda mais forte do lugarejo”, que então abatia da quantia as<br />
compras que o colono fazia na venda. 37<br />
Mas os inventários informam, também, que pelo menos quatro vereadores<br />
(10,53% do total de vereadores ou 17,39% dos vereadores com inventários) possuíam<br />
algum capital investido em ações. A natureza das ações variava. César Augusto<br />
Góes Pinto possuía uma ação da Estrada de Ferro de São Leopoldo, desvalorizada<br />
em 1890 a 100 mil réis. 38 Já Carlos Eckert, possuía 2 ações do Vapor Barão do Cahy,<br />
que juntas valiam 200 mil réis. 39 Mas quem investiu o maior capital em ações foram<br />
Pedro Noll e João Weissheimer, ambos comerciantes no distrito de Santa Catarina<br />
da Feliz. Weissheimer possuía 4 ações na Companhia de Navegação Cahy, que juntas<br />
somavam 800$000 réis e 2 ações na Sociedade Irmãos Corrêa & Cia, no valor total<br />
de 400$000 réis, sociedade esta que tinha por objetivo construir uma ponte junto ao<br />
passo existente naquele distrito. 40 Já Pedro Noll possuía 5 ações na Companhia de<br />
Navegação Cahy, totalizando 1:250$000 réis; 4 ações na mesma Sociedade Irmãos<br />
Corrêa & Cia, a 800 mil-réis; e 20 ações na Sociedade de Atiradores de Feliz, com<br />
valor total de 1 conto de réis. Além destas, possuía ainda 5 ações na Companhia de<br />
Melhoramentos Cahy – cuja finalidade era melhorar as condições do rio Caí, para<br />
facilitar a navegação –, e 3 ações na Estrada de Ferro Novo Hamburgo, todas estas<br />
sem valor em 1899, quando da abertura dos autos do inventário de Pedro Noll. 41 A<br />
natureza das ações revela o espírito investidor destes homens. Os dois negociantes<br />
em questão investiram diretamente em ações relacionadas a sua atividade, como é<br />
o caso das ações na Sociedade Irmãos Corrêa & Cia., na Companhia de Navegação<br />
Cahy e na Companhia de Melhoramentos Cahy, todas relacionadas ao transporte de<br />
37 WITT, 2008, p. 122, grifo do autor.<br />
38 PINTO; PINTO, 1890, f.3.<br />
39 ECKERT; ECKERT, 1878, f. 12.<br />
40 WEISSHEIMER; WEISSHEIMER, 1900, f. 13-13v.<br />
41 NOLL; NOLL, 1899, f. 15-15v.<br />
330
mercadorias pelo rio Caí. A aquisição de ações de estradas de ferro, no caso da estrada<br />
de ferro Novo Hamburgo e da estrada de ferro São Leopoldo, revelam, segundo<br />
observado por Marcos Witt, “a importância desse novo veículo de comunicação<br />
entre a capital da província e a Colônia-Mãe [São Leopoldo], já expandida até Novo<br />
Hamburgo”. 42<br />
Para além de uma possível orientação dos investimentos para o benefício do<br />
município, a aquisição destas ações deve ter sido feita, muito provavelmente, para<br />
gerar lucros, o que efetivamente nem sempre ocorreu, como se percebe pelos inventários<br />
de César Augusto Góes Pinto, em que a ação da estrada de ferro São Leopoldo<br />
aparece desvalorizada, e no de Pedro Noll, em que constam que suas três ações na<br />
estrada de ferro Novo Hamburgo não possuíam qualquer valor. Talvez nas ações<br />
que Pedro Noll e João Weissheimer tinham na Sociedade Irmãos Correa & Cia.<br />
possamos encontrar mais nitidamente esse espírito colaborador a que se refere Witt.<br />
Conforme foi possível acompanhar através de correspondências, relatórios e atas<br />
da Câmara Municipal de São Sebastião do Caí era premente a necessidade de uma<br />
ponte junto ao Passo da Boa Esperança, na povoação de Picada Feliz. Por diversas<br />
vezes, moradores locais – em especial, negociantes – e a Câmara Municipal solicitaram<br />
a construção de tal ponte ao governo provincial, sem que tal empreendimento<br />
fosse realizado. Assim, ao que parece, a construção de tal ponte deu-se por volta<br />
de final do século XIX e início do XX, através de uma sociedade da qual tomaram<br />
parte muitos moradores locais, interessados na realização da obra, como é o caso<br />
de Weissheimer e Noll, que, como negociantes locais, dependiam desta para melhor<br />
transportar suas mercadorias. 43<br />
Foi a partir do arrolamento e avaliação dos bens constantes nos inventários<br />
que nos foi possível traçar esse quadro de investimentos feitos pela elite caiense de<br />
final do século XIX. Mas os inventários podem também ser importante fonte para<br />
perscrutarmos aspectos do modo de vida da elite caiense, sobretudo de seu espaço<br />
privado, como a seguir demonstramos. 44<br />
42 Witt, ao observar os investimentos feitos por Jacob Diefenthäler na aquisição de papéis de estrada de ferro,<br />
deduziu que este pudesse ter “vislumbrado o crescimento econômico que a nova forma de deslocamento poderia<br />
proporcionar ao mundo colonial em que estava inserido”, já que até então o rio constituía a via principal de transporte<br />
de mercadorias, concluindo então que “Portanto, adquirir ações e títulos poderia ser uma forma de contribuir<br />
e garantir a conclusão da obra ferroviária” (WITT, 2008, p. 116).<br />
43 É preciso ainda destacar que as ações que Pedro Noll possuía junto à Sociedade de Atiradores de Feliz podem ser<br />
reveladores de uma faceta da sociabilidade desta elite.<br />
44 Procedimento semelhante foi adotado por Jurandir Malerba, para “observar ‘esses índices de civilidade’, constituídos<br />
por objetos de uso cotidiano” da elite imperial no Rio de Janeiro no início do século XIX (MALERBA, Jurandir.<br />
A corte no exílio: civilização e poder no Brasil às vésperas da Independência (1808-1821). São Paulo: Companhia<br />
das Letras, 2000. p. 148); por Fábio Kühn (2006b), com a finalidade de desvendar aspectos do modo de vida nos<br />
Campos de Viamão no século XVIII; e por Marcos Ferreira de Andrade (2008), para caracterizar a vida material da<br />
elite de Campanha da Princesa, Minas Gerais, na primeira metade do século XIX.<br />
331
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
332<br />
A AVALIAçãO DOS BENS:<br />
INDíCIOS DE UM MODO DE VIDA<br />
Nos inventários encontramos, muitas vezes, além da menção aos bens de propriedade<br />
do inventariado, a descrição – algumas vezes bem detalhada – destes bens,<br />
de modo que podemos ter uma noção não somente dos bens que possuíam como<br />
também de características mais específicas destes.<br />
A descrição realizada em muitos inventários, por exemplo, pode revelar como<br />
eram as casas habitadas pelos membros da elite analisada. Em alguns casos encontramos<br />
uma descrição bastante detalhada das casas de moradia dos inventariados,<br />
revelando, então, mais detalhadamente, o padrão de vida da elite analisada e os meios<br />
materiais que esta utilizava para expressar o status elevado que a diferenciava do<br />
restante da população.<br />
O contexto de desenvolvimento da região colonial ao longo do século XIX<br />
ajuda a explicar a significativa melhoria nos padrões de moradia da elite caiense<br />
constatada em nossa pesquisa. O fato de o povoamento da região do vale do rio Caí,<br />
ao longo do século XIX, ter-se inserido em um projeto maior de colonização, encabeçado<br />
pelo governo imperial, e o desenvolvimento alcançado ao longo da segunda<br />
metade do século, sobretudo demográfico e econômico, conferiram maior confiança<br />
na prosperidade do povoado, derivando desta condição, maiores investimento, por<br />
parte da elite local, em bens imóveis como terras rurais e terrenos urbanos, benfeitorias<br />
e casas de moradia de melhor padrão.<br />
Ao analisarmos as características das casas da elite política caiense, percebemos<br />
que tais possuíam um bom padrão de moradia, apesar de que há uma clara<br />
diferenciação interna ao grupo. Algumas das residências aparecem descritas como<br />
construídas de pedra. É o caso da casa de moradia de Pedro Noll, no distrito de Santa<br />
Catarina da Feliz: “construída de pedra, coberta com telhas de barro e de zinco,<br />
forrada e assoalhada com 20m de frente e 13,2m de fundo; com 2 portas e 6 janellas<br />
na frente”. Tal construção constitui um imóvel típico de um indivíduo de significativas<br />
posses, afinal, foi avaliado em 15 contos de réis. 45 Mas, muito comuns, neste final<br />
do século XIX e início do XX eram as casas construídas de tijolos. Assim era a casa<br />
de Alberto Thomaz Scherer, na Vila de São Sebastião do Caí e a de Justino Antônio<br />
da Silva, em Costa da Serra, no distrito de Santana do Rio dos Sinos. A cobertura das<br />
45 NOLL; NOLL, 1899, f. 8.
casas ou era feita de telhas de barro ou então de zinco. Algumas, inclusive, combinavam<br />
estes dois tipos de cobertura em um mesmo imóvel. 46<br />
Nos inventários que analisamos, a maioria das residências é descrita como sendo<br />
“forradas e assoalhadas”, denotando que tais condições constituíam um diferencial<br />
em relação à construção de outras. Para o caso de São Leopoldo e Litoral Norte<br />
do Rio Grande do Sul, Marcos Witt também constatou que três itens – ser construída<br />
“de pedra, forrada e assoalhada” – identificavam que se tratava de uma residência<br />
que estava acima dos padrões da maioria das ocupadas pelos colonos. 47 Dos inventários<br />
em que constam descrições dos imóveis, somente em três deles encontramos<br />
referências a sobrados, que, definitivamente, eram os mais bem avaliados. É o caso<br />
das residências de Frederico Arnoldo Engel, Pedro Franzen Filho e Felipe Carlos<br />
Trein, ambos na Vila de São Sebastião do Caí. Engel possuía um sobrado avaliado<br />
em 15 contos de réis, enquanto Trein era proprietário de dois sobrados, adquiridos<br />
após o falecimento de sua primeira esposa, Henriqueta Trein, em 1878. 48 Juntos, os<br />
dois sobrados de Trein valiam 27 contos de réis, ou seja, 16,17% de todos os bens<br />
de Trein. Entretanto, a avaliação do sobrado de Pedro Franzen Filho destoa da dos<br />
demais, pois este foi avaliado em apenas 1 conto e 200 mil-réis, o que pode denotar<br />
uma considerável diferença entre as condições da construção em relação aos demais<br />
sobrados, ou estar diretamente relacionado à não incomum prática de sub-avaliação<br />
do valor dos bens com vistas ao pagamento de taxas de impostos menores49 .<br />
A grandiosidade de algumas residências pode ser constatada pelo número de<br />
portas e janelas descritas. De acordo com Mara Regina Kramer Silva, que analisa o<br />
simbolismo dos traços arquitetônicos das residências da elite republicana nos Campos<br />
de Cima da Serra (RS), a concentração de aberturas na fachada principal “conota<br />
receptividade para com os visitantes”. 50 Um dos sobrados de Felipe Carlos Trein<br />
46 Essa maior incidência de casas feitas de paredes de tijolos e cobertas com telhas de barro podem ser representativas<br />
da existência de um número significativo de olarias no município. Somente no primeiro trimestre de 1885, cinco<br />
impostos sobre olaria foram pagos à Câmara Municipal. SãO SEBASTIãO DO CAí. Câmara Municipal. Livro<br />
para Lançamento das Receitas e Despesas da Câmara Municipal da Vila de São Sebastião do Caí. São Sebastião do<br />
Caí: 1876-1885 [Manuscrito]. Localização: AHMBM.<br />
47 WITT, 2008, p. 115.<br />
48 Não sabemos precisar a forma de aquisição destes imóveis por Felipe Carlos Trein, pois trabalhamos apenas com<br />
os cruzamentos de informações entre o inventário de Henriqueta Trein, sua primeira esposa, datado de 1878, quando<br />
então os sobrados não são arrolados entre os bens, e o inventário do próprio Felipe Carlos Trein, que data de<br />
1899 e no qual constam entre seus bens dois sobrados, que se comunicavam entre si, na Vila de São Sebastião do Caí.<br />
49 Muito possivelmente, essa segunda opção – a de subavaliação dos bens – é o que pode explicar o valor menor<br />
com que é avaliada a casa assobradada de Franzen, pois no inventário deste constam acusações de que tal prática<br />
teria ocorrido.<br />
50 SILVA, Mara Regina Kramer. Linguagem simbólica de poder: arquitetura rural gaúcha. 1996. Dissertação<br />
(Mestrado em História) -- Programa de Pós-Graduação em História. Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São<br />
Leopoldo, RS, 1996. p. 118.<br />
333
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
possuía 1 porta e cinco janelas de frente. O sobrado de Frederico Engel possuía uma<br />
porta que fazia ângulo com a esquina da rua Tiradentes com a rua General Câmara<br />
e 4 janelas em cada frente, segundo informações do inventário do próprio Engel, e<br />
que podem ser confirmadas pela fotografia do sobrado. 51 Se considerarmos a perspectiva<br />
de análise proposta por Silva, então as duas fachadas principais do sobrado<br />
de Engel apontam para a sua condição de homem público, vereador e figura ativa na<br />
comunidade evangélica de São Sebastião do Caí.<br />
Ainda acerca da casa de Engel é interessante notar que sua residência possuía<br />
traços característicos da arquitetura luso-açoriana, como as janelas retangulares emolduradas<br />
externamente por um friso, denotando assim a assimilação de valores da nova<br />
sociedade em que este imigrante alemão se inseriu. 52 O porão alto existente no sobrado,<br />
como se pode constatar pela fotografia abaixo, constitui, segundo Reis Filho, uma<br />
característica de casas abastadas típicas da primeira metade do século XIX. 53<br />
51 Para além do caráter simbólico das aberturas, é preciso considerar que estas tinham a função de garantir a incidência<br />
do sol e a ventilação no interior das edificações, sobretudo em regiões marcadas por um inverno mais rigoroso,<br />
havendo, inclusive, prescrições fixadas no Código de Posturas do município em relação às medidas que deveriam ser<br />
observadas nas portas e janelas das construções localizadas na Vila. (SILVA, 1996. p. 116).<br />
52 Se foi possível observar traços da arquitetura lusitana nas residências do município, não podemos deixar de referir<br />
a influência da arquitetura germânica em muitas delas, mesmo porque muitos dos vereadores eram imigrantes ou<br />
descendentes de alemães. Este é o caso da residência de Georg Henrique Ritter, pai do vereador Henrique Ritter<br />
Filho, construída em Linha Nova, então pertencente à freguesia de São José do Hortêncio, dotada do característico<br />
estilo enxaimel, herança da arquitetura westfaliana (WEIMER, Günter. A arquitetura rural da imigração alemã. In:<br />
BERTUSSI, Paulo Iroquez et al. A arquitetura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983. p.<br />
110).<br />
53 REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da arquitetura no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1970. p. 40.<br />
334
Figura 1 - Sobrado de Frederico Arnoldo Engel na Vila de São Sebastião do Caí 54<br />
Fonte: Acervo AHMBM<br />
Mas, como se pode constatar pela análise dos inventários, as grandes e imponentes<br />
residências não se restringiam à vila, já que casa de Antônio José da Rocha<br />
Júnior, em Santana do Rio dos Sinos, possuía 7 janelas de frente, e a de Justino Antônio<br />
da Silva, no mesmo distrito, possuía 4 portas de frente e 3 janelas.<br />
Poucos são os inventários que descrevem e realizam a avaliação das casas<br />
de moradia em separado dos terrenos em que estas estavam construídas, o que,<br />
então, dificulta a determinação do valor destas residências. O que se pode observar,<br />
entretanto, é que as casas construídas no Termo da Vila eram melhor avaliadas em<br />
comparação à maioria das residências construídas em distritos do interior, em zona<br />
propriamente rural. A casa de Paulino Ignácio Teixeira, no distrito de Santana do<br />
Rio dos Sinos, mesmo sendo uma ampla casa, composta de diversas peças e avaliada<br />
conjuntamente ao terreno e mais benfeitorias, não ultrapassou o valor de 4 contos de<br />
réis, valor bastante inferior se comparado aos sobrados de Trein e ao de Engel localizados<br />
na Vila, termo-sede do município. Apesar desta diferenciação, é importante<br />
ressaltar que muitas das residências destes vereadores, mesmo que muito distintas<br />
dos pesados e sólidos sobrados patriarcais descritos por Freyre 55 denotavam, pois,<br />
sua melhor condição econômica. Quer se localizassem no meio rural, quer no meio<br />
54 Fotografia sem data.<br />
55 FREYRE, Gilberto. Casa grande & sensala. 18. Ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1977. p. 77.<br />
335
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
urbano, destacavam-se no conjunto de residências do município, aspecto este que<br />
foi também constatado por Silva quando esta observou, inclusive, a existência de<br />
distinções significativas entre as residências de membros da própria elite republicana<br />
por ela estudada. 56<br />
Mas também os móveis – funcionais ou decorativos – existentes nas residências<br />
podem revelar os padrões de vida desta elite que buscamos caracterizar, apesar<br />
de muitas vezes serem subestimados na avaliação ou nem sequer constarem nesta.<br />
A análise que realizamos dos bens móveis constantes nos inventários permite-nos<br />
afirmar que a elite caiense não possuía muitos bens de conforto, afinal, apenas uma<br />
pequena parte da fortuna destes indivíduos estava aplicada em bens móveis. Em<br />
nenhum dos inventários a percentagem de bens móveis ultrapassou 5% do total dos<br />
bens avaliados.<br />
Além disso, muitos dos bens arrolados, que se repetiam constantemente nos<br />
diversos inventários, eram bens que poderíamos denominar de “primeira necessidade”,<br />
tais como utensílios de cozinha, camas, mesas e cadeiras. Entretanto, em alguns<br />
casos foi possível identificar a presença de objetos mais sofisticados, denotando um<br />
maior poder aquisitivo, bem como um status social mais elevado. Cômodas, marquesas,<br />
aparadores e mobílias apareceram em muitos dos arrolamentos de bens dos<br />
inventários. Essa presença, em uma mesma residência, de artigos muito simples e de<br />
bens de luxo foi percebida e descrita por Malerba que, ao analisar os bens da elite<br />
carioca, nas primeiras décadas dos oitocentos, no contexto da transferência da Corte<br />
portuguesa para o Brasil, constatou que: “Mas se há, mesas com tampo de pedra ou<br />
colunas torneadas, é significativo constarem ao lado de referências singelas, como<br />
‘caixas’ ou ‘dois barris’, ou ‘duas gamelas pequenas’”. 57<br />
Assim, a heterogeneidade econômica desta elite política local, apontada anteriormente<br />
no Gráfico 1, é referendada pela composição dos bens móveis destes<br />
indivíduos, nas quais pode-se perceber distintos padrões de vida, já que algumas<br />
56 Em sua Dissertação, Mara Silva analisou duas fazendas na região dos Campos de Cima da Serra (RS) – a Fazenda<br />
Estrela, do Coronel Libório Rodrigues, e a Fazenda Branca, de propriedade do Coronel Avelino Paim – com o intuito<br />
de “decifrar a linguagem simbólica relativa à construção, manutenção e legitimação do poder de seus proprietários<br />
junto a seus subordinados, objetivando verificar a interferência da arquitetura nas relações de força” (SILVA, 1996,<br />
p. 99). Ao analisar a cobertura das duas casas-sede, Silva constatou a existência de um padrão nos dois casos analisados<br />
– ambas seguem o modelo de telhado quatro águas, característico do sobrado na arquitetura colonial brasileira<br />
– que as distingue das edificações de outros membros da elite econômica da região: “A grande maioria das demais<br />
residências rurais contemporâneas, por nós trabalhadas, embora também pertencentes à oligarquia rural, exibem<br />
uma cobertura de duas águas com inclinações laterais” (SILVA, 1996, p. 113-114).<br />
57 MALERBA, 2000, p.149.<br />
336
esidências aparecem mais sofisticadas que outras. Alguns inventários chamam a<br />
atenção por apresentarem os bens móveis avaliados em mais de 2 contos de réis,<br />
diferenciando-se de outros que possuíam apenas 22 ou 100 mil-réis em bens móveis.<br />
Felipe Carlos Trein, por exemplo, possuía 2:816$000 em bens móveis. Sua casa na<br />
vila de São Sebastião do Caí era bem localizada e, com certeza, chamava a atenção<br />
dada a sua imponência, pois se tratava de uma casa assobradada, tendo à frente uma<br />
porta e cinco janelas, localizada à rua Tiradentes esquina com a Praça Ramiro Barcelos.<br />
Em seu interior, podiam ser encontradas duas mobílias estofadas – que juntas<br />
valiam 750 mil-réis –, camas, bidê, armários – inclusive, armário para livros! –, guarda-roupas,<br />
mesa e cadeiras. Além da mobília, a casa contava com artigos decorativos,<br />
como relógios, quadros, tapetes e cortinas que encobriam as janelas (no inventário<br />
estão listadas 4 pares de cortinas que juntas foram avaliadas em 210 mil-réis). 58<br />
Já a casa de Carlos Berto Círio, em Santana do Rio dos Sinos, era bem mais<br />
modesta. Podiam ser encontradas nela mesas, cadeiras de pau, uma cadeira de balanço,<br />
baús, armário para louças e uma velha cômoda. 59 Entretanto, nenhum artigo de<br />
decoração como as cortinas, os quadros e tapetes existentes na casa de Felipe Trein.<br />
E, se acaso existiram, não constaram no arrolamento, provavelmente por não possuírem<br />
valor monetário significativo.<br />
Se na casa de Trein que morava na Vila de São Sebastião do Caí existiam<br />
artigos de luxo, o fato de residir em um distrito do interior do município não significava<br />
que alguns dos membros da elite abrissem mão de possuir bens mais luxuosos.<br />
Paulino Ignácio Teixeira, residente em Santana do Rio dos Sinos, não se furtou de<br />
ter artigos de luxo em sua casa. Teixeira possuía uma casa térrea, bastante ampla –<br />
com sala, alcovas, varanda e cozinha – feita de paredes de pedra e coberta de telha,<br />
sendo a edificação forrada e assoalhada. Junto à casa, que ficava em terreno cercado,<br />
encontravam-se algumas benfeitorias, como casa de atafona, paiol e um galpão<br />
para guardar as carretas. Dentre a mobília, destacavam-se um sofá feito de madeira<br />
e palhinha, duas cadeiras de braço e duas de encosto feitas de palhinha, uma mesa<br />
redonda, dois consolos com pedra de mármore e dois grandes espelhos. Castiçais,<br />
tapete, caixinha de música e piano, artigos estes de luxo, completavam a decoração.<br />
60 A presença de tais objetos pode ser representativo do processo de aumento<br />
58 TREI; TREIN, 1899, f. 21-22v.<br />
59 CIRIO, Narcisa Amélia (Inventariado); CIRIO, Carlos Berto (Inventariante). [inventário]. São Sebastião do Caí,<br />
1888 [Manuscrito]. Localização: Cartório órfãos e Ausentes, Auto n. 278, Maço n. 10, Ano 1888, APERS. f. 12.<br />
60 TEIXEIRA, Isolina Lopes Mariante (Inventariado); TEIXEIRA, paulino Ignácio (Inventariante). [inventário].<br />
São Sebastião do Caí, 1891 [Manuscrito]. Localização: Cartório órfãos e Ausentes, Auto n. 343, Maço n. 12, Ano<br />
1891, APERS. p. 24-26.<br />
337
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
das importações de bens de consumo destinados a consumidores endinheirados –<br />
semiduráveis, duráveis, supérfluos – descrito por Luiz Felipe de Alencastro como<br />
característico da segunda metade do século XIX. Assim, jóias, objetos de ouro e<br />
prata, relógios de algibeira e piano se tornaram mais comuns, segundo Alencastro,<br />
nas residências da elite imperial. 61<br />
Mas não eram somente imóveis e bens móveis que podiam traduzir o status superior<br />
da elite caiense. Não se deve desconsiderar o fato de que esta elite, mesmo vivendo<br />
em uma zona colonial – o que, muitas vezes, foi utilizado pela historiografia como motivo<br />
para que fosse negada a posse de escravos por colonos imigrantes –, encontrava-se<br />
inserida em uma lógica social escravista. Isto foi demonstrado por Witt que, ao analisar<br />
o caso da família Voges, de São Leopoldo, constatou que, a exemplo de muitas outras<br />
estabelecidas na região colonial, os Voges compravam e mantinham escravos em suas<br />
propriedades. 62 Raul Róiz Shefer Cardoso, detendo-se especificamente sobre a região do<br />
vale do rio Caí, observou que a presença escrava foi significativa nesta região:<br />
Localizamos, no Vale do Caí, a presença de várias fazendas, algumas das quais<br />
destacaram-se pela sua extensão ou pela representatividade de seus proprietários na região,<br />
pelos bens arrolados nos inventários ou pelo expressivo número de escravos encontrados<br />
na matrícula de registro ou na partilha dos bens inventariados. Sobressaíram-se<br />
na nossa pesquisa as fazendas: Carioca, Demanda, Morretes, Boa Vista, Estrela, Rio dos<br />
Sinos, das Palmas. 63<br />
Esta presença pôde ser confirmada em dois inventários da amostra de 27 que analisamos,<br />
sendo estes de dois vereadores de origem luso-brasileira. Como as informações<br />
de inventários eram bastante escassas, recorremos a outras fontes documentais que demonstram<br />
a presença de escravos no município entre as propriedades da elite local64 : nas<br />
61 ALENCASTRO, 1997, p. 36-37.<br />
62 WITT, 2008, p. 43.<br />
63 CARDOSO, Raul Róis Schefer. Capítulos de formação de um território negro: a escravidão rural no Vale<br />
do Caí (RS- 1870/1888). 2005. Dissertação (Mestrado em História) -- Programa de Pós-Graduação em História.<br />
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, 2005. p. 40.<br />
64 Os inventários em que constam escravos arrolados entre os bens são os de Emília Angélica Loureiro, esposa<br />
de Agostinho de Souza Loureiro, e o de Antônio José da Rocha Júnior. Quando da morte de sua esposa Emília<br />
Angélica Loureiro, em 1876, Agostinho de Souza Loureiro possuía 4 escravos. Jorge, “preto velho” e Manoel, também<br />
descrito como “preto velho”, avaliados em 600 mil-réis cada; o “criolo moço” Marcos, que valia 1:200$000 e<br />
o “Crioulinho” Olimpio, de 600 mil-réis (LOUREIRO, Emília Angélica (Inventariado); LOUREIRO, Agostinho<br />
de Souza (Inventariante). [inventário]. São Sebastião do Caí, 1876 [Manuscrito]. Localização: Cartório órfãos e<br />
Ausentes, Auto n. 23, Maço n. 1, Ano 1876, APERS). Já no inventário de Antônio José da Rocha Júnior, datado de<br />
1884, consta como sendo de sua propriedade a preta Luiza, que lhe prestava serviços e fora avaliada em 100 mil-réis<br />
(ROCHA JÚNIOR, Antônio José da (Inventariado); ROCHA, Fausta Corte Real da (Inventariante). [Inventário].<br />
São Sebastião do Caí, 1884 [Manuscrito]. Localização: Cartório órfãos e Ausentes, Auto n. 165, Maço n. 6, Ano<br />
1884, APERS).<br />
338
eceitas da Câmara Municipal, encontramos arrolados como compradores de escravos<br />
– e, portanto, pagantes de 2% do valor do escravo em imposto – Antônio Pires<br />
Cerveira e Paulino Ignácio Teixeira. Cerveira comprou em 1880, de José Fernandes<br />
Vieira, a escrava Leopoldina, por quem pagou a quantia de 1:200$000. Já Paulino<br />
Ignácio Teixeira comprou em 1883 de Joaquim Pires da Cruz a escrava Izabel pelo<br />
valor de 500 mil-réis. 65 Se todas as fontes até agora referidas trazem luso-brasileiros<br />
como proprietários de escravos, o Mapa de População do primeiro quarteirão de<br />
Porto do Guimarães demonstra que imigrantes e descendentes teutos também possuíam<br />
bens de tal natureza. De acordo com o Mapa de População, datado, provavelmente,<br />
de 1868, Guilherme Zirbes era proprietário de um escravo, de naturalidade<br />
brasileira, 24 anos, chamado Gregório. 66 No mesmo documento, encontramos dados<br />
sobre a família de Cristiano Sauer. Nele, além da menção ao pardo Panciano Francisco<br />
Santos – que, acreditamos possa ter sido uma espécie de agregado da família<br />
Sauer, já que não está arrolado como escravo – encontramos a informação de que<br />
Cristiano Sauer era proprietário do escravo Stefânio, preto, brasileiro de 18 anos. 67<br />
Como evidenciamos, o fato de esta elite residir em um município que não<br />
possuía traços de um grande centro urbano – uma vez que, no máximo, podia ser<br />
considerado um entreposto comercial – não impediu que ela buscasse, através da<br />
aquisição de bens móveis, mais do que conforto, a garantia de prestígio. Esta mes-<br />
65 SãO SEBASTIãO DO CAí. Câmara Municipal. Livro para Lançamento das Receitas e Despesas da Câmara Municipal<br />
da Vila de São Sebastião do Caí. São Sebastião do Caí: 1876-1885 [Manuscrito]. Localização: AHMBM. f. 30v.<br />
66 JUNG, J. Pedro (Inspetor de Quarteirão). Mappa da população do Quarteirão de Porto Guimarães n. 1.<br />
[Manuscrito]. Localização: Fundo Polícia, Maço 40, São Leopoldo, 1º Quarteirão do 5º Distrito de São Leopoldo,<br />
[1868?], AHRGS.<br />
67 Assim, valendo-nos de diferentes fontes documentais, podemos afirmar que, dos 38 vereadores, temos informações<br />
de que pelo menos 6 foram donos de escravos. Entretanto, acreditamos que este número possa ter sido muito<br />
mais elevado, já que as fontes de que nos valemos – listas de população, receitas da Câmara Municipal e inventários<br />
– não são propriamente as mais adequadas para isso. Os últimos, por si só, não são suficientes, afinal, a grande<br />
maioria dos inventários é do período pós-abolição, de modo que não podemos saber se, antes disto, o indivíduo<br />
possuía ou não escravos. Já no caso das receitas da Câmara, estas só nos revelam a propriedade de escravos no caso<br />
de uma transação comercial, ocasião em que o comprador tinha que, necessariamente, pagar uma taxa aos cofres<br />
públicos. Obviamente, não encontramos nenhuma escravaria como as existentes em outras regiões do Brasil e mesmo<br />
em outras regiões do Rio Grande do Sul, como foi observado também por Cardoso: “[...] A opção dos grandes<br />
proprietários de terras da freguesia de Santana do Rio dos Sinos foi a de utilizar-se da mão-de-obra escrava. Para<br />
os parâmetros das Charqueadas do Rio Grande do Sul, o contingente escravo não era tão significativo. Contudo,<br />
foi o escravo o personagem que ocupou, em maior número, essas grandes fazendas, trabalhando como cozinheiro,<br />
lavrador, campeiro e costureira, entre outras atividades” (CARDOSO, 2005, p. 31-32). O maior número de escravos<br />
que localizamos – 28, no total – eram de propriedade de Antônio José da Silva Guimarães Júnior, pai do vereador<br />
Pedro de Alencastro Guimarães. JUNG, J. Pedro (Inspetor de Quarteirão). Mappa da população do Quarteirão<br />
de Porto Guimarães n. 1. [Manuscrito]. Localização: Fundo Polícia, Maço 40, São Leopoldo, 1º Quarteirão do 5º<br />
Distrito de São Leopoldo, [1868?], AHRGS.<br />
339
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
ma constatação foi feita por Mariana Muaze que, ao analisar a relação dos objetos<br />
comprados pela família Ribeiro de Avellar, quando de sua transferência da Corte<br />
para a fazenda Pau Grande, no interior do Rio de Janeiro, percebeu que “apesar de<br />
abrir mão da vida na cidade [...], a família Ribeiro de Avellar não pretendia fazer o<br />
mesmo no que se referia a sua vida material e ao cultivo de objetos de prestígio que<br />
correspondessem ao seu lugar social diferenciado”. 68<br />
340<br />
CONCLUSãO<br />
A utilização de inventários post-mortem, associados a outras fontes documentais,<br />
revela-nos facetas do modo de vida da elite política caiense e aponta para características<br />
que garantiam a este grupo diferenciação em relação aos demais setores sociais,<br />
denotando seu status superior de “elite”. A partir da análise do perfil econômico da<br />
elite política caiense acreditamos que, de fato, a riqueza criou condições favoráveis<br />
aos indivíduos que estavam à frente de cargos de poder político, uma vez que lhes<br />
dava maiores condições de distribuir favores, angariar aliados, e sustentar seu status<br />
diferenciado na sociedade local. Se, por um lado, muitos aspectos diferenciam os<br />
membros da elite política de São Sebastião do Caí, que então se revela um grupo<br />
heterogêneo em função da origem étnica, da profissão e do local de residência, 69 por<br />
outro lado sua privilegiada condição econômica garante-lhe certa homogeneidade.<br />
Foi, pois, esta privilegiada condição econômica dos indivíduos analisados – revelada,<br />
sobretudo, a partir da análise dos inventários post-mortem – que possibilitou, em boa<br />
medida, o acesso e a manutenção destes indivíduos ao grupo minoritário da elite<br />
política municipal.<br />
68 MUAZE, Mariana de Aguiar Ferreira. O Império do Retrato: família, riqueza e representação social no Brasil oitocentista<br />
(1840-1889). 2006. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História. Universidade<br />
Federal Fluminense, Rio de Janeiro, RJ, 2006. p. 164.<br />
69 Dos 38 vereadores, 13 eram luso-brasileiros e 25 eram teuto-brasileiros. Quanto ao perfil profissional, temos 20<br />
negociantes, 10 fazendeiros, 2 proprietários, 2 ferreiros, 1 marceneiro, 1 serreiro, 1 maquinista/náutico e 1 professor<br />
público. Quanto ao local de residência, 18 moravam na Vila de São Sebastião do Caí, termo-sede do município. Os<br />
demais residiam em distritos do interior do município: 11 em Santana do Rio dos Sinos, 5 em São José do Hortêncio<br />
e 4 em Santa Catarina da Feliz.
FONTES PESQUISADAS<br />
Alistamento dos eleitores do Município de São Sebastião do Caí. 1890 jun. 20 [Manuscrito].<br />
Arquivo Histórico Municipal Bernardo Mateus (AHMBM).<br />
Inventários. São Sebastião do Caí, 1868 a 1935. Arquivo Público do Estado do Rio<br />
Grande do Sul (APERS).<br />
Livro para Lançamento das Receitas e Despesas da Câmara Municipal da Vila de São<br />
Sebastião do Caí. São Sebastião do Caí: 1876-1885 [Manuscrito]. Arquivo Histórico<br />
Municipal Bernardo Mateus (AHMBM).<br />
Mappa da população do Quarteirão de Porto Guimarães n. 1. [Manuscrito]. Localização:<br />
Fundo Polícia, Maço 40, São Leopoldo, 1º Quarteirão do 5º Distrito de São<br />
Leopoldo, [1868?]. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRGS).<br />
REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
AGULHON, Maurice. Historia vagabunda: etnologia y política en la Francia<br />
Contemporánea. México: Instituto Mora, 1994.<br />
ANDRADE, Marcos Ferreira de. Elites regionais e a formação do Estado imperial<br />
brasileiro: Minas Gerais – Campanha da Princesa (1799-1850). Rio de Janeiro:<br />
Arquivo Nacional, 2008.<br />
BURKE, Peter. Veneza e Amsterdã: um estudo das elites do século XVII. São<br />
Paulo: Brasiliense, 1991.<br />
CARDOSO, Raul Róis Schefer. Capítulos de formação de um território negro:<br />
a escravidão rural no Vale do Caí (RS- 1870/1888). 2005. Dissertação (Mestrado em<br />
História) -- Programa de Pós-Graduação em História. Universidade do Vale do Rio<br />
dos Sinos, São Leopoldo, RS, 2005.<br />
CARVALHO, José Murilo de. A Construção da ordem: a elite política imperial. Teatro<br />
de Sombras: a política imperial. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.<br />
FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade<br />
agrária na Fronteira Sul do Brasil (1825-1865). 2007. Tese (Doutorado em<br />
História) --Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal do Rio<br />
de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, 2007.<br />
341
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
FREYRE, Gilberto. Casa grande & sensala. 18. Ed. Rio de Janeiro: J. Olympio,<br />
1977.<br />
KÜHN, Fábio. A prática do dom: família, dote e sucessão. In: GOLIN, Tau; BOEI-<br />
RA, Nelson (Org.).<br />
CAMARGO, Fernando; GUTFREIND, Ieda; REICHEL, Heloisa (Coord.). Colônia.<br />
Passo Fundo: Méritos, 2006a. v. 1, p. 225-239. (Coleção História Geral do Rio<br />
Grande do Sul).<br />
KÜHN, Fábio. Gente da fronteira: sociedade e família no sul da América portuguesa<br />
– século XVIII. In: GRIJó, Luiz Alberto et al. (Org.). Capítulos de História do<br />
Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2004. p. 47-74.<br />
KÜHN, Fábio. Gente de fronteira: família, sociedade e poder no sul da América<br />
Portuguesa – século XVIII. 2006. Tese (Doutorado em História) -- Programa de Pós<br />
Graduação em História. Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, RJ, 2006b.<br />
LINHARES, Maria Yedda Leite. Metodologia da história quantitativa: balanço e<br />
perspectivas. In: BOTELHO, Tarcísio Rodrigues et al. (Org.). História quantitativa<br />
e serial no Brasil: um balanço. Goiânia: ANPUH-MG, 2001.<br />
MALERBA, Jurandir. A corte no exílio: civilização e poder no Brasil às vésperas da<br />
Independência (1808-1821). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.<br />
MUAZE, Mariana de Aguiar Ferreira. O império do Retrato: família, riqueza e<br />
representação social no Brasil oitocentista (1840-1889). 2006. Tese (Doutorado em<br />
História) – Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal Fluminense,<br />
Rio de Janeiro, RJ, 2006.<br />
REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da arquitetura no Brasil. São Paulo: Perspectiva,<br />
1970.<br />
ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora<br />
Globo, 1969.<br />
SILVA, Mara Regina Kramer. Linguagem simbólica de poder: arquitetura rural<br />
gaúcha. 1996. Dissertação (Mestrado em História) -- Programa de Pós-Graduação<br />
em História. Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, 1996.<br />
WEIMER, Günter. A arquitetura rural da imigração alemã. In: BERTUSSI, Paulo<br />
Iroquez et al. A arquitetura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto,<br />
1983. p. 95-119.<br />
WITT, Marcos Antônio. Em busca de um lugar ao sol: estratégias políticas, imigração<br />
alemã, Rio Grande do Sul, Século XIX. São Leopoldo: Oikos, 2008.<br />
342
A AtividAde eConôMiCA rio-grAndense eM teMPos de<br />
guerrA (vilA de rio grAnde, 1811-1850)<br />
Gabriel Santos Berute*<br />
Resumo: É plausível supor que os períodos de guerra nos quais o Rio Grande do Sul esteve<br />
envolvido durante a primeira metade dos oitocentos – as Guerras Cisplatinas, 1811-28, e a Guerra dos<br />
Farrapos, 1835-40 – tenham influenciado o ritmo da sua atividade econômica. Nesta comunicação<br />
tenho como objetivo investigar o impacto que estas tiveram na economia da região. A principal fonte<br />
utilizada são as escrituras públicas de venda, crédito e sociedade registradas em Rio Grande entre 1811-<br />
50. A documentação permitiu observar que os bens rurais apresentaram uma redução no número de<br />
transações e quedas importantes no seu valor, especialmente nos primeiros anos da Guerra dos Farrapos,<br />
concomitante a valorização dos bens urbanos.<br />
Palavras-chave: Rio Grande do Sul – escrituras públicas – comércio – guerra – agentes mercantis<br />
Opadrão de investimento observado na economia rio-grandense, especialmente<br />
no que diz respeito ao impacto econômico das Guerras<br />
Cisplatinas (1811-28) e da Guerra dos Farrapos (1835-40) é o tema<br />
abordado nesta comunicação. Para tanto utilizei as escrituras públicas registradas em<br />
Rio Grande entre 1811 e 1850¹.<br />
Juridicamente, as escrituras são instrumentos destinados a registrar formalmente<br />
todas as condições de um determinado contrato, “seja para assumir uma<br />
obrigação ou seja para determinar a execução de outro ato qualquer”. Estas podem<br />
ser tanto privadas, restritas aos nela interessados, quanto públicas, lavradas por um<br />
funcionário ou oficial público e de acordo com “as solenidades previstas em lei”.<br />
No caso das particulares, estavam restritas àquelas transações que a lei não obrigava<br />
registrar em documento público. “E para que opere em relação a terceiros, [é] necessário<br />
que seja transcrito no registro público”². Na documentação por mim analisada,<br />
pude verificar a ocorrência de escrituras particulares que posteriormente foram re-<br />
* Aluno do curso de doutorado do PPG-História/UFRGS. Bolsista CAPES.<br />
¹ ARQUIVO PÚBLICO DO EESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Transmissões e Notas. Rio Grande, 2º<br />
Tabelionato, Livro 2-21 (1811-1850). Doravante: APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L, fl.<br />
² SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 1975. Volume II, p. 616-17.<br />
343
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
gistradas nos livros do Tabelionato. Em 12 de janeiro de 1843, por exemplo, Vicente<br />
Manuel de Espíndola e sua esposa, constam com outorgantes de uma escritura de<br />
ratificação referente à venda de um terreno de 100$000 réis (2.581 libras) feita por<br />
documento particular em outubro de 1842 para José Gomes Madeira³.<br />
Jucá de Sampaio observou que as Ordenações Filipinas determinavam que<br />
era necessário o registro público de contratos, compras e vendas, empréstimos, permutas,<br />
dotes, entre outros. Assim, todas as transações envolvendo bens de raiz de<br />
valor acima de 4$000 réis, bens móveis e dívidas com valor superior a 60$000 réis<br />
deveriam ser registradas em escrituras públicas 4 . Portanto, estas não dizem respeito<br />
à totalidade das transações efetuadas em uma sociedade. Acrescenta-se ainda que<br />
muitas negociações podem ter permanecido no âmbito particular, ainda que seu<br />
registro fosse obrigatório.<br />
Apesar destas limitações, os registros notariais permitem conhecer, mesmo<br />
que parcialmente, o padrão dos investimentos econômicos vigentes em uma sociedade.<br />
Estudos como os de João Fragoso e Jucá de Sampaio, e mais recentes como os<br />
de Fábio Pesavento e Alexandre Vieira Ribeiro, têm demonstrado a pertinência desta<br />
fonte para a investigação histórica 5 . Sendo assim, as escrituras públicas lavradas em<br />
Rio Grande constituem-se na principal fonte deste trabalho.<br />
Nos livros de Transmissões e Notas de Rio Grande para o período considerado,<br />
foram registradas 1.949 escrituras no valor total de 162.592.182 libras esterlinas 6 .<br />
Nesta comunicação selecionei as escrituras reunidas sob os títulos de Venda, Crédito<br />
e Sociedade que somam 1.096 escrituras, correspondentes a 56% do total de<br />
³ APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L17, fl. 67v.<br />
4 SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas<br />
no Rio de Janeiro (c. 1650-c. 1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 54. Ver também CÓDiGO<br />
FiLiPiNO, OU, ORDENAÇÕES E LEiS DO REiNO DE PORTUGAL: RECOPiLADAS POR MAN-<br />
DADO D’EL-REi D. FiLiPE i. Brasília: Senado Federal, Conselho editorial, 2004, Livro Terceiro, 2º Tomo,<br />
Título LIX, p. 651-52.<br />
5 FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil<br />
do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de.<br />
Na encruzilhada do império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c. 1650-c.<br />
1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003; PESAVENTO, Fábio. Um pouco antes da Corte: a economia<br />
do Rio de Janeiro na segunda metade do Setecentos. Niterói: Centro de Ciências Sociais Aplicadas-Faculdade<br />
de Economia/UFF, 2009 [tese de doutorado]; RIBEIRO, Alexandre Vieira. A cidade de Salvador: estrutura<br />
economia, comércio de escravos, grupo mercantil Salvador (c.1750 c.1800). Rio de Janeiro: PPGHIS-UFRJ,<br />
2009 [tese de doutorado].<br />
6 Para obter uma avaliação mais precisa dos valores dos bens negociados e sua evolução ao longo período em questão<br />
optou-se por considerar os valores em libras. Para a conversão foi utilizada a tabela IPEA. Taxa de câmbio<br />
média anual da libra esterlina (réis por pence) na praça do Rio de Janeiro (RJ). Disponível em: . Acesso em 11 jan. 2009.<br />
344
egistros e 72% (116.820.910 libras) do valor total das mesmas. Para melhor análise<br />
dos dados, as escrituras selecionadas foram organizadas nas seguintes categorias,<br />
conforme o tipo de escritura e dos bens negociados: Bens urbanos; Bens rurais;<br />
Crédito; Embarcações, Sociedades e Outras.<br />
Assim, foi possível construir o Gráfico 1, mostrando a quantidade de escrituras<br />
e seus valores, de acordo com as categorias estabelecidas. A categoria Urbano<br />
possui 497 escrituras (45%), o correspondente a 25% do valor (29.676.245 libras).<br />
As escrituras reunidas sob o título Rural, embora reúnam pouco mais da metade das<br />
escrituras de bens urbanos (23%), concentram 30% do valor (35.497.480 libras) das<br />
mesmas. Apesar de reduzidas no que diz respeito ao número de registros, as escrituras<br />
das categorias Embarcações e Crédito são responsáveis por parcelas significativas<br />
dos valores transacionados: 23.093.763 libras (20%) e 22.679.858 libras (19%), respectivamente.<br />
No caso das poucas escrituras de Sociedade, chama a atenção o montante<br />
considerável que elas alcançaram (4.006.218 libras ou 3% do total), sugerindo<br />
que tinham valores individuais elevados. O peso dos negócios ligados à atividade<br />
mercantil fica mais evidente ao se somar as escrituras de bens urbanos e as embarcações.<br />
Juntas, as duas categorias reúnem 61% das escrituras e 45% do valor total<br />
envolvido.<br />
Gráfico 1 – Número e valor total das escrituras por categoria, 1811-1850<br />
(Libras esterlinas)<br />
Fonte: APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L 2-21, 1811-50<br />
A análise da distribuição das escrituras de acordo com suas categorias e faixas<br />
de valor permite perceber a grandeza das transações registradas nos livros de<br />
“Transmissões e Notas” de Rio Grande. Na Tabela 1, que apresenta os valores das<br />
diferentes categorias de escrituras, é possível observar que a maior parte das escrituras<br />
valia menos de 100 mil libras, com valor médio de 33.333 libras. Apenas 30<br />
345
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
escrituras (cerca de 3%) encontram-se entre aquelas cujos valores foram superiores a<br />
500 mil libras esterlinas, mas concentram um terço do montante total das escrituras<br />
selecionadas.<br />
346<br />
������� ������� ��������� ��������� ������ ������ �� �� ���������� ���������� ������� ������� �� �� ��������� ���������<br />
����� �����<br />
���������� ���������� ������ ������ ��� ��� ���������� ���������� ������� ������� ��� ��� ���������� ����������<br />
�������������������������������������������������������������������������������<br />
�������������������������������������������������� �����������������������������������<br />
������� �������<br />
�� ��<br />
���������� ����������<br />
��������� ���������<br />
�� ��<br />
������� �������<br />
��<br />
��������� ���������<br />
��������� ���������<br />
��<br />
��������� ���������<br />
������� �������<br />
������ ������<br />
��<br />
������� �������<br />
������� �������<br />
��<br />
��������� ���������<br />
��<br />
������ ������<br />
������� �������<br />
������ ������<br />
��<br />
��������� ���������<br />
������� �������<br />
��<br />
�����������<br />
�����������<br />
��������� ���������<br />
������ ������<br />
�� ��<br />
���������� ����������<br />
������� �������<br />
�� ��<br />
��������� ���������<br />
������� �������<br />
��<br />
��������� ���������<br />
��<br />
������ ������<br />
���������� ����������<br />
������ ������<br />
��� ���<br />
���������� ����������<br />
������� �������<br />
�� ��<br />
��������� ���������<br />
������� �������<br />
��<br />
��������� ���������<br />
��<br />
����� �����<br />
��������� ���������<br />
������ ������<br />
��� ���<br />
���������� ����������<br />
������� �������<br />
�� ��<br />
��������� ���������<br />
������� �������<br />
��<br />
���������� ����������<br />
��������� ���������<br />
��<br />
�� ��<br />
�� ��<br />
��� ���<br />
��<br />
�� ��<br />
�� ��<br />
��� ���<br />
��<br />
�� ��<br />
�� ��<br />
��� ���<br />
��<br />
�� ��<br />
�� ��<br />
��� ���<br />
��<br />
�����������������������<br />
�����������������������<br />
��������������������<br />
��������������������<br />
��������������������<br />
��������������������<br />
��������������������������<br />
��������������������������<br />
���������� ���������������������������������������
Considerando cada uma das categorias, percebe-se que em todas elas a maioria<br />
das escrituras encontra-se na faixa de menos de 100 mil libras. A maior parte do<br />
valor das transações de bens rurais encontra-se nas faixas de 100 a 499 mil libras e<br />
mais de 1 milhão de libras (66%). Em ambas as faixas, os bens rurais concentram 53<br />
e 50% do valor total, seguidas dos urbanos, com 23,5% das escrituras com valores<br />
entre 100 e 499 mil libras e dos créditos com 29% da faixa de mais de 1 milhão de<br />
libras em apenas 4 escrituras.<br />
Quanto às escrituras da categoria urbano, percebe-se que 472 das 497 escrituras<br />
valiam no máximo 499 mil libras. Nas faixas de menos de 100 mil e de 100 a<br />
499 mil libras estão distribuídas 87% do valor destas escrituras. Entre as de menor<br />
valor (menos de 100 mil libras) as urbanas são predominantes, seguidas das rurais.<br />
Na faixa de valor entre 100 e 499 mil libras há certo equilíbrio na distribuição das<br />
escrituras entre as categorias: rural, urbano, embarcações e crédito.<br />
Quase todas as escrituras de venda de embarcações estão nas duas primeiras<br />
faixas de valor. Dois terços do valor destas escrituras estão na faixa de 100 a 499<br />
mil libras. Destaca-se que a única embarcação com valor maior que 1 milhão de libras<br />
esterlinas concentra quase 6% dos 26.481.772 de libras acumuladas nesta faixa.<br />
Quanto ao crédito, embora a maior parte destas escrituras fosse de menos de 100 mil<br />
libras, aproximadamente a metade dos 35.497.480 de libras estava concentrada nas<br />
escrituras com valore entre 100 e 499 mil libras esterlinas.<br />
Constata-se, portanto, que os bens urbanos mesmo sendo mais numerosos<br />
são individualmente menos valiosos em relação aos bens rurais que, por sua vez, concentram<br />
as escrituras com os bens de valor mais avultado. Considerando os valores<br />
médios, os bens urbanos são mais valiosos apenas entre os bens da terceira faixa de<br />
valor (500 a 999 mil libras). Quanto às embarcações, destaca-se que elas possuem valor<br />
médio mais elevado do que as escrituras rurais e urbanas da primeira faixa de valor.<br />
Na Tabela 2, apresento a distribuição qüinqüenal das escrituras e seus valores<br />
a fim de observar sua evolução ao longo do período investigado. As escrituras de<br />
venda de bens rurais concentram a maior parcela do valor total negociado (39%),<br />
embora mais da metade das escrituras registradas fossem urbanas que acumulavam<br />
33% do valor total das vendas. Percebe-se que até o início da rebelião contra o domínio<br />
da Banda Oriental pelo Império do Brasil (1825) o investimento em bens rurais<br />
superava amplamente o montante aplicado nos bens rurais e nas embarcações 7 .<br />
Ao analisar escrituras de compra e venda registradas no Rio de Janeiro entre 1800<br />
e 1816, João Fragoso observou que os negócios rurais eram a segunda opção em<br />
7 Avaliando a participação dos bens de produção no patrimônio produtivo total da capitania rio-grandense a partir<br />
de inventários post-mortem para os anos entre 1765 e 1825, Helen Osório constatou que nos períodos de guerra<br />
(1765-85 e 1815-25) os animais compunham a maior parte do patrimônio. Entre 1815-25, os animais e as terras<br />
representavam, respectivamente, 37,9 e 37,3% do patrimônio total. A autora afirma que “os preços do gado vacum<br />
aumentavam mais, e rapidamente, em tempos de guerra, enquanto as terras aumentavam lenta e progressivamente,<br />
347
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
número de escrituras, mas não acumulavam parcela correspondente no valor total<br />
negociado, pois eram bens de baixo valor. Estes negócios representavam no mínimo<br />
11,68% e no máximo 34,8% do valor negociado 8 . Na cidade de Salvador, Alexandre<br />
Ribeiro constatou que os bens rurais correspondiam a uma parcela entre 33,2 e<br />
54,6% do valor das vendas registradas entre 1751 e 1800 9 . No caso de Rio Grande,<br />
as escrituras rurais deixaram de ser as mais valiosas apenas no qüinqüênio 1826-30<br />
quando as embarcações concentraram cerca de 35% e as rurais 29% dos 8.947.941<br />
de libras acumulados por todas as vendas deste período. Nos qüinqüênios seguintes,<br />
os recursos investidos no setor agrário foram sempre superiores a 26%, exceto no<br />
lustro de 1836-40, quando a conjuntura de guerra contribuiu para uma queda bastante<br />
acentuada no número de escrituras e, principalmente, no valor. No primeiro<br />
lustro da série, dentro da conjuntura analisada por Fragoso, as escrituras rurais representavam<br />
74% do valor negociado. Em 1816-20, elas alcançaram o seu máximo,<br />
quase 79%. Percebe-se assim, que ao contrário da Corte e da capital soteropolitana,<br />
em Rio Grande os investimentos rurais ainda concentravam parcelas consideráveis<br />
dos recursos envolvidos nestas transações 10 .<br />
refletindo-se esse movimento na composição do patrimônio produtivo”. Osório ressalta que “A guerra configuravase<br />
como um momento propício para arrear e roubar gado e, simultaneamente, como uma ocasião em que o consumo<br />
desse bem crescia muito, tanto por se a base da alimentação das tropas, como por se apresentar como o butim<br />
passível a ser conquistado”. OSóRIO, Helen. O império português no sul da América: estancieiros, lavradores<br />
e comerciantes. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007, p. 67-75; a citação é da p. 72-3.<br />
8 FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do<br />
Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p. 336-37.<br />
9 RIBEIRO, Alexandre Vieira. A cidade de Salvador: estrutura economia, comércio de escravos, grupo mercantil<br />
Salvador (c.1750 c.1800). Rio de Janeiro: PPGHIS-UFRJ, 2009 [tese de doutorado], p. 88.<br />
10 Neste ponto, os resultados são semelhantes ao observado por Jucá de Sampaio para o período entre a segunda<br />
metade do século XVII e a primeira metade do século seguinte, quando o investimento nos “negócios rurais” era<br />
preponderante em termos de valor (mas não preponderavam no número de escrituras registradas) e concentraram<br />
parcelas entre 32,47 e 79,45% do valor total das escrituras de compra e venda. SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de.<br />
Na encruzilhada do império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c. 1650-c.<br />
1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 68-9.<br />
348
349<br />
����<br />
����<br />
�<br />
���<br />
���<br />
���<br />
���<br />
�<br />
����<br />
��<br />
����<br />
��<br />
����<br />
��<br />
�<br />
���<br />
����������<br />
�<br />
���������<br />
���<br />
����������<br />
��<br />
���������<br />
���<br />
����������<br />
���<br />
����������<br />
���<br />
����������<br />
�����<br />
��<br />
����<br />
���<br />
���<br />
���<br />
���<br />
���<br />
����<br />
����<br />
����<br />
����<br />
��<br />
����<br />
�<br />
��<br />
���������<br />
�<br />
���<br />
����������<br />
�<br />
�������<br />
��<br />
���������<br />
���<br />
����������<br />
��<br />
���������<br />
�������<br />
���<br />
��<br />
���<br />
���<br />
���<br />
���<br />
�<br />
���<br />
����<br />
����<br />
����<br />
����<br />
����<br />
����<br />
�<br />
��<br />
���������<br />
�<br />
������<br />
���<br />
����������<br />
�<br />
�������<br />
��<br />
���������<br />
���<br />
���������<br />
��<br />
���������<br />
�������<br />
����<br />
����<br />
�<br />
���<br />
���<br />
�<br />
���<br />
����<br />
��<br />
����<br />
����<br />
����<br />
���<br />
�<br />
��<br />
���������<br />
�<br />
��<br />
���������<br />
�<br />
������<br />
��<br />
���������<br />
��<br />
���������<br />
��<br />
�������<br />
�������<br />
���<br />
���<br />
���<br />
���<br />
���<br />
����<br />
����<br />
��<br />
����<br />
����<br />
����<br />
�<br />
�<br />
�������<br />
�<br />
���<br />
���������<br />
��<br />
���������<br />
��<br />
���������<br />
��<br />
���������<br />
�������<br />
����<br />
����<br />
���<br />
���<br />
���<br />
�<br />
����<br />
����<br />
��<br />
��<br />
����<br />
����<br />
�<br />
��<br />
���������<br />
���<br />
���������<br />
�<br />
�������<br />
��<br />
���������<br />
��<br />
���������<br />
��<br />
���������<br />
�������<br />
����<br />
����<br />
���<br />
����<br />
���<br />
���<br />
���<br />
���<br />
����<br />
���<br />
����<br />
��<br />
����<br />
����<br />
�<br />
��<br />
���������<br />
�<br />
���������<br />
��<br />
���������<br />
�<br />
������<br />
�<br />
�������<br />
��<br />
���������<br />
��<br />
���������<br />
�������<br />
����<br />
���<br />
���<br />
���<br />
���<br />
���<br />
����<br />
����<br />
����<br />
���<br />
����<br />
����<br />
�<br />
�<br />
�������<br />
�<br />
�������<br />
��<br />
����������<br />
��<br />
���������<br />
��<br />
�������<br />
��<br />
���������<br />
�������<br />
���<br />
���<br />
���<br />
���<br />
��<br />
����<br />
����<br />
����<br />
����<br />
����<br />
�<br />
�<br />
�������<br />
��<br />
����������<br />
�<br />
���������<br />
��<br />
���������<br />
��<br />
���������<br />
�������<br />
���<br />
�����<br />
���<br />
�����<br />
���<br />
�����<br />
���<br />
�����<br />
���<br />
�����<br />
���<br />
�����<br />
���<br />
�����<br />
�������<br />
���������<br />
�����<br />
������<br />
�����������<br />
������<br />
�����<br />
�������<br />
����<br />
����<br />
�<br />
���<br />
���<br />
���<br />
���<br />
�<br />
����<br />
��<br />
����<br />
��<br />
����<br />
��<br />
�<br />
���<br />
����������<br />
�<br />
���������<br />
���<br />
����������<br />
��<br />
���������<br />
���<br />
����������<br />
���<br />
����������<br />
���<br />
����������<br />
�����<br />
��<br />
����<br />
���<br />
���<br />
���<br />
���<br />
���<br />
����<br />
����<br />
����<br />
����<br />
��<br />
����<br />
�<br />
��<br />
���������<br />
�<br />
���<br />
����������<br />
�<br />
�������<br />
��<br />
���������<br />
���<br />
����������<br />
��<br />
���������<br />
�������<br />
���<br />
��<br />
���<br />
���<br />
���<br />
���<br />
�<br />
���<br />
����<br />
����<br />
����<br />
����<br />
����<br />
����<br />
�<br />
��<br />
���������<br />
�<br />
������<br />
���<br />
����������<br />
�<br />
�������<br />
��<br />
���������<br />
���<br />
���������<br />
��<br />
���������<br />
�������<br />
����<br />
����<br />
�<br />
���<br />
���<br />
�<br />
���<br />
����<br />
��<br />
����<br />
����<br />
����<br />
���<br />
�<br />
��<br />
���������<br />
�<br />
��<br />
���������<br />
�<br />
������<br />
��<br />
���������<br />
��<br />
���������<br />
��<br />
�������<br />
�������<br />
���<br />
���<br />
���<br />
���<br />
���<br />
����<br />
����<br />
��<br />
����<br />
����<br />
����<br />
�<br />
�<br />
�������<br />
�<br />
���<br />
���������<br />
��<br />
���������<br />
��<br />
���������<br />
��<br />
���������<br />
�������<br />
����<br />
����<br />
���<br />
���<br />
���<br />
�<br />
����<br />
����<br />
��<br />
��<br />
����<br />
����<br />
�<br />
��<br />
���������<br />
���<br />
���������<br />
�<br />
�������<br />
��<br />
���������<br />
��<br />
���������<br />
��<br />
���������<br />
�������<br />
����<br />
����<br />
���<br />
����<br />
���<br />
���<br />
���<br />
���<br />
����<br />
���<br />
����<br />
��<br />
����<br />
����<br />
�<br />
��<br />
���������<br />
�<br />
���������<br />
��<br />
���������<br />
�<br />
������<br />
�<br />
�������<br />
��<br />
���������<br />
��<br />
���������<br />
�������<br />
����<br />
���<br />
���<br />
���<br />
���<br />
���<br />
����<br />
����<br />
����<br />
���<br />
����<br />
����<br />
�<br />
�<br />
�������<br />
�<br />
�������<br />
��<br />
����������<br />
��<br />
���������<br />
��<br />
�������<br />
��<br />
���������<br />
�������<br />
���<br />
���<br />
���<br />
���<br />
��<br />
����<br />
����<br />
����<br />
����<br />
����<br />
�<br />
�<br />
�������<br />
��<br />
����������<br />
�<br />
���������<br />
��<br />
���������<br />
��<br />
���������<br />
�������<br />
���<br />
�����<br />
���<br />
�����<br />
���<br />
�����<br />
���<br />
�����<br />
���<br />
�����<br />
���<br />
�����<br />
���<br />
�����<br />
�������<br />
���������<br />
�����<br />
������<br />
�����������<br />
������<br />
�����<br />
�������<br />
��� ����������������������<br />
��������������������������������������������������������������<br />
���������� ������������������������������������������������������������������������������������
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
A queda verificada no percentual correspondente às escrituras de bens rurais<br />
a partir do lustro de 1826-30 foi acompanhada por uma elevação do investimento<br />
em bens urbanos. Cabe observar que este é um período crítico da disputa pela Banda<br />
Oriental, que teve do desdobramento a perda da Província Cisplatina e a criação do<br />
Uruguai como nação independente (1828). Apesar de algumas variações, há uma<br />
tendência de crescimento no total de escrituras realizadas e nos seus respectivos<br />
valores. Os primeiros anos do conflito farroupilha foram justamente os que apresentaram<br />
a maior representatividade das escrituras urbanas: 66% das escrituras e 52%<br />
do valor total das vendas do qüinqüênio 1836-40. A partir da segunda metade do<br />
conflito há indícios de uma recuperação dos valores dos bens rurais, uma vez que o<br />
percentual do montante investido em bens urbanos e em embarcações foi reduzido<br />
em favor dos bens rurais.<br />
A participação das escrituras envolvendo a negociação de embarcações oscilou<br />
bastante entre 1811-50. Ao longo da primeira metade dos oitocentos, constatou-se<br />
crescimentos significativos no total de escrituras nos qüinqüênios de 1816-20, 1826-<br />
30 e 1846-50. Quanto aos valores, os percentuais acumulados foram baixos até 1816-<br />
20 e verificou-se um crescimento bastante acentuado nos lustros 1826-30 e 1836-40,<br />
na primeira metade da década de conflito entre farroupilhas e imperiais.<br />
Percebe-se, portanto, que as duas conjunturas de guerra enfrentadas pela província<br />
exerceram influência importante no padrão de investimento verificado através<br />
das escrituras de venda. O fim da ocupação da Banda Oriental e o início da Guerra<br />
dos Farrapos representaram momentos cruciais para a economia da província<br />
rio-grandense, pois a partir de 1826-30 parte do investimento antes direcionado<br />
majoritariamente nos bens rurais passou a ser aplicado nas negociações envolvendo<br />
bens urbanos e embarcações. Somados, os recursos acumulados nestas escrituras<br />
representavam 59% dos 90.134.834 libras esterlinas negociados entre 1811 e 1850.<br />
Apesar da tendência de recuperação do valor aplicado na aquisição de bens rurais a<br />
partir de 1841-45, este tipo de investimento não retomou os patamares verificados<br />
antes de 1826, demonstrando que os investimentos em bens ligados a atividade mercantil<br />
(urbanos e embarcações) estavam em processo de crescimento na sociedade<br />
rio-grandense a partir de meados da década de 1820, indicando que também crescia<br />
o nível de urbanização. Helen Osório constatou que entre 1765 e 1825 as aglomerações<br />
urbanas eram muito incipientes nesta região. Apenas 26% dos inventários<br />
post-mortem da capitania eram exclusivamente urbanos e que os bens rurais oscilavam<br />
entre 25,7 e 56% do total do patrimônio declarado, enquanto os bens urbanos atingiram<br />
no máximo 18,8%¹¹. Sendo assim, o padrão verificado nas escrituras indica uma<br />
alteração significativa em relação ao período analisado pela autora.<br />
¹¹ OSóRIO, Helen. O império português no sul da América: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto<br />
Alegre: Editora da UFRGS, 2007, p. 259-61.<br />
350
Em termos numéricos, as sociedades não permitem grandes considerações. Foram<br />
localizadas apenas nove escrituras de sociedades registradas no tabelionato. Tal<br />
característica não deve levar a uma conclusão precipitada quanto à importância das<br />
mesmas, pois é possível que parte delas tenha sido formalizada através de documentos<br />
particulares, portanto estritos aos diretamente interessados. Naquelas que<br />
mereceram o registro nos livros notariais de Rio Grande, destaca-se que em apenas<br />
uma escritura lavrada em 1824, no valor de 3.167.500 libras, concentrava 79% do valor<br />
total representado pelas escrituras de sociedade. Tratava-se da ratificação de um<br />
documento particular de sociedade feito em 1821 referente ao Campo do Serro Alegre<br />
(campos e gados). A sociedade era composta por Ismael Soares de Paiva da Cidade<br />
de Porto Alegre e o casal de José Antonio de Freitas, residente em Serro Alegre,<br />
Distrito da Vila do Rio Pardo, onde se localizava a propriedade. A duração prevista<br />
era de nove anos e Paiva era definido como caixa enquanto Freitas ficava responsável<br />
pela administração da mesma¹².<br />
As escrituras de crédito concentram o equivalente a um quarto do valor investido<br />
nas vendas. O melhor resultado foi verificado no lustro 1821-25, quando<br />
as 3.127.480 libras negociadas representaram quase 65% do valor das escrituras de<br />
venda no mesmo período, enquanto o menor percentual foi de 8%. Em relação ao<br />
número de escrituras, em todo o período considerado os percentuais foram menores<br />
em relação às de venda e apresentou a parcela mais significativa em 1846-50 (29%<br />
das escrituras de venda) 13 .<br />
Considerando a distribuição dos 22.679.857 de libras, percebe-se que a maior<br />
parte do valor das escrituras de crédito concentra-se nos três últimos qüinqüênios.<br />
É possível que tal característica tenha relação com a Guerra dos Farrapos, pois as<br />
dificuldades impostas pelo conflito à plena realização das atividades econômicas da<br />
província podem ter dificultado a manutenção das unidades produtivas por parte de<br />
seus proprietários. Os interessados em adquiri-las, por sua vez, não possuiriam os<br />
recursos suficientes para a realização dos negócios, tornando necessário o parcelamento<br />
das dívidas ou a tomada de recursos monetários para saldar suas obrigações.<br />
O conjunto dos dados apresentados na Tabela 2 indica, portanto, que as<br />
conjunturas de guerra foram marcantes para o padrão de investimento verificado<br />
12 APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L10, fl.168.<br />
¹³ Alexandre Ribeiro demonstra que nos anos entre 1751 e 1800 (tomados por décadas), os “empréstimos” representavam<br />
de 48,4 a 86,5% do total investido nas vendas em Salvador. RIBEIRO, Alexandre Vieira. A cidade<br />
de Salvador: estrutura economia, comércio de escravos, grupo mercantil Salvador (c.1750 c.1800). Rio de<br />
Janeiro: PPGHIS-UFRJ, 2009 [tese de doutorado], p. 88.<br />
351
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
na província rio-grandense ao longo da primeira metade do século XIX. Além disso,<br />
percebe-se um incremento no investimento direcionado aos bens urbanos e às<br />
embarcações, que podem ser considerados como indicativo da importância que as<br />
atividades mercantis tinham naquele momento.<br />
A análise mais específica das categorias permite considerações mais detalhadas<br />
a respeito da evolução dos valores dos bens reunidos em cada uma delas ao<br />
longo do período estudado. Na Tabela 3 observa-se que a média 14 dos bens urbanos<br />
negociados alternou altas e baixas ao longo dos anos considerados e apresentou uma<br />
queda significativa entre 1831-35, enquanto no último qüinqüênio houve um aumento<br />
importante no valor médio e total dos bens. Em termos gerais, chama a atenção<br />
que estas médias são inferiores em relação às médias verificadas nas vendas de bens<br />
rurais, embarcações e nos créditos. Apesar disso, com exceção do lustro 1816-20,<br />
o valor total acumulado nas escrituras apresentou uma tendência de crescimento<br />
constante a partir da anexação da Província Cisplatina (1821), atingindo o montante<br />
mais elevado no último qüinqüênio da série. O mesmo padrão pôde ser observado<br />
no número de escrituras registradas a partir de 1816-25.<br />
352<br />
Tabela 3 – Evolução qüinqüenal do valor total e médio dos bens urbanos<br />
(Libras esterlinas)<br />
VT: Valor Total; VM: Valor Médio; N.E: Número de Escrituras<br />
Fonte: Fonte: APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L 2-21, 1811-50<br />
Para avaliar a evolução individual dos bens que compõem a categoria urbano,<br />
elaborei a Tabela 4 que reúne os principais tipos de bens reunidos nesta categoria.<br />
Destaca-se o alto valor dos sobrados, apesar da pouca ocorrência deles ao longo do<br />
período. Com a exceção dos qüinqüênios 1831-35 e 1841-45, esta edificação teve<br />
valor médio superior a 200.000 libras.<br />
14 Há escrituras referentes à venda de partes dos bens nas quais, na maioria das vezes, foi registrada a parte exata<br />
que estava sendo negociada. Para o cálculo das médias foram corrigidos os valores de parcelas claramente indicadas<br />
(metade, dois terços, etc) e desconsideradas aquelas escrituras que indicam a parcela negociada com expressões<br />
genéricas como “parte que tem em uma propriedade de Casas” ou “maior parte de umas Casas”. No caso dos bens<br />
rurais foram consideradas as expressões como “pedaço de campo”, “porção de terras“ e “sorte de estância”
Tabela 4 – Valor médio dos bens urbanos (Libras esterlinas)<br />
VM: Valor Médio; N.E: Número de Escrituras<br />
Fonte: APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L 2-21, 1811-50<br />
As casas foram os bens urbanos com maior número de escrituras registradas.<br />
O período da segunda metade da Guerra dos Farrapos foi o que apresentou o maior<br />
número de transações enquanto a maior média foi verificada no último qüinqüênio<br />
analisado. Os terrenos urbanos, por sua vez, apesar do total de escrituras ser grande,<br />
apresentaram as menores médias.<br />
Os dados referentes aos bens rurais (Tabela 5) apresentaram valores médios<br />
em decréscimo entre os qüinqüênios 1821-25 e 1836-40. O mesmo ocorre com o<br />
valor total, que apresentou o montante mais baixo no último lustro da década de<br />
1830. Este padrão indica novamente que o início da guerra que perduraria por dez<br />
anos teve impacto significativo nos negócios rurais de uma das principais praças da<br />
província rio-grandense. Naturalmente, a existência de um conflito dentro de seu<br />
território interferia na economia da região tanto pelo recrutamento de homens para<br />
os combates, como também pelas requisições de animais, farinha e demais provisões<br />
necessárias às tropas combatentes.<br />
353
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
354<br />
Tabela 5 – Evolução qüinqüenal do valor total e médio dos bens rurais<br />
(Libras esterlinas)<br />
VT: Valor Total; VM: Valor Médio; N.E: Número de Escrituras<br />
Fonte: APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L 2-21, 1811-50<br />
Para a construção da Tabela 6 considerei apenas os bens rurais mais estatisticamente<br />
representativos ou importantes para os objetivos da análise. É possível<br />
perceber que as escrituras de venda de terras são as de menor valor médio apesar de<br />
relativamente presentes ao longo do período e ser o segundo maior montante total.<br />
Observa-se uma desvalorização bastante acentuada entre 1831-35 e o qüinqüênio<br />
seguinte (no início da guerra, quando foi registrada apenas uma negociação de terras.<br />
As chácaras apresentam um comportamento oscilante, sendo o momento de maior<br />
desvalorização observado no lustro de 1836-40, enquanto a menor média ocorreu<br />
entre 1826 e 1830.<br />
Já as charqueadas apresentam poucas transações, mas com valor médio elevado.<br />
Em geral, estas unidades produtivas eram compostas pelas terras, suas edificações e<br />
benfeitorias, escravos e embarcações (geralmente canoas). Por exemplo, o “estabelecimento<br />
de charqueada com edifícios, benfeitorias e toda qualidade de serviços nele<br />
encontrados” localizado na Costa do Rio Pelotas que foi vendido em julho de 1825<br />
por José Gonçalves da Silva & Companhia (os irmãos José Gonçalves da Silva e<br />
Manuel Gonçalves da Silva) ao negociante de grosso trato de Rio Grande, o Capitão-<br />
Mor Antonio José Afonso Guimarães. Esta foi negociada juntamente com seus 31<br />
escravos, 50 cavalos, equipamentos como guindastes, caldeiras, forno de secar sal,<br />
atafona, carretão e demais utensílios. O valor total da propriedade alcançou 661.406<br />
libras, sendo 440.938 libras pagas à vista e o restante no prazo de um ano 15 .<br />
15 APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L11, fl.50. O Capitão-Mor Antonio José Afonso Guimarães era<br />
“Negociante de grosso trato da Praça do Rio Grande de São Pedro do Sul” matriculado na Junta do Comércio (Rio<br />
de Janeiro), desde 07/09/1813. ARQUIVO NACIONAL, RIO DE JANEIRO. REAL JUNTA DO COMÉRCIO,<br />
AGRICULTURA, FÁBRICAS E NAVEGAçãO. Matrícula dos Negociantes de grosso trato e seus Guarda<br />
Livros e Caixeiros. Códice 170, v. 1 (1809-1826), fl. 100v.
Tabela 6 – Valor médio dos bens rurais (Libras esterlinas)<br />
VT: Valor Total; VM: Valor Médio; N.E: Número de Escrituras; 1 Inclusive 1 “rincão”; 2 Inclusive 1<br />
“sítio”<br />
Fonte: APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L 2-21, 1811-50<br />
Os bens reunidos no título estância/fazenda/campo apresentaram os maiores<br />
valores médios e concentraram a 77% dos 35.467.480 de libras esterlinas investidos<br />
nos bens rurais. Tal como ocorria com as charqueadas, estas unidades produtivas,<br />
principalmente as estâncias e fazendas, em muitos casos foram negociadas com<br />
todas as suas terras, edificações, benfeitorias, escravos e, principalmente com seus<br />
animais. Este é o caso da transação que envolveu a venda da mais valiosa destas propriedades.<br />
Em agosto de 1813, o Tenente Manuel Pinto de Moraes e sua esposa venderam<br />
a Estância São José da Boa Vista, com suas edificações, cavalos e animais vacuns<br />
e cavalares para José da Rosa Machado, pela quantia de 2.177.000 libras esterlinas.<br />
A estância localizava-se em uma “sesmaria cedida pelo vice-Rei Conde de Rezende,<br />
antes era do Brigadeiro Rafael Pinto Bandeira que (...) havia comprado do falecido<br />
José Carneiro Gonçalves” 16 .<br />
16 APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L3, fl. 127.<br />
355
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
É possível observar que a maior parte do valor destes bens concentrava-se<br />
nos dois primeiros e no último qüinqüênio. Apesar da coincidência com as duas<br />
conjunturas de guerra do período, deve-se acrescentar que entre 1811 e 1820 foram<br />
negociadas 7 estâncias e 1 fazenda que contribuíram para a elevação do montante<br />
acumulado nestes lustros. As duas estâncias negociadas em 1811-15 custaram, em<br />
média, 1.604.500 libras, enquanto as 3 estâncias e a fazenda vendida entre 1816-20<br />
valiam aproximadamente 1.757.795 libras cada uma 17 . A partir de 1841-45, verificase<br />
um aumento no número de escrituras, no valor investido e nas médias verificadas,<br />
conforme a tendência anteriormente observada a partir da análise da Tabela 2.<br />
Assim, corroborando o que já havia sido constatado na apreciação do conjunto<br />
dos bens rurais, a análise individual das principais propriedades deste tipo também<br />
demonstrou que no período entre 1826-30 e 1836-40 ocorreu uma tendência de<br />
redução dos investimentos em bens rurais e apesar da recuperação iniciada a partir<br />
da metade da Guerra dos Farrapos, o volume investido nestes bens não recuperou<br />
os níveis verificados até a década de 1820.<br />
As negociações envolvendo embarcações (Tabela 7) eram poucas nos primeiros<br />
anos da série e apresentou um crescimento importante a partir de 1826-30. Apesar<br />
das oscilações nos dois lustros seguintes, o número de negociações ficou em patamares<br />
superiores aos verificados no início da série.<br />
356<br />
Tabela 7 – Evolução qüinqüenal do valor total e médio das embarcações<br />
(Libras esterlinas)<br />
VT: Valor Total; VM: Valor Médio; N.E: Número de Escrituras<br />
Fonte: APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L 2-21, 1811-50<br />
17 APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L3, fl. 127; L5, fl. 230v; L6, fl.163v; L7 158v; L8, fl. 164; L9, fl. 32v.<br />
Em 1829 e em 1840, foram vendidas mais duas estâncias que custaram 590.760 e 99.200 libras, respectivamente.<br />
Este última refere-se a metade da Estância denominada “Conventos”. APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG,<br />
L13, fl. 33v; L16, fl. 41v.
Quanto aos valores médios das embarcações transacionadas, percebe-se que<br />
tal como o ocorrido com os valores totais, apresentam-se em queda até 1821-25.<br />
Este foi o momento no qual as três variáveis analisadas apresentaram os níveis mais<br />
baixos. A partir do lustro seguinte houve oscilações até o final da série. Entre 1841 e<br />
1845, apesar do aumento do total negociado, houve uma nova redução no seu valor<br />
médio em relação ao lustro anterior. O último qüinqüênio analisado foi aquele no<br />
qual foi contabilizado o maior número de escrituras e o maior valor total negociado,<br />
aproximadamente 39% do montante acumulado nas vendas de embarcações. No<br />
mesmo período foi verificada a terceira maior média (162.983 libras). Em comparação<br />
com os bens urbanos, observa-se que os preços médios das embarcações eram<br />
muito superiores. O maior preço médio daqueles foi verificado em 1846-50 (89.900<br />
libras) só é superior ao alcançado pelas embarcações em 1821-25 (68.092 libras).<br />
Contudo, as oscilações verificadas nas embarcações foram mais acentuadas.<br />
Em relação ao conjunto dos dados, o que se percebe é um movimento oposto<br />
ao dos bens rurais, pois o momento de diminuição dos investimentos no setor agrário<br />
coincide com o de valorização das embarcações e do montante acumulado nas<br />
transações envolvendo este tipo de propriedade, principalmente a partir de 1826-30.<br />
Em relação aos bens urbanos, observa-se que em ambos os tipos de bens os qüinqüênios<br />
entre 1826 e 1845 foram marcados pelo crescimento do investimento total<br />
e no número de escrituras registradas (Tabela 5). Trata-se conseqüentemente de um<br />
indício de valorização dos bens ligados ao exercício das atividades mercantis – destacadamente,<br />
sobrados e embarcações. Cabe sublinhar que aparentemente os bens<br />
urbanos concentraram uma fatia maior em relação às embarcações dos investimentos<br />
anteriormente direcionados aos bens rurais.<br />
Na Tabela 8 estão dispostas as embarcações negociadas de acordo com o<br />
seu tipo. Os iates, bergantins, escunas, sumacas e patachos reuniam 85% das embarcações<br />
e aproximadamente 69% do seu valor. Os dois primeiros tipos reuniram cerca de 34<br />
e 20% delas, mas os bergantins foram os de maior valor negociado: 4.896.988 libras<br />
(21%). Apesar disso, o valor médio não era o mais elevado: 175.108 libras.<br />
Os iates eram as embarcações mais negociadas, mas apresentaram o segundo<br />
menor valor médio: 73.004 libras. Tratava-se de um navio de dois mastros latinos<br />
ao qual era dada uma utilização recreativa e para o transporte de pessoas distintas 18 .<br />
Na província rio-grandense, todavia, eram intensamente utilizados no transporte de<br />
18 GODOY, José Eduardo Pimentel de. Naus da colônia. Brasília: Senado Federal, 2007, p. 672.<br />
357
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
mercadorias, conforme corrobora a observação dos registros de entrada e saída de<br />
embarcações de seu porto marítimo 19 . Além disso, ao menos até 1823, quando a dragagem<br />
do cais e a construção do porto melhoraram as condições de navegabilidade,<br />
permitindo a entrada de embarcações de maior calado no porto de Rio Grande 20 , os<br />
iates cumpriam um importante papel para a atividade mercantil rio-grandense.<br />
Tabela 8 – Tipos de embarcações: valor médio e mediano (Libras esterlinas)<br />
358<br />
VT: Valor Total; VM: Valor Médio; N.E: Número de Escrituras<br />
¹ Foi incluído um “caíque armado a iate” ² Um Bergantim e um Patacho vendidos na mesma<br />
escritura; ³ Duas metades de duas embarcações diferentes; 4 Uma “canoa” e uma “canoa latina”<br />
Fonte: APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L 2-21, 1811-50<br />
A pequena profundidade da barra de Rio Grande oferecia grandes dificuldades<br />
para a navegação de embarcações de grande porte. Estas precisavam ir até o<br />
19 ARQUIVO HISTóRICO DO RIO GRANDE DO SUL. Autoridades Militares. Maços: 14, 16, 18, 22, 27, 46,<br />
51. Marinha – “Praticagem da Barra”: Maços: 22, 23, 24; 27 e 28; “Diversos”: maço 72.<br />
20 QUEIROZ, Maria Luiza Bertulini. A Vila do Rio Grande de São Pedro, 1737-1822. Rio Grande: FURG, 1987,<br />
p. 157.
porto da vizinha povoação de São José do Norte para desembarcar as mercadorias.<br />
Como era necessário registrar a entrada das mesmas na Alfândega de Rio Grande,<br />
depois de desembarcadas na “aldeia do Norte”, as mercadorias eram então transportadas<br />
até a vila através de iates, as únicas embarcações em condições de ancorar no<br />
seu porto, segundo registrou Saint-Hilaire em 1820. O mesmo afirmava ainda que<br />
este deslocamento entre São José do Norte e Rio Grande facilitava a ocorrência das<br />
atividades de contrabando 21 .<br />
Os bergantins, por sua vez, eram embarcações a remo de pequeno porte e muito<br />
velozes que contavam com um ou dois mastros e velas redondas ou latinas. Eram<br />
utilizados no comércio e para transporte, preferencialmente em pequenas rotas. José<br />
Virgílio Amaro Pissarra afirma tratar-se do “mais subtil e veloz dos navios de remo<br />
de traça européia utilizados pelos portugueses”²². José de Godoy lembra que os<br />
brigues se assemelhavam aos bergantins e que no século XIX essas denominações<br />
passaram a ser equivalentes e confundiram-se. Quanto às sumacas, o mesmo autor<br />
sublinha que estas possuíam dois mastros e eram muito utilizadas em toda a América<br />
do Sul, especialmente no Brasil e na região do Rio da Prata²³.<br />
Embora fossem apenas três, as barcas a vapor apresentaram a maior média<br />
(773.438 libras) e concentraram 10% do total negociado. De acordo com Francisco<br />
Contente Domingues, o termo “barca” era bastante comum na documentação<br />
portuguesa dos séculos XVI ao XIX e não caracterizava um tipo específico de embarcação,<br />
sendo considerado sinônimo de “navio”. Apesar disso, também podia ser<br />
utilizado como forma de designação das embarcações de menor porte, enquanto o<br />
termo “navio” era utilizado para as de maior porte 24 .<br />
A navegação a vapor no Rio Grande de São Pedro, de acordo com Alvarino<br />
Marques, foi inaugurada por Antonio José Marques, Domingos José de Almeida,<br />
Antonio José Gonçalves Chaves e José Vieira Viana. Estes financiaram a constru-<br />
²¹ SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal/Conselho Editorial,<br />
2002, p. 89; 97; 106. Luccock também faz considerações a respeito da necessidade de ancorar em São José do Norte<br />
e das dificuldades que as embarcações de grande porte tinham para transpor o canal da barra de Rio Grande. LUC-<br />
COCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. São Paulo: Livraria Martins, 1942, p.<br />
115.-16. Sobre a barra de Rio Grande, ver também NEVES, Hugo Alberto Pereira. Estudo do porto e da barra do<br />
Rio Grande. In: ALVES, Francisco das Neves; TORRES, Luiz Henrique (Orgs.). A Cidade do Rio Grande: estudos<br />
históricos. Rio Grande: Universidade do Rio Grande: Secretaria Municipal de Educação e Cultura, 1995, p. 91-106.<br />
²² PISSARRA, José Virgílio Amaro. Navegações Portuguesas. Lisboa: Instituto Camões Portugal/Ministério dos<br />
Negócios Estrangeiros, 2005. Verbete “Bergantim”. Disponível em: . Acesso em: 31 mar. 2009.<br />
23 GODOY, José Eduardo Pimentel de. Naus da colônia. Brasília: Senado Federal, 2007, p. 663-64; 679.<br />
24 DOMINGUES, Francisco Contente. Navegações Portuguesas. Lisboa: Instituto Camões Portugal/Ministério<br />
dos Negócios Estrangeiros, 2005. Verbete “Barca”. Disponível em: . Acesso em: 31 mar. 2009.<br />
359
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
ção de uma embarcação a vapor Liberal, que passou a fazer viagens regulares entre<br />
Pelotas e Rio Grande a partir de 1832. Poucos anos depois, já se contava com linhas<br />
regulares a vapor entre Porto Alegre, Rio Grande e Rio Pardo 25 .<br />
A transação de maior valor presente nas escrituras de embarcações foi a da<br />
barca a vapor Porto-alegrense, em março de 1850. O Coronel Tomás José de Campos<br />
e seu sócio Carlos W. Dichl venderam a embarcação para a Companhia de Vapores<br />
Porto-alegrense, por 1.293.750 libras. Todos os sócios estavam estabelecidos em Rio<br />
Grande: Hugentobler & Doutey, Holland Davis & Companhia, Carruthers Souza<br />
& Companhia, Law Irmãos & Companhia, Comendador José de Souza Gomes, e<br />
Proudfoot Meira & Moffat 26 . Destaca-se o fato de serem quase todos estrangeiros,<br />
indicando o aumento da concorrência enfrentada pelos luso-brasileiros envolvidos<br />
na atividade mercantil na primeira metade dos oitocentos.<br />
Ressalta-se ainda que Hugentobler & Douley, Holland Davis & Companhia<br />
estavam envolvidos no comércio marítimo e de cabotagem da província, especialmente<br />
nas exportações de couros e na importação de sal 27 . Já Proudfoot Meira &<br />
Moffat, segundo informa Riopardense de Macedo, era a firma comercial sob a qual<br />
atuava o britânico, nascido em Glasgow, John Proudfoot. O abastado homem de<br />
negócio chegou a Buenos Aires (1835) e em seguida estabeleceu-se em Rio Grande.<br />
Atuava nos principais negócios da província: teve fazendas onde cultivava algodão,<br />
construiu o cabo submarino ligando Buenos Aires e Montevidéu, em 1864, e foi<br />
o responsável pelo estabelecimento das linhas de barco a vapor que ligavam Porto<br />
Alegre e Rio Grande (1873). Investiu ainda em estradas de ferro e companhias de<br />
gás 28 . Acrescenta-se, por fim, que Proudfoot Meira & Moffat e todos os demais representantes<br />
da Companhia de Vapores Porto-alegrense estavam entre os setenta sócios<br />
da Praça do Comércio de Rio Grande, fundada em 1844 29 , que em 15 de dezembro<br />
de 1849 fizeram doações em dinheiro para a edificação do prédio que serviria como<br />
sede da mesma 30 .<br />
25 MARQUES, Alvarino da Fontoura. Evolução das charqueadas rio-grandenses. Porto Alegre: Martins Livreiro<br />
Editor, 1990, p. 133-35.<br />
26 APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L20, fl.106v.<br />
27 ARQUIVO HISTóRICO DO RIO GRANDE DO SUL. Autoridades Militares. Maços: 14, 16, 18, 22, 27, 46,<br />
51. Marinha – “Praticagem da Barra”: Maços: 22, 23, 24; 27 e 28; “Diversos”: maço 72..<br />
28 Proudfoot faleceu em 1875, na cidade de Lisboa, e sua fortuna ficou para um sobrinho. MACEDO, Francisco<br />
Riopardense de. ingleses no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: A Nação, 1975, p. 61-2.<br />
29 MACEDO, Francisco Riopardense de. ingleses no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: A Nação, 1975, p. 58.<br />
Sobre a Praça do Comércio de Rio Grande, ver também MUNHOZ, Cláudia Simone de Freitas. A Associação Comercial<br />
do Rio Grande de 1844 a 1852: interesses e atuação representativa do setor mercantil. São Leopoldo:<br />
PPG-História/UNISINOS, 2003.<br />
30 APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L21, fl. 39v.<br />
360
A comparação do preço desta embarcação com o das estâncias (bens rurais de<br />
maior valor médio) permite avaliar melhor a dimensão deste investimento. Em 1819,<br />
a Estância São Lourenço foi vendida por 6.146.052 libras esterlinas com todos seus animais,<br />
escravos, gêneros e uma embarcação. Somente as 6 “sesmarias incompletas” e<br />
as casas de vivenda e benfeitorias foram avaliadas em 1.548.999 libras³¹. A metade da<br />
Estância Conventos (no Uruguai) com alguns animais e sua sede, por sua vez, foi vendida<br />
em 1840 por 99.200 libras³². Assim, além da valorização das embarcações frente<br />
aos bens rurais, fica sugerido que os 1.293.750 libras pagos pelo “vapor” Porto-alegrense<br />
tratava-se de um investimento bastante pesado para um único negociante, justificandose<br />
assim a sua aquisição por uma companhia comercial constituída por importantes<br />
agentes mercantis estabelecidos em Rio Grande, principalmente estrangeiros.<br />
A rubrica crédito concentra aproximadamente um quarto do valor investido<br />
nas vendas entre 1811 e 1850, ou 19% dos 116.820.610 de libras esterlinas reunidos<br />
nas escrituras analisadas nesta comunicação. Quanto ao número de escrituras registradas,<br />
os percentuais são de 15,5% em relação às vendas e de 13% das 1.096 escrituras<br />
selecionadas. A maior parte das 146 escrituras da categoria crédito é de “dívida<br />
e hipoteca” (108) que representam 59%% do valor total concentrado nos créditos<br />
(22.679.854 libras).<br />
Os valores médios destes créditos apresentaram grandes oscilações (Tabela<br />
9). O período entre 1831 e 1835 apresenta a menor média (71.829 libras). O número<br />
de transações realizadas é o segundo menor, assim como seu valor total (502.854<br />
libras). A partir daí as médias foram crescentes até 1841-45, quando alcançou as<br />
302.399 libras. O lustro 1846-50 concentra a maior parcela do valor total e do número<br />
de registros, mas o valor médio das escrituras diminuiu consideravelmente em<br />
relação ao período anterior.<br />
Tabela 9 – Evolução qüinqüenal do valor total e médio dos créditos<br />
(Libras esterlinas)<br />
VT: Valor Total; VM: Valor Médio; N.E: Número de Escrituras<br />
Fonte: APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L 2-21, 1811-50<br />
31 APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L9, fl.32v.<br />
³² APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L16, fl.41v.<br />
361
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Nota-se que o valor total concentrado nas escrituras de crédito foi crescente<br />
até 1821-25 e decrescente entre o fim da ocupação da Banda Oriental e o primeiro<br />
qüinqüênio da Guerra dos Farrapos, quando voltou a crescer até o final do período<br />
analisado. As conjunturas de guerra (1811-25 e 1835-45), portanto, foram momentos<br />
importantes para a realização de transações envolvendo crédito e concentraram<br />
quase a metade dos recursos destinados a este tipo de negócio e 37% do total das<br />
escrituras. Quanto ao qüinqüênio 1846-50, é provável que o elevado número de escrituras<br />
de crédito e o alto valor verificado neste momento estivessem relacionados<br />
às necessidades advindas do encerramento dos combates entre farroupilhas e imperiais.<br />
Considerando que a guerra gerou prejuízos para a atividade produtiva, se fez<br />
necessário a reorganização da economia e para a retomada da normalidade produtiva<br />
foi preciso recorrer aos empréstimos. Comparando a distribuição do valor total dos<br />
créditos com a observada nas demais categorias de escrituras analisadas (tabelas 3,<br />
5 e 7), constata-se que em todas elas a passagem do lustro 1841-45 para o seguinte<br />
caracteriza-se pela elevação expressiva no valor investido nos bens rurais e urbanos,<br />
nas embarcações e nos créditos.<br />
Após a análise das escrituras aqui apresentadas, conclui-se que o período final<br />
da ocupação luso-brasileira no território do Uruguai e a primeira metade da Guerra<br />
dos Farrapos constituíram-se em pontos chaves para a economia rio-grandense.<br />
Neste intervalo, os bens ligados ao setor produtivo (rurais) sofreram grande desvalorização,<br />
concomitante à valorização dos bens urbanos e das embarcações, indicando<br />
que a província passava por um processo de crescente desenvolvimento urbano.<br />
O resultado final da distribuição do valor investimento em bens rurais, urbanos e<br />
embarcações indicam que estes concentravam, respectivamente, 39, 33 e 18,6% dos<br />
recursos. Assim, mesmo que os bens rurais respondessem pela maior parcela, fica<br />
evidenciado o incremento da atividade mercantil ao longo do período considerado.<br />
362
FONTES<br />
ARQUIVO HISTóRICO DO RIO GRANDE DO SUL. Autoridades Militares.<br />
Maços: 14, 16, 18, 22, 27, 46, 51. Marinha – “Praticagem da Barra”: Maços: 22, 23,<br />
24; 27 e 28; “Diversos”: maço 72.<br />
ARQUIVO NACIONAL, RIO DE JANEIRO. REAL JUNTA DO COMÉRCIO,<br />
AGRICULTURA, FÁBRICAS E NAVEGAçãO. Matrícula dos Negociantes de<br />
grosso trato e seus Guarda Livros e Caixeiros. Códice 170, v. 1 (1809-1826).<br />
ARQUIVO PÚBLICO DO EESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Transmissões<br />
e Notas. Rio Grande, 2º Tabelionato, Livro 2-21 (1811-1850).<br />
CóDIGO FILIPINO, OU, ORDENAçõES E LEIS DO REINO DE PORTU-<br />
GAL: RECOPILADAS POR MANDADO D’EL-REI D. FILIPE I. Brasília: Senado<br />
Federal, Conselho editorial, 2004, Livro Terceiro, 2º Tomo.<br />
IPEA. Taxa de câmbio média anual da libra esterlina (réis por pence) na praça<br />
do Rio de Janeiro (RJ). Disponível em: http://www.ipeadata.gov.br. Acesso em<br />
11 jan. 2009.<br />
BIBLIOGRAFIA<br />
DOMINGUES, Francisco Contente. Navegações Portuguesas. Lisboa: Instituto Camões<br />
Portugal/Ministério dos Negócios Estrangeiros, 2005. Verbete “Barca”. Disponível<br />
em: . Acesso em: 31 mar. 2009.<br />
FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia<br />
na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização<br />
Brasileira, 1998.<br />
GODOY, José Eduardo Pimentel de. Naus da colônia. Brasília: Senado Federal,<br />
2007.<br />
363
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil.<br />
São Paulo: Livraria Martins, 1942.<br />
MACEDO, Francisco Riopardense de. ingleses no Rio Grande do Sul. Porto Alegre:<br />
A Nação, 1975.<br />
MARQUES, Alvarino da Fontoura. Evolução das charqueadas rio-grandenses.<br />
Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1990.<br />
MUNHOZ, Cláudia Simone de Freitas. A Associação Comercial do Rio Grande<br />
de 1844 a 1852: interesses e atuação representativa do setor mercantil. São Leopoldo:<br />
PPG-História/UNISINOS, 2003.<br />
NEVES, Hugo Alberto Pereira. Estudo do porto e da barra do Rio Grande. In:<br />
ALVES, Francisco das Neves; TORRES, Luiz Henrique (Orgs.). A Cidade do Rio<br />
Grande: estudos históricos. Rio Grande: Universidade do Rio Grande: Secretaria<br />
Municipal de Educação e Cultura, 1995.<br />
OSóRIO, Helen. O império português no sul da América: estancieiros, lavradores<br />
e comerciantes. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007.<br />
PESAVENTO, Fábio. Um pouco antes da Corte: a economia do Rio de Janeiro<br />
na segunda metade do Setecentos. Niterói: Centro de Ciências Sociais Aplicadas-<br />
Faculdade de Economia/UFF, 2009 [tese de doutorado].<br />
PISSARRA, José Virgílio Amaro. Navegações Portuguesas. Lisboa: Instituto Camões<br />
Portugal/Ministério dos Negócios Estrangeiros, 2005. Verbete “Bergantim”.<br />
Disponível em: . Acesso<br />
em: 31 mar. 2009.<br />
364
ContrAtos Conflituosos: ArrendAMentos,<br />
ArrendAtários e litígios judiCiAis eM uruguAiAnA,<br />
segundA MetAde do séCulo xix¹<br />
Guinter Tlaija Leipnitz*<br />
Resumo: Na segunda metade do século XIX, o meio rural brasileiro passava por transformações,<br />
no âmbito das relações socioeconômicas, principalmente com o advento da Lei Eusébio de<br />
Queiroz (proibição do tráfico de escravos) e da “Lei de Terras” (discriminação entre terras públicas e<br />
privadas). Na Campanha rio-grandense, a relação dos produtores com a terra se modificava gradualmente:<br />
produtores sem a propriedade jurídica da terra, que criavam e plantavam em campos alheios,<br />
eram cada vez menos tolerados pelos proprietários. Nesse contexto, os arrendamentos cresciam como<br />
alternativa de acesso à terra. Contudo, os contratos e as relações concernentes aos mesmos foram<br />
alvos de disputas entre os contratantes, chegando algumas vezes à arena judicial. Através de alguns<br />
litígios produzidos em Uruguaiana e localizados no Acervo Judicial do Arquivo Público do Estado do<br />
Rio Grande do Sul, pudemos analisar alguns aspectos desses conflitos, referentes ao cumprimento de<br />
cláusulas contratuais e aos direitos de propriedade implicados pelos arrendamentos.<br />
Palavras-chave: arrendamentos – conflitos agrários – relações de propriedade – direitos de<br />
propriedade – história agrária do Rio Grande do Sul<br />
INTRODUçãO<br />
As relações socioeconômicas estavam se redefinindo no Brasil da segunda<br />
metade do século XIX. A Lei Eusébio de Queiroz - que proibia<br />
o tráfico de escravos -, e a Lei nº 601, mais conhecida como “Lei<br />
de Terras” - que impunha uma discriminação entre terras públicas e privadas -, promulgadas<br />
em 1850, trouxeram novos elementos à realidade do meio rural brasileiro.<br />
Na Campanha rio-grandense, onde a pecuária era a atividade econômica predominante,<br />
ocorria um processo gradual importante. As relações de propriedade<br />
* Endereço eletrônico: guintertl@yahoo.com.br . Licenciado e bacharel em História pela UFRGS – mestrando com<br />
bolsa do CNPQ pelo Programa de Pós-graduação em História da UFRGS<br />
¹ Este artigo corresponde a discussões que integram o terceiro capítulo de minha dissertação de mestrado, ainda<br />
em elaboração.<br />
365
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
estavam sendo transformadas: o “livre” acesso à terra estava sendo obstaculizado, e<br />
a existência de muitos produtores que viviam e desempenhavam suas atividades de<br />
subsistência em campos alheios, não possuindo a propriedade jurídica desses campos,<br />
era cada vez menos toleradas pelos proprietários.²<br />
Em Uruguaiana, município localizado nessa paisagem agrária, o arrendamento<br />
– uma prática já exercida na região – se constituiu em uma das alternativas de acesso<br />
à terra para muitos produtores que ficaram desprovidos desse bem, mas também<br />
para aqueles que desejavam ampliar seus empreendimentos pecuários, reproduzindo<br />
a criação de gado extensiva através da incorporação de novas frações de campo.<br />
Porém, algumas cláusulas e circunstâncias sob as quais contratos de arrendamento<br />
eram realizados poderiam fomentar conflitos entre as partes envolvidas. E de<br />
fato, entre o início da segunda metade do século XIX e a primeira década do século<br />
XX, algumas vezes esses conflitos se transformaram em litígios judiciais.<br />
Dos 113 processos judiciais preeminentemente rurais³ abertos em Uruguaiana<br />
(98 ações possessórias e 15 processos de despejo), entre os anos de 1847 e 1910,<br />
16 envolviam arrendatários como autores ou réus da causa que era movida. Analisando-os<br />
conjuntamente, vemos que estes processos compõem um quadro bastante<br />
heterogêneo, conquanto os casos em particular guardem alguns aspectos semelhantes<br />
entre si. Começando pela variedade do tipo de ação proposta, percebemos que<br />
situações diversas eram geradoras de tensões que acabavam sendo mediadas pelas<br />
vias judiciais. A maior parte dos litígios se dava em torno de disputas a respeito de<br />
direitos de propriedade, e em segundo lugar, do cumprimento de condições contratuais.<br />
Entretanto, essas motivações, abrigadas sob essas duas égides, escondiam<br />
situações concretas distintas entre si, como a definição dos limites físicos de um<br />
campo, o levantamento de uma cerca, a indenização por benfeitorias, dentre outros.<br />
Cada um desses casos instiga discussões sobre relações e direitos de propriedade e<br />
relações contratuais entre os agentes históricos da Campanha de Uruguaiana. Em<br />
outras palavras, são reveladoras da dinâmica das relações sociais que se estabeleciam<br />
naquele contexto.<br />
Como os conflitos judiciais envolvendo arrendatários iluminam esses aspectos?<br />
Ocuparemos-nos neste artigo de responder esta questão, trabalhando somente<br />
² A respeito desse processo, ver GARCIA, Graciela. O domínio da terra: conflitos e estrutura agrária na Campanha<br />
rio-grandense oitocentista. Porto Alegre: UFRGS, 2005. Dissertação de mestrado, e FARINATTI, Luís Augusto<br />
Ebling. Confins meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na Fronteira Sul do Brasil (1825-1865). Rio de Janeiro:<br />
UFRJ, 2007. Tese de doutorado.<br />
³ Consideramos como “rurais” os processos que envolviam disputas sobre bens como campo (inclusive chácaras<br />
situadas fora do espaço urbano) e gado.<br />
366
com 6 desses litígios: em primeiro lugar, com aqueles que versavam acerca do cumprimento<br />
de condições contratuais (3 processos), pelos quais podemos perceber de<br />
que maneiras os litigiosos procuravam validar suas posições por meio do confronto<br />
de documentos públicos e privados, e em segundo lugar, com litígios cujas disputas<br />
principais se davam em torno da propriedade (3 processos), que fornecem indícios<br />
de como o reconhecimento da condição de arrendatário poderia ou não ser interessante<br />
em conflitos que colocavam em jogo direitos de propriedade distintos.<br />
DOCUMENTOS PÚBLICOS VERSUS DOCUMENTOS<br />
PRIVADOS NO RIGOR DO CUMPRIMENTO DE<br />
CONDIçõES CONTRATUAIS<br />
Um aspecto importante dos arrendamentos é o fato de conformarem contratos;<br />
logo, eles traziam em si uma série de condições que implicavam obrigações<br />
mútuas entre os contratantes.<br />
A respeito disto, firmá-los por meio de escrituras públicas não devia ser uma<br />
opção aleatória para aqueles neles envolvidos. Procurando a mediação do Estado, os<br />
contratantes fortaleciam o rigor das cláusulas, pois as submetiam à legitimidade do<br />
arbítrio legal. Este, caso alguma das partes infringisse as prévias combinações contratuais,<br />
faria valer a “sacralidade” do teor da escritura, decidindo em favor do escrito<br />
original do contrato, com a devida imparcialidade esperada, ao menos teoricamente.<br />
Assim, os contratos de arrendamento se configuravam como obrigações recíprocas,<br />
e as escrituras públicas pelas quais tomavam forma, a garantia legal do seu<br />
cumprimento. Contudo, o que acontecia quando eles eram de fato “quebrados”, e<br />
um dos seus pólos sentia-se lesado? O que era firmado no texto das escrituras públicas<br />
era inquestionável?<br />
Vejamos alguns casos. O primeiro trata de um arrendamento de gado. Joaquina<br />
Ferreira da Fonseca apresentou, em fevereiro de 1866, uma petição na qual<br />
demandava que Antônio José Dornelles recebesse as 800 reses arrendadas por seu finado<br />
marido Silvano Rodrigues Soares em 1859, contrato que deveria durar por seis<br />
anos. 4 O réu se recusava em receber o gado mesmo tendo assinado com o procurador<br />
da autora – o irmão da mesma, Ignacio Manoel da Fonseca, que se encarregava<br />
“particularmente dos negócios da [Suplicante] que não pode andar à testa deles”<br />
4 Uruguaiana. Possessórias, 1º Cartório de Cível e Crime (daqui em diante, CC), maço (daqui em diante, m).20,<br />
nº465, 1866. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (daqui em diante, APERS).<br />
367
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
- um recibo comprovando ter recebido a quantia do último ano do arrendamento,<br />
além de sua obrigação de receber o casco das 800 reses.<br />
Dornelles, por sua vez, oferecia embargos à ação de preceito cominatório,<br />
na qual declarava que o contrato original previa a compra do gado por parte dos arrendatários,<br />
e que só assinou o “ajuste extrajudicial” – o recibo - com o procurador<br />
da autora porque era “um rústico e quase analfabeto, ao passo que o Advogado da<br />
[autora] é um homem de letras, formado em Direito, inteligente e sagaz; pelo que<br />
teve de ser vítima o [réu] embargante da sua própria ignorância”, tendo depois se<br />
reportado “do que havia levianamente prometido, logo que, consultando suas filhas,<br />
donas de parte desse gado arrendado, achou nelas inteira desaprovação do referido<br />
ajuste por ser um negócio inviável, prejudicial”, e<br />
[...] que se por ventura viesse a prevalecer esse incurial convênio, teria<br />
[ele] de sofrer mais do que enorme lesão, atendendo-se à redução dos<br />
preços feita já na ocasião do contrato de arrendamento e venda a que<br />
agora se propunha fazer [a autora] entregando em espécie pelo valor<br />
de 4 [...] que devia ser satisfeito em Dinheiro pelo valor de 8, e só por<br />
causa dessa lesão substancialmente viciado se torna esse ajuste por ser<br />
de pleno direito nulo e de nenhum efeito.<br />
Para contestar o recibo apresentado pela autora, Dornelles anexou aos autos<br />
uma escritura pública de hipoteca, com a qual os arrendatários hipotecavam sua<br />
fazenda de légua e meia para cobrir todos os seis anos de contrato mais o valor de<br />
venda do gado. Este documento fazia referência à escritura pública de arrendamento<br />
original, mas por algum motivo ela não foi anexada, embora existisse. Nas linhas<br />
desta, estava claramente expresso que Antônio José Dornelles e o marido da autora<br />
Silvano José Rodrigues se obrigavam “reciprocamente por suas livres e espontâneas<br />
vontades, o primeiro proprietário a vender, e o segundo arrendatário a comprar as<br />
referidas oitocentas reses de criar no fim do prazo de seis anos que há de durar este<br />
arrendamento”. 5<br />
Depois de quase um mês e meio de litígio, as partes, por meio de petição<br />
conjunta, diziam ter se harmonizado, fechando um acordo para por fim ao conflito:<br />
o réu aceitava reduzir de 8$000 para 6$500 réis o preço de venda do gado arrendado,<br />
em troca da efetuação da compra do mesmo pela autora, por meio de uma parcela<br />
de entrada mais duas letras de dívida firmadas em seu favor. Desse modo, o juiz<br />
sentenciou a desistência e o acordo, ordenando que tanto a autora quanto o réu<br />
arcassem com as custas.<br />
5 Uruguaiana, 1° Tabelionato. Livro de Transmissões e Notas volume 3, 1858-1860, f.62-62v. APERS.<br />
368
Relatado o caso, é interessante perceber como a exigência do cumprimento<br />
de condições previstas no contrato dependeu do interesse particular de cada um.<br />
Assim, na petição de abertura a autora não mencionou a existência de obrigação de<br />
compra do gado arrendado; por seu turno, o réu, que não obstante tivesse admitido<br />
sua aquiescência em relação ao documento apresentado pela autora, justificou esse<br />
consentimento por sua ignorância, conforme sua fala reproduzida nos parágrafos<br />
anteriores.<br />
E é justamente na fala de Dornelles que emana a questão do peso dos documentos<br />
públicos em relação aos particulares, exemplificado na contestação do<br />
“ajuste extrajudicial” firmado entre o réu e o procurador da autora: “[...] esse ajuste<br />
extrajudicial feito meramente de palavra entre o [réu] e o Advogado da [autora] não<br />
pode prevalecer contra o ajustado e tratado em escritura pública, mesmo abstraindo e deixando<br />
à margem a falta de formalidade com que foi celebrado”, sendo “corrente em Direito<br />
ser a escritura pública essencial para o distrato quando o contrato foi celebrado por escritura<br />
pública; e por isso não pode a combinação em que entrou o [réu] com o Advogado da<br />
[autora] desfazer o contrato preexistente”. 6 Em outras palavras, o réu argumentava<br />
em sua defesa que mesmo tendo assinado uma modificação em relação ao contrato<br />
original, esta não podia valer devido à circunstância em que fora firmada – o “ludibrio”<br />
do advogado “culto” sobre o homem “rústico e ingênuo” - mas principalmente<br />
por ser contrário ao Direito, uma vez que o documento particular não poderia<br />
desfazer ou modificar um acordo firmado publicamente.<br />
Infelizmente para nossos propósitos, por ser encerrado pela desistência mútua,<br />
o processo não teve o fôlego suficiente a ponto de o juiz analisá-lo a luz do<br />
embate entre os documentos públicos e os documentos privados. Apesar disso, é<br />
notável que o réu procurasse legitimar sua reivindicação através do peso do documento<br />
público.<br />
Da mesma maneira procederia o réu de um outro processo, uma ação ordinária,<br />
iniciada quase trinta anos depois, em agosto de 1894. Joaquim Máximo da Silva<br />
requeria que Antônio dos Santos Moraes fosse intimado a pagar as quantias referentes<br />
à indenização de duas benfeitorias – açude e aramado de invernada, no valor de<br />
150 pesos – que havia construído no campo arrendado ao mesmo réu, localizado<br />
na República Oriental do Uruguai, por sete anos desde 1887. 7 Segundo o autor, o<br />
contrato havia terminado uma vez que o réu vendera o campo ao governo daquele<br />
país sem ressalvar o arrendamento.<br />
6 Grifos nossos.<br />
7 Uruguaiana. Embargos, 2º CC, m.62, nº1725, 1894. APERS<br />
369
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Defendendo-se, Antônio Moraes contestava a ação, ao alegar que o autor não<br />
havia provado ter realizado tais benfeitorias, e que considerava nulo o contrato firmado<br />
ante escritura pública depois que vendido o campo, pois Joaquim Máximo estabelecera<br />
um novo contrato com o novo dono. Logo, o contrato particular assinado<br />
por ambos acordando as condições da construção dessas benfeitorias não mais tinha<br />
validade, e mesmo que tivesse, não anularia o que constava da escritura pública, na<br />
qual estava expressamente declarado que quaisquer benfeitorias realizadas ficariam<br />
em benefício do proprietário.<br />
O contrato particular mencionado por Moraes referia-se a um documento<br />
que o autor apresentou. Do seu teor constava que o proprietário Antônio dos Santos<br />
Moraes contratava com o arrendatário Joaquim Máximo da Silva a construção de<br />
um açude e de um aramado, adiantando este o capital e sendo indenizado no fim do<br />
contrato pelo proprietário. Além deste documento, que foi o cerne dos principais<br />
debates dos advogados, o autor anexou aos autos a escritura pública do arrendamento<br />
em questão, além de outros documentos particulares.<br />
Para embasar a sua versão, o réu juntou ao processo um documento em espanhol,<br />
o qual expressava um acordo entre Joaquim Máximo e o novo proprietário<br />
do campo, o uruguaio Allende, que havia comprado o mesmo junto ao governo de<br />
seu país. Com esse acordo, o autor dissolveria o contrato que havia firmado com o<br />
réu, além de se obrigar a despejar o campo em troca do arrendamento de um outro<br />
campo do mesmo Allende. Moraes também anexou cartas trocadas entre ele e<br />
Joaquim Máximo, que expressavam a quitação dos pagamentos do arrendamento, e<br />
uma carta assinada pelo uruguaio cujo teor relatava que o autor só se comprometia<br />
em desalojar o campo caso Allende comprasse o açude e o aramado construídos, e<br />
que essa condição teria de fato se realizado, trocando Joaquim Máximo as benfeitorias<br />
pelo acréscimo de uma parcela de terras no contrato de arrendamento que havia<br />
firmado com Allende.<br />
O primeiro artigo da contestação do réu – “que o Autor não provou ter<br />
feito o açude e a invernada de que trata a presente ação nos campos que lhe foram<br />
arrendados” - foi rechaçado por uma testemunha do autor, que declarou ter trabalhado<br />
junto com o mesmo em sua construção, e admitido pelo próprio réu em seu<br />
depoimento, quando disse “que o autor deu cumprimento ao contrato, mas que ele<br />
réu nunca foi ver o açude”. Restava a ele então tentar invalidar o contrato particular<br />
para a construção daquelas benfeitorias. Assim, constava no arrazoado articulado<br />
por seu advogado:<br />
[...] ao autor não cabe direito algum de cobrar-se de açudes e invernadas,<br />
que tenha feito, porque são benfeitorias no campo arrendado, em<br />
face da cláusula final do contrato [público de arrendamento], que não<br />
pode ser nulo pelo [particular, de combinação da construção do açude e aramado].<br />
370
Diz a escritura [pública] infine: “quaisquer benfeitorias que o outorgado<br />
arrendatário aumentar no Estabelecimento ou campo ficarão a benefício<br />
dos outorgantes proprietários, sem que estes sejam obrigados<br />
ao pagamento ou indenização alguma.” O documento citado é uma<br />
escritura pública e assinada também pela mulher do réu outorgante, e<br />
o documento [acerca do levantamento das benfeitorias] é uma escritura<br />
particular assinada somente pelo réu! 8<br />
O advogado segue, citando Teixeira de Freitas, e recupera a mesma noção<br />
utilizada pelo advogado do réu do caso anterior: “o que se dispõe sobre os contratos<br />
procede também nos distratos; e sempre que o contrato for feito por escritura<br />
pública o distrato não se pode provar se não por outra escritura pública”. Como se<br />
vê, a base do argumento do réu era estabelecer uma prioridade de importância entre<br />
os documentos, que eram de natureza diferente: um público, que deveria prevalecer<br />
sobre o outro, privado.<br />
O julgador da causa, contudo, não se satisfez com esse argumento, no momento<br />
em que embasou sua sentença. Ele, mesmo considerando<br />
[...] que uma modificação a um contrato de locação rural feito por<br />
escritura pública deverá ser também por escritura pública feita, ainda<br />
assim o contrato [particular] é em direito equiparado a esse instrumento porquanto<br />
[no seu depoimento] o Réu reconhece judicialmente a sua validade e a obrigação<br />
que ele estipula, e o “escrito particular que for reconhecido em juízo<br />
pela parte que o passou e assinou, ou que o assinou somente, será<br />
atendido como se fora escritura pública”. Teixeira de Freitas obra cit.<br />
Art.º 373. 9<br />
O réu Antônio dos Santos Moraes fora traído mais uma vez por suas próprias<br />
palavras, fornecendo ferramentas judiciais decisivas para a vitória do autor: primeiro,<br />
produziu prova contra si mesmo ao reconhecer que o acertado no documento<br />
particular – a construção do açude e do aramado – fora realizado pelo arrendatário<br />
Joaquim Máximo da Silva, e segundo, involuntariamente, equiparou esse mesmo<br />
documento – a principal prova do autor – à escritura pública de arrendamento, que<br />
garantia teoricamente seu direito de não ser obrigado a indenizar benfeitorias, no<br />
momento em que admitiu em juízo tê-lo firmado.<br />
Ocorrências como esta demonstram que os contratos de arrendamento firmados<br />
por escritura pública, não obstante sua importância legal, não eram estanques,<br />
nem garantias plenas da realização das cláusulas estabelecidas em seu conteúdo.<br />
Foi nisso que apostou a defesa do autor ao elaborar a estratégia para provar a<br />
8 Grifos nossos (em itálico).<br />
9 Grifos nossos (em itálico).<br />
371
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
pertinência da ação que movia. A efetivação dos documentos – fossem públicos ou<br />
particulares – enquanto provas, dependiam sempre das circunstâncias em que eram<br />
firmados, e obviamente, da interpretação das autoridades a respeito de seu encadeamento<br />
hierárquico.<br />
Uma outra ação ordinária, cuja abertura aconteceu em agosto de 1897, ilustra<br />
bem como a letra escrita do contrato poderia ser flexibilizada por situações concretas<br />
vivenciadas pelos contratantes. Nesta ação, Clara da Cunha Alfaro requeria<br />
que Cândido da Rosa Freitas restituísse-lhe a “fração de três quadras de sesmaria de<br />
campo” que a ele havia arrendado por seis anos desde julho de 1891. 10 Conforme a<br />
solicitação da autora, a restituição deveria ser feita “nos termos da escritura do contrato”,<br />
ou seja, conforme o arrendatário havia recebido a parcela arrendada: segundo<br />
a reclamante, “toda cercada de arame com postes de inhanduraí”.<br />
O réu, por sua vez, afirmava que nunca havia se recusado a entregar o campo,<br />
tanto que assim havia procedido quando do término do contrato em julho do<br />
mesmo ano. Ele contestava que o recebera no estado descrito pela autora, estando<br />
o campo, por suas palavras, parcialmente cercado com postes de angico. Entretanto,<br />
como principal argumento em sua defesa, Cândido Freitas alegava que durante o<br />
“período revolucionário” – correspondente à Revolução Federalista, ocorrida entre<br />
1893 e 1895 no território rio-grandense - as forças haviam nele acampado e queimado<br />
postes, inutilizando parcelas do aramado, “não sendo [ele] responsável por esses<br />
atos de força maior, impostos pela necessidade da guerra”.<br />
Os advogados da autora insistiram em fundamentar a pertinência da ação no<br />
cumprimento rigoroso da cláusula “entrega dos bens no estado em que recebeu”,<br />
tão comum nos contratos de arrendamento de Uruguaiana firmados por escritura<br />
pública. O caso da autora não dizia respeito a uma falta de entrega “de fato” do campo<br />
arrendado por parte do arrendatário, isto é, o impedimento de que ela entrasse<br />
novamente na posse de suas terras ou a relutância do arrendatário em desalojar a<br />
referida propriedade. Na verdade, o único sentido que ela dava a uma suposta recusa<br />
de entrega do seu bem era justamente que esta não havia sido conforme o estabelecido<br />
originalmente no contrato, isto é, “no mesmo estado em que recebeu” o<br />
arrendatário. Isso fica bastante evidente em inúmeras passagens das falas produzidas<br />
por sua defesa. Por exemplo, perguntado Salvador de Lima, que depôs em favor da<br />
autora, “porque calcula que o réu não tenha feito a entrega da invernada?”, respondeu<br />
que ela ainda não havia recebido “porque se a tivesse [...] ela estaria em bom<br />
10 Uruguaiana. Possessórias, 2º CC, m.5, nº1730, 1897. APERS<br />
372
estado. Perguntado porque calcula que a autora não tivesse recebido a invernada no<br />
estado em que estava ao tempo do vencimento do arrendamento? Respondeu que<br />
porque a invernada estava em aberto”.¹¹ Neste ponto insistiu o advogado de Clara<br />
Alfaro no seu arrazoado final:<br />
[...] a prova de que o réu não restituiu o campo é o estado em que ele está, e que não<br />
podia, não devia ser recebido senão nas condições estipuladas na escritura [pública<br />
de arrendamento]. E tanta consciência tinha o réu de que a autora não<br />
o receberia senão nas condições em que arrendou, que não cogitou<br />
de entregá-lo nem mesmo de explicar-se nesse sentido, fazendo antes<br />
convencer a autora que a demora na entrega era para pô-lo no estado<br />
em que o recebeu.<br />
[...]<br />
O fato de não ter o réu entregado a dita invernada à sua proprietária<br />
também está provado pelas testemunhas, e mais cabalmente pela<br />
presunção de que a autora não a reconhecia senão nas condições em<br />
que a entregou e mediante as quais pela escritura era o réu obrigado<br />
a entregar-lhe.¹²<br />
Ao insistir nessa interpretação da “entrega” do bem arrendado, os letrados<br />
encarregados do caso de Dona Clara da Cunha Alfaro queriam ratificar a rigidez que<br />
algumas linhas da escritura impunham – ou deveriam impor – à efetivação do seu<br />
cumprimento na realidade prática da relação contratual. A insistência era tamanha<br />
que chegava a ser redundante: “O réu obrigou-se expressamente por cláusula expressa<br />
a entregar o bem arrendado no estado em que recebeu, chamou a si todas as<br />
eventualidades, não pode agora sob fúteis pretextos, contrariar a verdade e ao direito,<br />
fugir ao cumprimento da obrigação”.¹³<br />
Respondendo a essa ofensiva da autora, que anexou ao processo a escritura<br />
pública de arrendamento, na qual constava a obrigação do arrendatário em “entregar<br />
o campo, que é cercado de arame e postes de Inhanduraí, no mesmo estado em<br />
que receber”, o réu juntou dois recibos de quitação, referentes ao pagamento dos<br />
dois últimos anos de arrendamento. O último recibo, na visão do advogado do réu,<br />
constituía prova de que o campo havia sido entregue, argumento que era contestado<br />
pela defesa da autora. A essa contestação, a defesa de Cândido Freitas replicava<br />
sarcasticamente:<br />
Diz sobre este ponto [a validade do recibo enquanto prova] o ilustrado<br />
patrono ex-adverso: a entrega do preço do arrendamento não<br />
induz a verificação da entrega do bem arrendado. Sim, se fora um<br />
¹¹ Grifos nossos.<br />
¹² Grifos nossos.<br />
¹³ Grifos nossos.<br />
373
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
bem móvel, um bem semovente, era natural que a parte arrendatária o<br />
recebesse, mas mesmo assim clandestina ou velhacamente podia dizer<br />
que não recebeu.<br />
Sabe, entretanto, de vantagem, quando o arrendamento versa sobre<br />
bens de raiz, porque compreende o mais vulgar dos beócios, que não<br />
se agarram três quartos de sesmaria de campo, para colocar sobre o<br />
colo de uma senhora.<br />
Dificilmente o tom ácido da fala do advogado do réu levou o juiz da primeira<br />
instância a proferir sua sentença. Todavia, muito menos a estratégia da autora de bater<br />
repetidamente na mesma tecla foi suficiente para convencer ele ou os julgadores<br />
do Tribunal de Relação. As autoridades judiciais pareciam ver menos rigor nas obrigações,<br />
atenuadas pelas circunstâncias. A sentença decretou Clara da Cunha Alfaro<br />
carecedora da ação, uma vez que, recaindo a ela o ônus da prova, não conseguiu<br />
cumprir tal quesito. Não obstante assim o fizesse, o fato de o réu não ter entregue o<br />
campo no estado em que recebeu havia sido motivada por um caso fortuito, provado<br />
pelos depoimentos das testemunhas, inclusive daquelas produzidas pela autora – a<br />
destruição causada pela ocupação dos campos pelas “tropas revolucionárias” – e que<br />
pelos termos das “Ordenações Filipinas, Liv. 4 Tit. 53 § 3”, versava sobre a questão<br />
de “casos de força maior”: a responsabilidade somente deveria recair sobre o locatário,<br />
“salvo quando no dito caso fortuito interviesse culpa sua... ou se foi em mora de<br />
tomar [...] à coisa emprestada a seu tempo... Teixeira de Freitas Consol. Art.º 657”.<br />
Não estando o réu em mora, conforme provavam os recibos anexados ao processo,<br />
então não se aplicava a disposição citada.<br />
A exemplo do litígio motivado pela falta de indenização de benfeitorias, este<br />
processo ilumina a forma pela qual se efetivavam (ou não) as obrigações que os contratantes<br />
firmavam mutuamente, e de que maneira procediam na busca pela garantia<br />
dos direitos decorrentes desses contratos perante a esfera judicial.<br />
374<br />
SER OU NãO SER ARRENDATÁRIO<br />
Os arrendamentos, apesar de algumas especificidades, estavam integrados a<br />
uma estrutura socioeconômica mais ampla, da Campanha rio-grandense, e por isso,<br />
refletiam sob diferentes ângulos características desta estrutura. Os contratos reproduziam<br />
elementos da atividade econômica tradicional dali – a pecuária. Além disso,<br />
implicavam diferentes facetas das relações de propriedade que se constituíam no seio<br />
daquela sociedade. Sendo assim, os arrendatários compartilhavam, em grande medida,<br />
das mesmas práticas econômicas, e de relações de propriedade similares com<br />
indivíduos não-arrendatários.
No entanto, a opção pela formalização de uma relação social através de um<br />
contrato escrito tinha outras conseqüências. O arrendamento implicava um vínculo<br />
formal; ao tornar-se arrendatário, um indivíduo reconhecia explicitamente ocupar<br />
uma posição específica em uma relação desigual com aquele que lhe cedia um bem<br />
em arrendamento. Na expressão “ser arrendatário”, conjugamos o verbo transitivamente<br />
– “ser arrendatário de...”; além disso, o objeto da oração, muito mais do que<br />
“algo”, é “alguém”: em outras palavras, o indivíduo que contraía um arrendamento<br />
se tornava arrendatário não apenas de um bem (campo, estabelecimento, rebanho),<br />
mas principalmente, de um outro indivíduo. Logo, uma vez que A toma em arrendamento<br />
algum bem de B, A torna-se arrendatário de B, ou seja, cristaliza uma relação<br />
de dependência com B.<br />
Assim, declarar-se ou ser declarado como arrendatário, a exemplo do termo<br />
“agregado”, evidenciava a existência de uma relação preestabelecida entre aquele<br />
assim declarado e uma outra pessoa. Analisando-se sob a ótica de uma relação de<br />
propriedade, isso implicava – ao menos juridicamente – reconhecer que o desfrute<br />
do bem arrendado era concedido pelo proprietário, em troca de uma compensação<br />
financeira, isto é, que o bem não pertencia ao arrendatário.<br />
O que queremos dizer por meio desta linha de raciocínio é que, sob este aspecto,<br />
em um conflito judicial cujo objeto de disputa fosse algum elemento referente<br />
a direitos de propriedade, o fato de ser arrendatário imprimia de antemão um diferencial<br />
em relação a outros conflitos de mesma natureza que não envolvessem arrendatários.<br />
Havia claramente o reconhecimento do consentimento de outrem para<br />
o desfrute do bem em questão.<br />
Porém, o rumo que os conflitos tomariam, e as expectativas daqueles declarados<br />
como arrendatários não estavam predeterminados, a começar pela própria<br />
questão da transferência de direitos prevista pelo arrendamento. De acordo com o<br />
Alvará de 3 de novembro de 1757, promulgado quando o território brasileiro ainda<br />
pertencia à Coroa portuguesa,<br />
[...] todos os contratos que não forem de aforamento em Fatiota ou<br />
em Vidas, com inteira transação do útil domínio, ou para sempre, ou<br />
pelo menos, pelas referidas três vidas; se julguem de simples locação<br />
ordinária; sem que seja visto transferir-se por eles domínio algum a favor dos<br />
Locatários para lhes dar direito de excluírem os outros inquilinos, ou Rendeiros<br />
anteriores, senão nos outros casos, em que por Direito é permitido aos<br />
Locadores despedirem os seus respectivos Locatários. 14<br />
14 Aditamentos ao Livro IV. In: ALMEIDA, Cândido Mendes de. Código Philippino ou ordenações e Leis do Reino de Portugal<br />
anotadas. Rio de Janeiro: Typografhia do Instituto Philimathico, 1870, p.1023. Grifos nossos<br />
375
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Isso não impediu que, em 1869, Cândido José de Camargo promovesse um<br />
embargo de obra nova contra Cândida Alves dos Santos pela construção de um<br />
rancho no campo em que o primeiro era arrendatário da segunda. 15 O autor apresentou<br />
uma escritura particular de arrendamento na qual constava que a ré arrendava<br />
a ele todo o campo de sua meação, mais o gado que viria a receber de herança, e<br />
considerava, na sua petição inicial, que o levantamento do rancho ordenado pela<br />
arrendadora era um verdadeiro “esbulho”, causando-lhe “grave prejuízo no costeio<br />
dos seus animais”, um ato cometido “sem que a suplicada [proprietária] tenha mais campo<br />
algum, pois o arrendou todo”. 16 No seu entendimento, a cessão do campo em arrendamento<br />
lhe transferia todo o direito de sua exploração, e quaisquer tipos de violações<br />
no exercício da mesma, ainda que proviesse da proprietária da terra arrendada, eram<br />
compreendidos como “atos arbitrários, violentos e criminosos”, que manifestavam<br />
um desrespeito “a si própria e aos direitos alheios”.<br />
Os litigantes, em petição conjunta, acabariam acordando que o autor desistiria<br />
do embargo e do contrato em troca da indenização da ré pelos pagamentos adiantados<br />
e pelas benfeitorias realizadas (que somava ao todo 292$000 réis). Embora curto<br />
(decorreu cerca de todo o mês de julho de 1869), este caso é revelador da complexidade<br />
das relações de propriedade que poderiam estar imbricadas em um contrato<br />
de arrendamento. O arrendatário Cândido Camargo não estava excluindo “outros<br />
inquilinos, ou Rendeiros anteriores” mencionados no texto do alvará, mas a proprietária<br />
em pessoa! Essa exclusão não era absoluta, ou seja, ele não desejava que Dona<br />
Cândida despejasse o campo em que ela era proprietária arrendadora; ainda assim, se<br />
constituía como uma limitação no direito de desfrute do mesmo: ela não tinha mais<br />
“campo algum”, uma vez que “o arrendou todo”. Este ousado arrendatário desejava<br />
um desfrute exclusivo do campo.<br />
Não temos como saber se seu embargo seria competente aos olhos da sentença<br />
do juiz caso o processo não fosse interrompido, mas o simples fato de Cândido<br />
José de Camargo ter recorrido à Justiça para buscar legitimidade em sua reivindicação<br />
não pode ser desprezado. Mesmo sendo seu arrendatário, ele compreendia que<br />
poderia dispor de direitos suficientes para ousar desafiar Cândida Alves dos Santos<br />
em relação ao usufruto da propriedade arrendada junto a ela. Dessa forma, ele se<br />
via também como um proprietário, no sentido utilizado por Congost, como alguém<br />
que possui um direito de uso sobre algo; 17 o seu era apenas mais uma das diferentes<br />
formas de manifestação desse direito.<br />
15 Uruguaiana. Possessórias, 1º CC, m.20, nº467, 1869. APERS.<br />
16 Grifos nossos.<br />
17 CONGOST, Rosa. Tierras, leyes, historia: estudios sobre “la gran obra de la propiedad”. Barcelona: Crítica, 2007,<br />
p.15.<br />
376
Este foi um caso limite, a única ação movida por um arrendatário de terra<br />
contra o proprietário do bem arrendado. Portanto, não obstante a ousadia desse<br />
arrendatário permitir-nos refletir sobre a amplitude de interpretação dos sujeitos<br />
acerca de seus direitos, mesmo quando sua posição relacional era – pelo contrato de<br />
arrendamento – formalmente inferior, ela não devia ter uma ocorrência muito freqüente<br />
entre os conflitos sobre direitos de propriedade. Certamente não teve entre<br />
as contendas mediadas pela Justiça civil de Uruguaiana.<br />
O estabelecimento de um contrato de arrendamento poderia servir como<br />
uma formalização ou cristalização de uma relação de propriedade preexistente. Em<br />
Alegrete, o maior município da Campanha, vizinho de Uruguaiana, uma das estratégias<br />
mais utilizadas nos litígios agrários “foi a apresentação de documentos que<br />
comprovavam, ou tinham a intenção de comprovar que o réu reconhecia o domínio<br />
do autor, [e] escrituras de arrendamento foram utilizadas nesse sentido”. 18 E em<br />
Uruguaiana, poderiam ter sido utilizados com os mesmos propósitos?<br />
Em dezembro de 1858, Valentim Moraes de Palma e sua mulher, juntamente<br />
com seus irmãos, irmãs, cunhados e cunhadas, foram ao 1º Cartório de Cível e Crime<br />
de Uruguaiana para abrir um processo de libelo de força nova e esbulho contra<br />
Felisberto dos Santos e sua mulher. 19 Os autores exigiam que os réus restituíssemlhes<br />
um pedaço da sesmaria de campo que diziam ser de sua propriedade. Pelo<br />
histórico por eles apresentado, Felisberto e sua mulher foram primeiro agregados<br />
de seu pai José Maria de Moraes Palma, porquanto este “consentiu que em um dos<br />
extremos divisórios da sesmaria” aqueles se arranchassem. Mais tarde, tendo falecido<br />
seu pai, sua mãe Dona Dorothea Muniz da Câmara havia ordenado “a seu filho<br />
e administrador da fazenda Valentim [...], que fizesse o sobredito Felisberto dos<br />
Santos despejar o campo que ocupava, ou pagar um módico arrendamento, [e] este<br />
sujeitou-se a pagar um exíguo arrendamento de ¼ de alqueire de trigo por ano e pelo<br />
prazo de seis anos”; o arrendamento principiou-se no dia 1º de outubro de 1847,<br />
tendo terminado na mesma data em 1853. Vencido este contrato, a sesmaria foi arrendada<br />
a Manoel Rodrigues de Cardoso, tornando-se os réus seus agregados, por<br />
consentimento do novo arrendatário. Com a morte da mãe dos autores, terminava o<br />
contrato de arrendamento de Rodrigues. Em virtude disto, este<br />
18 GARCIA, O domínio da terra..., op. cit., p.127.<br />
19 Uruguaiana. Possessórias, 1º CC, m.19, nº428, 1858. APERS.<br />
377
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
[...] despejou o campo, casa e mais acessórios, sem opor a menor dúvida<br />
obstáculo ou relutância; mas o contrário praticou o precitado<br />
Felisberto dos Santos o qual sendo lhe ordenado pelos [suplicantes] a<br />
evacuação do campo reluta ao despejo, fazendo nisso força aos [suplicantes],<br />
e esbulhando-os da posse em que estavam seus progenitores,<br />
de quem são legítimos herdeiros.<br />
Os réus Felisberto e sua mulher narraram uma outra versão em sua defesa.<br />
Segundo os artigos de sua contrariedade, entre os anos de 1827 e 1829 eles haviam<br />
estabelecido e fundado “uma posse em campos que não estavam ocupados, e dos<br />
quais ninguém se chamava senhor, [...] sem que sofressem [...] a menor oposição,<br />
nem necessitassem de consentimento de pessoa alguma”. Alegavam que, por terem<br />
na posse se “mantido, em diuturna e constante ocupação têm adquirido o direito de<br />
propriedade no campo em que fundaram sua posse”, apoiando-se na a lei de 18 de<br />
setembro de 1850, garantidora da “posse mansa e pacífica em toda sua plenitude”.<br />
Por fim, afirmavam explicitamente que nunca haviam reconhecido os pais e sogros<br />
dos autores como donos dessa posse, nem se obrigado a nada com José Maria da<br />
Palma, ocupante de campos vizinhos aos seus.<br />
Iniciada a guerra de versões, igualmente iniciado estava o embate de documentos.<br />
Os autores apresentaram carta de sesmaria, escrituras de transferência de<br />
terras, e documentos particulares, inclusive um papel de arrendamento, cujo teor<br />
expressava que o réu reconhecia-se como um antigo agregado, e naquele momento,<br />
arrendatário da parcela de campo dos autores. Este papel foi duramente rechaçado<br />
pelos réus, denunciando ter o mesmo aparecido “depois de 19 anos de posse, e quando<br />
já não existia José Maria da Palma”, fruto de “um procedimento menos digno, e<br />
também criminoso”, pois eles em nenhum momento pretérito haviam “consentido<br />
em que fosse a posse dos campos pertencentes aos [autores]”, e portanto, “nenhum<br />
merecimento e valor” poderia receber o referido documento. De fato, o réu não sabia<br />
ler nem escrever, tendo sido o papel de arrendamento assinado por outra pessoa<br />
a seu rogo; além do mais, conforme duas de suas testemunhas, os autores teriam<br />
embriagado Felisberto para que ele consentisse com o contrato. Os autores também<br />
anexaram um documento na qual o arrendatário Manoel Rodrigues de Cardoso dava<br />
seu consentimento para que os réus fossem seus agregados durante o período de seu<br />
arrendamento. É curioso que Cardoso afirmasse em sua resposta que consentira na<br />
permanência dos réus “a pedido do Sr. João Palma”.<br />
Por sua vez, os réus apresentaram documentos particulares com os quais tentavam<br />
provar, por meio de respostas de moradores há muito estabelecidos na região,<br />
a antigüidade e legitimidade de sua posse, embora as respostas não certificassem que<br />
a ocupação do campo fosse feita sem o consentimento de alguém.<br />
378
Depois de um longo processo (mais de dois anos, contando com o período de<br />
apelação), no qual foram ouvidas oito testemunhas produzidas pelos autores e seis<br />
produzidas pelos réus, sendo inclusive realizada uma vistoria no campo em litígio, o<br />
juiz proferiu sua sentença:<br />
Do exame de todas as provas se patenteia, que os [autores] com os<br />
depoimentos contestes de suas testemunhas provaram: terem sido os<br />
[réus] agregados de seu finado Pai José Maria de Moraes: que depois<br />
pelo contrato de arrendamento [...] passou a ser arrendatário; cujo<br />
contrato de arrendamento está perfeitamente provado pelos depoimentos<br />
das 2ª, 3ª e 4ª testemunhas [dos autores] sendo as duas últimas<br />
presentes ao contrato. Provaram mais, e ficou patente pela vistoria que<br />
o terreno ocupado pelos [réus] está dentro dos limites dos campos<br />
dos [autores].<br />
Entretanto as provas apresentadas pelos [réus], além de limitar-se ao<br />
fato de terem os mesmos residido nesse terreno, é elidida pelas dos<br />
[autores] em tudo o mais.<br />
Para Feliciano Ribeiro d’Almeida, Juiz Municipal substituto, estava provado o<br />
consentimento de Felisberto dos Santos acerca do contrato de arrendamento, e logo,<br />
o reconhecimento de que aquele campo no qual alegava ter posse mansa e pacífica<br />
não era seu. Os réus foram condenados a restituírem aos autores o campo com seus<br />
rendimentos, além de arcarem com as custas do processo. Sua tentativa de embargo<br />
da sentença foi impugnada, e a ação terminou com uma certidão de execução do<br />
mandado de despejo realizado pelo oficial de justiça.<br />
Tomado por inteiro, este litígio induz-nos a pensar as relações de propriedade<br />
como relações de hierarquia, na qual se tencionam a todo momento o controle e a<br />
autonomia (o primeiro personificado pelos autores e o segundo pelos réus), ou seja,<br />
a prova da existência ou não do consentimento dos autores para que os réus ocupassem<br />
aquele campo implicava conseqüências significativas para essa relação.<br />
Este aspecto fica demonstrado em vários momentos nas falas dos litigantes<br />
(intermediadas pelos seus advogados e procuradores), fundamentalmente dos autores:<br />
assim, por exemplo, o seu procurador afirmava, ao contestar o depoimento de<br />
uma das testemunhas dos réus sobre o histórico de ocupação do campo em contenda,<br />
que entre 1828 e 1829, o pai dos autores, que havia fugido do exército que<br />
invadiu a região, voltou à mesma,<br />
[...] de novo povoou sua Fazenda [e] por amizade e compaixão chamou<br />
aos Réus para virem povoar uma das divisas da Fazenda em questão;<br />
como agregado[s] ali se [conservaram] até o falecimento de José Maria<br />
da Palma, Pai dos Autores, e depois julgando sua viúva e filhos, fracos para<br />
resistir-lhe à sua ambição, começou de propalar que estava em campos de<br />
sobras, e conseqüentemente devoluto; chegando a notícia da finada<br />
Mãe dos Autores de que ele se inculcava já possuidor desse campo que<br />
379
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
ocupa, o convidou o seu administrador para lhe passar um escrito de<br />
arrendamento [...] sem força de coação ou constrangimento. 20<br />
Em outras palavras, a “ingratidão” dos réus para com a “benevolência” de<br />
seus senhores teria os levado à ambição de usurpar-lhes sua propriedade, e o contrato<br />
de arrendamento, cujos valores eram nada mais que “simbólicos”, serviria somente<br />
como um corretivo para lembrar os réus de seu lugar na hierarquia social.<br />
Nas alegações finais dos autores, esse sentimento de “quebra” na relação de<br />
dependência fica ainda mais evidente:<br />
[os réus] existiam contentes como agregados até que o Gênio do Mal<br />
lhes sugeriu a idéia de locupletarem-se com as terras que ocuparam [...].<br />
[Desse modo, cometiam fraude os réus] querendo locupletar-se nas terras<br />
dos Autores, daqueles que lhes [...] estenderam uma mão piedosa, daqueles<br />
que condoídos do seu isolamento e desamparo os chamaram para dar-lhes um asilo,<br />
campo para pastagem de seus gados, terras de uberdade para agricultar, pagando<br />
um módico foro por ano esse mesmo exíguo foro, somente para que jamais deixasse<br />
de reconhecer o domínio, e Senhorio em tais terras de seus benfeitorias, ou por sua<br />
cobiça e ingratidão ou dos seus herdeiros, e conjuntos; [...] já arrancaram<br />
a máscara, e mostraram patentemente a monstruosa ingratidão querendo<br />
perfaz ou punifaz [?] apropriarem-se de campos dos Autores [...]. ²¹<br />
O texto terminava com um alerta a outros senhores e possuidores de terras<br />
que abrigavam agregados: “[...] porém servirá este iníquo procedimento de proveitosa<br />
lição a todos que quiserem asilar a desgraçados.”<br />
A “insolência” dos réus parecia advir de sua condição de “desgraçados”, condição<br />
essa tão extrema a ponto de ser ressaltada por seu advogado – “todos que os<br />
conhecem [os réus], sabem que sua cor os coloca na última escala da sociedade, [e]<br />
que os mesmos não têm bens da fortuna” -, obrigando-o a solicitar “ao Meritíssimo<br />
Julgador sua proteção, em favor do fraco, do ignorante e do pobre sem proteção”.<br />
No entanto, sob sua própria perspectiva, e de seus apoiadores, sua resistência e disposição<br />
ao litígio era motivada por seu anseio de autonomia, isto é, de se afirmarem<br />
como seus próprios senhores, independentemente do consentimento alheio. É isso<br />
que permeava a fala de uma de suas testemunhas, quando afirmou que<br />
[...] nunca lhe constou e nem soubera que os ditos réus fossem agregados<br />
da Estância da Palma, e que pelo contrário sabe e sempre observou<br />
que os réus têm se conservado em sua posse como verdadeiros senhores,<br />
fazendo o serviço próprio de estabelecimento de criação de gado inteiramente<br />
independente daquela Estância [pertencente aos autores].²²<br />
20 Grifos nossos.<br />
²¹ Grifos nossos.<br />
²² Grifos nossos.<br />
380
Em vista disso, serem reconhecidos como agregados ou arrendatários não<br />
era de interesse dos réus, pois o seu enquadramento dentro de uma dessas situações<br />
implicava justamente a perda de sua situação autônoma, a aceitação de sua posição<br />
de dependência, em outras palavras, a ausência da condição de senhores de si mesmos.<br />
Por isso que alegavam insistentemente em sua defesa a nulidade do contrato<br />
de arrendamento em questão: até o fim, negavam veementemente terem consentido<br />
com o mesmo. A confirmação de ter Felisberto sido “arrendatário”, pelo papel de<br />
arrendamento e por boa parte dos depoimentos em favor dos autores, determinou<br />
seu insucesso na defesa dos direitos que acreditava possuir sobre o pedaço do campo<br />
em disputa.<br />
Cerca de trinta anos mais tarde, era a vez de um arrendatário propor uma ação<br />
judicial. Em fevereiro de 1886, Marcelino Antônio Pereira promovia ação de força<br />
nova turbativa contra Orlando da Silva Genro.²³ O autor declarava-se “possuidor,<br />
como arrendatário, [...] do estabelecimento denominado Destino, de propriedade de<br />
Joaquim da Silva Genro”, acusando que os réus mantinham “nos campos do dito<br />
estabelecimento grande quantidade de gado vacum, cavalar e lanar, os quais não têm<br />
querido retirar pelos meios suasórios”, e pelo fato de por meio do arrendamento<br />
transferir o arrendador, “por certo tempo ao arrendatário, os seus direitos de uso e<br />
gozo exclusivo da coisa arrendada, e juntamente com esses direitos as ações, que os<br />
defendam contra os ataques de terceiros”, recorria aos meios judiciais para ver seu<br />
direito restabelecido.<br />
Por seu lado, os réus alegavam que o autor estava “desforçado”, que por serem<br />
os campos abertos tanto os seus animais quanto os do autor passavam de um<br />
lado ao outro das parcelas que cada um ocupava, e questionava a validade do contrato<br />
de arrendamento do autor, ao afirmarem “que a posse que, pela escritura que<br />
junta o [autor], tem jus, é fundada em contrato expressamente nulo: que o campo<br />
arrendado pelo [autor] não é nem pode ser da propriedade do arrendante, Joaquim<br />
da Silva Genro”, pai do réu.<br />
O questionamento direto de Orlando Genro a respeito do campo em litígio<br />
como propriedade legítima de seu pai Joaquim estava baseado em uma série de documentos.<br />
O primeiro era um traslado dos autos de inventário de sua mãe, de 1854<br />
(morta em 1847) no qual se afirmava que seu pai, o inventariante, havia adquirido<br />
uma sesmaria (a mesma que envolvia a parcela disputada) depois da morte de sua<br />
esposa, deixando de declará-la entre os bens inventariados justamente por achar<br />
que não o devia por não ser parte do patrimônio de seu casal. Mais tarde, Joaquim<br />
²³ Uruguaiana. Possessórias, 1º CC, m.5, nº54, 1886. APERS<br />
381
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
da Silva Genro decidiu solicitar a sobrepartilha do campo, que, no entanto, não foi<br />
realizada, pois, voltando atrás, alegava o inventariante que, precisando saldar dívidas<br />
que somavam mais de quatro contos (dívidas questionadas pelo réu, que duvidava da<br />
existência desses credores), teve que reter o campo, avaliado por essa quantia. O réu<br />
igualmente apresentou uma carta de sentença formal da partilha dos bens legados<br />
por seu avô materno em 1848, entre os quais ficava de herança ao réu 120$000 réis<br />
da sesmaria avaliada em seis contos, situada exatamente entre Pindaí e Toropasso,<br />
lugar correspondente ao campo mencionado no traslado de inventário, o que estava<br />
em disputa. Por fim, apresentou uma certidão de casamento do autor com a sua<br />
mulher, neta de Joaquim Genro, pai do réu e arrendador do autor.<br />
Já Marcelino Pereira, para legitimar sua causa, anexou aos autos uma escritura<br />
pública de arrendamento, na qual Joaquim Genro o cedia uma parte de campo por<br />
cinco anos, três documentos particulares assinados pelo mesmo que lhe concederiam<br />
o desfrute daqueles campos, e uma escritura particular de arrendamento do<br />
potreiro lá existente entre Joaquim Genro e seu filho, o réu Orlando.<br />
Bem como no caso anterior, é interessante perceber aqui o enquadramento<br />
dos litigantes em categorias de exercício do direito de propriedade, e os modos pelo<br />
quais eles jogavam com essas categorias a seu favor. O autor Marcelino Pereira apresentava-se<br />
como arrendatário, e o réu Orlando Genro como herdeiro de um mesmo<br />
campo. Há uma terceira pessoa, Joaquim da Silva Genro, que cedeu o campo em arrendamento<br />
ao primeiro, ao mesmo tempo em que era pai do segundo. Orlando não<br />
reconhecia seu pai como proprietário do campo em questão, porquanto este havia<br />
dissuadido as autoridades para conservar o campo como propriedade sua. Em virtude<br />
disto, por diversos momentos do processo, a defesa do réu atacou a legalidade do<br />
contrato de arrendamento firmado entre o autor e Joaquim Genro, principalmente<br />
na inquirição de suas testemunhas, procurando desqualificar Marcelino Pereira enquanto<br />
arrendatário ao afirmar que ele morava “a favor” de Joaquim Genro. Em<br />
contrapartida, o autor, igualmente através dos depoimentos dos que testemunharam<br />
por sua escolha, intentava por diversas vezes legitimar-se como arrendatário:<br />
Perguntado há quanto tempo e em que categoria ocupa Marcelino Pereira<br />
o campo descrito? Respondeu que faz mais de seis anos e que ocupa<br />
esse campo como arrendatário, tendo reformado esse respectivo contrato, o que sabe<br />
por ouvir dizer pelo mesmo Marcelino. 24<br />
Ou seja, o próprio autor se auto-declarava diante de seus conhecidos como<br />
arrendatário dos campos de Joaquim Genro. Então, ser enquadrado enquanto tal lhe<br />
era bastante interessante para as circunstâncias que envolviam o litígio. Conforme o<br />
24 Grifos nossos.<br />
382
que já referimos, desde sua petição inicial ele fazia questão de explicitar seu arrendamento<br />
e os direitos que este contrato lhe imbuía. Simultaneamente, dizia que era<br />
o réu quem morava “a favor” de seu pai, e que a posse que este alegava conservar<br />
em dita sesmaria se reduzia ao potreiro próximo à divisa da parcela que arrendava.<br />
Assim, Marcelino Pereira apostava na força do contrato para vencer a causa que se<br />
processava.<br />
De fato, o julgador em primeira instância do caso não pensava muito diferente<br />
quando pesou os argumentos em favor do autor, à medida que, em sua sentença,<br />
qualificava o ato cometido pelos réus como “flagrante violação do direito a que este<br />
[o autor] assiste por força do referido contrato”, e “que o direito [que] têm os [réus]<br />
sobre os ditos campos, em face do documento [de carta de sentença formal de partilha]<br />
todavia não se pode admitir que seja ele tão extensivo que lhes faculte o uso<br />
e gozo de maneira ampla porque o exercem”. A decisão deixava claro, no entendimento<br />
do juiz, que o arrendatário era desrespeitado em seu direito de propriedade,<br />
ao mesmo tempo em que explicitava que o direito de herança possuído pelo réu<br />
em relação ao campo não o imputava um melhor direito de propriedade em relação<br />
àquele produzido pelos efeitos legais do contrato de arrendamento.<br />
Nos processos judiciais produzidos em Paraíba do Sul, município fluminense,<br />
Márcia Motta observou que essa aparente “confusão” entre termos como “agregado”<br />
e “arrendatário” não era incomum.<br />
As diferenças na denominação entre estes sujeitos sociais talvez sejam<br />
uma pista capaz de elucidar as possibilidades abertas de ascensão<br />
social de alguns agregados, no seu esforço de se verem reconhecidos<br />
como arrendatários. Neste sentido, ao se autodenominarem arrendatários,<br />
os trabalhadores estariam procurando garantir a sua autonomia<br />
em relação ao senhor de terras. Os fazendeiros, ao contrário, ao<br />
reconhecê-los como agregados, estariam enfatizando a sua relação de<br />
dependência. 25<br />
Assim como o conflito ocorrido entre 1859 e 1861, envolvendo Felisberto<br />
dos Santos e sua mulher, sustenta o uso das escrituras de arrendamento como prova<br />
de reconhecimento de domínio pelos proprietários, este litígio confirma a outra<br />
hipótese que havíamos levantado na seção 2.3 do capítulo anterior, isto é, que as<br />
escrituras poderiam servir aos interesses não apenas dos proprietários, mas também<br />
aos anseios dos próprios arrendatários. No primeiro litígio, a luta dos réus era por<br />
não serem classificados como arrendatários – como queriam aqueles que lhes moviam<br />
a ação -, e sim, proprietários das terras que ocupavam; quase trinta anos depois,<br />
25 MOTTA, Márcia Maria Menendes. Nas fronteiras do poder. Conflito e direito à terra no Brasil do século XIX. 2ª<br />
edição revista e ampliada. Niterói: EDUFF, 2008, p.79. Grifos do original.<br />
383
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
o mesmo tipo de qualificação que aqueles réus evitavam foi decisiva em favor de<br />
Marcelino Pereira. Portanto, o fato de ser arrendatário não necessariamente colocava<br />
um litigante em desvantagem em relação ao seu adversário judicial. Desejar ser assim<br />
reconhecido dependia sempre da circunstância da disputa, e contra quem se litigava.<br />
384<br />
CONCLUSãO<br />
Arrendatários colocaram uns e foram colocados por outros no banco dos<br />
réus dos tribunais de Uruguaiana. Seus adversários foram novos proprietários, velhos<br />
agregados, posseiros, e algumas vezes, até mesmo os arrendadores de seus bens.<br />
No cerne dos conflitos estiveram quase sempre discussões a respeito de relações<br />
e direitos de propriedade que se constituíam sobre os bens arrendados. Essas<br />
discussões, em alguns casos, estavam perpassadas por tensões entre controle e autonomia<br />
e a garantia do cumprimento de cláusulas contratuais, elementos próprios<br />
a uma relação de arrendamento. Em outros, espelhavam problemas mais amplos,<br />
próprios ao embate de direitos coletivos e individuais e ao choque entre velhas práticas<br />
de propriedade e novas percepções acerca do uso e do acesso aos recursos<br />
produtivos como terra e gado. Havia situações em que essa dupla perspectiva sobre<br />
os conflitos poderia estar até mesmo combinada em litígios ricos em detalhes de argumentação<br />
jurídica, de debate de concepções sobre direitos e de estratégias variadas<br />
para fazer prevalecer os respectivos interesses.<br />
Enfim, os litígios agrários de Uruguaiana que levaram arrendatários a juízo<br />
integravam uma gama maior de conflitos judiciais e extrajudiciais que ocorreram<br />
no município. As disputas nos quais os mesmos estavam imbricados manifestavam<br />
as transformações que aconteciam na Campanha rio-grandense desde meados<br />
do século XIX até as primeiras décadas do século XX. E como salienta Graciela<br />
Garcia, apoiando-se em Fradkin, esses conflitos devem ser levados em conta como<br />
condicionantes dessas mudanças, não apenas seus meros reflexos. 26 Trocando-se os<br />
termos, elementos que sinalizavam uma transformação, como a alta valorização da<br />
terra, a mercantilização e as mudanças no estatuto jurídico deste bem de produção,<br />
e em torno do qual se estabeleciam as principais relações sociais daquele contexto,<br />
constituíram um processo em que os próprios agentes sociohistóricos tiveram atuação<br />
decisiva. Assim, os arrendatários, tais quais outras categorias de produtores<br />
existentes no universo rural da Campanha, ao mesmo tempo em que produziam<br />
conflitos, produziam sua própria realidade. As respostas que davam às situações que<br />
se apresentavam diante de si ajudaram a construir o complexo cenário desse período<br />
da história brasileira.<br />
26 GARCIA, G., O domínio da terra..., op. cit., pp.174-177.
FONTES PESQUISADAS<br />
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul<br />
Ações possessórias:<br />
Uruguaiana. Possessórias, 1º CC, m.20, nº465, 1866.<br />
Uruguaiana. Embargos, 2º CC, m.62, nº1725, 1894.<br />
Uruguaiana. Possessórias, 2º CC, m.5, nº1730, 1897<br />
Uruguaiana. Possessórias, 1º CC, m.20, nº467, 1869<br />
Uruguaiana. Possessórias, 1º CC, m.19, nº428, 1858<br />
Uruguaiana. Possessórias, 1º CC, m.5, nº54, 1886.<br />
Escritura pública de arrendamento:<br />
Uruguaiana, 1° Tabelionato. Livro de Transmissões e Notas volume.3, 1858-1860,<br />
f.62-62v.<br />
REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
ALMEIDA, Cândido Mendes de. Código Philippino ou ordenações e Leis do Reino de Portugal<br />
anotadas. Rio de Janeiro: Typografhia do Instituto Philimathico, 1870.<br />
CONGOST, Rosa. Tierras, leyes, historia: estudios sobre “la gran obra de la propiedad”.<br />
Barcelona: Crítica, 2007.<br />
FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Confins meridionais: famílias de elite e sociedade<br />
agrária na Fronteira Sul do Brasil (1825-1865). Rio de Janeiro: UFRJ, 2007. Tese de<br />
doutorado.<br />
GARCIA, Graciela. O domínio da terra: conflitos e estrutura agrária na Campanha<br />
rio-grandense oitocentista. Porto Alegre: UFRGS, 2005. Dissertação de mestrado.<br />
MOTTA, Márcia Maria Menendes. Nas fronteiras do poder. Conflito e direito à terra no<br />
Brasil do século XIX. 2ª edição revista e ampliada. Niterói: EDUFF, 2008.<br />
385
6<br />
A AtuAção do sAnto ofíCio<br />
e dos jesuítAs no brAsil<br />
ColoniAl
As CrôniCAs jesuítiCAs CoMo fonte de PesquisA:<br />
o iníCio dAs Missões de MAynAs<br />
Fernanda Girotto¹<br />
Fernanda Wisniewski ²<br />
Resumo: O presente artigo visa analisar o início da ação jesuítica e sua importância na região<br />
do Alto Amazonas durante o século XVII. Para tanto, valemo-nos de documentos de natureza primária<br />
como fontes de pesquisa, a saber, algumas crônicas escritas por jesuítas que estiveram na região durante<br />
o referido período. Uma reflexão sobre a utilização deste tipo de fonte para compreender-se como os<br />
sujeitos envolvidos viveram esta dinâmica, também é objetivo deste trabalho. Vale salientar que este<br />
texto é fruto de um projeto de pesquisa maior: “Cartografias da Floresta: as crônicas coloniais e o espaço<br />
amazônico”, desenvolvida por um grupo de pesquisa³ vinculado ao programa de Pós Graduação<br />
em História da Unisinos.<br />
Palavras-chave: Jesuítas – Missões de Maynas – Crônicas Coloniais<br />
As crônicas que narram as primeiras incursões feitas pelos europeus na<br />
região amazônica ilustram o imaginário dos pioneiros nestas aventuras.<br />
Um imaginário que era povoado de mitos e histórias fantásticas.<br />
Com a descoberta da América ansiou-se por encontrar as riquezas e mistérios nestas<br />
terras, que para eles, eram completamente desconhecidas. É justamente a partir deste<br />
imaginário e da necessidade de conhecer e dominar as “dilatadíssimas terras não<br />
conquistadas” 4 (Rodríguez, 1684, p.5) que diversas expedições foram organizadas<br />
durante o século XVI.<br />
Estamos compreendendo aqui o conceito de imaginário segundo Baczo<br />
(1985) para quem o imaginário social faz parte do sistema simbólico que os grupos<br />
produzem a partir de suas experiências. Isto é, ele:<br />
¹ Graduanda do curso de História e bolsista UNIBIC – Unisinos. Contatos: fe_girotto@hotmail.com; 3591-2100.<br />
² Graduada em História, Graduanda em Ciências Sócias e bolsista FAPERGS – Unisinos. Contatos: fe.wisniewski@<br />
gmail.com; 3591-2100.<br />
³ O grupo é atualmente composto por: Deise Cristina Schell (mestranda e bolsista CNPq), Fernanda Wisniewski<br />
(Graduada em História, graduanda em Ciências Sociais e bolsista FAPERGS), Fernanda Girotto (bolsista UNIBIC);<br />
Ismael Calvi Silveira (Bolsista PIBIC), Juliana Camilo (graduanda da Licenciatura de História) sob orientação de<br />
Maria Cristina Bohn Martins (Dra em História, Bolsista Produtividade CNPq).<br />
4 No original: “dilatadífsimas tierras no conquiftadas”. Tradução das autoras<br />
389
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
informa acerca da realidade, ao mesmo tempo que constitui um apelo<br />
à acção, um apelo a comportar-se de determinada maneira. Esquema<br />
de interpretação mas também de valorização, o dispositivo<br />
imaginário suscita a adesão a um sistema de valores e intervém eficazmente<br />
nos processos de sua interiorização pelos indivíduos, modelando<br />
os comportamentos, capturando as energias e, em caso de<br />
necessidade,arrastando os indivíduos para uma acção comum. 5<br />
Uma das primeiras incursões que trazem à tona a Amazônia aos olhos dos<br />
espanhóis é aquela liderada por Gonzalo Pizarro. Esta foi uma grande expedição,<br />
que mobilizou mais de duzentos espanhóis, em torno de cem cavalos e muitas<br />
esperanças. Mesmo assim, foi marcada pelas dificuldades impostas pelo ambiente e<br />
pelos conflitos entre os que dela participaram. Nesta expedição encontram o rio que<br />
chamaram de Marañón, uma vez que possuía tantos afluentes que a paisagem mais<br />
parecia um “emaranhado” de cursos de água. As notícias desta viagem alimentaram<br />
as fantasias e expectativas sobre o que o ambiente amazônico e suas populações<br />
guardavam. Exemplo disto seriam as portentosas terras de Omágua, o El Dorado, o<br />
País da Canela, o reino das amazonas, entre outras histórias.<br />
Esta expedição incentivou outras e, assim, com o tempo, alguns destes espanhóis<br />
decidem fixar-se em pontos estratégicos para explorar o potencial de riquezas<br />
da região, extraindo os produtos encontrados a fim de comercializá-los. Além disso,<br />
a descobertas de populações que poderiam servir como mão-de-obra para o trabalho<br />
foi também fator de grande influência na fixação dos espanhóis na região.<br />
5 BACZO, 1985, p. 309<br />
6 CYPRIANO, 2005, p. 127<br />
390<br />
As origens destas ações apresadoras, nas margens do rio Amazonas e<br />
seus afluentes, estavam vinculadas ao desenvolvimento das empresas<br />
coloniais sob dois aspectos. Os primeiro se refere à demanda pala<br />
mão-de-obra indígena para erigir construções, trabalhar na agricultura<br />
e pecuária, abastecendo a sociedade colonial de gêneros de primeira<br />
necessidade. O segundo ponto, que reforçava o interesse no apresamento<br />
de mão-de-obra indígena, diz respeito aos empreendimentos<br />
de exploração das riquezas da América: o trabalho nas minas, a coleta<br />
de canela, salsaparrilha, cacau e outras drogas que, na Europa,<br />
eram extremamente valorizadas, consolidando uma atividade lucrativa.<br />
Como as informações das viagens de exploração eram muito otimistas<br />
a respeito das possibilidades oferecidas, o interesse econômico<br />
em extrair lucros da área era crescente, assim como a expectativa de<br />
conduzir grandes populações à doutrina cristã. 6
1. A FUNDAçãO DE BORJA<br />
No final do século XVI a extração aurífera é que ganha maior destaque na<br />
região. A demanda de mão-de-obra é crescente, o que faz com que os indígenas<br />
sintam os efeitos da presença espanhola de forma cada vez mais penosa. A captura<br />
de nativos se fazia em diversas regiões para suprir as necessidades da mineração,<br />
principalmente. O contexto, para os europeus de fins do século XVI e início do<br />
XVII, pode ser descrito a partir otimismo dos colonizadores que, ao perceberem<br />
o potencial da região, passam a praticar as chamadas correrias para explorar o que<br />
encontraram. Mesmo que este otimismo fosse um tanto utópico, a persistência regeu<br />
os desejos de permanecer no local e explorar tudo o que fosse possível.<br />
Em uma destas expedições em busca de mão-de-obra, os espanhóis entraram<br />
em contato com uma população indígena, os maynas, com os quais os primeiros<br />
contatos foram amistosos, o que permitiu a fixação na região sob o sistema de encomiendas.<br />
O nome “Maynas” mais tarde vem originar o nome das missões jesuíticas.<br />
Conforme Figueroa [1661] (1986):<br />
En 1616 entraron algunos soldados españoles en tierras de los Maynas,<br />
y D. Francisco de Borja, Príncipe de Esquilache, Virrey Del Perú,<br />
dió á D. Diego de Vaca y Vega la gobernación de aquellos indios quienes<br />
lo recibieron benévolamente: con objeto de afirmar la dominación<br />
española, fundó éste, cerca del famoso canal del Pongo, la villa de San<br />
Francisco de Borja. 7<br />
Podemos perceber que a fundação da vila tem por objetivo legitimar a presença<br />
espanhola, de acordo com as práticas de colonização que foram empregadas<br />
em diversos locais. Trata-se, em outras palavras, de uma forma de demarcar seu<br />
domínio. Lembremos que, mesmo no período da União Ibérica8 , a disputa entre<br />
espanhóis e portugueses por territórios americanos jamais foi totalmente afastada,<br />
e a presença e o interesse tanto português quanto espanhol no Marañón geravam<br />
diversos atritos e turbulências.<br />
Como afirmado anteriormente, o primeiro contato com a sociedade dos<br />
maynas se dá em 1616, momento em que D. Diego de Vaca y Vega solicita ao rei<br />
permissão para ali fundar uma cidade. Esta cidade seria povoada por espanhóis e<br />
por estes indígenas “amigos”, com a finalidade de extrair o ouro da região, além de<br />
7 FIGUEROA [1661],1986, p. 145-146<br />
8 Entre 1580 e 1640 acontece o que a historiografia denomina de União Ibérica, período em que Portugal e Espanha<br />
são governados pelo mesmo rei. Isso ocorre devido à morte de Dom Sebastião, que deixa o trono sem herdeiro<br />
direto, o que permite a Dom Felipe II, seu tio, reivindicar o título.<br />
391
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
outras drogas típicas do local. Desta forma, em 1619 é feita a concessão. O nome da<br />
vila é uma homenagem ao vice-rei que permitiu sua fundação: San Francisco de Borja.<br />
Os indígenas aliados logo foram distribuídos para iniciar o trabalho e consolidar o<br />
sistema de encomiendas.<br />
Como é característico do sistema colonial, o trabalho indígena era demasiado<br />
penoso e insalubre. As mortes causadas pelos abusos cometidos nas encomiendas atingiram<br />
proporções altas e cada vez mais se aprisionavam indígenas para explorar sua<br />
força de trabalho. Como forma de resistência a isto, as atitudes mais comuns eram<br />
a fuga ou as rebeliões, que começam a tomar sempre mais violentas, ameaçando a<br />
estabilidade da vila. No ano de 1635 ocorre uma grande rebelião, que mudaria o<br />
destino de muitos indígenas da região e que daria início às missões que hoje são alvo<br />
de nossos estudos.<br />
Sucedió el año de 35, en que mataron hasta trienta y quatro personas,<br />
lãs veinte y nuve españolas, lãs más de cuenta, encomenderos, y de<br />
oficio, capitanes, alférezes, sargentos, que exercitaban unos y otros reformados<br />
en estas tierras, cogiéndolos en suspueblos y repartimientos<br />
descuydados y dormidos, y aonmetieron a la ciudad de San Francisco<br />
de Borja, única frontera y cabeza en este Govierno, pretendiendo<br />
acabar con todo; pero fueron rechazados de los pocos españoles que<br />
havia al presente en ella, que se havian hecho fuertes em la yglesia con<br />
lãs mugeres, quienes tambien se mostraron animosas, previendo la<br />
cuerda, pólvora y otros menesteres, com que acudian á los soldados. 9<br />
A revolta mostrará aos espanhóis que os meios de repressão e controle empregados<br />
contra os indígenas, não eram suficientes para permitir sua estabilidade no<br />
local. Desta forma, Pedro Vaca de la Cadena (filho e sucessor do governador anterior)<br />
lança a proposta de tentar a pacificação dos nativos através de catequese. Em<br />
virtude disto, a Companhia de Jesus é chamada para enviar religiosos com o intuito<br />
de pacificar e cristianizar os nativos, de maneira a não prejudicar a estabilidade da<br />
empresa colonial.<br />
392<br />
2. AS CRÔNICAS JESUíTICAS COMO FONTE<br />
A presença jesuítica na região amazônica é que gerou as crônicas estudadas<br />
no presente artigo. Antes de qualquer outra reflexão, seria interessante definir a que<br />
estamos nos referindo quanto utilizamos o termo “crônicas”. Esta expressão abran-<br />
9 FIGUEROA [1661], 1986, p. 154
ge, em nossa pesquisa, um conjunto de registros escritos que descrevem aspectos da<br />
conquista e colonização espanhola, segundo a produziram os contemporâneos. Encontramos,<br />
naqueles textos que dizem respeito a este trabalho, informações sobre a<br />
Amazônia no que tange à cultura das populações locais, à natureza, ao contato entre<br />
europeus e americanos, entre outras informações. Diversos tipos de documentos<br />
primários se encaixam nesta perspectiva: cartas, livros, informes, mapas, diários, etc.<br />
Para o presente artigo exploramos especialmente duas crônicas: um Informe, escrito<br />
por Francisco Figueroa em 1661, e uma “História”, tal qual a denominou seu autor,<br />
Manuel Rodríguez em 1684.<br />
A compreensão mais correta destes escritos do XVII deve levar em consideração<br />
o contexto em que foram gestados. Aqueles que foram deixados pelos jesuítas<br />
são testemunhos valiosos dos tempos coloniais e da evangelização de diversos povos.<br />
A riqueza destas crônicas se dá pelo valor que os inacianos atribuíam à troca de<br />
informações entre os missionários. Através desta prática, era possível acompanhar<br />
a situação da ação jesuíta em diversos lugares do mundo. Para além das prestações<br />
de contas, era possível ter um panorama de como se dava a catequese, de quais eram<br />
os métodos utilizados com cada população, de como era a região em que estavam e<br />
etc. Esta escrita contribuía para que os jesuítas pudessem não somente trocar experiências,<br />
como trocar sugestões, solicitar auxílio, fazer críticas, apontar dificuldades,<br />
sugerir soluções, entre tantas outras facetas esta comunicação deveras complexa.<br />
Vale salientar que a Companhia de Jesus é uma instituição hierarquizada, onde<br />
os superiores fazem um controle centralizado das atividades de todos os integrantes<br />
da Ordem. Havia, por exemplo, correspondências regulares que deveriam prestar<br />
contas dos acontecimentos sob um modelo padrão de carta (Cartas Ânuas), ou modelos<br />
especiais para descrever determinados locais (Informes); bem como, existia<br />
a correspondência informal, que tinha por objetivo dar e receber notícias entre os<br />
padres que missionavam em locais relativamente próximos ou distantes.<br />
Segundo Franzen, Fleck e Martins (2007, p. 9-10), as cartas ânuas, ou litterae annuae:<br />
são constituídas por informes que o Superior da Província (...) remetia<br />
periodicamente ao Geral da Companhia de Jesus em Roma, com uma<br />
ampla informação dos acontecimentos observados na sua área de<br />
jurisdição durante o lapso de um ou vários anos. Estas Cartas “gerais”<br />
eram produzidas a partir de informações de duas naturezas. Por um<br />
lado, elas sistematizavam outras Ânuas parciais, provenientes das Missões<br />
ou Reduções, e dos Colégios. De outro, agregavam informações<br />
colhidas pelos Superiores em suas viagens de visita, assim como aquelas<br />
contidas em cartas particulares. 10<br />
10 FRANZEN, FLECK e MARTINS, 2007, p. 9-10<br />
393
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Além disso, a Companhia é portadora de uma consciência história bastante<br />
notável. Para tanto, se empenhou em anotar os feitos realizados por seus membros.<br />
Diversas vezes podemos acompanhar padres historiando acontecimentos considerados<br />
importantes e não somente repassando as informações para os superiores.<br />
Podemos afirmar que estas crônicas além de haverem gozado de um considerável<br />
prestígio quando foram feitas, ainda hoje são dignas desta admiração e respeito. Nas<br />
palavras de Oliveira (2009):<br />
As cartas ainda são as fontes mais ricas para o estudo das culturas<br />
indígenas sob a dominação colonial. Elas testemunham não apenas a<br />
ação evangelizadora e aculturadora, mas também permitem ver, dado<br />
o seu caráter etnográfico, as reações dos índios diante da presença dos<br />
religiosos em suas terras e das mudanças que traziam.<br />
Creio que não somente as cartas, mas todas as crônicas possuem este valor e<br />
esta complexidade. A análise e interpretação do discurso nelas contido nos permitem<br />
refletir até mesmo sobre o protagonismo dos sujeitos indígenas dentro da dinâmica<br />
do contato. Mesmo que nos escritos jesuítas, como é o caso de nosso estudo,<br />
os autores estejam preocupados em narrar os feitos dos europeus, é possível extrair<br />
uma série de informações importantes sobre as culturas americanas. Baptista (2003),<br />
em sua reflexão sobre a análise do discurso das escritas jesuíticas, afirma que isto<br />
ocorre através do que Michel de Certeau chamou de “lapsos no discurso”<br />
... aqueles “instantes” que fogem do “consagrado sistema de interpretação”<br />
ocidental. É aí que os registros deixam transparecer determinadas<br />
informações riquíssimas para um olhar etnohistórico. É onde<br />
possivelmente resida o indígena, sua forma de reagir naquele determinado<br />
período.¹¹<br />
Traduzindo para nossa reflexão, quando o padre descreve o indígena e escreve<br />
sobre este indígena, muitas vezes dá vazão para que ouçamos o discurso do<br />
próprio nativo sobre o padre e sobre o contexto do contato. Em outras palavras,<br />
quando o cronista escreve, deixa transparecer, mesmo que de forma implícita, o que<br />
o sujeito ao qual ele está se referindo, também mostre o que pensa.<br />
Acreditamos, portanto, que a interpretação das crônicas jesuíticas pode trazer<br />
à tona questões importantes a serem analisadas e/ou revisadas. O olhar atento de<br />
um historiador que avalia os discursos contidos em documentos tão valiosos pode<br />
nos aproximar de uma melhor compreensão de como se deu o processo de catequização<br />
e colonização dentro de uma perspectiva cultural.<br />
¹¹ BAPTISTA, 2003, p. 05<br />
394
Além disso, partimos do ponto de vista de que toda escrita tem uma intenção<br />
e um contexto em que é formulada. Sem conhecer estes aspectos de forte influência<br />
sobre o texto, estamos mais propensos a compreender erroneamente as expressões<br />
e pontos de vista dos autores. Para tanto, faremos aqui uma breve apresentação das<br />
crônicas estudadas e de seus respectivos autores.<br />
3. O PADRE FIGUEROA E SEU INFORME.<br />
Francisco Figueroa nasceu no “Nuevo Reino de Granada”, hoje, território<br />
colombiano, em, em 1607, portanto, dentro do contexto colonial americano, em um<br />
local de dominação espanhola. Bastante jovem ingressa no Seminário de São Luis<br />
de Quito, onde desenvolveu diversas faculdades intelectuais. Aos 23 anos de idade<br />
entrou para a Ordem Jesuítica, isso em 1630. Chegou a lecionar, durante algum<br />
tempo, no colégio onde estudara, porém logo é destinado a trabalhar no Colégio de<br />
Cuenca¹², juntamente com o Padre Cristóbal de Acuña, no ano de 1638.<br />
Durante o tempo em que Acuña se ausentou, visto que fora acompanhar Pedro<br />
Teixeira em uma longa e arriscada viagem¹³, Figueroa permanece no Colégio de<br />
Cuenca onde se prepara para missionar na Amazônia. Em seus estudos, aprende inclusive<br />
o que se denominou na época de “lengua del Inga”, ou seja, o quéchua. Devido<br />
à grande quantidade de idiomas diferentes falados na América, os padres entenderam<br />
a comunicação que se tornaria mais fácil em uma “língua geral’, escolhendo-se<br />
o idioma incaico para tanto. Entretanto, isso não significa que não ensinassem para<br />
os indígenas o espanhol também, ou outra língua européia, até mesmo para formar<br />
seus “intérpretes” (“lenguas”).<br />
Em 13 de julho de 1642 Figueroa chegou à região de Maynas, onde dedicou<br />
seu trabalho não somente aos indígenas, mas também aos espanhóis que habitam a<br />
região. Conforme as notas de Regan (1986), ele promoveu o trabalho espiritual na<br />
vila de São Francisco de Borja durante dez anos, quando passou a catequizar indígenas<br />
em regiões mais afastadas.<br />
Entre os anos de 1656 e 1665 foi Superior das Missões de Maynas. Desta<br />
forma, em 1659, o provincial da Companhia de Jesus do Novo Reino e Quito, Padre<br />
¹² Localizado atualmente em território equatoriano.<br />
¹³ Sobre esta expedição, o religioso produziu um documento: ACUÑA, Christóbal de. Novo Descobrimento do<br />
Grande Rio das Amazonas. Pelo padre Christóbal de Acuña, Religioso da Companhia de Jesus e Qualificador da<br />
Suprema Inquisição Geral, ao qual se foi, e se fez por ordem de sua Majestade, no ano de 1639, pela Província de<br />
Quito, nos Reinos do Peru. In: ESTEVES, Antônio R. (ed). Novo Descobrimento do Grande Rio das Amazonas. Montevidéu:<br />
Consejeria de Educación de Embajada de España en Brasil; Oltaver, 1994<br />
395
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Hernando Cavero, solicita a Figueroa um informe sobre os “pueblos” que estavam<br />
sob sua supervisão. O documento é concluído em 1661, levando o títulos de “Ynforme<br />
de las Missiones de el Marañon, Gran Pará ó Río de lãs Amazonas”.<br />
Seus últimos trabalhos espirituais foram realizados no pueblo de “Limpia Concepción<br />
de Jeberos”. O jesuíta foi assassinado durante uma rebelião promovida pelos<br />
índios Cocama, junto com alguns nativos Jeberos, no dia 15 de março de 1666.<br />
Nas crônicas que falam sobre a morte do padre, podemos encontrar algumas explicações<br />
e descrições de sua morte. Um carta de um “capitão Marcos Salazar” lê-se<br />
que Figueroa estava indo ao encontro do Padre Tomás Majano (superior das missões<br />
naquele momento) para aconselhar-se, quando, em um rancho na ribeira do rio encontrou<br />
alguns índios Cocama que:<br />
Llegando a saludarle, como lo acostumbraban, comenzaron algunos<br />
de ellos á coger lo que habia en la canoa del Padre, y á un muchacho<br />
que lo defendia le derribaron de un golpe, á que el Padre les dijo: ¡<br />
Jesús! ¿qué os há hecho esse muchacho que asi lo maltratais? Y volviendo<br />
á los indios les dijo: ¿Que por qué causa le habían hecho aquel<br />
daño? Y los indios le dijeron al Padre: ¿Y hablas? Dándole un golpe<br />
le derribaron. Volvió en si diciéndoles: ¿Este es el pago que me dais<br />
después que He trabajado en enseñaros la ley de Dios? Y los índios<br />
diciéndole: ¿Todavia hablais? Yo haré que no prediqueis, le ataron á<br />
un árbol y le fueron cortando y sacando por las conyunturas todos<br />
los huesos uno por uno, hasta que quedo tronco el cuerpo. Y en todo<br />
este martírio no cesó el dicho mártir de predicar, y alzando los ojos<br />
al cielo, conto, entiéndese que algun himno, y com ello Dio el alma á<br />
su criador.Los índios le asaron el cuerpo para comérsele y se llevarón<br />
la cabeza. 14<br />
Alguns historiadores acreditam que o padre foi assassinado por engano, que<br />
os indígenas rebeldes queriam, na verdade, vingar-se dos espanhóis que tantos males<br />
lhes causavam. Esta possibilidade é válida, pois os padres geralmente defendiam os<br />
nativos dos espanhóis e de outros europeus que os capturavam para realizar trabalhos<br />
forçados nas encomiendas. Muitas vezes os indígenas procuravam as missões<br />
como abrigo da ameaça que representavam os soldados e encomenderos. Preferiam,<br />
muitas vezes, a proteção e assistência dos padres do que a insegurança de continuar<br />
em suas aldeias e serem escravizados pelos europeus.<br />
14 FIGUEROA, 1986, p. 314<br />
396
3.1 O “YNFORME DE LAS MISSIONES DE EL<br />
MARAÑON, GRAN PARÁ ó RíO DE LAS AMAZONAS”<br />
Conforme mencionado anteriormente, o informe solicitado ao Padre Figueroa<br />
pelo Superior Hernando Cavero em 1659 é escrito durante cerca de dois anos;<br />
fica pronto em oito de agosto de 1661. Este Informe, que hoje se tornou nossa<br />
fonte de pesquisa, é um documento de ordem primária riquíssimo em informações,<br />
descrições e detalhes acerca das Missões Jesuítas de Maynas.<br />
As duas principais cópias da obra estão na Espanha: uma na coleção da Biblioteca<br />
Nacional de Madrid; e a outra no colégio jesuíta de Chamartín de la Rosa. A<br />
versão que utilizo é de 1986, resultado do Projeto Monumenta Amazónica, que tem<br />
por objetivo editar ou reeditar as principais obras relacionadas à história da Amazônia<br />
entre os séculos XVI e XX 15 .<br />
A obra de Francisco Figueroa, reeditada por este projeto, foi publicada dentro<br />
de uma coleção de documentos que se refere a um primeiro momento das Missões<br />
de Maynas. Como Figueroa e Cristóbal de Acuña trabalharam em conjunto no Colégio<br />
de Cuenca e ofereceram valiosas descrições do ambiente amazônico, além de<br />
suas obras serem de datas bastante próximas; foram reeditadas em um único volume.<br />
Além dos escritos destes dois cronistas, a coleção de documentos é completada<br />
por algumas cartas e relações que complementam a compreensão e estudo das obras<br />
dos jesuítas.<br />
O informe é um documento que abrange descrições acerca, por exemplo,<br />
do ambiente, das populações nativas e seus costumes, dos idiomas, bem como das<br />
práticas dos missionários e reações dos índios a elas. Registra também os problemas<br />
das missões, como as doenças, etc. Para além destas informações mais descritivas,<br />
podemos utilizarmo-nos delas a fim de aproximarmo-nos do imaginário da época.<br />
O informe de Figueroa nos permite ter acesso não somente às informações<br />
mais explícitas, mas também às questões de caráter mais subjetivo como, por exemplo,<br />
a forma pela qual os padres interpretavam a organização político-social das<br />
populações ribeirinhas; com percebiam a prática do canibalismo; como lidavam com<br />
a “dificuldade” do indígenas em assimilar as “leis de Deus”, entre outros.<br />
15 Pertence a série temática “missionários”, uma vez que as obras editadas por este projeto são classificadas por<br />
temas: conquistadores, missionários, agentes governamentais, cientistas e viajantes, e exploradores. O projeto é resultado<br />
da iniciativa do Centro de Estudos Teológicos da Amazônia (CETA); que através de encontros e pesquisas<br />
pôde definir os títulos a serem publicados e realizar os trabalhos necessários para as edições.<br />
397
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
398<br />
4. O PADRE MANUEL RODRíGUEZ<br />
Manuel Rodriguez estudou no Colégio dos jesuítas de Quito. Em 1678, tornou-se<br />
“Procurador general de las Províncias de índias”. Em função de seu cargo,<br />
vai para a Europa com o intuito de divulgar os trabalhos realizados pelas missões<br />
jesuíticas espanholas,. Além de divulgar as missões, o elogio ao esforço dos padres é<br />
uma estratégia o para conquistar “nuevos operarios” 16 para as missões.<br />
Em sua crônica descreve as primeiras viagens para a área, em especial a de<br />
Gonzalo Pizarro (1539) em busca de terras ainda não conquistadas. A fundação da<br />
Vila de São Francisco de Borja é também narrada por Rodríguez, bem como a chegada<br />
dos primeiros missionários que fundaram o Colégio de Cuenca no ano de 1637:<br />
A fundação da Casa de Cuenca, foi o Padre Cristobal de Acuña, naquele<br />
ano de mil seiscentos e trinta e sete, em que se fundou, ainda<br />
pobremente, e teve como um dos primeitos companheiros o Padre<br />
Francisco de Figueroa, posto como a porta das Missões de Gentis,<br />
que desejava, e empenhado em aperfeiçoar-se na língua geral dos índios<br />
do Perú, nela predicava fervorosaemnte na cidade de Cuenca. 17<br />
Como podemos perceber este livro complementa diversas informações contidas<br />
no informe de Figueroa. Além do mais, ele exalta a atividade não somente de Figueroa,<br />
mas de todos os jesuítas que predicam na região das Missões de Maynas. Termos como<br />
“fervorosamente”, “com amor”, “carinho”, “boas obras”, não são raros de encontrar<br />
nas descrições que faz sobre o trabalho de catequese dos padres com os indígenas.<br />
A potencialidade para a obra catequética que a região às margens do Marañón<br />
possui é um dos enfoques de sua obra. Fernando Torres Londoño (2006), que também<br />
estuda a crônica do jesuíta Manuel Rodríguez afirma que:<br />
Rodríguez redige a crônica sob a idéia de que o Marañón tinha sido<br />
reservado por Deus como campo de ação para a Companhia de Jesus.<br />
Aparece no texto como um espaço distante, desconhecido, de montanhas<br />
impenetráveis e rios perigosos, mas com enorme multidão de<br />
gentio que precisava ser salva, sendo a Companhia de Jesus o melhor<br />
instrumento de que dispunham a Igreja e o Rei para chegar àqueles<br />
confins e neles implantar reduções. 18<br />
16 Neste trabalho estamos nos valendo da edição facsimilar de El Marañon y Amazonas, acessível no site da Biblioteca<br />
Digital de Obras raras e Especiais da USP. http://www.obrasraras.usp.br/obras/001543/.<br />
17 RODRíGUEZ,, 1684, p. 91. Tradução nossa, no original: “A la fundacion de la Cafa de Cuenca, fue el Padre<br />
Christóbal de Acuña, aquel año de feifeienntos , treinta, y fiete, em que se fundo, aunque pobremente, y tubo por<br />
Compañero de los primeros al Padre Francisco de Figueroa, peufto como á la puerta para las Miffiones de Gentiles,<br />
que defeaba, y empleado em perfecionarse em la lengua general de los índios del Peru, em ella predicava fervorofamente<br />
em la Ciudad de Cuenca”<br />
18 LONDOÑO, 2006, p. 19
As notas deste autor vêm reforçar o que eu afirmava anteriormente quanto<br />
ao universo de possibilidades que a região da várzea amazônica representava. Além<br />
do mais, está claro que o missionário percebe a região como um local à espera dos<br />
missionários e suas grandiosas ações.<br />
Sabemos que Rodriguez colheu informações na América, quando aqui atuou.<br />
Continuou o trabalho de busca de informações na Espanha e em Roma, o que finalmente<br />
lhe deu condições de escrever o livro sobre as missões do Marañón. Esta<br />
obra recebeu o título de “El Marañón y Amazonas, Historia de los descubrimientos, entradas<br />
y reducción de naciones, trabajos malogrados de algunos conquistadores y dichosos de otros, así temporales,<br />
como espirituales, en las dilatas montañas y mayores ríos de América, escrita por el padre<br />
Manuel Rodríguez, de la Compañía de Jesús, procurador general de las provincias de Indias en la<br />
corte de Madrid”, que foi publicada pela primeira vez em Madrid em 1684. Em 1990,<br />
novamente em Madrid, pela Editora Alianza o texto foi editado e novamente publicado,<br />
apresentando um prólogo e notas de Angeles Durán, um dos responsáveis<br />
por esta edição.<br />
5. AS MISSõES DE MAYNAS<br />
A região da Missão de Maynas corresponde à área que se estende desde o piemonte<br />
andino até a confluência do rio Negro com o Marañón, hoje, área que pertence<br />
ao Equador, Peru, Colômbia e Brasil (LONDOÑO, 2006). Ela estava ligada à<br />
Província Jesuítica de Quito.<br />
Ao contrário do que se poderia presumir após ler sobre as rebeliões de 1635 e<br />
fundação da Vila de San Francisco de Borja, no Alto Amazonas, o trabalho catequético<br />
na região é anterior a estes fatos. Em três momentos anteriores já haviam sido<br />
enviados religiosos na tentativa de evangelizar as populações amazônicas:<br />
Em 1606, o Padre Rafael Ferrer já tinha visitado o território dos Omagua;<br />
em 1621, os Padres Simon de Rojas, Humberto Coronado e o<br />
irmão coadjutor Petrus Limón haviam permanecido junto ao grupo<br />
e, em 1630, uma nova tentativa havia sido empreendida pelo Padre<br />
Francisco Rugi. Confirme os relatos, estas três tentativas de evangelização<br />
haviam sido efêmeras por enfrentarem as dificuldades comuns<br />
às outras missões, mas, principalmente, por irem contra o interesse da<br />
sociedade colonial em obter indígenas através da encomienda. 19<br />
19 CYPRIANO, 2005, p. 128<br />
399
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Além destas tentativas, em 1633, padres franciscanos também empreenderam<br />
alguns trabalhos na região. A situação desde estas primeiras missões, até o quadro<br />
instaurado com a rebelião de 1635 mudara muito. Agora, os soldados e encomenderos<br />
que estavam instalados na região, desejavam a presença de missionários e, a partir<br />
disso, solicitam junto à Companhia, o envio de padres.<br />
Gaspar de Cugia e Lucas de la Cueva chegam a São Francisco de Borja em<br />
1638. Consta na relação de Francisco Figueroa (escrita, como vimos, em 1661)<br />
que, durante o caminho percorrido até a vila, estes padres já vieram trabalhando<br />
na conversão e batismo de populações indígenas. Contudo, os trabalhos em São<br />
Francisco de Borja foram dedicados, primeiramente, aos próprios espanhóis que lá<br />
se encontravam:<br />
Llegaron los Padres Gaspar de Cujia y Lucas de la Cueva, com el<br />
governador D. Pedro Baca de la Cadena (que los acompañó, ayudó y<br />
fomento en todo el camino y SUS ministérios), á esta ciudad de San<br />
Francisco de Borja á los seis de Febrero del año 1638, quatro meses,<br />
como he dicho, después que salieron del Collegio de Quito (...) Por<br />
ser ya cerca de Quaresma trataron de obrar lo que á la saçon instava,<br />
que eran sermones, exemplos, confessiones y que cumplissen com la<br />
Iglesia, que algunos años no lo avian hecho por falta de sacerdote. 20<br />
Empreenderam seu trabalho, a partir deste dia em vinte e quatro encomiendas.<br />
Além disso, os religiosos participavam de expedições para atender as necessidades<br />
espirituais da tropa e evangelizar os indígenas encontrados.<br />
Conforme vimos anteriormente, para realizar a catequese a comunicação é<br />
essencial. Desta forma, quando um grupo aceitava a presença do padre, muitas vezes<br />
eles solicitavam que se lhes confiassem alguma criança para a qual ensinariam o<br />
espanhol. O pequeno aprendiz., quando estivesse apto, servia de intérprete/tradutor<br />
para que a catequese pudesse ocorrer. Sempre que possível, os próprios padres procuravam<br />
aprender a língua específica de cada tribo. Porém, a presença e participação<br />
dos intérpretes são recorrentes. Em alguns relatos, percebemos que além de intérpretes,<br />
essas estes índios serviam de “embaixadores’, de mediadores para o contato<br />
dos jesuítas com os grupos:<br />
Si no los ay sacan consigo algunos muchachos, que despues de algun<br />
tiempo, hechos ladinos en algun idioma de los nuestros, bolbiendo á<br />
sus tierras sirben de intérpretes para reducir á sus parientes. (FIGUE-<br />
ROA [1661], 1986, p. 248)<br />
20 FIGUEROA, 1986, p. 157<br />
400
A ação missionária levada a cabo através de tradutores e com apoio militar de<br />
soldados, rapidamente permitiria fundar alguns pueblos. Estes pueblos, também chamados<br />
de reduções permitiam um trabalho mais direcionado e intenso do missionário.<br />
Conforme Londoño (2006), desde a primeira redução fundada por Cugia e de la<br />
Cueva em 1638²¹:<br />
(...) outras 152 reduções ou anexos seriam fundados às margens dos<br />
rios Marañón, Amazonas e afluentes, que a partir dos anos quarenta<br />
do século XVII passaram a ser conhecidos como missões de Maynas.<br />
(...) Nessa ampla área os missionários entrariam em contato com um<br />
universo indígena pluriétnico e plurilingüístico. Entre outros, habitavam<br />
a região os grupos Mayna, Andoa, Pinche, Urarina, Jebero, Cocama,<br />
Mayoruna e Omágua, que não formavam uma unidade política,<br />
mas mantinham relações fluidas entre si. ²²<br />
Como o universo lingüístico era variado, intérpretes eram essenciais. Isso<br />
porque seria humanamente impossível assimilar o grande número de línguas necessárias<br />
a catequese dos grupos desta região. Além disso, a diversidade cultural era<br />
um agravante, pois mesmo possuindo traços em comum, as populações amazônicas<br />
possuíam especificidades. Neste ponto, os intérpretes também contribuíam para a<br />
mediação entre o padre e os grupos.<br />
Além da diversidade cultural e lingüística, havia outros fatores que tornavam<br />
a catequese um trabalho delicado e desafiador. A longa distância entre um e outro<br />
grupo e é um exemplo disso. Eles eram dispersos e de difícil acesso. Nas crônicas<br />
estudadas, os padres sempre comentam a necessidade de mais missionários para a<br />
região pelo fato de eles demorarem muito tempo para se locomover de uma redução<br />
à outra, e de necessitarem quem atuasse junto às tribos ainda não convertidas.<br />
A falata de mais missionários, queixam-se eles, fazia com que boa parte do trabalho<br />
fosse perdida, em função do espaço de tempo que os indígenas ficavam sem praticar<br />
os ensinamentos recebidos. Além do mais, a presença do missionário é tida como<br />
de grande importância pois, mesmo doutrinados, os indígenas não se mantêm nas<br />
reduções se o padre se ausentar por muito tempo.<br />
Van saliendo poco á poco, vnos aora, otros despues, y tambien se van<br />
y se vienen, porque no ay modo de apretarlos más para retenerlos en<br />
su poblacion. Lo principal es no tener sacerdote proprio en su pueblo<br />
que los dotrine y mantenga ²³<br />
²¹ Figueroa em seu informe registra existia um contingente populacional tão grande que novas províncias não<br />
paravam de surgir: “De modo que son por todas vnas cuarenta províncias ó naciones las que caen y se contienen<br />
en este contorno y esphera de mission, y puede ser que otras más no ayan llegado á nuestra noticia” (FIGUROA<br />
[1661], 1986, p. 241).<br />
²² LONDOÑO, 2006, p. 02.<br />
²³ FIGUEROA [1661], 1986, p. 219.<br />
401
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Ainda outras dificuldades, além do difícil acesso, faziam parte do cotidiano<br />
dos missionários que estiveram nas missões amazônicas, como o perigo que representavam<br />
os indígenas que não se convertiam e ameaçavam a segurança dos padres.<br />
Já vimos que isto causou, inclusive, a morte do autor do Informe. Comentando<br />
sobre as viagens de Padre Raymundo de Santa Cruz às reduções de Chamicuro, Figueroa<br />
(1986) explica que viajava:<br />
La tierra adentro, tres y quatro dias de camino de á pie, con las incomodidades<br />
y mojaduras destas montañas, con muchas llagas que se<br />
le abrian, y apreturas del pecho hasmático, que llegava casi á caerse<br />
muerto, segun lo que ahogando le apretava. Tomava este travajo y aun<br />
otros riesgos de la vida por que varias vezes le dijeron que le querian<br />
matar y comérselo, con fin de atraherlos á que acaben de salir á poblarse<br />
en partes que se puedan dotrinar. 24<br />
Em outro momento, também é narrada uma situação em que o padre passa<br />
por momentos de medo e insegurança:<br />
Hicímolos assí, y aiendo atravesado, desembarcaron todos, porque<br />
aunque estava inundado el suelo, no tanto, en aquella parte que no<br />
pudiessen hacer pié; fuéronse todos, diciéndome quedasse yo en mi<br />
canoa, en tanto que bolviessen por mí, aviendo visto la disposicion<br />
del camino y estado de la troge. Hícelo assí; pero ellos no bolvieron,<br />
ó porque lo inundadodel camino les emperezó, ó porque, entretenidos<br />
en apagar su hambre y necessidad tan antigua con unas maçocas<br />
de maiz que hallaron, se olvidaron, ó porque el cansacio y sueñoles<br />
rindió. Aguardélos un rato u otro rato, y tanto, que entré en no pequeño<br />
cuydado. Díles voze, no se oian; repetílas muchas veces, pero<br />
sin efecto. En verme solo en medio del mayor riesgode cocamas, me<br />
congojava con demasia: enjambres de mosquitos çancudos plaga la<br />
másinsufrible deste rio, en que hervia me sajaban; la inquietud de la<br />
canoa no me concedia el menor reposo, con que sin coajar cueño y<br />
gritando, passé la noche. 25<br />
Em função deste quadro, era comum que os jesuítas recorressem à “justiça<br />
de Borja”, solicitando que fossem acompanhados por soldados nas expedições, a<br />
fim de obterem um pouco mais de segurança nas tentativas de conversão à fé em<br />
Cristo. Além de trazer mais segurança para os padres, em alguns casos os soldados<br />
eram utilizados para impor a catequese ou para resgatar os indígenas que fugiam dos<br />
pueblo,. Em outras palavras, serviam para capturar os que não estivessem dispostos<br />
a aceitar os ensinamentos dos padres, ou para assegurar a vida do missionário, que<br />
24 Idem, p. 222.<br />
25 Idem, p. 177.<br />
402
eram poucos para a demanda da região, através do respeito que as armas de fogo<br />
impunham aos nativos. “O Padre Gaspar de Cujia, entrava para buscá-los, e recolhêlos,<br />
insistindo sempre, ainda que em vão, para que se povoassem, para insistir em<br />
instruí-los juntos26 ”.<br />
O objetivo, na região de Maynas, era criar uma rede de missões que permitisse<br />
superar as dificuldades de comunicação e controle e que permitisse um melhor<br />
acompanhamento do desenvolvimento espiritual e político-econômico. Lembremos<br />
que a fundação das missões implicava a adoção do modo de vida europeu, inclusive<br />
no que se refere à organização política (pois agora eram vassalos del Rey, além de<br />
servos de Cristo) e no que tange à economia (que passa a ter as características e<br />
utilizar muitos produtos, europeus). Desta forma, o empreendimento missionário<br />
não implicava somente em levar a palavra de Cristo aos nativos americanos, mas em<br />
transformar o modo de vida destes de acordo com o que se acreditava ser a maneira<br />
civilizada de viver; deveriam deixar de ser bárbaros e toscos para se tornarem verdadeiros<br />
filhos de Deus e vassalos do rei da Espanha.<br />
De fato, encontramos com freqüência nas descrições, padres que percebem<br />
os indígenas como bárbaros rústicos, que precisavam ser educados e civilizados urgentemente.<br />
E, mais do que isso, não bastava ensinar-lhes como viver, era preciso<br />
acompanhar de perto suas atitudes porque, segundo entendiam os missionários, eles<br />
logo se desvirtuavam do caminho que lhe fora mostrado. A visão dos missionários<br />
sobre eles, diversas vezes é a do professor sobre uma criança que pouco ou nada<br />
compreende sobre o que lhe falam, o que os leva a necessitar de demasiada paciência<br />
e tempo. Em muitos momentos, nas crônicas, encontramos descrições que minimizam<br />
a capacidade intelectual dos indígenas:<br />
bautizarlos con mucho travajo, por la incomodidad de los caminos y<br />
puestos donde están, y mucho más por la barbaridad é ignorancia de<br />
los indios, su gran rudeza y tosquedad, que se halla principalmente em<br />
los viejos; se cansa y quiebra el Padre la cabeça, como sí pusiera todo<br />
su conato em querer darse á entender y cathequizar vn tronco 27<br />
Podemos perceber o grau de dificuldade que os padres consideravam conter o<br />
trabalho catequético: a dificuldade de fazer os índios compreender os ensinamentos;<br />
25 RODRíGUEZ, 1684, p. 76. Tradução nossa; no original: “El Padre Gafpar de Cuxia, entraba à bufcarlos, y recogerlos,<br />
inftando fiempre, aunque fue en vano, em que fe poblaffen, para infiftir em inftruilos juntos”<br />
26 FIGUEROA [1661], 1987, p.252.<br />
403
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
as distâncias entre os povoados; as dificuldades impostas pela geografia, pelo clima<br />
e pela natureza do lugar; etc 28 .<br />
Uma das principais características das Missões do Alto Amazonas, sem sombra<br />
de dúvida, foi a sua instabilidade. Instabilidade esta, devida não somente aos<br />
obstáculos que vimos descrevendo, mas também às constantes epidemias e rebeliões<br />
que não se extinguiram com a implantação das missões, conforme foi desejado pelos<br />
espanhóis. Muito pelo contrário, quanto maior o contato entre índios e europeus,<br />
maior era a quantidade de nativos que sucumbiam às doenças, às armas de fogo e à<br />
escravidão.<br />
404<br />
CONSIDERAçõES FINAIS<br />
O valor das informações contidas nas crônicas para o trabalho historiográfico<br />
é imenso. Como aprofundado anteriormente, elas variam entre descrições sobre o<br />
ambiente, sobre as populações, sobre os costumes, sobre as relações entre as pessoas<br />
que estavam na região, etc. No caso do Alto Amazonas é possível, através da utilização<br />
destas fontes, por exemplo, dar suporte às teorias arqueológicas que afirmam<br />
que a região ribeirinha, foi cenário de grandes populações humanas, portadoras de<br />
culturas bastante complexas. Sob outra perspectiva, também é possível fazer uma<br />
análise mais etnológica, no sentido de compreender as mudanças e permanências<br />
nas identidades e nas sociedades locais. Devemos ainda ressaltar que essas são fontes<br />
essenciais para podermos também compreender o contexto em que se desenvolveram<br />
as missões jesuíticas na região.<br />
Utilizar fontes primárias nas pesquisas históricas abre um leque de possibilidades<br />
muito grande. Afirmo isso, no sentido de que as representações contidas<br />
nos permitem não somente perceber o que o autor diz, mas porque o está fazendo.<br />
Uma análise crítica cuidadosa e atenta pode trazer à tona uma série de questões que<br />
passaram despercebidas por muito tempo.<br />
Se a história é um relato acerca do passado, os fatos e as mensagens subjetivas<br />
contidas nestes documentos podem enriquecer as reflexões do presente. Por isso, a<br />
ação jesuítica pode nos contar muito sobre um passado ainda pouco estudado e que<br />
precisa ser repensado pela historiografia.<br />
28 É importante pensar que em muitos casos, os padres descreviam as dificuldades encontradas de maneira um tanto<br />
exagerada, como se o trabalho catequético estivesse sempre em processo de desenvolvimento, mas nunca concluído.<br />
Lembremos, portanto, que a Igreja e o corpo social se fundem de modo que a fé determina, também, a categoria<br />
social do indivíduo. Em outras palavras, no momento que o índio fosse reconhecido como cristão ele abandonaria<br />
a categoria que justificava sua inferioridade e, com isso, poria um fim na situação colonial.
FONTES<br />
FIGUEROA, Francisco. Informe de las misiones del Marañon, Gran Pará e río de<br />
las Amazonas [1661]. In: Informes de Jesuitas en el Amazonas, Monumenta Amazónica.<br />
Iquitos: CETA, 1986.<br />
RODRíGUEZ, Manuel. El Marañón y Amazonas, Historia de los descubrimientos, entradas<br />
y reducción de naciones, trabajos malogrados de algunos conquistadores y dichosos de otros, así temporales,<br />
como espirituales, en las dilatas montañas y mayores ríos de América, escrita por el padre<br />
Manuel Rodríguez, de la Compañía de Jesús, procurador general de las provincias de Indias en la<br />
corte de Madrid. Madrid: Impr. de Antonio González de Reyes, 1684.<br />
REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
BACZKO, Bronislaw. Imaginação Social. In: Enciclopedia Einaudi. Antropos-Homem.<br />
Vol. 5.Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985.<br />
BAPTISTA, Jean. Os guarani nos textos dos missionários coloniais: possíveis metodologias<br />
da etnohistória. Revista de História da Unicruz, n. 4, v. 1, 2003.<br />
CYPRIANO, Doris Cristina Castilhos de Araújo. Margens do rio Madeira e Tapajós,<br />
situação de Contato e Dinâmica Social – Séculos XVII e XVIII. São Leopoldo: UNISI-<br />
NOS, 2005.<br />
ESTENSSORO, Juan Carlos. O Símio de Deus. In: NOVAES, Adauto (org.). A outra<br />
Margem do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.<br />
FRANZEN, Beatriz Vasconcelos (org.); FLECK, Eliane D. (org.); MARTINS, Maria<br />
Cristina Bohn. Carta Ânua da Província Jesuítica do Paraguai 1659 – 1662. São Leopoldo,<br />
RS: Oikos; Unisinos; Cuiabá, MT: EdUFMT, 2008.<br />
LESTRINGANT, Frank. O Brasil de Montaigne. São Paulo: Revista de Antropologia<br />
da USP, v. 49, nº2, 2006.<br />
LONDOÑO, Fernando Torres. Trabalho indígena na dinâmica de controle das reduções<br />
de Maynas no Marañón do século XVII. História, v. 25, n. 1, p. 15-43, 2006.<br />
OLIVEIRA, Paulo Rogério Melo de. O encontro entre os guarani e os jesuítas na Província<br />
405
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
jesuítica do Paraguai e o glorioso martírio do venerável padre Roque Gonzáles nas tierras de Ñezu.<br />
Porto Alegre: UFRGS, 2009<br />
POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade. Seguido<br />
de grupos étnicos e suas Fronteiras de Frederik Barth. São Paulo: Editora da<br />
UNESP, 1998.<br />
RODRIGUEIRO, Jane. Tensão e Redução na várzea: as relações de contato entre os cocama e<br />
jesuítas na Amazônia do século XVII (1664 – 1680). São Paulo: PUC, 2007.<br />
406
A inquisição no extreMo sul dA AMériCA PortuguesA:<br />
o Perfil dos fAMiliAres do sAnto ofíCio eM<br />
ColôniA de sACrAMento (séCulo XVIII)<br />
Lucas Maximiliano Monteiro*<br />
Resumo: O Tribunal do Santo Ofício Português tinha por objetivo vigiar as práticas religiosas<br />
não apenas em seu território na Península Ibérica, mas também em seus domínios do além-mar, como<br />
era o caso da América Portuguesa. Uma das formas encontradas para a Inquisição se fazer presente<br />
foi a atuação de funcionários inquisitoriais. Este trabalho visa traçar um perfil dos Familiares do Santo<br />
Ofício em Colônia de Sacramento ao longo do século XVIII. Esta Praça Mercantil contou com estes<br />
agentes inquisitoriais que serviam como os olhos do Tribunal de Lisboa na região. Baseando-se em um<br />
estudo prosopográfico, será realizado um levantamento para identificar a profissão, naturalidade, cabedais<br />
e estado civil com o objetivo de definir o padrão de recrutamento destes funcionários a serviço<br />
da Inquisição.<br />
Palavras-chave: Inquisição – Colônia de Sacramento – Familiares do Santo Ofício<br />
A<br />
Inquisição Portuguesa tinha no Tribunal do Santo Ofício de Lisboa,<br />
criado em 1540, a responsabilidade pelo controle da fé nos territórios<br />
portugueses ultramarinos. Este tribunal exerceu seu poder nas<br />
colônias, primeiramente, através da atuação dos bispos locais. Posteriormente atuou<br />
através das Visitações oficiais. Nos séculos XVI e XVII a América Portuguesa teve a<br />
oportunidade de duas visitas oficiais do Santo Ofício na Bahia e Pernambuco. Nestas<br />
oportunidades, os visitadores recolheram diversas denúncias e confissões dos<br />
moradores das respectivas capitanias do nordeste brasileiro.¹ Já na segunda metade<br />
do século XVIII, uma visitação realizada no Grão-Pará fechou o ciclo deste tipo de<br />
* Graduado em História pela UFRGS. Aluno de Mestrado do Programa de Pós-graduação em História da UFRGS.<br />
Bolsista CAPES.<br />
¹ A este respeito, ver, por exemplo, meu estudo sobre as narrativas dos cristãos-novos no Livro das Confissões da<br />
Bahia. MONTEIRO, Lucas Maximiliano. De frente com o inquisidor: os cristãos-novos e suas narrativas no Livro<br />
das Confissões (Bahia, 1591-1592). In: Mostra de Pesquisa do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do<br />
Sul. Anais: Produzindo história a partir de fontes primárias. Porto Alegre: CORAG, 2009, p. 19- 37.<br />
407
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
atuação do Tribunal de Lisboa no território da América Portuguesa. Lina Gorenstein<br />
ainda demonstra que houve uma quarta visitação, ainda no século XVII, na capitania<br />
do Rio de Janeiro em 1627, e cuja documentação fora perdida no naufrágio do navio<br />
que transportava Isabel Mendes, cristã-nova e processada pela Inquisição.²<br />
Contudo, esta forma de controle exercido pelo tribunal representava uma exceção<br />
dentro da atividade repressiva inquisitorial. De outras maneiras a Inquisição se<br />
fazia presente na realidade e no dia a dia da população colonial. Uma destas formas<br />
era a atuação de um corpo de funcionários inquisitoriais residentes nas capitanias,<br />
convivendo com a população e reportando os desvios de fé encontrados para Lisboa.<br />
Por meio destes agentes, era possível uma maior alcance do braço inquisitorial<br />
sobre as heresias praticadas nos territórios do além-mar. O objetivo do presente<br />
artigo é tratar de um destes funcionários: os Familiares do Santo Ofício. Estes eram<br />
funcionários leigos que habitavam as capitanias e tinham um papel fundamental na<br />
engrenagem de denúncias e prisões por parte do Tribunal de Lisboa. Ao mesmo<br />
tempo, estes agentes também se valiam de seu “título de aliados da Inquisição” como<br />
uma forma de prestígio social. O foco deste trabalho será no estudo prosopográfico<br />
desde grupo social em Colônia de Sacramento, levantando dados para que se possa<br />
traçar o seu perfil social. Com isso, será possível identificar quem eram estes agentes<br />
inquisitoriais e que posição ocupavam na sociedade de Colônia de Sacramento.<br />
408<br />
OS FAMILIARES DO SANTO OFíCIO:<br />
REQUISITOS E DEVERES<br />
Segundo Aldair Carlos Rodrigues, o crescimento do número de familiares,<br />
verificado a partir do século XVII, atesta que foi por meio da atuação destes agentes<br />
que o Tribunal de Lisboa modificou a sua forma de atuação, passando das visitações<br />
para o trabalho dos agentes inquisitoriais.³<br />
Os Familiares do Santo Ofício eram membros da sociedade local que faziam<br />
parte do corpo de funcionários da Inquisição. São agentes “leigos” pois não necessitava<br />
serem eclesiásticos para se candidatarem ao posto, bastava que encaminhassem<br />
uma petição solicitando a habilitação ao Santo Ofício. Esta petição seria endereçada<br />
ao Conselho Geral e deveria conter informações como naturalidade, local de resi-<br />
² A autora encontrou referências desta Visitação no Rio de Janeiro principalmente nos Cadernos do Promotor,<br />
juntamente com outros casos constantes na mesma documentação que atestam a existência deste trabalho do Santo<br />
Ofício em 1627. GORENSTEIN, Lina. A Terceira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil (século XVII). IN:<br />
VAINFAS, Ronaldo, FEITLER, Bruno & LIMA, Lana Lage da Gama. A inquisição em Xeque: temas, controvérsias,<br />
estudos de caso. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2006, p. 25-31.<br />
³ RODRIGUES, Aldair Carlos, Sociedade e inquisição em Minas Colonial: os Familiares do Santo Ofício<br />
(1711-1808). (Dissertação) USP, São Paulo, 2007, p. 27.
dência, e ocupação. Da mesma forma, era necessário conter os nomes dos pais e as<br />
suas naturalidades, exigência estendida também aos avôs paternos e maternos. Estas<br />
informações seriam utilizadas pelo Santo Ofício para apurar e atestar a sua “pureza<br />
de sangue”. Se o candidato fosse casado, deveria constar o mesmo já mencionado<br />
referente a sua esposa, obrigatoriedade dada também em caso de o habilitando possuir<br />
filhos, legítimos ou não.<br />
Nesta petição, o candidato a familiar relatava o motivo pelo qual se candidatava<br />
ao cargo. Antônio de Azevedo Souza, familiar de Colônia do Sacramento<br />
habilitado em 1758, por exemplo, em sua petição disse que desejava servir ao Santo<br />
Ofício “por concorrerem os requisitos necessários”. 4 Após encaminhar o pedido, o<br />
habilitando realizava um depósito em dinheiro o qual cobriria os custos do processo.<br />
Para se candidatar a Familiar, era necessário estar dentro de uma série de requisitos<br />
exigidos pelo Tribunal do Santo Ofício. Estas prerrogativas ao cargo estão<br />
descritas nos Regimentos Inquisitoriais datados de 1640 e 1774. No primeiro regimento,<br />
do período em que o Bispo D. Francisco de Castro era o Inquisidor Geral<br />
de Portugal, constam os seguintes pré-requisitos aos candidatos a familiares: “serão<br />
pessoas de bom procedimento e de confiança e capacidade reconhecida”. Além<br />
disso, deveriam possuir “fazenda de que possam viver abastadamente” e, como os<br />
outros ministros e funcionários da Inquisição, serem<br />
[...] naturais do reino, cristãos-velhos, de limpo sangue, sem raça de mouro,<br />
judeu ou gente novamente convertida à nossa santa fé e sem fama em contrário, que<br />
não tenham incorrido em alguma infâmia pública de feito ou de direito, nem fossem<br />
presos ou penitenciados pela Inquisição, nem sejam descendentes de pessoas que tivessem<br />
algum dos defeitos sobreditos [...] saberão ler e escrever e, se forem casados,<br />
terão a mesma limpeza suas mulheres e filhos que por qualquer via tiverem. 5<br />
O mesmo regimento também estabelecia uma regulamentação na conduta<br />
destes agentes inquisitoriais. Os Familiares do Santo Ofício habilitados tinham de<br />
possuir e guardar o regimento que lhes cabia, manter segredo em todos os assuntos<br />
referentes às atividades inquisitoriais, manter bom comportamento e não abusar em<br />
proveito próprio do título de Familiar. Também não poderiam manter relações com<br />
pessoas que tivessem qualquer assunto em haver com o Santo Ofício e nem contrair<br />
dívidas que pudessem levantar qualquer suspeita de suas qualidades, principalmente<br />
4 ANTT, HSO. Mç. 129, proc. 2167.<br />
5 Os Regimentos Inquisitórias de 1640 e 1774 estão publicados em FRANCO, Eduardo & ASSUNçãO, Paulo de.<br />
As Metamorfoses de um Polvo: religião e política nos Regimentos da inquisição Portuguesa (Séc. XVi-<br />
XiX). Lisboa; Précio, 2004. p. 229-481<br />
409
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
se endividar com as pessoas da nação, ou seja, judeus ou cristãos-novos. Sempre<br />
que chamado, deveriam se apresentar ao Tribunal, assim como no dia de São Pedro<br />
Mártir – santo de invocação dos agentes da Inquisição – utilizando o seu hábito<br />
de familiar. Somente nestes dias e naqueles em que iriam realizar alguma prisão ou<br />
conduzir algum preso da Inquisição e nos Autos-de-fé – nos quais acompanhariam<br />
os penitenciados – é que poderiam fazer uso do seu hábito.<br />
O Regimento de Inquisitorial de 1774, período do Inquisidor Geral Cardeal<br />
da Cunha, foi redigido posteriormente às reformas empreendidas por Pombal nos<br />
assuntos referentes à Inquisição. O Ministro português, que esteve à frente do governo<br />
de D. José I entre 1750 e 1777, a partir de 1769 iniciou uma série de medidas:<br />
acabou com a função do censor de livros e criou a Real Mesa Censória, que teria as<br />
mesmas obrigações, mas que passava para o controle direto do Estado. Em 1769<br />
retirou o poder inquisitorial como tribunal independente e, além disso, ordenou<br />
que os bens confiscados pelo tribunal, que antes ficavam em poder da Inquisição,<br />
passassem a ser direcionados para o Tesouro Real e colocou seu irmão Paulo de<br />
Carvalho como inquisidor-geral. Por fim, acabou com a distinção entre cristão-novo<br />
e cristão velho. 6<br />
Em relação à última medida, o Marquês de Pombal pôs fim a uma distinção<br />
social existente desde o reinado de D. Manuel e seu decreto de conversão dos judeus<br />
em 1497. Assim sendo, no Regimento de 1774 não se encontram mais referências<br />
à pureza de sangue. No que tange aos agentes inquisitoriais, e aos Familiares do<br />
Santo Ofício, não é mais requisitado ser puro de sangue ou qualquer referência em<br />
relação aos cristãos-novos, como no caso da proibição de contrair dívidas com este<br />
grupo social. No restante, os mesmos requisitos já descritos no Regimento de 1640<br />
permanecem.<br />
Há ainda um regimento destinado especificamente aos Familiares. Embora<br />
não possua referências de quando foi publicado, é possível deduzir que seja anterior<br />
ao regimento do Cardeal Cunha. No Regimento dos Familiares há praticamente o<br />
mesmo já exigido nos regimentos anteriores. 7<br />
Todos estes requisitos seriam averiguados no momento do processo de habilitação.<br />
Seriam feitas diligências nas cidades em que os pais do habilitando residiam<br />
a fim de atestar a veracidade em relação à pureza de sangue. Havia também as di-<br />
6 Para Kenneth Maxwell, o objetivo de Pombal era a secularização da Inquisição, tornando-a, assim, diretamente<br />
ligada ao Estado Português. MAXWELL, Kenneth. Marquês do Pombal: o paradoxo do iluminismo. Rio de<br />
Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 99 e 100.<br />
7 O Regimento dos Familiares foi publicado por Luiz Mott em Cadernos de Estudos Baianos, Salvador, n. 140,<br />
1990.<br />
410
ligências voltadas a averiguar as condições econômicas do mesmo, ou seja, se era<br />
pessoa que vivia abastadamente, e se sabia ler e escrever. Após as diligências, e sendo<br />
comprovados os requisitos, o comissário emitia seu parecer.<br />
Os Familiares do Santo Ofício tinham por obrigação prender, realizar denúncias<br />
ou encaminhar aquelas recebidas aos comissários, e acompanhar os presos<br />
e penitenciados até o Santo Ofício. Não poderiam realizar qualquer ação sem que<br />
tivessem recebido ordem direta do Tribunal. Quanto a isso, o regimento é bem claro:<br />
Se nos lugares em que viverem acontecer algum caso que pareça que pertence<br />
à nossa santa fé ou se os penitenciados não cumprirem suas penitências com toda a<br />
brevidade e segredo, darão pessoalmente conta na Mesa do Santo Ofício, sendo na<br />
terra em que assiste o Tribunal, e, fora dela, avisarão ao comissário. E quando o não<br />
haja, avisarão por carta aos inquisidores e nunca por si sós obrarão noutra forma em<br />
matéria que tocar à Inquisição, pelos inconvenientes que podem suceder, se fizerem<br />
o contrário. 8<br />
Ainda segundo o seu regimento, quando estivessem a mando da Inquisição,<br />
receberiam quinhentos réis por dia e poderiam ser acompanhados apenas por um<br />
homem, o qual seria pago “conforme o uso da terra”.<br />
Para Aldair Rodrigues, os Familiares do Santo Ofício eram o meio de comunicação<br />
entre a sociedade local e o Tribunal Lisboeta, principalmente nas ocasiões<br />
de denúncias de heresias, que poderiam ser recolhidas por estes agentes inquisitoriais,<br />
as quais seriam remetidas aos comissários. Em algumas localidades que estavam<br />
muito longe da sede do bispado ou do acesso aos comissários, eram os Familiares os<br />
únicos representantes da Inquisição. Para o autor, estes agentes estavam tão enraizados<br />
e participavam tanto da vida social, que mesmo nos lugares mais distantes da<br />
sede da Comarca, todos os moradores sabiam da sua existência e, principalmente, a<br />
quem procurar. 9<br />
A presença destes funcionários da Inquisição fortalecia a atuação da instituição.<br />
Segundo Daniela Calainho, esta era uma estratégia para o Santo Ofício exercer<br />
o controle da população:<br />
Espionando, prendendo e delatando, esses agentes eram tanto na Colônia<br />
como no Reino um dos mais poderosos tentáculos da Inquisição. [...] Espionavam<br />
8 Regimento de 1640. In: FRANCO, Eduaro & ASSUNçÂO, Paulo de. As Metamorfoses de um Polvo. Op. cit.<br />
Embora com sua atuação delimitada pelos regimentos, não raro foi o caso de familiares que transgrediram as suas<br />
ordens. Daniela Buono Calainho mostra diversos agentes que agiam por si só e abusavam do poder concedido por<br />
meio da carta de Familiar. Agentes da fé: Familiares da inquisição Portuguesa no Brasil Colonial. Bauru, SP:<br />
EDUSC, 2006, p. 147-157.<br />
9 RODRIGES, Aldair Carlos. Op. cit., p. 69 e 72<br />
411
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
prisioneiros nos cárceres; por vezes investigavam a vida de suspeitos; faziam diligências;<br />
prendiam ao menor sinal do Inquisidor. 10<br />
Logo, os Familiares do Santo Ofício eram os olhos da Inquisição. Nas localidades<br />
em que viviam, auxiliavam a instituição a denunciar, prender e manter a presença<br />
inquisitorial mesmo nas menores localidades tanto do Reino como também<br />
na Colônia.<br />
O NÚMERO DE FAMILIARES NA<br />
AMÉRICA PORTUGUESA<br />
O número de Familiares do Santo Ofício foi contabilizado por diversos historiadores<br />
que se ocuparam do tema em suas pesquisas. Seus levantamentos auxiliam<br />
na visualização da distribuição destes agentes no território do Império Português.<br />
José Veiga Torres, em pesquisa na qual consultou cerca de vinte mil processos de<br />
habilitação, constatou que o número total de familiaturas expedidas entre 1580 até<br />
o final da atuação do Tribunal do Santo Ofício de Lisboa em 1820 foi de 19.901. O<br />
período que contou com um maior número de familiares habilitados foi entre o final<br />
do século XVII e até meados da segunda metade do XVIII, com 14168 no período<br />
entre 1671 e 1770, contra 2987 familiares entre 1580 e 1670. Da mesma forma, percebe-se<br />
a influência das Reformas Pombalinas em relação à Inquisição: para o período<br />
posterior a 1770, ou seja, pós-reformas, o número de habilitações caiu para 2746.<br />
FONTE: TORRES, José Veiga. Da repressão religiosa para a promoção social: a Inquisição como<br />
instância legitimadora da promoção social da burguesia mercantil. In: Revista Crítica de Ciências<br />
Sociais. Coimbra, n. 40, outubro de 1994, p. 135.<br />
Em relação à distribuição dos familiares entre Lisboa e Brasil, Veiga Torres<br />
encontrou 3114 familiares habilitados na América Portuguesa. Já o número de agen-<br />
10 CALAINHO, Daniela Buono. Op. cit., p. 129<br />
412
tes em Lisboa era de 5711. Na tabela abaixo se percebe que Lisboa contou com um<br />
número de familiares maior que os seus domínios americanos até o final de 1770,<br />
quando a América Portuguesa passou a contar com 872 familiares contra 363 da capital<br />
lusitana. Ao mesmo tempo, é possível verificar que a procura à carta de familiar<br />
se acentuou nos domínios americanos a partir de 1670, acompanhando o crescimento<br />
significativo de habilitações lisboetas.<br />
Tabela 1: N° de Familiares Habilitados no Brasil e Lisboa (1570-1820)<br />
FONTE: TORRES, José Veiga. Da repressão religiosa para a promoção social: a Inquisição como<br />
instância legitimadora da promoção social da burguesia mercantil. In: Revista Crítica de Ciências<br />
Sociais. Coimbra, n. 40, outubro de 1994, p. 134.<br />
Daniela Calainho encontrou para todo o período de presença da atividade inquisitorial<br />
no Brasil 1708 familiares, sendo que desses, 1546 apenas no século XVIII.<br />
No levantamento realizado por Fábio Kuhn, o número de familiares encontrados<br />
para o período de 1737 e 1789 foi de cerca de 1700. Estes números, em comparação<br />
ao trabalho de Veiga Torres estão próximos uma vez que, para o período de 1721 a<br />
1770, o autor português encontrou 1687 familiares habilitados em solo americano.<br />
O trabalho mais recente acerca do número de familiares é o de Aldair Rodrigues.<br />
Nele, o autor fez um levantamento de 1907 habilitações entre 1713 e 1785. De qualquer<br />
forma, estes dados demonstram que a procura pela carta de familiar foi intensa,<br />
principalmente no século XVIII.<br />
Fazendo uma comparação do número de familiaturas entre as capitanias brasileiras<br />
se percebe que aquela com o maior índice de Familiares do Santo Ofício foi<br />
o Rio de Janeiro. Em seguida vinha a capitania Mineira e, logo atrás, Bahia e Pernambuco<br />
respectivamente. Segundo estes dados – apresentados na tabela n° 2 – é<br />
possível perceber a importância e a distribuição populacional de cada capitania. A<br />
capitania carioca contava com a produção de açúcar desde meados do século XVII.<br />
Além disso, há a presença massiva da elite mercantil – principal grupo a se habilitar<br />
413
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
– a qual estava em processo de ascensão social, ocupando postos nas ordenanças e<br />
espaços na Câmara local.¹¹ Já o número de habilitações em Minas acompanha o processo<br />
de urbanização conduzido pelo surto mineiro. Com a descoberta de ouro no<br />
território houve um fluxo migratório intenso e rápido, a ponto de, em 1711, cálculos<br />
jesuítas darem conta de 30 mil habitantes.¹²<br />
No entanto, qual foi o número de Familiares do Santo Ofício em Colônia do<br />
Sacramento? Esta pesquisa se apóia – sobretudo – nos dados levantados por Fábio<br />
Kuhn que, para o período de 1737 e 1785, encontrou 18 familiares residentes em<br />
Colônia de Sacramento. Segundo Aldair Rodrigues, a Praça Mercantil contou com<br />
19 familiares, pois contabilizou um Familiar habilitado em 1736.¹³<br />
Tabela n° 2: Habilitações do Santo Ofício por Capitanias no Século XViii<br />
FONTE: RODRIGUES, Aldair Carlos, Sociedade e Inquisição em Minas Colonial: os Familiares do<br />
Santo Ofício (1711-1808). (Dissertação) USP, São Paulo, 2007, p. 136-137.¹ 4<br />
Na tabela a seguir estão os Familiares do Santo Ofício residentes em Colônia<br />
de Sacramento.<br />
¹¹ CALAINHO, Daniela Buono. Op. cit., p. 82. KUHN. Fábio. Op. cit., p. 340.<br />
¹² RODRIGUES, Aldair Carlos. Op. cit., p. 126.<br />
¹³ A análise deste trabalho se concentrará nos 18 Familiares do Santo Ofício levantados por Fábio Kuhn Contudo,<br />
até o momento só foi possível acesso a 16 Processos de Habilitação.<br />
¹ 4 No trabalho de Aldair não são contabilizados os Familiares do Rio Grande de São Pedro.<br />
414
Tabela n° 3: Familiares do Santo Ofício em Colônia de Sacramento 15<br />
FONTE: ANTT, HBSO<br />
PERFIL DOS FAMILIARES EM<br />
COLÔNIA DE SACRAMENTO<br />
No momento em que solicitavam a habilitação como Familiar do Santo Ofício,<br />
os candidatos ao cargo inquisitorial deveriam informar a sua naturalidade, filiação,<br />
estado civil, profissão e cabedais. Todas essas informações seriam confirmadas<br />
por meio das inquirições realizadas pelos comissários nas localidades onde os habilitandos<br />
haviam nascido e nas regiões de suas moradias. Logo, os Processos de<br />
Habilitação fornecem dados muito ricos para se traçar um perfil dos Familiares em<br />
Colônia de Sacramento.<br />
15 Até o momento não tive acesso aos Processos de Habilitação de José da Costa Pereira, Bento Martins Ferreira e<br />
João Álvares de Araújo. As datas de habilitação aqui referidas foram levantadas por Fábio Kuhn.<br />
415
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Em relação à naturalidade, os Familiares de Colônia de Sacramento são, em<br />
sua maioria, provenientes do Reino: dentre os 16 processos de habilitação que tive<br />
acesso, 11 são de habilitandos nascidos em Portugal e cinco na da Praça Mercantil.<br />
Sobre o estado civil dos habilitandos no momento da petição, tem-se a seguinte<br />
configuração: 10 são solteiros, enquanto que seis eram casados no momento em que<br />
solicitaram a habilitação. Contudo, alguns Familiares da Praça Mercantil contraíram<br />
casamento após receberem a sua carta de Familiar. Antônio Fernandes Pereira era<br />
solteiro em 1753, ano em que entrou para o quadro de agentes inquisitoriais. Posteriormente,<br />
casou-se com Luiza Máxima Sarmento, irmã de Antônio Ribeiro de Moraes,<br />
futuro Familiar na mesma Praça em 1768. Esta informação consta no próprio processo<br />
de habilitação de Antônio Ribeiro que, na sua petição de 1766, informou ser irmão<br />
mais velho de Luiza e cunhado de Antônio Fernandes. No mesmo processo consta<br />
na informação extrajudicial de 1767 que Luiza era viúva: Segundo o conhecimento<br />
que tenho, por ser o habilitando meu freguês há perto de 26 anos, que o habilitando<br />
Antônio Ribeiro de Moraes é natural desta Praça, filho legítimo do Cirurgião Manuel<br />
Ribeiro e de Antônia de Moraes, já defuntos, e irmão legítimo de Luiza Máxima<br />
Sarmento, viúva de Antônio Fernandes Pereira, Familiar do Santo Ofício; [...]<br />
que vive da ocupação de negócio de fazendas, que é abastado, mas que não sabem que<br />
cabedal terá de seu, que sabe ler e escrever muito bem, que terá 30 anos de idade[...] 16<br />
Logo, Antônio Fernandes faleceu entre 1766 e 1767, enquanto seu cunhado<br />
encaminhava sua petição. Conforme já mencionado, quando um Familiar desejasse<br />
se casar era necessário que sua esposa também fosse habilitada e, logo, passasse pelas<br />
mesmas investigações de linhagem para atestar a sua pureza de sangue. Caso já fosse<br />
casado, as investigações eram feitas no mesmo processo. Não foi o caso de Antônio<br />
Fernandes já que não consta nenhuma informação acerca de Luiza Máxima durante<br />
a sua habilitação que data de 1753. Provavelmente tenha se casado antes de 1766,<br />
data da petição de Antônio Ribeiro. O ponto principal é: como Antônio Ribeiro solicitou<br />
sua Carta de Familiar após ter a sua irmã se casado com um Familiar do Santo<br />
Ofício e, por conseqüência, passado pelas investigações linhagísticas atestando a sua<br />
pureza de sangue, ele, por ser irmão legítimo, teve automaticamente a sua atestada<br />
sem maiores investigações. Aldair Rodrigues afirma que quem possuía algum parente<br />
Familiar acabava tendo menos despesas em sua habilitação uma vez que “nos<br />
casos dos que tinham irmão ou pai habilitados, os avós não eram investigados, fato<br />
que significava menos diligências, papéis e, conseqüentemente, menos despesas”. 17<br />
16 ANTT, HSO, Mç. 163, proc. 2546. O grifo é meu.<br />
17 RODRIGUES, Aldair Carlos. Op. cit., p. 104. Não se teve acesso aos custos dos Processos de Habilitação dos<br />
Familiares de Rio Grande de São Pedro e Colônia de Sacramento<br />
416
Aqueles Familiares que contraíram casamento, assim o fizeram com mulheres<br />
que possuíam alguma distinção social. João da Costa Quintão se casou com Damásia<br />
Maria de São João, filha de Domingos de Siqueira de Araújo, Cavaleiro da Ordem<br />
de Cristo, e Paula Maria de Caldas. 18 Silvestre Ferreira da Silva foi casado com Luisa<br />
Conceição, neta de João Ricardo, também Cavaleiro da Ordem de Cristo. 19 É possível<br />
que estes familiares tenham se casado com filhas de representantes da Ordem<br />
de Cristo como uma forma de ascensão social e também como porta de acesso à<br />
familiatura. O processo para o ingresso como Cavaleiro do Hábito de Cristo era<br />
considerado como o mais rigoroso, assim como o Processo de Habilitação de Familiar<br />
do Santo Ofício, principalmente no que se refere à pureza de sangue. 20 Desta<br />
forma, aqueles candidatos ao cargo inquisitorial, ao se casarem anteriormente com<br />
filhas de Cavaleiros da Ordem de Cristo teriam a certeza da pureza de sangue das<br />
suas esposas, afastando a possibilidade de terem seu pedido à carta de familiar negada<br />
por serem casados com mulheres de sangue impuro.<br />
A faixa etária dos Familiares de Colônia de Sacramento estava entre 23, idade<br />
de Bartolomeu Cesário Nogueira, e 47 anos, idade de Eusébio de Araújo Faria. Contudo,<br />
a maioria dos Familiares da Praça Mercantil se encontrava na faixa dos 30 anos<br />
de idade, no momento de sua habilitação.<br />
No entanto, a informação mais importante para se traçar o perfil desses agentes<br />
inquisitoriais é quanto a sua profissão. Neste caso, leva-se em consideração a<br />
profissão declarada no momento da petição. Assim posto. A tabela a seguir ilustra as<br />
profissões dos Familiares de Colônia do Sacramento:<br />
18 ANTT, HSO, Mç. 72, proc. 1331.<br />
19 ANTT, HSO, Mç. 2, proc. 21.<br />
20 RODRIGUES, Aldair Carlos. Op. cit., p. 203. De fato, para ingressar nas Ordens Militares era necessário “não<br />
descender de mouros, mas sobretudo de judeus”. Elas foram as primeiras instituições a exigirem de seus candidatos<br />
a pureza de sangue, inserindo-se no contexto dos preconceitos existentes contra os de sangue impuro, descrito<br />
anteriormente. Segundo Fernanda Olival, “por todo este contexto, e pela cotação de rigor que tinham as provanças,<br />
que, até 1773, o hábito das Ordens Militares veiculava limpeza. Para grupos sociais podia ser muito importante, se<br />
não decisivo, ostentar uma cruz das Ordens: reiterava um estatuto e uma condição, afugentava rumores”. OLIVAL,<br />
Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno: honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-1789).<br />
Lisboa: Estar Editora, 2001, p. 284-285. Fabio Kuhn levantou no Rio Grande de São Pedro seis integrantes do<br />
Hábito de Cristo, dentre eles o Familiar Manuel de Araújo Gomes. KÜHN, Fabio. Gente da fronteira: família,<br />
sociedade e poder no sul da América portuguesa: século XViii. Tese (Doutorado em História)-UFF, Niterói,<br />
2006., p. 358.<br />
417
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Tabela n° 4: Profissão dos Familiares do Santo Ofício em Colônia do Sacramento²¹<br />
418<br />
FONTE: ANTT, HSO.<br />
Foram contabilizados como “homem de negócio” aqueles que, ao declararem<br />
a sua profissão, incluíram alguma outra ocupação além da primeira. Por meio destes<br />
dados se conclui que a maioria dos Familiares tinha a sua profissão ligada ao comércio.<br />
O Gráfico n° 2, mostra que os homens de negócio ocupam 76% da profissão<br />
declarada pelos habilitandos quando realizaram seu pedido junto com Conselho da<br />
Inquisição.<br />
O grupo dos homens de negócio tem sido considerado pela historiografia<br />
recente como a elite econômica colonial. Sua acumulação de capital se dava por meio<br />
das atividades mercantis de exportação e distribuição de produtos para o mercado<br />
interno. No caso dos comerciantes do Rio de Janeiro, principal grupo mercantil<br />
colonial, essas atividades eram favorecidas pela posição que o porto carioca ocupava<br />
no cenário econômico da América Portuguesa. A produção colonial era distribuída<br />
para o mercado interno via Porto do Rio de Janeiro, o qual abastecia as regiões com<br />
produtos e escravos:<br />
²¹ João Borges de Freitas está contabilizado como “Homem de Negócio” e “Militar”.
[...] a praça do Rio de Janeiro desempenhava um papel fundamental na reprodução,<br />
via mercado interno, da plantation exportadora. O que siginifica dizer também<br />
que tal praça era uma área privilegiada para as operações das produções coloniais de<br />
abastecimento interno. Isso nos ajuda a compreender a preponderância da acumulação<br />
mercantil [...] Em outras palavras, além de porto exportador e importador, o Rio<br />
de Janeiro, no período considerado, surgia como espaço da reprodução, via mercado<br />
interno, da formação econômico-social colonial.²²<br />
É via Praça do Rio de Janeiro que se estabelece o surgimento de um novo grupo<br />
econômico: os comerciantes de grosso trato.²³ Estes são definidos como “negociantes,<br />
em geral, envolvidos simultaneamente no tráfico internacional de escravos,<br />
no abastecimento interno e nas finanças coloniais”. 24 Pela definição de Fragoso se<br />
compreende a principal característica dos comerciantes de grosso trato: a diversificação<br />
de sua atuação. Os homens de negócio tinham por característica atuar não<br />
apenas em um ponto de comércio, possuíam negócios nas mais variadas frentes mercantis,<br />
tanto no comércio interno, quanto no externo, ou seja, “o negociante colonial<br />
nunca o era de um só ramo”:<br />
O fato de a elite mercantil estar simultaneamente envolvida no comércio de<br />
abastecimento e no de exportação e importação, além de aparecer no tráfico de<br />
escravos, por seu turno, nos fornece um outro traço desse grupo, ou seja, o caráter<br />
múltiplo de sua atuação empresarial. 25<br />
Os comerciantes agiam desta forma como uma maneira de se precaverem<br />
das flutuações econômicas. Desta forma, caso um negócio não conseguisse render o<br />
esperado, ainda era possível contar com outros investimentos que poderiam garantir<br />
o valor desejado e, assim, reduzir as perdas. Os negociantes conseguiam diversificar<br />
a sua atuação agindo em outros ramos que não o comércio. É o caso dos arremata-<br />
²² FRAGOSO, João Luís R. Homens de grossa aventura: Acumulação e hierarquia na praça mercantil do<br />
Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p. 307. Grifo do autor. É a partir do século<br />
XVIII que o porto carioca ganha importância no cenário colonial: “A partir do terceiro decênio do século, a praça<br />
do Rio de Janeiro começou a transformar-se no principal centro comercial da América portuguesa – ou, o que é o<br />
mesmo, no mais importante porto receptor de importações de outras partes do Ultramar e das reexportações de<br />
produtos europeus”. FRAGOSO, João Luís R. & FLORENTINO, Manolo. O Arcaísmo como Projeto. Rio de<br />
Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 75.<br />
²³ FRAGOSO & FLORENTINO. Op. cit., p.81.<br />
24 FRAGOSO. Op. cit., p. 92.<br />
25 Ibidem, p. 324 e 325. Em Tese defendida em 2009, Fábio Pesavento mostra que os negociantes cariocas também<br />
agiam como procuradores de negociantes estrangeiros em seus comércios com a América Portuguesa. Esta seria<br />
mais uma forma de diversificação da atuação dos homens de negócios, servindo de “atravessadores” dos produtos<br />
consumidos pela população colonial. PESAVENTO, Fábio. Um pouco antes da Corte: a economia do Rio de<br />
Janeiro na segunda metade do Setecentos. Tese-Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009, p. 104-149.<br />
419
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
dores de impostos, uma forma que, segundo Fragoso, permitia uma ampliação comercial<br />
do homem de negócio e, assim, obtinha o monopólio de determinada região.<br />
Porém, embora diversificassem a sua atuação mercantil, os comerciantes o faziam de<br />
uma forma monopolista. Para isso recorriam a redes de parentesco, o que surtia um<br />
efeito restritivo no número de membros da elite mercantil. 26<br />
A situação dos negociantes em Colônia de Sacramento está diretamente relacionada<br />
com a atuação dos homens de negócio do Rio de Janeiro no comércio<br />
da região. 27 Por se tratar de uma região de escoamento de parte da prata vinda do<br />
Potosi, muitos comerciantes cariocas realizavam comércio permanente, principalmente<br />
com os espanhóis, via contrabando. Aliás, o contrabando foi a principal via<br />
de comércio entre os portugueses de Colônia de Sacramento e os vizinhos sediados<br />
em Buenos Aires.<br />
Os homens de negócio encontravam na Praça Mercantil garantias de lucros<br />
de cerca de 90% do valor das mercadorias, além da vantagem da venda à vista com<br />
os castelhanos em troca da prata peruana. A prática da venda à vista era uma garantia<br />
que o comerciante tinha, devido, principalmente, à característica de contrabando,<br />
constantemente reprimida pelas autoridades. 28<br />
Os negociantes de Sacramento buscavam com seu comércio a prata do Potosí.<br />
Contudo a principal moeda de troca da região era o couro dos colonos espanhóis.<br />
Entre 1721 e 1736 a Praça Mercantil foi responsável por cerca de “75% das exportações<br />
de couro do Rio da Prata. 29 Em troca, os portugueses vendiam tecidos e tabaco:<br />
Embora os tecidos fossem, de longe, o principal produto vendido na Colônia do<br />
Sacramento, outras mercadorias também forneciam elevadas taxas de lucro aos comerciantes.<br />
A principal dessas mercadorias secundárias era o tabaco que, em sua maior parte,<br />
vinha da Bahia. Por volta de 1725, o seu consumo em Colônia, era de uns quarenta<br />
a cinqüenta rolos por ano, vendidos à vara por preços de 240 a 320 réis. Os principais<br />
compradores eram os soldados da guarnição, mas o tabaco também era vendido aos<br />
espanhóis, colonos e, principalmente, aos índios, que o trocavam por gado e couros. 30<br />
26 FRAGOSO, Op. cit., p. 326-330.<br />
27 Segundo Fabrício Pereira Prado, “a comunidade de mercadores do Rio de Janeiro, bastante poderosa e com uma<br />
elite mercantil estruturada na primeira metade do XVIII, mantinha relações com Sacramento”. Colônia de Sacramento:<br />
comércio e sociedade na Fronteira Platina (1716-1753). Dissertação (Mestrado). Porto Alegre: UFRGS,<br />
2002, p. 136.<br />
28 POSSAMAI. Paulo César. Aspectos do Cotidiano dos Mercadores na Colônia de Sacramento durante o Governo<br />
de Antônio Pedro de Vasconcelos (1722-1749). Revista ibero-Americanos. Porto Alegre: PUC-RS, v. XXVIII,<br />
n°2, dezembro de 2002, p. 4.<br />
29 PRADO, Fabrício Pereira. Op. cit., p. 133.<br />
30 Ibidem, p. 7.<br />
420
Embora os comerciantes de Colônia de Sacramento obtivessem lucros com<br />
a venda de suas mercadorias aos espanhóis, eles tinham que encarar a concorrência<br />
britânica na região. Esta concorrência causou diversos conflitos entre portugueses<br />
e ingleses, uma vez que o principal lucro dos primeiros se baseava em recambiar os<br />
produtos europeus, principalmente da Inglaterra. Logo, quando os britânicos passaram<br />
a realizar trocas comerciais diretamente com os espanhóis, os homens de<br />
negócio de Colônia de Sacramento perdiam mercado, pois não conseguiam vender<br />
a preços tão baixos que seus concorrentes. Para Paulo Possamai, “a concorrência<br />
inglesa era diretamente responsável pela situação do comércio na Colônia de Sacramento”³¹.<br />
Esta situação favorável ao comércio vinha do fato da Praça Mercantil estar<br />
em ótima posição geográfica, o que fazia dela um dos pontos principais das rotas<br />
comerciais do atlântico. Porém, segundo Fabrício Prado, mesmo com esta posição<br />
estratégica, devido a se posicionar em região de fronteira, “Colônia de Sacramento<br />
não constituía um centro de poder”:<br />
Podemos perceber um movimento de parte de alguns dos principais homens<br />
de negócio estabelecidos ao longo da primeira metade do século XVIII de mudarem<br />
para centros mais estáveis, e onde a vida econômica e social fosse mais ativa e com<br />
maior potencial. Enfim, muitos buscavam a proximidade com o poder.³²<br />
Enfim, parece que os comerciantes sediados em Colônia de Sacramento, após<br />
acumular capital mercantil suficientemente grande, retiravam-se para os grandes<br />
centros econômicos sediados, geralmente, no Rio de Janeiro.<br />
Ao compararmos os Familiares estudados aqui com os de outras regiões da<br />
Colônia, percebe-se a mesma tendência de ocupação profissional. Em Minas Gerais,<br />
os homens de negócio eram mais de 76% dentre os 436 Familiares do Santo Ofício<br />
estudados por Aldair Rodrigues e no Rio de Janeiro, dentre os 29 aos quais Daniela<br />
Calainho teve acesso, 23 tinham ocupações com negócios. Mas qual era o interesse<br />
dos homens de negócio na Carta de Familiar do Santo Ofício?<br />
Uma resposta pode ser dada por uma das características deste grupo social.<br />
Esta profissão estava muito ligada ao estigma da presença dos cristãos-novos. O<br />
fato de haver presença cristã-nova entre os comerciantes fazia levantar suspeitas<br />
de heresias dentre quaisquer negociantes. Logo, a Carta de Familiar, por realizar<br />
uma investigação da linhagem do habilitando, afastava a dúvida de raça infecta entre<br />
³¹ POSSAMAI, Paulo César. Op. cit., p. 11.<br />
³² PRADO, Fabrício Pereira. Op. cit., p. 141-142.<br />
421
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
aqueles que a obtinham. Isso pode explicar porque o universo de homens de negócio<br />
é tão grande entre os habilitados a familiar. A outra pode ser encontrada pela posição<br />
social deste grupo profissional. Os homens de negócio eram a elite econômica colonial.<br />
No Regimento Inquisitorial, quando são apresentados os requisitos para se habilitar<br />
familiar, constava que os candidatos deviam ter cabedais suficientes para viverem<br />
abastadamente. Além disso, as custas do processo eram onerosas aos habilitandos,<br />
sendo necessário um depósito em dinheiro para custear as diligências para averiguação<br />
da limpeza de sangue e, logo que habilitados, deviam oferecer doações aos cofres<br />
inquisitoriais.³³ Além disso, os privilégios concedidos aos Familiares do Santo Ofício<br />
pareciam atrair os negociantes: dentre eles a isenção de impostos e o porte de armas.<br />
Para Daniela Calainho, este último vinha a qualificar o ofício dos comerciantes, pois<br />
uma de suas características era a grande movimentação entre as regiões:<br />
O ofício de negociante ou mercador tinha por característica o trânsito constante<br />
por muitos lugares e o contato freqüente com muitas pessoas. O privilégio<br />
do porte de armas aos Familiares era importantíssimo, mediante os perigos que a<br />
atividade comercial envolvia. 34<br />
Ainda segundo Calainho a mobilidade dos homens de negócio pode ter influenciado<br />
o Santo Ofício a recrutar este grupo profissional, pois, devido a sua constante<br />
movimentação pelas capitanias, seria possível um controle de diversas localidades,<br />
observando os desvios e atos suspeitos.<br />
Como foi dito, para se tornar Familiar era necessário possuir cabedais suficientes<br />
para viver abastadamente. Dos familiares aos quais obtive informação de<br />
seus cabedais, no caso 10, metade chegava à quantia de 12 contos de réis. A outra<br />
metade se dividia entre os que tinham até quatro contos de réis – Antônio de Azevedo<br />
e Souza e João Roiz de Carvalho – e os de riqueza até os oito contos de réis –<br />
Antônio Fernandes Pereira, Simão da Silva Guimarães e Pedro de Almeida Cardoso.<br />
Observando-se os cabedais dos Familiares de Minas Gerais e Rio de Janeiro,<br />
tem-se o seguinte: para o caso de Mariana estudado por Aldair Rodrigues, dos 111<br />
familiares, 33 deles tinham fortuna até quatro contos de réis; e no Rio de Janeiro,<br />
segundo Calainho, nove de seus 29 habilitados possuíam riqueza no mesmo patamar<br />
que os mineiros. Logo, ao se realizar uma comparação entre as regiões, percebe-se<br />
uma pequena vantagem nos de Colônia de Sacramento, pois metade estava com<br />
riqueza estimada acima dos quatro contos de réis, igualando-se aos grandes homens<br />
de negócio cariocas.<br />
³³ CALAINHO, Daniela Buono. Agentes da Fé. Op. cit., p. 97.<br />
34 Ibidem, p. 98.<br />
422
Tabela n° 5: Cabedais dos Familiares do Santo Ofício em Colônia de Sacramento<br />
em cruzados<br />
FONTE: KÜHN, F. Gente da fronteira: família, sociedade e poder no sul da América<br />
portuguesa: século XViii. 2006. Tese (Doutorado em História)-UFF, Niterói, 2006, p. 345.<br />
Por fim, resta citar o caso do Familiar do Santo Ofício Pedro de Almeida<br />
Cardoso. Sua habilitação é um caso em que os candidatos possuíam parentesco com<br />
outros agentes inquisitoriais. Nascido em Colônia de Sacramento, e filho de pais que<br />
foram povoar a Praça Mercantil, Pedro fez sua petição ao Conselho Inquisitorial<br />
em 1754. Suas inquirições para atestar a sua limpeza de sangue e capacidade foram<br />
realizadas no Rio de Janeiro pelo comissário Francisco Fernandes Simões, o qual<br />
afirmou os motivos de não as terem feito em Colônia de Sacramento:<br />
Fiz esta diligência nesta Cidade, tanto por não ser fácil a Comissão dela para<br />
a Praça da Colônia, por me não ocorrer sujeito a quem encarregar, não sendo ao<br />
Vigário dela, como por saber haviam (sic) aqui pessoas que podiam depor com conhecimento<br />
e verdade, como as que inquiri, as quais assistiram na mesma terra com<br />
negócio e vieram de próximo, e me persuado juraram verdade, pelas boas notícias<br />
que de antes tinha do habilitando[...] 35<br />
Este poderia ser apenas mais um caso bem sucedido de Habilitação do Santo<br />
Oficio, não fosse uma peculiaridade. Pedro de Almeida Cardoso tinha dois irmãos<br />
eclesiásticos, os quais se habilitaram como Comissários do Santo Ofício: João de<br />
Almeida Cardoso e Joaquim de Almeida Cardoso. No processo de habilitação de<br />
Pedro, há informações acerca da data em que João tenha sido habilitado Comissário:<br />
35 ANTT, HSO, Mç. 31, proc. 551.<br />
423
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
Certifico que [no] livro 16 da criação dos Ministros e oficiais desta Inquisição<br />
de Lisboa, nela a fl. 130 se acha cópia de uma Provisão [...], passada em 11 de abril<br />
deste ano, pela qual consta haverem os ditos senhores criado Comissário do Santo<br />
Ofício desta Inquisição de Lisboa ao Padre João de Almeida Cardoso, Vigário Colado<br />
na Igreja Matriz da Praça da Nova Colônia de Sacramento, bispado do Rio de<br />
Janeiro[...] 36<br />
Esta informação anexada ao processo de Pedro é datada de 1755, ou seja, data<br />
de habilitação de João como Comissário do Santo Ofício. 37 O caso dos Comissários<br />
do Santo Ofício eram outros agentes inquisitoriais que serviam nos locais de sua<br />
residência, porém, ao contrário dos Familiares, deveriam ser do corpo eclesiástico.<br />
Dentre outras atribuições, eram eles que conduziam as inquisições sobre a capacidade<br />
e limpeza de sangue nos Processos de Habilitação dos Familiares. João de<br />
Almeida Cardoso foi o responsável pelas diligências de quase todos os Familiares<br />
do Santo Ofício encontrados em Colônia de Sacramento: João Borges de Freitas<br />
(1747); João Francisco Vianna (1753); Tomé Barbosa (1754); Manuel Lopes Marinho<br />
(1756); Luiza Máxima Sarmento, mulher do Familiar Antônio Fernandes Pereira<br />
(1759); Antônio Ribeiro de Moraes (1768); Bartolomeu Cesário Nogueira (1769) e<br />
Antônio Pereira Gonçalves (1773). Já seu irmão Joaquim não aparece em nenhuma<br />
diligência dos Familiares encontrados em Colônia de Sacramento. Observando-se<br />
as datas das diligências realizadas por João, percebe-se que três delas se deram antes<br />
de sua habilitação como Comissário em 1755. Esse dado é importante para atestar<br />
as relações de reciprocidade entre a Inquisição e as autoridades eclesiásticas locais,<br />
pois mesmo antes de se tornar um agente inquisitorial, João já prestava serviços ao<br />
tribunal lisboeta. 38<br />
É possível deduzir que foi estratégia da família Almeida Cardoso, ingressar<br />
no quadro inquisitorial. No caso dos Irmãos Joaquim e João, por fazerem parte do<br />
corpo eclesiástico, a sua alternativa foi habilitarem-se Comissários do Santo Ofício,<br />
sendo responsáveis pelas diligências e pareceres acerca dos candidatos a Familiar. Já<br />
Pedro, por não ser padre e atuar como homem de negócio, restou-lhe o meio que<br />
lhe cabia, assim como geralmente ocorria aos seus colegas de profissão: habilitar-se<br />
Familiar do Santo Ofício.<br />
36 ANTT, HSO, Mç. 31, proc. 551.<br />
37 Até o momento não foi possível o acesso aos processos de habilitação a Comissários dos Irmãos Cardoso. Porém<br />
se sabe que Joaquim se tornou Comissário em 1769.<br />
38 Sobre a ligação da Inquisição e a estrutura eclesiástica local ver: FEITLER, Bruno. Poder episcopal e ação inquisitorial<br />
no Brasil. In: VAINFAS, Ronaldo, FEITLER, Bruno e LIMA, Lana L. G. (Orgs.). A inquisição em Xeque:<br />
temas, controvérsias e estudos de caso. Rio de Janeiro: Eduerj, 2006.<br />
424
Familiares do Santo Ofício tinham importância para o funcionamento da atividade<br />
inquisitorial. Por circularem na sociedade, exercendo suas atividades profissionais,<br />
serviam de olhos para o Tribunal de Lisboa. Como foi possível identificar,<br />
estes agentes inquisitoriais em tinham origem portuguesa, atuação no ramo mercantil<br />
e cabedais em torno de 12 contos de réis. Estes se assemelhavam com seus colegas<br />
inquisitoriais das outras capitanias da América Portuguesa, em relação a sua profissão<br />
e naturalidade, assim como na sua fortuna. Essas suas características os colocam<br />
como pessoas de destaque entre a sociedade presente em Colônia de Sacramento.<br />
425
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
426<br />
BIBLIOGRAFIA<br />
CALAINHO, Daniela. Agentes de fé: familiares da inquisição portuguesa no<br />
Brasil colonial. Bauru, SP: Edusc, 2006.<br />
FEITLER, Bruno. Poder episcopal e ação inquisitorial no Brasil. IN: VAINFAS,<br />
Ronaldo, FEITLER, Bruno e LIMA, Lana L. G. (Orgs.). A inquisição em Xeque:<br />
temas, controvérsias e estudos de caso. Rio de Janeiro: Eduerj, 2006.<br />
FRAGOSO, João Luís R. Homens de grossa aventura: Acumulação e hierarquia<br />
na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização<br />
Brasileira, 1998.<br />
FRAGOSO, João Luís R. & FLORENTINO, Manolo. O Arcaísmo como Projeto<br />
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.<br />
FRANCO, José Eduardo & ASSUNçÂO, Paulo de. Metamorfoses de um Polvo:<br />
Religião e Política nos Regimentos da inquisição Portuguesa (Séc. XVi-<br />
XiX). Lisboa: Prefácio, 2004, p. 236-287.<br />
GORENSTEIN, Lina. A terceira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil (século<br />
XVII). IN: VAINFAS, Ronaldo, FEITLER, Bruno e LIMA, Lana L. G. (Orgs.). A<br />
inquisição em Xeque: temas, controvérsias e estudos de caso. Rio de Janeiro:<br />
Eduerj, 2006.<br />
KÜHN, Fabio. Gente da fronteira: família, sociedade e poder no sul da América<br />
portuguesa: século XViii. Tese (Doutorado em História)-UFF, Niterói, 2006.<br />
MAXWELL, Kenneth. Marquês do Pombal: o paradoxo do iluminismo. Rio de<br />
Janeiro: Paz e Terra, 1996.<br />
MONTEIRO, Lucas Maximiliano. De frente com o inquisidor: os cristãos-novos e<br />
suas narrativas no Livro das Confissões (Bahia, 1591-1592). IN: Mostra de Pesquisa<br />
do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Anais: Produzindo<br />
história a partir de fontes primárias. Porto Alegre: CORAG, 2009, p. 19- 37.<br />
MOTT, Luiz. Regimentos Inquisitoriais. In: Cadernos de Estudos Baianos, Salvador,<br />
n. 140, 1990.<br />
OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno: honra, mercê e<br />
venalidade em Portugal (1641-1789). Lisboa: Estar Editora, 2001.<br />
PESAVENTO, Fábio. Um pouco antes da Corte: a economia do Rio de Janeiro
na segunda metade do Setecentos. Tese-Universidade Federal Fluminense, Niterói,<br />
2009.<br />
POSSAMAI, Paulo César. O Cotidiano da Guerra: A Vida na Colônia de Sacramento<br />
(1715-1735). Tese (Doutorado) Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.<br />
_________. Aspectos do Cotidiano dos Mercadores na Colônia de Sacramento durante<br />
o Governo de Antônio Pedro de Vasconcelos (1722-1749). Revista ibero-<br />
Americanos. Porto Alegre: PUC-RS, v. XXVIII, n°2, dezembro de 2002, p. 53-73.<br />
RODRIGUES, Aldair Carlos. Sociedade e inquisição em Minas Colonial: os<br />
Familiares do Santo Ofício (1711-1808). Dissertação (Mestrado em História)-<br />
USP. São Paulo, 2007.<br />
TORRES, José Veiga. Da repressão religiosa para a promoção social: a Inquisição<br />
como instância legitimadora da promoção social da burguesia mercantil. In: Revista<br />
Crítica de Ciências Sociais. Coimbra, n. 40, pp. 109-134, outubro de 1994.<br />
FONTES<br />
Arquivo Nacional da Torre do Tombo<br />
Inquisição de Lisboa<br />
Habilitações do Santo Ofício:<br />
Antônio de Azevedo e Sousa (1758, Mç. 129, Proc. 2167)<br />
Antônio Fernandes Pereira (1753, Mç. 117, Proc. 2021)<br />
Antônio Pereira Gonçalves ( 1776, Mç. 188, Proc. 2783)<br />
Antônio Ribeiro de Moras (1768, Mç. 163, Proc. 2546)<br />
Bartolomeu Cesário Nogueira (1772, Mç. 6, Proc. 105)<br />
Brás Batista de Castro (1754, Mç. 4, Proc. 61)<br />
Eusébio de Araújo Faria (1757, Mç. 1, Proc. 11)<br />
João Borges de Freitas (1749, Mç. 91, Proc. 1562)<br />
João da Costa Quintão (1738, Mç. 72, Proc. 1331)<br />
João Francisco Viana (1772, Mç, 153, Proc. 2229)<br />
João Roiz de Carvalho (1758, Mç. 109, Proc. 1776)<br />
Manuel Lopes Marinho (1757, Mç. 169, Proc. 1790)<br />
Pedro de Almeida Cardoso (1755, Mç. 31, Proc. 551)<br />
Silvestre Ferreira da Silva (1741, Mç. 2, Proc. 21)<br />
Simão da Silva Guimarães (1755, Mç. 10, Proc. 158)<br />
Tomé Barbosa (1760, Mç. 5, Proc. 74)<br />
427
VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público<br />
428<br />
ERRATA<br />
GOMES, Luciano Costa; Estrutura etária e de gênero da população cativa e estrutura<br />
de posse de escravos em Porto Alegre, a partir do rol de confessados de 1782. In:<br />
APERS. VII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Porto<br />
Alegre: Corag, 2009. p. 243-262<br />
1) p. 251, tabela 4<br />
Tabela 4 - Distribuição da propriedade de escravos<br />
entre fogos escravistas por faixas de tamanho de plantel*<br />
Referências: SCHWARTZ, 1988, p. 374; LUNA, 1982, p. 38s; e GUTIÉRREZ, 1991, p. 310.<br />
Fonte: Rol de Confessados de Porto Alegre – 1782. AHCMPA<br />
2) p. 255, linha 16: quando se lê “mediana em 463”, o certo é “mediana em 46”.