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Publicação Mensal<br />
Vol. XXVII - Nº <strong>315</strong> Junho de 2024<br />
Discernindo a História<br />
no pulsar do Coração<br />
de Jesus e Maria
Flávio Lourenço<br />
Maria Mãe da<br />
Divina Providência<br />
Igreja de Santa Maria<br />
de Caravaggio, Nápoles<br />
Quintessências de misericórdias<br />
Omais terno, puro, soberano, excelso, sacral e sacrificado dos amores que tenha existido<br />
na Terra, o amor do Filho de Deus pelos homens, foi por Ele comparado ao instinto<br />
animal. Pouco antes de padecer e morrer, chorou Jesus sobre Jerusalém, dizendo:<br />
“Jerusalém, Jerusalém, quantas vezes quis eu reunir os teus filhos como a galinha recolhe<br />
os seus pintainhos debaixo das asas, e tu não o quiseste!”<br />
Para exprimir o extremo do seu amor o Homem-Deus quis compará-lo com o amor materno,<br />
mas nesse grau, nessa forma: uma ave em relação aos seus pintainhos. Ele recorreu a<br />
essa figura para exprimir de modo tocante e nos fazer entender o que há de inesgotável no<br />
amor materno.<br />
Nosso Senhor quis, ademais, que sentíssemos e conhecêssemos na Mãe d’Ele quintessências<br />
de misericórdias que Ele deu a Ela e que, simplesmente na consideração d’Ele, não chegaríamos<br />
a perceber.<br />
(Extraído de artigo na Folha de São Paulo de 18/12/1968 e conferência de 24/10/1981)
Sumário<br />
Publicação Mensal<br />
Vol. XXVII - Nº <strong>315</strong> Junho de 2024<br />
Vol. XXVII - Nº <strong>315</strong> Junho de 2024<br />
Discernindo a História<br />
no pulsar do Coração<br />
de Jesus e Maria<br />
Na capa,<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1983.<br />
Foto: Arquivo <strong>Revista</strong><br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
ISSN - 2595-1599<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
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Exemplar avulso. ....... R$ 25,00<br />
Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
editoraretornarei@gmail.com<br />
Segunda página<br />
2 Quintessências de misericórdias<br />
Editorial<br />
4 Coração dulcíssimo de Jesus,<br />
fonte divina de graças<br />
Piedade pliniana<br />
5 Prece pelo triunfo do<br />
Imaculado Coração de Maria<br />
Dona Lucilia<br />
6 Uma chama acesa no<br />
Sagrado Coração de Jesus<br />
Sagrado Coração de Jesus<br />
10 I - O Modelo perfeito de homem<br />
Sagrado Coração de Jesus<br />
17 II - Recusa culpada ao<br />
Sagrado Coração de Jesus<br />
Sagrado Coração de Jesus<br />
21 III - Uma devoção para o<br />
Reino de Maria<br />
Calendário dos Santos<br />
28 Santos de Junho<br />
Perspectiva pliniana da História<br />
30 O convite de Deus ao Rei Sol:<br />
unir grandeza e doçura na<br />
devoção ao Coração de Jesus<br />
Última página<br />
36 Porta do Céu aberta de<br />
par em par<br />
3
Editorial<br />
Coração dulcíssimo de Jesus,<br />
fonte divina de graças<br />
A<br />
Santa Igreja tem ensinado reiteradas vezes que nenhum fiel, só por suas forças, pode praticar duravelmente<br />
e em sua totalidade os Mandamentos. De onde parece razoável considerar exagerada toda<br />
atitude de muita exatidão no cumprimento da Lei.<br />
Na realidade, a solução do problema se encontra numa outra ordem de ideias. Se é verdade que a fraqueza<br />
da natureza humana é tal que a observância dos Mandamentos é superior a ela, devemos, entretanto, considerar<br />
a infinita misericórdia divina. Não para dela deduzir que Nosso Senhor coonesta o pecado, o crime, Ele<br />
que é a perfeição infinita. A misericórdia de Deus não pode consistir em nos deixar jazendo desamparados em<br />
nossa corrupção, mas em nos tirar dela.<br />
Diante dos cegos, dos coxos, dos leprosos, Ele não Se limitava a sorrir e passar adiante. Ele os curava. Diante<br />
de nossos pecados, sua compaixão não consiste em nos deixar presos, mas em nos tirar deles amorosamente<br />
e nos levar aos ombros. O que esperamos da misericórdia de Deus são os recursos necessários para nos tornarmos<br />
capazes de praticar a lei moral. Temos para isto a graça, que nos foi alcançada pelos méritos infinitos<br />
de Nosso Senhor Jesus Cristo. A graça torna a inteligência do homem capaz do ato de fé. Torna a vontade humana<br />
capaz de uma energia tal, que se lhe faz possível praticar os Mandamentos.<br />
O grande dom de Deus para os homens, insistimos, não consiste em condescender com suas faltas, no sentido<br />
de que, sem censurar, os deixe com displicência mergulhados nelas. O grande dom de Deus consiste em<br />
dar-nos os meios sobrenaturais para evitar o pecado e atingir a santidade. E daí também uma grande responsabilidade<br />
para os que recusem esse dom inestimável.<br />
Símbolo expressivo desse amor misericordioso de Deus, da abundância dos seus perdões e da insistência<br />
com que Ele está constantemente convidando o homem a que se arrependa, a que peça as graças necessárias<br />
para praticar a virtude, a que por meio da oração consiga todos os recursos necessários para a reforma do seu<br />
caráter, é o Sagrado Coração de Jesus.<br />
É, pois, no Sagrado Coração de Jesus que toda verdadeira intransigência tem sua norma e sua explicação.<br />
A bondade não consiste em deixar o pecador na ilusão de que seu estado de alma é satisfatório. Cumpre mostrar<br />
ao ímpio todo o horror de sua impiedade para o demover dela. Cumpre apontar-lhe os cimos da perfeição<br />
para que almeje alcançá-los. O que, tudo, lhe é possível se pedir com perseverança a graça de Deus e com<br />
ela cooperar. Nesta convicção profunda e alegre de que o homem tudo pode com a graça, está a razão da santa<br />
virtude da intransigência cristã.<br />
Toda misericórdia constitui um grande dom. Mas constitui também uma enorme responsabilidade. Posto<br />
que o homem, pela oração e pela fidelidade à virtude, pode e deve praticar os Mandamentos, é bem evidente<br />
que não lhe resta desculpa nenhuma se ele se obstinar no pecado.<br />
As graças jorram superabundantes do Coração dulcíssimo de Jesus. Por isso mesmo, a fórmula do apostolado<br />
eficaz consiste, não em silenciar aos homens sua malícia, mas em convidá-los a se lavarem dela na fonte divina,<br />
onde brotam as torrentes da graça. *<br />
* Cf. Catolicismo n. 62, agosto de 1956.<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
Piedade pliniana<br />
Flávio Lourenço<br />
Nossa Senhora do<br />
Sagrado Coração<br />
Igreja de São Pedro,<br />
Cidade Real, Espanha<br />
Prece pelo triunfo do<br />
Imaculado Coração de Maria<br />
Rainha nossa e Mãe de misericórdia, nós Vos suplicamos do fundo de nossas misérias,<br />
do fundo de nossas dores, que nos concedais a graça de que nossos olhos não<br />
se fechem para esta vida antes que tenhamos visto a vitória, anunciada em Fátima,<br />
de vosso Imaculado Coração, de vossa sagrada mentalidade.<br />
De maneira que essa mentalidade reine sobre cada um de nós, calcados aos pés os nossos<br />
defeitos. Que ela reine sobre os vossos adversários esmagados, destruídos, humilhados. Que<br />
ela reine sobre os vossos filhos regenerados, convertidos, aureolados pela graça do Grand<br />
Retour. De maneira tal que, contemplando o mundo ressurrecto, nós possamos dizer:<br />
“Minha Mãe, realmente vossa promessa se realizou, vosso Imaculado Coração reina. Reina<br />
para o esplendor final e supremo da Santa Igreja, na plena manifestação de toda vossa<br />
beleza, todo vosso poder e toda vossa graça, diante dos católicos que têm para convosco uma<br />
devoção plena.”<br />
De tal sorte, minha Mãe, que quando chegarem os acontecimentos ultimíssimos e vosso<br />
Divino Filho aparecer para julgar os vivos e os mortos, Vós tenhais patenteado aos homens<br />
toda a vossa grandeza e eles Vos tenham venerado com toda a devoção que estava nos desígnios<br />
de Deus que existisse para convosco, no momento em que Ele Vos criou; no momento<br />
em que Ele Vos convidou para sua Esposa; no momento em que Ele Vos confortou no alto<br />
do Calvário; no momento em que Ele colheu a vossa alma expirante; no momento em que<br />
Ele Vos coroou no Céu. Assim seja!<br />
(Composta em 2/7/1975)<br />
5
Luis C. R. Abreu<br />
Dona Lucilia<br />
Tal como uma vela, a vida de<br />
Dona Lucilia foi um contínuo<br />
consumir-se diante do Sagrado<br />
Coração de Jesus. E como<br />
um pavio ávido dessa chama,<br />
era <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> junto a ela.<br />
Em mais de uma oportunidade<br />
tive ocasião de dizer<br />
que mamãe era profundamente<br />
devota do Sagrado Coração<br />
de Jesus. Ela demonstrava essa devoção<br />
em casa pelas orações que fazia,<br />
mas também, e de um modo talvez<br />
mais acentuado, quando ia, aos<br />
domingos, à Igreja do Sagrado Coração<br />
de Jesus.<br />
Haurindo graças do<br />
Sagrado Coração de Jesus<br />
Eu a via envolta naquele ambiente<br />
tão esplêndido e peculiar àquela<br />
igreja, relacionado a fundo com<br />
o Sagrado Coração de Jesus. Ela rezava<br />
diante da imagem d’Ele, que se<br />
encontra na nave ao lado esquerdo.<br />
Essa imagem é expressiva, do esti-<br />
6
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
lo artístico “sulpiciano”; sem embargo<br />
disso, piedosa, muito respeitável.<br />
Minha mãe terminava de assistir à<br />
Missa e se dirigia para lá.<br />
A imagem tinha a intenção de<br />
mostrar o Sagrado Coração de Jesus<br />
como Ele é, ou seja, um símbolo<br />
do amor misericordioso que Nosso<br />
Senhor tem para com as suas criaturas,<br />
em especial para com os católicos.<br />
Ele a fazia sentir esse amor, essa<br />
doçura, essa suavidade. Era uma<br />
graça que ela recebia ali.<br />
Por outro lado, em casa, diante<br />
de uma imagem pequena do Sagrado<br />
Coração de Jesus que havia num<br />
oratório em seu quarto, mamãe rezava<br />
muito também e se entregava<br />
à mesma atitude espiritual. Naquela<br />
sua posição de oração, eu notava<br />
muito que aquilo que ela tinha<br />
de melhor não era dela, era<br />
algo que o Sagrado Coração de Jesus<br />
passava a ela.<br />
Oratório com a imagem do Sagrado Coração<br />
de Jesus pertencente a Dona Lucilia<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Mais ou menos como uma vela<br />
bonita, reta, branca, de bom fabrico,<br />
mas apagada, a qual alguém aproxima<br />
de uma fogueira; o fogo passa da<br />
fogueira para a vela que fica incendiada<br />
por uma chama que vai consumi-la<br />
por inteiro.<br />
Assim também se dá conosco: nós<br />
somos velas e recebemos a chama da<br />
Fogueira das fogueiras, que é o Sagrado<br />
Coração de Jesus, fornalha ardente<br />
de caridade. A caridade é o<br />
amor de Deus e o amor ao próximo<br />
por amor de Deus. Essa “fornalha<br />
ardente de caridade” comunica sua<br />
chama e a vela passa a viver daquilo.<br />
Eu notava que, cada vez mais,<br />
Dona Lucilia ia vivendo do que recebia<br />
do Coração de Jesus a rogos,<br />
é evidente, de Nossa Senhora,<br />
porque tudo o que vem de Jesus<br />
Nosso Senhor passa por Ela. E a vida<br />
de mamãe era queimar-se diante<br />
do Sagrado Coração de Jesus.<br />
7
Dona Lucilia<br />
Por detrás de todas as realidades<br />
havia a Igreja Católica<br />
Eu fazia um raciocínio assim: por<br />
que essa imagem produz esse efeito?<br />
Porque ela exprime um ensinamento<br />
da Igreja a respeito de como é o Coração<br />
de Jesus. Isso foi deduzido dos<br />
Evangelhos, foi escrito, passado em<br />
linguagem corrente. A Igreja fazia<br />
o possível para que esse ensinamento<br />
contagiasse todos os católicos, sua<br />
missão era principalmente essa. Então<br />
a Igreja inspirava a feitura da<br />
imagem, a construção de um edifício<br />
consagrado ao Sagrado Coração de<br />
Jesus e determinava que aquela imagem<br />
fosse exposta ali para a veneração<br />
dos fiéis, significando que ela<br />
queria que os fiéis fossem assim.<br />
Logo, por detrás de todas<br />
essas realidades, havia<br />
uma mais alta: era a Igreja<br />
Católica que queria isso,<br />
mas queria quase como<br />
uma criatura humana quer.<br />
Ela, templo do Espírito<br />
Santo, queria que isto fosse<br />
assim, de um querer inspirado<br />
pelo Espírito Santo.<br />
Tudo isso, com todas as<br />
suas sublimidades, perfeições,<br />
excelências, provinha<br />
da Igreja. E havia nela um<br />
principium vitæ – um princípio<br />
de vida – que é o Divino<br />
Espírito Santo, o próprio<br />
Deus, inspirando tudo<br />
aquilo que os homens que a<br />
dirigiam faziam para levá-<br />
-la à realização de suas sublimíssimas<br />
finalidades.<br />
O conjunto desse ensinamento,<br />
da grei enorme de<br />
fiéis especialmente fiéis ao<br />
Sagrado Coração de Jesus,<br />
formava um só todo com a<br />
Igreja Católica. Eu deveria<br />
amá-la com um amor maior<br />
do que amava minha mãe e<br />
amava as outras pessoas a<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
quem eu queria porque eram devotas<br />
do Sagrado Coração de Jesus. A<br />
Igreja é o princípio de vida superior<br />
a tudo isso.<br />
Como um pavio<br />
ávido pela chama<br />
Em mamãe eu via o espelho do<br />
Sagrado Coração de Jesus e de tudo<br />
quanto essa devoção ensina. Encontrava<br />
nela um reflexo daquilo que eu<br />
contemplava nas imagens do Coração<br />
de Jesus, do que tinha aprendido<br />
na História Sagrada, no Catecismo e,<br />
enfim, nas vidas dos Santos e naquilo<br />
que cercava a minha vida religiosa.<br />
Eu notava muito tudo isso nela e,<br />
por um princípio de coerência, se eu<br />
gostava tanto que essas coisas fossem<br />
assim, eu não podia deixar de gostar<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1995<br />
muito que ela fosse assim. E o fundo<br />
do meu amor a ela era esse. É evidente<br />
que o fato de ela ser minha mãe<br />
colaborava com isso, mas de maneira<br />
muito secundária. O fato fundamental<br />
é que eu a amava mais como filha da<br />
Igreja do que como minha mãe. Essa<br />
influência dela passava para mim, mas<br />
eu era um pavio ávido da chama. Eu<br />
queria essa influência, eu me abria a<br />
ela e, enquanto estava com ela, o mais<br />
que eu podia, eu reforçava essa influência<br />
em mim, na lógica do elemento<br />
primordial que é o grande amor que<br />
eu tinha a Deus Nosso Senhor, à Santa<br />
Igreja e, portanto, a Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo, Homem-Deus, a Nossa Senhora,<br />
ao Divino Espírito Santo.<br />
Perfeição beligerante<br />
Em contato com o mundo moderno,<br />
através do Colégio São<br />
Luís que eu cursava, eu sentia<br />
muito a modernidade<br />
das coisas e todo o mal que<br />
havia nisso. Ela sentia a modernidade,<br />
de algum modo,<br />
no ambiente geral onde ela<br />
e toda a cidade de São Paulo<br />
estavam imersos. Mas ela<br />
não chegava a compreender,<br />
no começo, toda a malícia<br />
disso. E não compreendia,<br />
portanto, o caráter militante<br />
que eu tinha como católico.<br />
Ela achava bom, mas<br />
não percebia até que ponto<br />
esse aspecto deveria ser predominante<br />
para quem estava<br />
chamado a viver no tempo<br />
em que eu vivi sem ela e<br />
não no tempo em que nós<br />
vivíamos juntos.<br />
Por exemplo, das abominações<br />
de nossos dias, ela<br />
não chegou a ter conhecimento.<br />
De modo vago, de<br />
conjunto, uma certa noção<br />
sim, mas a ideia propriamente<br />
não. O que também se devia,<br />
em parte, ao seu feitio<br />
de espírito: muito comedido,<br />
8
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Prédio do Colégio São Luís em fins de 1910. Em destaque, <strong>Plinio</strong> aos 4 anos.<br />
moderado eu não diria,<br />
mas prudente, e<br />
no qual as realidades<br />
apareciam com matizes<br />
muito delicados. É também próprio<br />
ao ser feminino. E em mim, pelo<br />
contrário, as realidades apareciam,<br />
desde logo, com cores fortes.<br />
Eu só julgava que uma determinada<br />
realidade tinha sido bem compreendida<br />
por mim quando eu compreendia<br />
por inteiro o que ela<br />
tinha de bom, no que ela estava<br />
oposta ao mal que em nossa<br />
época circulava a respeito disso.<br />
Era a Revolução e a Contra-<br />
-Revolução que, em menino, pela<br />
bondade de Nossa Senhora,<br />
meu espírito ia tecendo, sem perceber<br />
o que fazia. Então, vontades<br />
de destruir, entenda-se bem,<br />
não de destruir pelo destruir; era<br />
a vontade de destruir aquilo que<br />
destrói.<br />
É mais ou menos como uma<br />
pessoa que vê uma casa antiga,<br />
boa, mas toda carcomida de cupim<br />
e percebe que ele, de um modo<br />
inevitável, vai contagiar e destruir<br />
todas as outras casas do bairro.<br />
A pessoa que perceba isso quer<br />
a destruição da casa que é o foco dos<br />
cupins. Não é pelo gosto de destruir,<br />
mas é porque naquela casa está um<br />
princípio, um elemento ativo de destruição<br />
que vai liquidar, e contra isso<br />
eu me erguia indignado.<br />
Com mamãe eu me abria por inteiro,<br />
falava de Cruzada… de quanta<br />
coisa! Ela aprovava, mas não chegava<br />
a compreender até que ponto<br />
aquilo devia ser daquele jeito. Ela<br />
não teria contra isso uma objeção,<br />
mas uma zona de admiração<br />
menor.<br />
Foi com o curso do tempo<br />
e vendo, por exemplo, as<br />
abominações que faziam os<br />
comunistas, depois, durante<br />
a Segunda Grande Guerra,<br />
os nazistas, que ela foi<br />
compreendendo a imensidade<br />
de maldade que tinha entrado<br />
por toda parte, além da<br />
“hollywoodização”.<br />
Muito cedo surgiu na minha<br />
alma uma lamentação:<br />
a Igreja do Coração de Jesus<br />
estaria perfeita, mas nela<br />
faltava alguma coisa para<br />
ser inteiramente de meu<br />
gosto. Essa alguma coisa<br />
era, por exemplo, uma bela<br />
alabarda atada com uma fita bonita<br />
e varonil – nada de fita de cabelo<br />
de menina – junto a cada confessionário.<br />
Isso, com o tempo, Dona Lucilia<br />
foi compreendendo. v<br />
Revolução de 1917 - Museu de História Política Russa, São Petersburgo<br />
(Extraído de conferência de<br />
4/1/1995)<br />
Vicente Torres<br />
9
Sagrado Coração de Jesus<br />
I<br />
O Modelo perfeito<br />
de homem<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo é insondável e<br />
superior a toda compreensão. Entretanto,<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> discernia numa imagem do<br />
Sagrado Coração de Jesus a plenitude<br />
da harmonia de tudo quanto há dentro<br />
de uma alma humana, com mais algo<br />
de divino, e chegava à conclusão de que<br />
Ele é o arquétipo de toda dignidade.<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
10<br />
Desde que me lembro de<br />
mim na Igreja do Sagrado<br />
Coração de Jesus, nos<br />
meus primeiros enlevos – eu era tão<br />
pequenino que isso se perde na noite<br />
dos tempos... deveria ter quatro,<br />
cinco ou seis anos –, a piedade católica<br />
se apresentou para mim envolta<br />
em graças místicas, à maneira de “flashes”.<br />
Mas “flashosa” no seguinte sentido:<br />
como sendo um ambiente que<br />
correspondia por inteiro às aspirações<br />
que minha alma tinha de convívio e de<br />
contato com ambientes e com outras<br />
almas que me dessem uma elevação<br />
tão grande, que o olhar humano quase<br />
não chega a medir até o fim.<br />
Elevação de alma, de sentimento,<br />
de maneiras, de grandeza, e esta<br />
não entendida à Luís XIV, mas de<br />
uma grandeza que encontro representada<br />
na jaculatória da Ladainha<br />
do Sagrado Coração de Jesus: Cor<br />
Iesu, maiestatis infinitæ, miserere no-<br />
Imagem do Sagrado Coração de Jesus<br />
que Dona Lucilia ganhou de seu pai<br />
Arquivo <strong>Revista</strong>
is. Ou seja, imaginando no Coração<br />
d’Ele, mas tomando a palavra “coração”<br />
não só como o órgão físico,<br />
mas também como a mentalidade e,<br />
portanto, a santidade d’Ele infinitamente<br />
majestosa, de tal maneira alta,<br />
que o espírito humano não chega<br />
a ver bem como é, superando todas<br />
as majestades concebíveis.<br />
Arquetipizando uma imagem<br />
do Sagrado Coração de Jesus<br />
Como eu via Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo, como era meu amor a Ele e<br />
que papel Ele teve na formação do<br />
meu espírito?<br />
Ele me era apresentado por imagens<br />
diferentes, mas muito coerentes<br />
entre si. Uma delas encontra-se<br />
no oratório que existe no quarto de<br />
mamãe, presente de seu pai quando<br />
ainda era solteira. Minha mãe prezava<br />
muito essa imagem. Pode-se dizer<br />
até que era o analogado primário de<br />
todas as devoções dela.<br />
Eu punha na minha cabeça a ideia<br />
de criança de que Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo era como aquela imagem,<br />
sem tirar nem pôr. Portanto, se eu<br />
quisesse fazer uma ideia d’Ele, eu<br />
deveria certificar-me de que Ele era<br />
como estava concebido ali, e que a<br />
mentalidade d’Ele era a representada<br />
naquela imagem.<br />
Por uma coincidência feliz, eu também<br />
tinha com frequência diante dos<br />
olhos duas representações do Sagrado<br />
Coração de Jesus existentes no santuário<br />
a Ele dedicado, no Bairro Campos<br />
Elíseos, e para as quais eu olhava<br />
muito durante a Missa. Uma delas fica<br />
na nave do lado do Evangelho, à esquerda<br />
de quem olha para o altar.<br />
Eu via que o artista tivera a intenção<br />
de fazer algo melhor do que estava<br />
lá, o que representava o suco da<br />
expressão da imagem. E que a Igreja,<br />
consentindo em apresentar essa<br />
imagem à minha veneração, tomava<br />
isso em conta e credenciava o Coração<br />
de Jesus para que eu a considerasse<br />
como o artista<br />
tinha querido fazê-la e<br />
não como ele a fizera.<br />
Eu olhava e pensava:<br />
“Eu sei bem que isso<br />
é uma imagem, não um<br />
homem. Mas essa gente<br />
que montou esta igreja<br />
quer que Deus seja visto<br />
assim. Por isso eles compraram<br />
uma imagem que<br />
exprime isso. Ora, como<br />
é verdade que Deus deve<br />
ser visto assim! Como<br />
está certo! Deus visto assim<br />
é completo!”<br />
Por esse movimento<br />
da lógica e do espírito<br />
eu dava importância<br />
à imagem. Só mais tarde,<br />
na verdade há pouco<br />
tempo, percebi que<br />
eu arquetipizava aquela<br />
representação, porque<br />
eu imaginava uma<br />
imagem ideal do Sagrado<br />
Coração de Jesus,<br />
e como essa tinha uma certa analogia<br />
com a ideal, saltavam muito aos<br />
meus olhos as analogias e não os desacordos.<br />
De onde eu quase que só a<br />
via pelos lados das analogias. Numa<br />
atitude de respeito, de adoração, eu<br />
fazia esse jogo de espírito.<br />
Eu não via senão a imagem material.<br />
Tenho toda a certeza de que não<br />
tive nenhuma visão ou aparição. Entretanto,<br />
até hoje me parece ver algo<br />
do que eu via outrora. É uma coisa<br />
curiosa, mas parece-me discernir<br />
na imagem a plenitude da harmonia,<br />
no mais alto grau, de tudo quanto há<br />
dentro de uma alma humana, mais alguma<br />
coisa que é divina. Reconheço<br />
bem que uma pessoa que não tenha<br />
tido uma graça não veja isso. É como<br />
se eu olhasse para uma pessoa e de repente<br />
visse o espírito dela. Ainda hoje,<br />
olhando para essa imagem, tenho esse<br />
discernimento e me sinto ainda tocado,<br />
consolado naquela linha da infância.<br />
Sem dúvida, é uma graça.<br />
Imagem do Sagrado Coração de Jesus venerada<br />
no Santuário a Ele dedicado, em São Paulo<br />
Plenitude da harmonia<br />
e da perfeição<br />
Além dela, há pintada no teto da<br />
igreja uma aparição de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo a Santa Margarida Maria<br />
Alacoque, na qual Ele lhe apresenta<br />
seu Sagrado Coração. Ao lado há a<br />
frase: “Eis o Coração que tanto amou<br />
os homens.” De fato, essa pintura<br />
tem alguma coisa em comum com a<br />
imagem que está no quarto de Dona<br />
Lucilia. De maneira que isso consolidava<br />
em meu espírito a ideia de que<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo tinha sido<br />
exatamente como estava representado<br />
no oratório de mamãe.<br />
Nas duas imagens e na pintura, eu<br />
notava uma grande e serena seriedade,<br />
doce, afável, mas que na sua lógica<br />
chegava às últimas consequências.<br />
Eu via também nelas uma harmonia<br />
perfeita e admirável com tudo quanto<br />
o Evangelho contava que Ele fazia<br />
e dizia.<br />
J.P.Ramos<br />
11
Sagrado Coração de Jesus<br />
Essas representações, sobretudo<br />
a que mamãe possuía, pareciam<br />
tornar patente aos meus<br />
olhos uma certeza, uma firmeza...<br />
Nosso Senhor está tão bem-<br />
-posto sobre os próprios pés, tão<br />
ereto; o busto, o porte d’Ele tão<br />
varonis representam a perfeição<br />
da varonilidade. Seu semblante<br />
tão sério, próprio a quem pensa<br />
tudo seriamente para ver a realidade<br />
das coisas, revela um intelecto<br />
em extremo capaz de pensar,<br />
de adquirir a verdade pelo<br />
uso bem feito de uma inteligência<br />
sublimíssima; uma amplitude<br />
das grandes visões do universo,<br />
enfim, de tudo quanto existe;<br />
convicções inabaláveis, iguais<br />
à evidência. N’Ele se apresentavam,<br />
num reluzimento perfeito e<br />
reversível, o esplendor do raciocínio<br />
e a perfeição da intuição.<br />
Também uma vontade boníssima,<br />
dulcíssima, mas inquebrantável.<br />
O que Ele queria, fazia.<br />
Queria porque devia querer<br />
e nunca deixaria de querer.<br />
Seu ato de vontade é eterno.<br />
Portanto, uma pessoa sem<br />
manias, sem caprichos; nem<br />
vem à imaginação a ideia de capricho!<br />
Tudo é razoável, sério, sereno.<br />
E também sem nenhum maquiavelismo.<br />
Diz o que tem a dizer. “Seja<br />
a vossa linguagem sim-sim, não-não”<br />
(Mt 5,37). O que está no espírito, na<br />
mente d’Ele, Ele diz.<br />
Luis C. R. Abreu<br />
Um verdadeiro Rei e Mestre<br />
Os cabelos d’Ele caem ao longo da<br />
cabeça e sobre os ombros de um modo<br />
tão manso e liso, em uma ordem tão<br />
perfeita, tão impecável, mas ao mesmo<br />
tempo tão suave, acolhedora e afável,<br />
por onde não há um fio de cabelo que<br />
não esteja bem-posto. Ao dividir a cabeça<br />
em duas partes, parecem marcar<br />
uma simetria universal, segundo a qual<br />
tudo pode ser considerado sob dois aspectos<br />
distintos, mas afins, e que constituem<br />
uma harmonia superior.<br />
Aparição de Nosso Senhor Jesus Cristo a Santa<br />
Margarida Maria Alacoque - Santuário do<br />
Sagrado Coração de Jesus, São Paulo<br />
Tudo num plano tão alto, tão extraordinário,<br />
que Ele aparece ao<br />
mesmo tempo como um verdadeiro<br />
Rei e como um Mestre. Muitas vezes<br />
eu refleti nisso: houve muita gente<br />
que frequentou na Terra ambientes<br />
mais distintos do que aqueles em<br />
que Nosso Senhor esteve. Mas distinção<br />
é a d’Ele! Todos são uns perequetés<br />
em comparação com Ele,<br />
somem, desintegram-se por completo!<br />
Ele me parecia o próprio símbolo<br />
da dignidade, da gravidade, da seriedade.<br />
Muito distinto, muito fino,<br />
nobre, régio, não régio porque tem<br />
o hábito de mandar nem porque os<br />
outros reconhecem nele o direito de<br />
mando, mas régio por essência. Por<br />
ser rei na sua essência e independente<br />
do que os outros achem ou não<br />
achem, queiram ou não queiram,<br />
Ele é rei por excelência.<br />
Também o Mestre por excelência<br />
é Ele, que ensina uma verdade<br />
perfeita, total, a respeito da<br />
qual não há nada a objetar, mas<br />
somente dizer-Lhe, com um entusiasmo<br />
recolhido, afável e persuadido:<br />
“Sim, adoro Te!”<br />
Ao lado de tudo isso que representa<br />
o fator força, varonilidade,<br />
seriedade, decisão, eu via<br />
algo de um sorriso, com tanta<br />
doçura, tanta harmonia interna<br />
n’Ele e externa d’Ele com tudo o<br />
que existe, um modo tão bondoso<br />
de tomar todas as coisas, que<br />
se fica sem saber o que dizer.<br />
Uma bondade insondável, que<br />
levava sua condescendência para<br />
comigo a um grau inimaginável.<br />
Na bondade exatamente o que<br />
encanta é que ela seja insondável.<br />
Porque uma bondade que tem limite…<br />
No começo da caminhada<br />
dentro das luzes dessa bondade,<br />
encontramos “sim, sim, sim...”<br />
Mas chega um determinado momento<br />
em que sabemos que vamos<br />
encontrar um “não”.<br />
Ora, o desejo do coração humano<br />
é de uma bondade que não<br />
tenha “não”. Sem o auxílio da graça isso<br />
é impossível num homem. Mas, com<br />
o auxílio da graça, é possível. Os Santos<br />
foram assim, sobretudo Nossa Senhora.<br />
Pois bem, infinitamente acima<br />
d’Ela está Ele. Nosso Senhor é o arquétipo<br />
da mansidão, a perfeição da<br />
doçura, da suavidade; e sumamente<br />
atraente, afável também. Ele nos<br />
ama de um amor sereno, que nos envolve<br />
e nos penetra por inteiro, que<br />
faz todo o bem cabível.<br />
Inimigo inexorável dos defeitos,<br />
mas de uma bondade<br />
requintada e cheia de perdão<br />
Digno a mais não poder, mas disposto<br />
a ouvir, inclusive qualquer<br />
ofensa, com bondade, desde que haja<br />
12
uma vantagem para as almas ou para<br />
a glória do Padre Eterno. É o que<br />
tão bem simboliza a figura do pelicano<br />
que fere o próprio peito para alimentar<br />
seus filhotes. É uma imagem<br />
do Sagrado Coração de Jesus.<br />
Entretanto, eu compreendia ser<br />
Ele bastante firme para não ter, por<br />
causa dessa bondade, nenhuma forma<br />
de condescendência mole que<br />
implicasse em qualquer grau de pacto<br />
com um defeito meu. Pelo contrário,<br />
era um inimigo inexorável dos<br />
meus defeitos e teria horror a qualquer<br />
perturbação na ordem que Ele<br />
criou. Porém, com um amor – porque<br />
é amor – muito cheio de intransigência<br />
porque cheio de ordem, mas<br />
também cheio de perdão. Então, é<br />
Nosso Senhor esbofeteado, flagelado,<br />
tratado como sabemos e<br />
não perdendo a paciência nenhuma<br />
vez. Bondoso, patiens<br />
et multæ misericordiæ: paciente,<br />
quer dizer, capaz de sofrer,<br />
e de muita misericórdia.<br />
O apelo ao coração para exprimir<br />
essa bondade requintava<br />
essa ideia ainda mais, pois o que<br />
o homem tem simbolicamente<br />
de mais sensível, mais delicado,<br />
o que exprime melhor tudo<br />
quanto na alma dele não é brutalidade<br />
e egoísmo, é o coração.<br />
Ademais, por uma particularidade<br />
minha, pois sou muito<br />
sensível a cores, a cor com que<br />
era pintado o Coração de Nosso<br />
Senhor era de um certo tom de<br />
vermelho que me parecia exprimir<br />
muito bem esses conceitos.<br />
Eu não era capaz de explicitar,<br />
mas o que estava na minha<br />
cabeça, com muita força, era<br />
que quem reunia virtudes tão diversas<br />
com um tão alto grau de<br />
perfeição não poderia deixar de<br />
ser Deus. Porque está acima das<br />
condições humanas reunir virtudes<br />
não contraditórias, pois nunca<br />
há contradição entre virtudes<br />
verdadeiras, mas virtudes tão<br />
diversas, e reuni-las de um modo tão<br />
profundamente harmônico...<br />
Isso me agradava sobremaneira,<br />
porque eu percebia haver aí uma<br />
perfeição extraordinária e que o modelo<br />
perfeito do homem é assim. No<br />
fundo, tudo capitulado pela majestade<br />
divina, que é, debaixo de certo<br />
ponto de vista – embora a expressão<br />
não seja apropriada – a qualité maîtresse<br />
que ordena tudo isso.<br />
Adoração sem limites<br />
ao Homem-Deus<br />
Jesus pregando aos discípulos - Igreja de<br />
Santa Marta, Sarasota, Estados Unidos<br />
Daí minha admiração sem limites,<br />
cujo nome é adoração, e reconhecimento<br />
de que Ele é Homem-<br />
-Deus! Em primeiro lugar existiu assim,<br />
porque com essa perfeição ninguém<br />
inventaria. E é Homem-Deus<br />
porque, se o artista quisesse representar<br />
um Homem-Deus conceberia<br />
esse. É, portanto, o Homem-Deus,<br />
não tem conversa! Um ser humano<br />
não inventa uma figura como essa.<br />
Contemplando o feitio do rosto<br />
d’Ele, eu pensava: “Olhe a fisionomia<br />
d’Ele! Como Ele é bonito! Isso é que<br />
é beleza! Bonito que ouço falar por aí<br />
é doce de confeitaria, não vale nada!<br />
Ele tem beleza! Se um dia eu quisesse<br />
analisar a ideia de beleza, eu viria aqui<br />
olhar para o semblante d’Ele, porque<br />
bonito é só Ele. Esse é o padrão. É um<br />
bonito mais de alma do que de corpo.<br />
Mas que corpo! E, por detrás desse<br />
corpo, que alma! Que maravilha!”<br />
Cheguei a manifestar a hipótese<br />
de todas as regras da estética do universo<br />
estarem contidas no rosto<br />
de Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
A expressão da fisionomia é<br />
muito serena, muito compassiva<br />
e um tanto entristecida, com<br />
um sorriso ligeiramente triste, fitando<br />
a pessoa ajoelhada diante<br />
d’Ele, com uma leve inclinação<br />
para frente, como quem está<br />
com vontade de se dirigir ao<br />
fiel, imensamente convidativo,<br />
acenando com o Coração, que<br />
toca com a mão, e fazendo uma<br />
pergunta muda, um pouco como<br />
quem diz: “Você não quer um<br />
lugar aqui dentro para si? Você<br />
não me aceita? Olhe que tesouro!<br />
Isto é para você!”<br />
O rosto era o “vidro” através<br />
do qual eu via todo o resto:<br />
uma beleza de alma, um modo<br />
de ser extraordinário, de uma<br />
harmonia inimaginável.<br />
Angelo D. F.<br />
Amando cada coisa em<br />
sua devida proporção<br />
O trato de Nosso Senhor<br />
com os elementos da natureza<br />
era de uma superioridade, uma<br />
coisa extraordinária! Por exemplo,<br />
venti et mares obœdiunt ei<br />
13
Sagrado Coração de Jesus<br />
Luis C. R. Abreu<br />
(Mt 8, 27). Quando Ele aplacou aquela<br />
tempestade no Lago de Genezaré<br />
foi por uma ordem. Ele deu ordem<br />
aos ventos e às águas que se aplacassem,<br />
e diante desse ato imperativo o<br />
vento e os mares obedeceram.<br />
Era o domínio absoluto, com o direito<br />
e o poder de dominar, ordenando<br />
tudo segundo essa elevação de<br />
que falei; ao mesmo tempo, seguro<br />
de Si e, por causa disso, infinitamente<br />
sereno. E porque ordenando tudo<br />
segundo uma ordem que é o reflexo<br />
de Si próprio, amando cada coisa na<br />
proporção e na medida que lhe são<br />
próprias; e sendo amado também na<br />
medida e na proporção que Lhe são<br />
próprias.<br />
Então, no trato com a natureza,<br />
como também com os homens, aparece<br />
n’Ele um outro lado: uma suavidade<br />
e uma doçura extraordinárias!<br />
Uma doçura infinita em fazer o<br />
seu amor repousar sobre tudo quanto<br />
existe, com uma torrencialidade que<br />
até desconcerta, abarcando até o passarinho<br />
ou o fio de cabelo que<br />
caem e que ninguém nota –<br />
nem quem está junto da árvore<br />
de onde cai o passarinho,<br />
nem o dono do fio de cabelo<br />
–, mas que Ele conhece e ama<br />
como aquilo deve ser amado.<br />
Quando Ele fala, por<br />
exemplo da ovelha tresmalhada<br />
que se perdeu num<br />
carrascal e foi resgatada pelo<br />
bom pastor, entra tanto<br />
conhecimento do que há de<br />
suave, de doce, de débil e,<br />
portanto, próprio a ser benquisto<br />
na ovelha; ela, por ser<br />
frágil, é desejosa de se fundir<br />
em respeito, em veneração,<br />
em afeto por aquele que<br />
a pegou e a pôs nos ombros,<br />
que se vê que a própria imagem<br />
de uma ovelha, a qual<br />
teríamos como um bicho que<br />
vimos num campo, se transforma.<br />
Nosso Senhor eleva a<br />
dignidade da ovelha a um nível<br />
extraordinário pelo carinho com<br />
que Se refere a ela. Mesmo uma boa<br />
mãe não fala do seu filho como Ele<br />
falou da ovelha.<br />
E a ovelha passa a tomar a vida<br />
de um símbolo de certas disposições<br />
da alma humana, suaves, doces,<br />
as quais, em confronto com as disposições<br />
fortes, percebe-se que entre<br />
uma e outra linha de disposições<br />
existe uma diferença profunda, mas<br />
uma afinidade tão grande, que mal<br />
sabemos exprimir, pois é superior ao<br />
próprio vocabulário humano. Quem<br />
ouviu contar a parábola da ovelha<br />
tresmalhada, se procurar se lembrar,<br />
verá que isso que estou tentando<br />
descrever, sua alma apreendeu<br />
com vivacidade; mas alguma coisa<br />
lhe diz: “A felicidade está com Ele;<br />
acerta na escolha do caminho da vida<br />
quem se põe afim com Ele, porque<br />
recebe essa bondade. Ele tem o<br />
poder de dar aquilo que o seu afeto<br />
promete. E Ele não mente, dá de<br />
qualquer jeito, custe o que custar.”<br />
Proteção sobre tudo<br />
quanto é fraco e débil<br />
Há outras coisas desse gênero. Por<br />
exemplo, quando Nosso Senhor diz:<br />
“Olhai os lírios do campo...” (Lc 12,<br />
27). Parece uma canção! Uma frase<br />
simples, mas parece trazer algo do<br />
próprio timbre de voz d’Ele. Que coisa<br />
extraordinária!<br />
Se eu for num campo e encontrar<br />
um lírio, é o miserável lírio que o miserável<br />
<strong>Plinio</strong> Corrêa de Oliveira viu.<br />
Jesus viu um lírio do campo, o olhar<br />
d’Ele pousou ali, aquele lírio ficou<br />
valendo mais do que um sol porque<br />
Ele olhou. Quando Ele fala do lírio<br />
do campo é uma promoção maior do<br />
que promover um homem a príncipe.<br />
O lírio do campo aparece numa pureza,<br />
numa suavidade, numa dignidade!<br />
Tudo quanto é virginal, cândido,<br />
inocente aparece tão digno de respeito<br />
e de proteção, que se teria vontade<br />
de fazer uma Cruzada só para proteger<br />
os lírios do campo contra os maometanos,<br />
de tal maneira essa<br />
palavra do Divino Mestre penetra<br />
com profundidade dentro<br />
do espírito; pelo menos foi<br />
o que se deu comigo.<br />
A sabedoria que vai neste<br />
pensamento: “...não tecem<br />
nem fiam...” Ou seja, não fazem<br />
qualquer espécie de trabalho,<br />
mas o Pai Celeste cuida<br />
deles. Há nisso um tal desprezo<br />
pela procura das coisas<br />
da vida com excesso, como<br />
quem diz: “O Pai Celeste cuida<br />
de você. Por que você está<br />
se atormentando tanto assim?<br />
Tranquilize-se, deixe essa febricitação.<br />
Olhe para os lírios<br />
do campo; não teça nem fie,<br />
confie n’Ele, confie em Nossa<br />
Senhora, que você terá o que<br />
precisa. Não esteja correndo.<br />
Sobretudo, não procure ser<br />
um businessman, nem o admire.<br />
Este é o erro. Seja como o<br />
lírio do campo.”<br />
14
Essa proteção sobre tudo<br />
quanto é fraco, débil, vinda<br />
d’Aquele que há pouco fizera<br />
aplacar as tempestades,<br />
revela tal plenitude que eu<br />
não saberia dizer quanto isso<br />
me agrada.<br />
Outra passagem do Evangelho<br />
que sempre me impressionou<br />
muito são as palavras<br />
de Nosso Senhor sobre<br />
Jerusalém, quando caminhava<br />
rumo a essa cidade<br />
antes de começar sua Paixão,<br />
e nas quais Ele dizia: “Jerusalém,<br />
Jerusalém... quantas<br />
vezes Eu quis te reunir junto<br />
a Mim como a galinha reúne<br />
os seus pintainhos...” (cf.<br />
Mt 23, 37). No meu espírito,<br />
esse episódio forma um todo<br />
de harmonias mais ou menos<br />
insondável, com outras duas<br />
passagens: uma foi quando,<br />
passando diante do Templo,<br />
os Apóstolos começaram a<br />
achá-lo muito bonito (cf. Lc<br />
21, 5-6); outra, quando Jesus,<br />
vendo aquele panorama,<br />
chorou sobre Jerusalém (cf.<br />
Lc 19, 41-44).<br />
Ora, a comparação mais desigual<br />
que se possa imaginar é esta entre a figura<br />
de que estou falando e uma galinha.<br />
Um ser tão superior como Ele<br />
comparar-Se com uma galinha seria ridículo.<br />
Eu chego a dizer mesmo que,<br />
para um espírito desavisado, poderia<br />
parecer uma blasfêmia. Entretanto,<br />
n’Ele não. Ele empregou essa metáfora<br />
de tal maneira que fica tocante, enobrece,<br />
fica-se sem saber o que dizer.<br />
É muito bonito ver a elevação<br />
do pensamento d’Ele ao olhar para<br />
a galinha. É alguma coisa da alma<br />
d’Ele, eu quase ousaria dizer da vida<br />
interior d’Ele que transparece.<br />
Um de nós olha para a galinha,<br />
tem um desprezo natural e antipatiza.<br />
Mas Ele, olhando a galinha e vendo-a<br />
pôr os pintainhos sob as asas,<br />
que riquezas de maravilhas Ele traz<br />
O Bom Pastor - Convento da Imaculada<br />
Conceição, Torrijos, Espanha<br />
à tona! Isso indica o diapasão habitual<br />
do pensamento d’Ele.<br />
Dois aspectos da personalidade<br />
de Nosso Senhor<br />
É precisamente como eu achava<br />
que o arquétipo do homem deveria<br />
ser, mas como eu nunca seria capaz<br />
de imaginar. É sabendo como Ele foi<br />
que chego a compreender e, assim<br />
mesmo, de modo incompleto, porque<br />
Ele é insondável, superior a toda<br />
compreensão.<br />
É a harmonia, a delicadeza, a suavidade<br />
que têm uma ligação profunda<br />
com a força. A força assegura à delicadeza<br />
as condições de existência e<br />
permite-lhe ser delicada, porque ela é<br />
forte. Não é um jogo de palavras nem<br />
de retórica, mas na realidade as coisas<br />
são assim.<br />
Então vem ao espírito a<br />
profunda interpenetração dos<br />
dois aspectos da personalidade<br />
de Nosso Senhor que dão<br />
numa espécie de serenidade<br />
plácida, mas muito profunda.<br />
Tudo aquilo de que Ele tratava<br />
era considerado com essa<br />
profunda seriedade. Se refizermos<br />
um pouco o caminho<br />
desta exposição, considerando<br />
como Ele olhava para<br />
os lírios do campo, para uma<br />
tempestade que ameaçava devorá-Lo,<br />
para a ovelha, para a<br />
galinha, enfim, para tudo, vemos<br />
que as metáforas d’Ele<br />
mostram com que imensa profundidade<br />
Ele olhava para todas<br />
as coisas e qual era a altura<br />
transcendental de cima<br />
da qual Ele as considerava. É<br />
a Sabedoria Encarnada que,<br />
olhando o objeto, ressalta e<br />
faz ver a luz que há nele.<br />
Isso supõe uma infinita<br />
seriedade, cheia de força, de<br />
doçura, de estabilidade, de<br />
considerações, que até assustam<br />
um tanto, porque as promessas<br />
de felicidade que essa seriedade<br />
traz são tão grandes, que são<br />
um pouco desmedidas para os nossos<br />
anseios de felicidade. Mas também<br />
as ameaças de castigo tão tonitruantes,<br />
que são meio desmedidas<br />
para a nossa mísera fome de justiça.<br />
De maneira que tudo parece de uma<br />
medida desajustada para nós.<br />
Entretanto, devemos procurar ter<br />
esse espírito sendo bastante sérios,<br />
profundos e grandes, para estarmos<br />
proporcionados com isso. É como<br />
passar dos vermes às estrelas.<br />
Flávio Lourenço<br />
Sublimidade que convida<br />
a cogitar outras realidades<br />
na ordem do universo<br />
Com esta exposição, compreendemos<br />
melhor qual é o mundo de maravilhas<br />
que quereríamos, que nos daria<br />
15
Sagrado Coração de Jesus<br />
Blackburn, Jemima (CC3.0)<br />
uma alegria e uma felicidade de um<br />
gênero especial; não são as que os entusiastas<br />
dos vermes gostam, mas das<br />
que gostam os entusiastas das estrelas.<br />
É um outro mundo para o qual fomos<br />
feitos, no ápice do qual está, evidentemente,<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
Essa situação confere a tudo quanto<br />
é d’Ele e de Nossa Senhora uma<br />
sublimidade que, quando não se está<br />
bem adestrado a essa ordem de<br />
ideias, tem-se dificuldade em medir.<br />
Porém, através dessa sublimidade,<br />
quem visse e adorasse Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo ficaria em condições de<br />
perceber uma porção de outras realidades<br />
na ordem do universo.<br />
Eu prestava atenção nessas coisas<br />
e isso tudo me enlevava muito. Era<br />
assim que eu via e vejo o Sagrado<br />
Coração de Jesus.<br />
Em vista disso, sou levado a procurar<br />
nos seres com que tenho contato<br />
o por onde podem ser ordenáveis<br />
para o Sagrado Coração de Jesus ou<br />
no que constitui a “Cor-Iesucidade”<br />
de cada criatura, desejando ver tudo<br />
desse modo e não sossegando a não<br />
ser na medida em que cada coisa seja<br />
assim, encontrando nisso o repouso<br />
de minha alma e de meus nervos.<br />
Porque, querendo isso, a pessoa não<br />
fica nervosa. Ainda que possa passar<br />
pelas contrariedades que forem, neste<br />
ponto está tudo em ordem e ela repousa<br />
no Sagrado Coração de Jesus.<br />
Daí se torna possível a sensibilidade<br />
humana expandir-se em todas as<br />
suas formas retas e nobres,<br />
de maneira caudalosa,<br />
torrencial, abrindo-se<br />
a toda espécie de variedades<br />
musicais,<br />
pictóricas, etc.,<br />
contanto que não<br />
entre desordem,<br />
todas elas não só<br />
resignadas a estar<br />
dentro disso, mas fazendo<br />
da apetência plena<br />
disso a fonte da sua originalidade<br />
boa.<br />
Seria como participar de uma<br />
grande orquestra, aberta a todos os<br />
instrumentos possíveis, mas dentro<br />
de uma certa harmonia, e que toca<br />
melodias sempre novas, as quais são<br />
uma glosa original da primeira partitura<br />
que, no Sagrado Coração de Jesus,<br />
é a majestade sacral, misericordiosa,<br />
onde tudo está contido.<br />
Amá-Lo com um<br />
amor sem medidas<br />
Aí está o fundo de minha mentalidade<br />
e de meu espírito católico. Mas<br />
está também o choque com a Revolução.<br />
Analisando os meninos de meu<br />
tempo, vinha a meu espírito uma objeção<br />
muito forte: como é que esses<br />
todos que vêm aqui e que têm a possibilidade<br />
de ver isso, como é que esses<br />
todos não tomam profundamente<br />
a sério? Olham como uns bobos,<br />
tartamudeiam uma oraçãozinha e<br />
vão embora. Onde estão com a cabeça?<br />
A frase pintada no teto da Igreja<br />
do Coração de Jesus – “Eis aqui<br />
o Coração que tanto amou os homens”<br />
–, como é verdadeira, a começar<br />
por mim que quereria amá-Lo<br />
muito mais do que amo! Pois bem,<br />
se eu amo menos do que quereria, o<br />
mundaréu de gente que eu vejo por<br />
aqui, como O ama? Não estão percebendo<br />
que essa frase foi dirigida<br />
a Santa Margarida Maria, mas também<br />
a cada homem que tem conhecimento<br />
dessa devoção? Então, por<br />
que não se importam? Onde está a<br />
lógica deles?<br />
Era já um pouco da polêmica contrarrevolucionária<br />
que começava.v<br />
Missa solene no Santuário do Sagrado Coração de Jesus,<br />
nos tempos da infância de <strong>Plinio</strong><br />
Inspetoria Salesiana de São Paulo<br />
16
Sagrado Coração de Jesus<br />
II<br />
Recusa culpada ao<br />
Sagrado Coração de Jesus<br />
A devoção ao Sagrado Coração de Jesus foi maculada pela<br />
Revolução, a qual procurou abafá-la e dar-lhe uma conotação de<br />
algo antiquado e sem vida. Com isso, as fontes de graças que a<br />
Providência abriu para salvar o mundo foram abandonadas.<br />
Pedro K.<br />
Eu notava uma diferença<br />
muito grande entre o espírito<br />
hollywoodiano que estava<br />
dominando cada vez mais a sociedade<br />
civil e Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo, e era levado a comparar a firmeza<br />
e a afabilidade d’Ele com as<br />
brutalidades e as “doçuras” sensuais<br />
da Revolução. Porque o homem<br />
revolucionário era brutal, o trato de<br />
uns com outros era de uma familiaridade<br />
desabrida, desagradável, uma<br />
coisa incrível.<br />
Quando tinham intimidades era<br />
para criar cumplicidades. Eram amigos<br />
na medida em que eles eram inimigos<br />
da autoridade e cúmplices para<br />
desobedecer, para organizar a revolta,<br />
para defraudar a autoridade,<br />
para diminuí-la. Nesses momentos<br />
eles eram amigos, do contrário eram<br />
inimigos uns dos outros.<br />
Assim outras coisas. Por exemplo,<br />
o boxe era um esporte muito praticado<br />
entre os rapazes de minha idade,<br />
mas eu nunca o pratiquei. Não permitia<br />
que um outro pusesse aquela<br />
luva e fosse de socos em cima de minha<br />
face. Absolutamente não. Mas<br />
eles gostavam e viam na minha atitude<br />
uma censura a eles.<br />
O uso da motocicleta. Um veículo<br />
feio que não tem nada de imoral em<br />
si, mas aquela barulheira enchendo a<br />
rua era o contrário de uma música. Se<br />
houvesse uma máquina que emitisse<br />
sons musicais, mas aquela porcaria...<br />
E quanto mais a pessoa pudesse<br />
obrigar a máquina a produzir sons e<br />
quanto mais esses sons fossem disparatados,<br />
mais ela ficava contente.<br />
Flávio Lourenço<br />
Sagrado Coração de Jesus<br />
Igreja Santa Maria dos Anjos,<br />
Ponte Lima, Portugal<br />
17
Sagrado Coração de Jesus<br />
Todas essas coisas produziam uma<br />
oposição enorme entre mim e a Revolução<br />
e faziam parte de minhas reflexões<br />
em menino.<br />
O espírito do Sagrado<br />
Coração contundido<br />
por Hollywood<br />
Bruce Wells CC3.0)<br />
sa trombada, ela teme que o conjunto<br />
existente dentro dela esteja ameaçado.<br />
E, no temer isso, ela analisa o que<br />
vem e percebe que toda coisa revolucionária<br />
ameaça a ordem universal.<br />
É uma revolução universal em germe<br />
que põe em risco a ordem universal.<br />
Entretanto, eu me sentia como dentro<br />
de um verdadeiro cárcere por não<br />
poder dizer isso a ninguém. Porque, se<br />
dissesse, eu ouviria de todo mundo a<br />
mesma resposta: “Você acha feio o barulho<br />
da motocicleta? Eu acho engraçado.<br />
Aliás, é coisa de moço. Moço é<br />
assim, gosta de fazer barulho.” Eu tinha<br />
vontade de perguntar: “Moço é<br />
besta quadrada, é isso?”<br />
Eu sabia que viria daí uma inimizade<br />
de morte, mas todos responderiam<br />
com as mesmas fórmulas estereotipadas.<br />
Eu ficava para lá de indignado, porque<br />
me sentia como se me amarrassem<br />
um pano na boca e me impedissem<br />
de falar. Então, uma incompatibilidade<br />
não sei de que tamanho, da altura<br />
de uma torre, do Pão de Açúcar!<br />
Nova fonte de graças num<br />
século em decadência<br />
A respeito das revelações do Sagrado<br />
Coração a Santa Margarida<br />
Maria, haveria um pormenor a comentar<br />
que faz parte do que nós,<br />
Analisando o estado de espírito<br />
de uma pessoa que reza ao Sagrado<br />
Coração de Jesus, comparando isso<br />
com o estado de espírito das músicas<br />
norte-americanas, aloucadas, desordenadas,<br />
daquele tempo, eu as julgava<br />
tão diferentes d’Ele que nem havia<br />
comparação. Eu chegava à conclusão<br />
de que Ele era o contrário de<br />
tudo aquilo. Portanto, o oposto da<br />
Revolução. Mas era uma conclusão<br />
baseada numa antinomia evidente.<br />
Uma vez que eu tinha visto como<br />
era Nosso Senhor Jesus Cristo, tinha-<br />
-O amado, e querido que as coisas fossem<br />
semelhantes a Ele, concordando<br />
com isso até o fundo da minha alma,<br />
eu não podia deixar de detestar o que<br />
era feito “hollywoodianamente”, diante<br />
do que eu tomava atitude, pondo-<br />
-me do lado d’Ele por completo, embora<br />
com prejuízo pessoal. E opondo-<br />
-me aos que se opunham a Ele.<br />
Daí, então, a luta total! Eu pensava:<br />
“Se é assim, vou lutar com todas<br />
as forças de minha alma dentro<br />
desta ordem, porque do<br />
contrário eu faria o papel<br />
de uma besta quadrada,<br />
colaborando para<br />
destruir aquilo cuja continuação<br />
eu quero.”<br />
De fato, uma alma encantada<br />
com as harmonias<br />
da majestade sacral<br />
do Sagrado Coração de<br />
Jesus, perante Hollywood<br />
sente-se violentamente<br />
posta em choque. Para<br />
usar a palavra francesa:<br />
heurtée. Tem um choque<br />
com as coisas que não são<br />
como Ele. E, em face descom<br />
dor, poderíamos chamar de a<br />
pós-história dessas revelações, e que<br />
é a história delas em nossos dias.<br />
O Sagrado Coração de Jesus apareceu<br />
a Santa Margarida Maria Alacoque<br />
num período em que o processo<br />
revolucionário já vinha se desenvolvendo<br />
largamente. E, debaixo de<br />
um certo ponto de vista, era um processo<br />
irreversível, pois a Idade Média<br />
estava extinta e a degringolada já<br />
começara. Embora restassem muitos<br />
aspectos magníficos e até em ascensão,<br />
por alguns lados, do velho corpo<br />
medieval, também é verdade que<br />
penetrara por toda parte a corrupção<br />
dos costumes e, com isto, o começo<br />
da Revolução sofística. Disso podemos<br />
ter bem a ideia se folheamos o<br />
Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima<br />
Virgem e consideramos as páginas<br />
que São Luís Maria Grignion<br />
de Montfort consagra à descrição da<br />
apostasia no tempo dele. É um quadro<br />
trágico e precursor da Revolução.<br />
Nesse momento interveio o Sagrado<br />
Coração de Jesus manifestando-Se<br />
a essa religiosa da Ordem da Visitação<br />
e declarando-lhe que Ele abria para as<br />
almas uma nova fonte de graças. Esta<br />
era a devoção ao Sagrado Coração<br />
d’Ele, e quem a praticasse receberia<br />
graças maiores, mais abundantes, mais<br />
generosas do que se tinham no passado,<br />
e com isso Ele atraía toda a humanidade<br />
à conversão.<br />
Essa devoção teve peripécias<br />
na sua expansão,<br />
mas, afinal de contas, pode-se<br />
dizer que atingiu o<br />
seu auge na Santa Igreja<br />
Católica no século XIX<br />
e no período que vai até<br />
mais ou menos 1935;<br />
portanto, meados do reinado<br />
de Pio XI.<br />
Com efeito, essa devoção<br />
foi muito estudada,<br />
teve grandes doutores, entre<br />
os quais São João Eudes;<br />
ela foi bem recebida<br />
pelos Papas, Leão XIII<br />
18
fez uma consagração do mundo<br />
ao Sagrado Coração de Jesus 1 e<br />
vemos, um pouco por toda parte,<br />
nas cidades construídas em<br />
fins do século XIX e no começo<br />
do XX – no Brasil, por exemplo<br />
–, haver igrejas consagradas ao<br />
Sagrado Coração de Jesus. Era<br />
uma devoção que estava muito<br />
em vista e que fazia muito bem<br />
às almas.<br />
Dupla campanha<br />
contra a devoção ao<br />
Sagrado Coração<br />
A partir do momento em<br />
que a heresia modernista –<br />
condenada por São Pio X e<br />
que esteve em letargo, mas jamais<br />
morta –, com o rótulo de<br />
Ação Católica, de Movimento<br />
Litúrgico, começou a levantar<br />
a cabeça no reinado de Pio<br />
XI e, daí em diante, até o pontificado<br />
de Pio XII, ela não fez senão se<br />
desenvolver à socapa dentro da Igreja,<br />
passando a combater a devoção<br />
ao Sagrado Coração de Jesus.<br />
Esse combate era feito de dois modos:<br />
um, venenoso, mas não o mais<br />
eficiente, de cochichar nos meios da<br />
Ação Católica e do Liturgicismo que<br />
era uma devoção sentimental, efeminada,<br />
sem conteúdo teológico e que<br />
só um tipo mal formado espiritualmente<br />
poderia ter. Quem objetasse:<br />
“Mas a Igreja aprovou essa doutrina<br />
como verdadeira, canonizou São<br />
João Eudes, Santa Margarida Maria.<br />
Onde está, então, a infalibilidade<br />
da Igreja?”, tal pessoa perdia as boas<br />
graças das autoridades eclesiásticas<br />
infiltradas nesse erro e ficava posta<br />
de lado no Movimento Católico.<br />
Era, portanto, uma espécie de<br />
máfia contra o Sagrado Coração de<br />
Jesus. Ao lado disso, havia uma manobra<br />
mais perigosa: o silêncio. Deixou-se<br />
de impulsionar essa devoção<br />
e de falar a respeito dela em larguíssimos<br />
meios. Não se construíram<br />
Aparição do Sagrado Coração a Santa Margarida Maria<br />
Alacoque - Igreja dos Jesuítas, Córdoba, Argentina<br />
mais igrejas em louvor ao Sagrado<br />
Coração de Jesus. O mês de junho,<br />
que era instituído para honrá-Lo em<br />
quase todas as matrizes, deixou também<br />
de ser consagrado a Ele. Fez-se<br />
caso omisso disso e começaram a fazer<br />
circular outras devoções novas e<br />
de um conteúdo teológico suspeito.<br />
A virtude e a devoção<br />
apresentadas como uma<br />
imagem da morte<br />
Eu assisti, assim, ao ocaso das graças<br />
da devoção ao Sagrado Coração<br />
de Jesus, com certas formas dessa devoção<br />
que pareciam carentes de vida.<br />
De maneira que, no fim, ela era praticada<br />
por velhotas em confrarias agonizantes,<br />
com fórmulas assim: “Você<br />
tem um parente ou um amigo que está<br />
com dificuldade? Meta uma estampa<br />
do Sagrado Coração de Jesus no bolso<br />
dele que tudo se arranjará.” Com base<br />
num fato que alguma vez se fez isso<br />
com alguém e deu um resultado extraordinário,<br />
que conferia com as promessas<br />
de Paray-le-Monial.<br />
Sebastião C.<br />
Reduzir essa devoção a isso?<br />
Estão conspurcando! O zelador<br />
e a zeladora do Coração<br />
de Jesus usavam uma fita vermelha<br />
da qual pendia uma espécie<br />
de medalhão branco com<br />
o Sagrado Coração de Jesus<br />
impresso. Em si mesmo muito<br />
venerável, mas que estava cercado<br />
de conotações que já não<br />
eram portadoras das verdadeiras<br />
graças.<br />
O indivíduo, então, ia procurar<br />
a vida e em vez de buscá-la<br />
na devoção ao Sagrado<br />
Coração de Jesus, tomava como<br />
sendo vida aquilo que era o<br />
contrário, pois em torno dessa<br />
devoção tudo parecia ser morte.<br />
Ora, pela operação normal<br />
das coisas isso é morte; logo, a<br />
vida é o oposto disso.<br />
A vida era, por exemplo,<br />
o Ford Bigode, o Chevrolet,<br />
mas também um pêssego da Califórnia,<br />
grande, suculento, com uma cor<br />
muito bonita. Aquela cor de pêssego<br />
me dava a impressão de vida, em<br />
contraste com uns pesseguinhos nascidos<br />
aqui, não sei em que lugar, sequinhos,<br />
mirradinhos, verdinhos e<br />
que me pareciam conaturais com minha<br />
tradição colonial, não com o ribombo<br />
de vida que a coisa norte-<br />
-americana, hollywoodiana, teria introduzido<br />
no mundo.<br />
Nessa perspectiva também era vida<br />
o jazz, comparado, por exemplo,<br />
a uma música muito bem feita, muito<br />
direita: “Bendito e louvado seja<br />
o Santíssimo Sacramento; os Anjos,<br />
todos os Anjos digam para sempre<br />
amém…” Mas a questão era como<br />
se cantava isso… Depois, as vozes...<br />
Tinha sempre uma que era o<br />
“Bayard” 2 do desafinamento, ou seja,<br />
possuía todas as ousadias do desafinamento,<br />
era uma espécie de<br />
analogado primário nessa matéria.<br />
O pior era o modo mole de cantar:<br />
“Os Anjos, todos os Anjos digam<br />
a Deus para seemmmmmpre<br />
19
Sagrado Coração de Jesus<br />
Flávio Lourenço<br />
amémmm!” O que dizer de uma coisa<br />
dessas?<br />
O mesmo se dava com o tipo humano<br />
do rapaz. Para o meu tempo<br />
de jovem, tudo quanto se podia querer<br />
para um rapaz era que fosse bem<br />
apessoado, rico, fino, bonito, bem<br />
sucedido; nas brigas dele, todo mundo<br />
recuava; nas audácias dele, todo<br />
mundo o admirava; no lugar onde<br />
estava, tinha um primado natural,<br />
ímpio, porco e alegre de sua impureza<br />
e blasonava de sua impiedade.<br />
O contrário disso era o conceito<br />
que faziam a respeito do rapaz piedoso<br />
que, juntamente com as velhotas<br />
que cantavam “...digam sempre<br />
amém” e tudo quanto se referia à piedade,<br />
eram a imagem da morte, em<br />
oposição a Hollywood. O que era a vida,<br />
então? Ora, as velhotas, o rapaz<br />
piedoso etc., representavam a virtude.<br />
Portanto, não só a devoção ao Sagrado<br />
Coração de Jesus, mas a virtude<br />
é igual à morte. E, pelo contrário, o<br />
hollywoodianismo é igual à vida. Deste<br />
dilema parecia não ter escapatória.<br />
Nessa história da vida e da morte,<br />
tenho a impressão de que entrava<br />
qualquer coisa de ação diabólica<br />
acentuando toda forma de concupiscência<br />
e de vontade de viver a vida<br />
terrena com descaso da vida eterna.<br />
A majestade infinita e tudo quanto<br />
falei sobre o Sagrado Coração de<br />
Jesus era contrário à forma de fruição<br />
de vida hollywoodiana. Como o<br />
referente ao Sagrado Coração de Jesus<br />
era sobrenatural, desconfio que<br />
o resto estava sob ação do demônio.<br />
O hollywoodismo foi uma ofensiva<br />
na ordem temporal, mas com repercussões<br />
espirituais de toda ordem, que<br />
acentuou o conceito de que a Igreja<br />
Católica constantiniana era morta<br />
e despertou a ideia de que a Igreja só<br />
poderia viver no progressismo.<br />
O pecado do mundo<br />
contemporâneo<br />
Hoje em dia, pode-se dizer que a<br />
devoção ao Sagrado Coração de Jesus,<br />
como tantas outras, estão postas de lado<br />
e são tesouros com que ninguém se<br />
preocupa. São fontes de graças que a<br />
Providência abriu para salvar o mundo<br />
e que estão abandonadas, já ressequidas,<br />
porque como os homens não<br />
vão procurar essas graças, o resultado<br />
é que eles também não as recebem.<br />
Essa recusa da devoção ao Coração<br />
de Jesus é muito mais culpada do<br />
que a do centurião que perfurou com<br />
a lança o cadáver de Nosso Senhor<br />
morto, atingindo o Coração, símbolo<br />
do amor de Deus aos homens, assim<br />
transpassado barbaramente, e de<br />
São João Eudes - Igreja de São<br />
Salvador, Rennes, França<br />
onde saíram água e sangue. Conta-<br />
-se que esse centurião era quase cego<br />
e que, quando ele atingiu o Coração,<br />
aquela água e aquele sangue que<br />
restavam do corpo de Nosso Senhor<br />
caíram em parte sobre ele, que ficou<br />
curado e, com isto, se converteu.<br />
Pecado análogo foi cometido pelo<br />
mundo contemporâneo, recusando<br />
e extinguindo a devoção ao Sagrado<br />
Coração de Jesus entre os católicos.<br />
Contudo, desse crime não saiu nenhuma<br />
água e nenhum sangue que<br />
lavassem e curassem a cegueira. O<br />
mundo está rolando cada vez mais<br />
para o abismo.<br />
v<br />
Flávio Lourenço<br />
Longinus crava a lança no costado do Salvador - Galeria Nacional de Úmbria, Itália<br />
1) Realizada em 11 de junho de 1899.<br />
Um tempo antes, anunciou a consagração<br />
através da Encíclica Annum<br />
Sacrum, de 25 de maio de 1899.<br />
2) Pierre Terrail LeVieux, senhor de<br />
Bayard (*1476 - †1524). Cavaleiro<br />
destemido e irrepreensível.<br />
20
Sagrado Coração de Jesus<br />
III<br />
Uma devoção para o<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Reino de Maria<br />
Torre do Santuário do Sagrado<br />
Coração de Jesus em São Paulo<br />
Assim como a obra-prima da fidelidade de Maria foi<br />
conceber na mente a fisionomia do Messias antes<br />
da Encarnação, algo análogo se passará com a Igreja<br />
em relação à devoção a Nossa Senhora. O Sagrado<br />
Coração de Jesus e o Imaculado Coração de Maria<br />
são o ponto central em torno do qual gira a História.<br />
Ainda em menino, como eu<br />
era acostumado a raciocinar,<br />
vinha-me a ideia de<br />
que a essas formas transatas de piedade<br />
faltava uma certa seiva que tiveram<br />
outrora, mas que a hora delas<br />
na História tinha passado. Soara um<br />
gongo a partir do qual ou era a Revolução<br />
Francesa ou a irrupção de<br />
Hollywood no mundo inteiro.<br />
Graças que a devoção<br />
ao Sagrado Coração de<br />
Jesus trazia consigo<br />
Entretanto, remontando através<br />
dos restos da devoção ao Sagrado<br />
Coração de Jesus que eu conheci<br />
mais límpidos, mais direitos, ao frequentar<br />
a Igreja do Coração de Jesus,<br />
no meu tempo de menino, quando<br />
ela difundia, irradiava algo dessa<br />
graça; e tomando, sobretudo, essa<br />
devoção como era praticada por minha<br />
mãe e como ela a levou até o fim<br />
de sua vida, eu sentia, no palpitar de<br />
sua alma, uma espécie de foco contínuo<br />
do que havia de melhor do pulsar<br />
da devoção ao Sagrado Coração<br />
de Jesus que eu conheci, em outras<br />
ocasiões, quando pulsava bem.<br />
Quantas vezes eu, olhando para<br />
ela, dizia de mim para comigo:<br />
“Se mamãe não tivesse recebido<br />
o olhar d’Ele, ela não teria esse<br />
olhar para mim.” A devoção que<br />
eu tenho ao Sagrado Coração de<br />
Jesus é vista através dos olhos dela.<br />
E, considerando aquela imagem<br />
do Coração de Jesus que está no<br />
quarto dela, mas, a bem dizer, vista<br />
de dentro dos olhos de mamãe e, menos<br />
do que isso, em alguma medida,<br />
a imagem do Coração de Jesus que<br />
está na sala de visitas de meu apartamento,<br />
tomando tudo isso em sucessão,<br />
aparece um estilo de graça a qual<br />
eu tenho a impressão que havia, em<br />
grau intenso e excelente, no Paray-le-<br />
-Monial do tempo de Santa Margari-<br />
<strong>Plinio</strong> por volta do ano de 1922<br />
da Maria, e que durante muito tempo<br />
foi assim. Esse estilo de graça deve<br />
ter estado na raiz do movimento<br />
contrarrevolucionário do século XIX,<br />
mas foi sendo gradualmente mingua-<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
21
Sagrado Coração de Jesus<br />
do e deteriorado, antes de perder<br />
a vitalidade, uma espécie de<br />
constrição pré-mortal.<br />
Nessa constrição, durante algum<br />
tempo as graças que passaram<br />
ainda eram de nível individual,<br />
quando o horizonte era muito<br />
maior. E no nível individual,<br />
excelsas. Quando a graça bate, é<br />
uma forma de bondade, de comiseração<br />
que invade e o Sagrado<br />
Coração de Jesus toma conta.<br />
Mas eu sou levado a supor,<br />
com esses dados, que o verdadeiro<br />
horizonte dessa devoção<br />
seja ainda muito mais amplo e<br />
que esse horizonte individual<br />
que conhecemos seja uma parte<br />
apenas daquele que essa devoção<br />
trazia consigo. O que explica<br />
mais as graças extraordinárias<br />
ligadas a essa devoção.<br />
Verdadeiro ponto em<br />
torno do qual tudo gira<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Imagem do Sagrado Coração de Jesus<br />
pertencente a Dona Lucilia<br />
ra. E que, tirado desse ponto, tudo gira<br />
errado, e que a vida é compreender<br />
e desejar isto, ou seja, mais especificamente,<br />
o Sagrado Coração de Jesus e<br />
o Imaculado Coração de Maria.<br />
As descrições que fiz do Sagrado<br />
Coração de Jesus dão inteira e linearmente<br />
isso. Ele é superior a qualquer<br />
consideração, por um lado. Por outro<br />
lado, na sua superioridade, Ele habita<br />
em nós mais do que nós mesmos, está<br />
no fundo de cada um de nós. Ao mesmo<br />
tempo em que está no alto de um<br />
Céu inatingível por nós, Ele habita no<br />
fundo de nós e tem a possibilidade<br />
de tomar contato conosco de manei-<br />
Quais seriam a envergadura<br />
e o horizonte total da devoção<br />
ao Sagrado Coração de Jesus?<br />
Quem se abrisse a essa devoção<br />
– estou falando agora em<br />
escala individual –, introduziria<br />
na alma uma espécie de respiração<br />
de um ar sobrenatural<br />
impregnado de muita misericórdia,<br />
de muita clemência. Mas<br />
uma misericórdia e uma clemência<br />
impregnadas, por sua vez, de uma<br />
grandeza, de uma elevação de vistas,<br />
que eu não chamo de senso metafísico<br />
só porque o senso metafísico<br />
é muito pouco para designar isso. É<br />
um senso do sobrenatural.<br />
Essa realidade superior, a alma encontra<br />
quando é tocada pela graça a<br />
propósito de Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />
de Nossa Senhora e de toda a ordem<br />
celeste, por onde ela contempla<br />
almas de uma categoria, de uma beleza,<br />
de uma maravilha tais, que ela fica<br />
compreendendo que este é o verdadeiro<br />
ponto em torno do qual tudo gira<br />
a vibrarem cordas de nossas<br />
almas que não sabíamos existirem.<br />
Assim é Ele.<br />
Reconciliação augusta<br />
entre a inteligência<br />
e a vontade<br />
Nesse estado de alma se estabelece<br />
um equilíbrio pelo qual<br />
se dá uma espécie de reconciliação<br />
augusta entre a inteligência<br />
e a vontade, por onde a inteligência<br />
só apresenta à vontade<br />
coisas que a vontade reta possa<br />
querer, e à vontade só apetecem<br />
coisas que a inteligência possa<br />
justificar. A vontade fica consumida<br />
nisso; essa graça do Coração<br />
de Jesus entra na vontade<br />
humana quase à maneira de<br />
uma espada dentro da bainha.<br />
Não é uma superação do pecado<br />
original, mas uma contenção<br />
muito grande das desordens<br />
dele em virtude de um auxílio<br />
sobrenatural. Não que o<br />
efeito no homem seja menor,<br />
caso a natureza humana seja<br />
entregue a si mesma, mas é um<br />
auxílio que, ab extrinseco, produz<br />
esse efeito no homem que<br />
se abra a essa graça e uma sensibilidade<br />
amiga do ordenado,<br />
do lógico, do verdadeiro, que<br />
apetece uma forma de beleza augusta,<br />
tranquila, serena, forte, ordenada,<br />
correspondendo a um padrão<br />
de homem contrário ao do Humanismo.<br />
Portanto, está presente ali a<br />
Contra-Revolução A, é inegável.<br />
Alguns ultramontanos 1 do século<br />
XIX foram humanistas de tendências<br />
e, às vezes, de cultura. Uma espécie<br />
de Voltaire 2 com água benta,<br />
fazendo sarcasmos, graças, por vezes<br />
de muito bom quilate, mas que não<br />
tinham aquele ar augusto, sereno,<br />
nobre da devoção ao Sagrado Coração<br />
de Jesus. Ora, o modelo para o<br />
homem é Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />
não o Humanismo.<br />
22
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Interior do Santuário do Sagrado Coração de Jesus em São Paulo<br />
Mas desejo ressaltar a prodigiosa<br />
proposta da Contra-Revolução A feita<br />
por essa devoção, devido a uma ação<br />
ordenadora no fundo da alma humana,<br />
na junção entre o espírito e a alma de<br />
que fala São Paulo (cf. Hb 4, 12), a partir<br />
da qual se regenerasse o homem.<br />
Um horizonte muito maior<br />
ligado ao segredo de Fátima<br />
Isso corresponderia à envergadura<br />
das graças que sentimos pulsar na devoção<br />
ao Sagrado Coração de Jesus e,<br />
portanto, vê-se como é provável que<br />
a amplitude do horizonte fosse muito<br />
maior do que aquilo que se conhecia<br />
nos ambientes católicos de então.<br />
Tenho uma certa suspeita de que,<br />
lidas as revelações a Santa Margarida<br />
Alacoque – supostamente íntegras –,<br />
com o que se passou desde essas aparições<br />
de Paray-le-Monial até os dias<br />
de hoje, se perceberia um horizonte<br />
dessa devoção de algum modo relacionado<br />
com a crise da Igreja. Portanto,<br />
com o tema tratado no Segredo de<br />
Fátima. Não quero afirmar que a devoção<br />
trouxesse um prenúncio de que<br />
Nossa Senhora apareceria em Fátima,<br />
mas a temática presumível do segredo<br />
se encontraria lá, embora na atmosfera<br />
própria dessa devoção.<br />
O efeito do olhar de Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo<br />
Para minha sensibilidade, o ambiente<br />
da Igreja do Sagrado Coração de Jesus<br />
traz esse estado de espírito mencionado<br />
acima. Sem dúvida, existem na<br />
Europa milhares de igrejas de um valor<br />
artístico muito maior do que a do Sagrado<br />
Coração de Jesus dos Campos<br />
Elíseos. Contudo, há uma coisa qualquer<br />
nessa igreja que, estando lá, tenho<br />
a impressão de que os olhos d’Ele<br />
estão pousando em mim naquele momento.<br />
Eu me delicio em ver-me visto<br />
e envolvido pela serenidade afetiva, doce,<br />
cheia de sabedoria, mas ao mesmo<br />
tempo pelo império d’Ele e pelo terror<br />
da rejeição d’Ele. O pior que pode haver<br />
é ser rejeitado por Ele.<br />
Ali, todos os mistérios da devoção<br />
ao Sagrado Coração de Jesus e ao<br />
Imaculado Coração de Maria vêm à<br />
tona. Quanto nós gostaríamos de nos<br />
ver fisicamente olhados por Ele! Eu<br />
tenho a impressão de que “asperges<br />
me hyssopo et mundabor, lavabis me<br />
et super nivem dealbabor” (Sl 50,9).<br />
O olhar d’Ele me lavaria, eu ficaria<br />
mais alvo do que a neve.<br />
Diante do olhar d’Ele eu diria: “Anima<br />
Christi, santifica me!” Eu estaria<br />
tendo o que eu desejo, o ideal de minha<br />
vida! Aquele olhar meio interrogativo,<br />
ligeiramente reprobatório, enormemente<br />
amoroso, envolvente e, para<br />
dizer mais, encomiástico, no seguinte<br />
sentido: não há barreiras, venha!<br />
Vem-me à memória aquela canção<br />
de Francisco Guerrero 3 , que termina<br />
com esta frase: “si, pues, morís<br />
por mí, miradme al menos.” A poesia<br />
se refere a uma alma pecadora<br />
que está aos pés da Cruz, onde Nosso<br />
Senhor agoniza. E essa alma tem<br />
em mente os pecados que cometeu<br />
e pede perdão. Mas parece sentir<br />
que seus pedidos não são atendidos,<br />
porque ela insiste: “Perdoai,<br />
perdoai, perdoai!” Então ela tem es-<br />
23
Sagrado Coração de Jesus<br />
ta apóstrofe final: “Mas, afinal,<br />
se Vós morreis por mim<br />
na Cruz, pelo menos, antes de<br />
morrer, olhai-me.”<br />
Mas aqui vem a ideia de que<br />
os dois olhares se encontrando,<br />
ela está resgatada, pois esse<br />
olhar contém o perdão que<br />
ela deseja. Assim, o pecador,<br />
conseguindo cruzar o olhar<br />
com Nosso Senhor, sente que<br />
Ele lhe diz: “Meu filho, como<br />
és diferente de Mim! Entretanto,<br />
que imensidade de afinidades<br />
há entre Mim e ti! Vem, Eu<br />
te perdoo!”<br />
Profundidade de<br />
um olhar, de uma<br />
fisionomia<br />
Luis C.R. Abreu<br />
Certa ocasião, entrando<br />
numa livraria católica, vi um<br />
livro de Antero de Figueiredo<br />
4 – escritor português com<br />
quem me correspondi, porque<br />
ele me escreveu uma carta<br />
muito bonita, felicitando-<br />
-me pela publicação do Em Defesa da<br />
Ação Católica – intitulado: O último<br />
olhar de Jesus. Eu ainda não conhecia<br />
o autor, mas comprei o livro, embora<br />
sempre estivesse curto de dinheiro.<br />
Pensei o seguinte: “Isso é tema! O<br />
último olhar de Jesus que, com certeza<br />
não foi, como imaginou Francisco<br />
Guerrero, para um pecador, mas<br />
para Nossa Senhora. Compreender,<br />
nessa última troca de olhares, com<br />
que profundidade Se amaram e como,<br />
naquele derradeiro momento, se<br />
coroava a vida de contínua e crescente<br />
afinidade! Um homem que escreve<br />
sobre isso tem esse estado de espírito,<br />
esse mirante dentro da alma.”<br />
A meu ver, se nós recebermos essa<br />
graça dizendo a Ele, por meio d’Ela:<br />
“Miradme al menos! Fazei com que, em<br />
certo momento, meu olhar encontre o<br />
vosso e eu, por assim dizer, ressuscite”,<br />
então se compreende como será o Reino<br />
de Maria, com os homens dotados<br />
Sagrado Coração de Jesus - Convento da Luz, São Paulo<br />
desse espírito e vendo tudo, até uma<br />
galinha, como Nosso Senhor via.<br />
É a partir disso que se estabelece<br />
a boa amizade segundo Deus: amar o<br />
próximo como a si mesmo por amor<br />
de Deus; e nasce um relacionamento<br />
humano que eu creio que, com tanta<br />
plenitude, talvez não tenha sido frequente<br />
na própria Idade Média.<br />
Suponho que se a Idade Média tivesse<br />
continuado, o Sagrado Coração<br />
de Jesus teria revelado essa devoção<br />
de qualquer forma. A grande<br />
maravilha d’Ele foi perdoar as rupturas<br />
da Idade Média e, apesar disso,<br />
chamar para essa devoção.<br />
Obra-prima da fidelidade<br />
de Nossa Senhora<br />
Nota-se essa maravilha neste fenômeno:<br />
as imagens antigas de Nosso<br />
Senhor, do tempo das catacumbas,<br />
não representam de modo adequado<br />
a fisionomia d’Ele.<br />
Aos poucos, a Igreja foi elaborando<br />
essa fisionomia e<br />
quando aparece o Santo Sudário,<br />
vê-se que corresponde<br />
à elaboração da Igreja. Durante<br />
séculos ela teve uma espécie<br />
de intuição, de tal maneira<br />
que quando se vê o Santo<br />
Sudário, se exclama: “É esse!”<br />
O mesmo que foi intuído<br />
e elaborado pelo sensus fidelium<br />
ao longo dos tempos.<br />
Se eu adoto em relação a<br />
Nossa Senhora o mesmo processo<br />
de análise da piedade<br />
como ela é, inclusive em mim,<br />
eu noto um fato curioso que<br />
me levanta também uma hipótese<br />
certamente muito bonita.<br />
Não sei até que ponto os fatos<br />
a confirmarão. É a seguinte:<br />
Depois de elaborada pela<br />
Igreja a face do Sagrado Coração<br />
de Jesus, a Igreja faz o<br />
mesmo que Nossa Senhora,<br />
que compôs a fisionomia do<br />
Messias antes de se dar n’Ela<br />
a Encarnação do Verbo. Quando Ela<br />
acabou de construir a fisionomia, o<br />
Anjo baixou e A convidou para ser a<br />
Mãe do Messias.<br />
Ao tomar conhecimento desse comentário,<br />
pensei: “Estava à altura<br />
d’Ela, sim, imaginá-Lo.” Para mim<br />
era normal que a Mãe d’Ele O tivesse<br />
imaginado antes de tê-Lo concebido<br />
e que só Ela pudesse ter feito<br />
isso. E é compreensível que, logo depois,<br />
tenha vindo o Anjo e coroado<br />
essa obra-prima de fidelidade à graça<br />
existente no espírito d’Ela. Quem<br />
imaginou é digna de gerar. Sempre<br />
que penso nisso eu me entusiasmo.<br />
A figura completa de Nossa<br />
Senhora a ser modelada<br />
no Reino de Maria<br />
Há uma coisa muito curiosa nas<br />
imagens de Nossa Senhora que são<br />
dois modos diferentes de olhá-las.<br />
24
Divulgação<br />
Um é o juízo que se faz da imagem,<br />
correspondente àquele ente feminino<br />
representado ali, considerado com<br />
a psicologia que teria se não fosse a<br />
Mãe de Deus. Outro é considerado<br />
com a psicologia que teria se fosse a<br />
Mãe de Deus. E sempre, na segunda<br />
hipótese, aparece por detrás algo que<br />
é o mesmo em todas as imagens, por<br />
mais que elas sejam diferentes entre<br />
si, mas que não tem muita relação<br />
com o rosto da imagem.<br />
Seria como se a Igreja também<br />
estivesse compondo o retrato d’Ela<br />
através dos séculos, mas da seguinte<br />
maneira: por enquanto, Ela faz<br />
sentir um imponderável em todas as<br />
imagens d’Ela. Nisso está o começo<br />
da modelagem, mas, de fato, o rosto<br />
ainda não está composto.<br />
Tomem, por exemplo, a imagem<br />
de Nossa Senhora do Carmo que está<br />
na Sede do Reino de Maria. Todos<br />
sabem como venero essa imagem.<br />
Entretanto, nós vemos nela<br />
uma como que “trans-imagem”. Há<br />
uma graça que recebemos de conceber<br />
Nossa Senhora como Ela é, distinta<br />
da figura física de uma senhora<br />
portuguesa representada naquela<br />
imagem.<br />
Comparem Nossa Senhora de<br />
Montserrat com Nossa Senhora de<br />
Genazzano: a diferença é enorme! E<br />
assim poderíamos tomar imagens do<br />
rito oriental, aqueles ícones etc.<br />
As duas imagens que, a meu ver,<br />
levam mais longe a manifestação<br />
desse imponderável de Nossa Senhora<br />
são Nossa Senhora do Bom<br />
Sucesso – que leva bem longe – e<br />
Nossa Senhora das Graças.<br />
Nossa Senhora de Genazzano leva<br />
um certo olhar de Nossa Senhora<br />
mais longe, talvez, do que essas duas,<br />
mas não o geral da personalidade<br />
d’Ela, que me parece entrever muito<br />
especialmente nessas outras duas.<br />
Porém, compreendo que, conforme<br />
a devoção individual, um ou outro<br />
veja de modo diferente. Mas todas<br />
realmente caminham, de algum<br />
modo, para uma semelhança com<br />
o Santo Sudário. O mistério, o pulchrum<br />
está nisso.<br />
Eu me pergunto se não há uma<br />
elaboração pela Igreja da figura de<br />
Nossa Senhora a estar concluída para<br />
o Reino de Maria, de maneira a<br />
ser a imagem mestra do Reino de<br />
Maria, como, que eu saiba, nenhuma<br />
existe, e que teria uma semelhança<br />
impressionante, se bem que não<br />
seja cópia e, portanto, com variantes<br />
quase de espantar, em relação a<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
A fórmula não seria tomar a Sagrada<br />
Face e imaginá-la em ponto<br />
Cristo ensina a seus discípulos - Catacumba de Santa Domitila, Roma<br />
feminino, mas conceber Nossa Senhora<br />
abaixo d’Ele e sumamente parecida<br />
com Ele, de uma semelhança<br />
física que seria apenas uma imagem<br />
da semelhança espiritual.<br />
Assim nós teríamos uma ideia melhor<br />
do ambiente próprio a essas duas<br />
devoções tão distintas, mas tão afins,<br />
a ponto de São João Eudes referir-se<br />
ao Coração de Jesus e Maria. A nós<br />
foi dada a tarefa de fazer uma síntese<br />
e encontrar o Sagrado Coração de Jesus<br />
no Coração Imaculado de Maria.<br />
A amplitude do Sagrado<br />
Coração de Jesus visto<br />
por meio de Maria<br />
Com efeito, enquanto a devoção<br />
ao Sagrado Coração de Jesus foi objeto<br />
de um itinerário longo e muitas<br />
vezes doloroso, na devoção a Nossa<br />
Senhora como São Luís Grignion a<br />
deixou, com a amplitude característica<br />
dele, e depois nas sucessivas revelações<br />
d’Ela, nós vemos um outro horizonte,<br />
que não é o que está presente<br />
na devoção ao Sagrado Coração<br />
de Jesus. É um horizonte especial, no<br />
qual entra a doçura e a misericórdia,<br />
mas também a combatividade d’Ela.<br />
A meu ver, é preciso fazer uma soma,<br />
tomando Nossa Senhora da Salve<br />
Regina, do Memorare – eu formularia<br />
assim: Nossa Senhora de São Bernardo<br />
– e somá-la-ia com Nossa Senhora<br />
Profética de São Luís Grignion, precursora<br />
da Chouannerie, da luta contra<br />
a Revolução Francesa e de tudo mais.<br />
Nessa perspectiva, Nossa Senhora<br />
deveria ser vista como Medianeira.<br />
Ela não é o fundo do horizonte e, por<br />
mais que seja parecida com Nosso Senhor,<br />
é Ela quem convida para, através<br />
d’Ela, ver a Ele. Ela pede, para<br />
ser devoto a Ela, que se olhe um determinado<br />
horizonte, enquanto Nosso<br />
Senhor aparecendo diz: “Eu sou o<br />
horizonte.” Ele não encaminha para<br />
nenhum horizonte, enquanto Ela encaminha.<br />
Ele é o horizonte e, portanto,<br />
o ponto terminal do culto. O hori-<br />
25
Sagrado Coração de Jesus<br />
zonte é o infinito onde nenhum olhar<br />
alcança, pois transcende tudo e vai<br />
até onde não podemos imaginar. Mas<br />
Ela é o “telescópio” para ajudar a ver<br />
mais fundo, para levar mais além, tomando-nos<br />
de dentro de nossa proporção<br />
e colocando-nos à altura de<br />
olhá-Lo por meio desse telescópio<br />
que é Ela mesma.<br />
O requinte dentro do requinte<br />
Gabriel K.<br />
A devoção ao Sagrado Coração<br />
de Jesus é uma graça que, como todas<br />
as graças, vem por meio d’Ela. É<br />
certo que Ele não teria aparecido se<br />
Ela não tivesse pedido e é certo que<br />
essa graça tem que trazer um aumento<br />
da devoção a Ela, senão a mediação<br />
universal desaparece.<br />
Então podia-se dizer que nas imagens<br />
do Coração Imaculado de Maria<br />
o ponto alto tem uma chama<br />
e o Coração é coroado de<br />
rosas e tem uma espada, um<br />
gládio. Aquela chama é a devoção<br />
a Ele que arde n’Ela e<br />
por onde Ela chama para Ele,<br />
atrai, queima n’Ele, e quem se<br />
une ao Coração d’Ela, une-se,<br />
de modo certo, de modo fácil,<br />
de modo rápido, como diz<br />
São Luís Maria Grignion, ao<br />
Sagrado Coração de Jesus.<br />
A devoção a Ela é uma espécie<br />
de requinte, porque tem<br />
por objeto toda espécie de pecadores<br />
– o que se deixa queimar,<br />
evidentemente, também;<br />
mas distingue-se da devoção<br />
ao Sagrado Coração de Jesus<br />
neste ponto: que o miserável<br />
que não tenha se deixado queimar<br />
pelo Sagrado Coração de<br />
Jesus, tocando, não o grosso<br />
bordão dos sinos de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo, mas o sino<br />
leve e alegre de Nossa Senhora,<br />
ainda tem n’Ela um recurso<br />
de uma espécie de ultraextremo<br />
de misericórdia, requinte<br />
dentro do requinte e auge<br />
dentro do auge, por onde, recorrendo<br />
a Ela, até esse pecado tem<br />
perdão. E, o que Ele não perdoaria se<br />
Ela não existisse, Ele acaba, a rogos<br />
d’Ela, perdoando mais uma vez.<br />
De maneira que há n’Ela inflexões<br />
de ternura, de misericórdia, de bondade<br />
para esse tipo de miseráveis que<br />
não é que exista n’Ela e não n’Ele,<br />
mas é algo que, existindo n’Ele, através<br />
d’Ela se explicita melhor. Nosso<br />
Senhor quis que assim fosse, como se<br />
não coubesse na dignidade suprema<br />
d’Ele, enquanto Juiz, dar esse perdão;<br />
mas Ele é um Juiz que, por debaixo do<br />
pano, manda o recado a um advogado<br />
omnipotente: “Este está condenado,<br />
mas peça, porque ainda haverá meio<br />
de movê-lo, apesar dessa recusa.”<br />
É uma espécie de – eu quase diria<br />
de joelhos – pia fraus do Sagrado Coração<br />
de Jesus. Assim é o Imaculado<br />
Sagrado Coração de Jesus (coleção particular)<br />
Coração de Maria para as causas ultradesesperadas.<br />
Como um raio do<br />
Coração de Jesus<br />
Maria Santíssima põe junto a essa<br />
seriedade infinita de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo uma nota qualquer de<br />
louçania, que fala em perdão, em esperança,<br />
em alegria. Está n’Ele, tem<br />
fundamento n’Ele tudo isso, mas Ele<br />
é grande demais para um olhar poder<br />
abarcar. Então olha-se n’Ela.<br />
Porque, ao cabo de algum tempo,<br />
aquela imensidade nos faz sentir tão<br />
pequenos, tão pequenos, tão pequenos,<br />
petit vérmisseaux et miserable pecheur,<br />
que se tem vontade de dizer:<br />
“Senhor, não me esmague de tanto<br />
me amar!” Mas entra Ela e dá um<br />
repouso, uma distensão; está<br />
feito tudo na perfeição.<br />
Encontramos aí, de cheio,<br />
com uma força de expressão<br />
particular, o Imaculado Coração<br />
de Maria de São Bernardo:<br />
Ó clemente, ó pia, ó<br />
doce Virgem Maria! Aquela<br />
a quem nunca se ouviu dizer<br />
que alguém recorresse e não<br />
fosse atendido, que é nossa vida,<br />
doçura, esperança nossa.<br />
Eu me lembro de que quando<br />
pequeno julgava que aquele<br />
“salve” queria dizer “salvai-<br />
-me” e achava nisso uma força<br />
maravilhosa, porque começa<br />
mesmo um brado: “Salvai-me,<br />
porque eu…” Eu sabia que<br />
salve era uma expressão latina,<br />
mas não tinha relacionado;<br />
me ficara na cabeça “salve-me,<br />
Rainha, Mãe de Misericórdia”;<br />
mas o brado tem esse calor.<br />
Assim, vejo n’Ela um requinte<br />
daquilo que, por ser tão<br />
alto, poderia parecer não ser<br />
requintável, que é a devoção<br />
ao Sagrado Coração de Jesus.<br />
Para me exprimir por uma<br />
comparação, Nosso Senhor<br />
26
seria mais como a Catedral<br />
de Notre-Dame<br />
e Nossa Senhora seria<br />
mais como a Sainte-Chapelle.<br />
A devoção<br />
ao Sagrado Coração<br />
de Jesus toda em granito<br />
e vitrais, mas a Sainte-Chapelle<br />
é toda feita<br />
de vitral. O granito<br />
quase que desaparece e<br />
é quase só vitral.<br />
Essa é a atmosfera<br />
característica de Nossa<br />
Senhora. Usando uma<br />
linguagem imprópria,<br />
seria como um determinado<br />
raio do Coração<br />
de Jesus, por assim<br />
dizer, destacado d’Ele<br />
e feito outra pessoa distinta<br />
d’Ele para poder<br />
discutir com Ele e arrancar<br />
d’Ele o que Ele<br />
quer que se arranque.<br />
Em certo sentido, vista<br />
nesta perspectiva, Ela<br />
é a “forte contra Deus”<br />
por excelência.<br />
Quem recusa até a<br />
graça d’Ela, contra este<br />
se faz sentir a força<br />
d’Ela. E a advogada<br />
extrema torna-Se a vingadora extrema,<br />
pela lógica do papel de advogada.<br />
A última bondade levada ao<br />
último requinte e à última ternura,<br />
uma vez recusada, Aquela que sofreu<br />
a recusa faz da última bondade<br />
recusada a pedra com que Ela condena.<br />
Parece uma antítese, mas é<br />
sumamente harmonioso, lógico. É a<br />
Mãe de Nosso Senhor que Ele manda<br />
para tentar uma última mediação;<br />
à sua Mãe, Ele confere o poder<br />
de exterminar.<br />
Uma graça extrema recusada<br />
Imaginem um reino no qual uma<br />
parte do território se levante contra<br />
o rei. O rei vai visitar esse feudo com<br />
bondade, misericórdia, dá graças,<br />
Imaculado Coração de Maria. Ao fundo,<br />
interior da Sainte-Chapelle, Paris<br />
Flávio Lourenço<br />
procura atender; tudo em vão, eles<br />
recusam e o rei volta deixando a população<br />
revoltada.<br />
Ele então tenta mandar a mãe dele,<br />
que não é parte na briga, que ficou<br />
alheia e que é nascida naquele feudo,<br />
com um convite: “Ide, vós que sois<br />
conterrânea deles e vede se lhes falais<br />
por algumas cordas que talvez ainda<br />
se possam tocar em suas almas.”<br />
De repente, ele recebe a mensagem<br />
de que a mãe dele não só foi recusada<br />
também, mas até agredida.<br />
Então envia tropas à mãe e diz: “Vingai<br />
vós a ofensa que recebestes!”<br />
É tão lógico, que não seria fácil<br />
conceber outra coisa!<br />
Então se compreende que n’Ela<br />
haja certas refulgências onde a bondade<br />
do Coração de Jesus<br />
toma aspectos maternos,<br />
mas que também<br />
reflitam a indignação<br />
d’Ele. Tanto mais<br />
que essa rainha da metáfora<br />
não avança dizendo:<br />
“Vós me recusastes<br />
e eu vos puno!”,<br />
mas sim: “Vós recusastes<br />
meu filho, até quando<br />
ele teve o extremo<br />
de me mandar a mim<br />
mesma. Por meu filho<br />
ofendido, indignada<br />
pelo ódio mostrado<br />
a ele quando vós me<br />
recusastes até a mim,<br />
conterrânea vossa, eu<br />
agora vos extermino!”<br />
Então, nós temos<br />
Nossa Senhora, mensageira<br />
e medianeira,<br />
enquanto profetisa dos<br />
castigos anunciados<br />
em Fátima, porque é a<br />
graça extrema recusada.<br />
5 <br />
v<br />
1) Partidários do ultramontanismo.<br />
Doutrina<br />
nascida na França, na primeira<br />
metade do século<br />
XIX, que defendia as prerrogativas<br />
e o poder do Papa em matéria de Fé e<br />
costumes, contra o galicanismo e fenômenos<br />
análogos em outros países. O<br />
nome significa “além das montanhas”,<br />
referindo-se aos Alpes, além dos quais<br />
está a Itália e, portanto, a Sede de Roma.<br />
2) François-Marie Arouet (*1694 -<br />
†1778), escritor e filósofo francês.<br />
3) Francisco Guerrero de Burgos (*1528<br />
- †1599), foi um dos mais célebres<br />
compositores espanhóis do período<br />
renascentista.<br />
4) *1866 - †1953.<br />
5) Cf. Conferências de 6/6/1978,<br />
17/10/1970, 20/9/1980, 5/10/1980,<br />
6/11/1985, 6/2/1986, 17/3/1987,<br />
15/9/1989, 19/2/1991, 21/1/1993,<br />
11/12/1993.<br />
27
Pedro K.<br />
C<br />
alendário<br />
1. São Justino, mártir (†165).<br />
São Caprásio, eremita (†430). Renunciando<br />
ao mundo, retirou-se à<br />
ilha de Lérins e neste lugar viveu como<br />
eremita. Foi o principal guia espiritual<br />
de Santo Honorato.<br />
2. IX Domingo do Tempo Comum.<br />
3. São Carlos Lwanga e companheiros,<br />
mártires (†1886).<br />
Beato André Caccioli, presbítero<br />
(†1254). Natural de Perúgia, foi o primeiro<br />
presbítero agregado aos Frades<br />
Menores. Recebeu o hábito da Ordem<br />
das mãos de São Francisco e assistiu<br />
à sua morte.<br />
4. São Filipe Smaldone, presbítero<br />
(†1923). Fundador da Congregação<br />
das Irmãs Salesianas dos Sagrados<br />
Corações.<br />
Beato Francisco Pacheco<br />
dos Santos – ––––––<br />
5. São Bonifácio, bispo e mártir<br />
(†754).<br />
Santos Eubano, bispo, Adelário e<br />
nove companheiros, mártires (†754).<br />
Receberam a palma do martírio junto<br />
com São Bonifácio. Os nomes dos<br />
companheiros são: Vintrungo e Gualter,<br />
presbíteros; Amundo, Sevibaldo e<br />
Bosa, diáconos; Vacaro, Gundecaro,<br />
Eluro e Atevulfo, monges.<br />
6. São Norberto de Magdeburgo,<br />
fundador (†1134). Nasceu em Xanten,<br />
Alemanha, e depois de uma vida<br />
dissipada na corte do Imperador,<br />
retirou-se do mundo. Sendo ordenado<br />
sacerdote, dedicou-se à pregação.<br />
Em Prémontré, França, fundou a Ordem<br />
Premonstratense. Sagrado bispo,<br />
governou a diocese de Magdeburgo.<br />
7. Solenidade do Sagrado Coração<br />
de Jesus.<br />
8. Imaculado Coração de Maria.<br />
São Tiago Berthieu, presbítero e<br />
mártir (†1896). Jesuíta, dedicou-se incansavelmente<br />
à pregação do Evangelho<br />
e, após ser expulso das missões,<br />
preso por homens armados e instado<br />
sem êxito à apostasia, foi assassinado<br />
em ódio à fé, em Ambiatibé, na ilha<br />
de Madagascar.<br />
9. X Domingo do Tempo Comum.<br />
São José de Anchieta, presbítero<br />
(†1597).<br />
10. Santo Itamar, bispo (†666). Foi<br />
o primeiro procedente da região de<br />
Cantuária a ser chamado para a ordem<br />
episcopal, resplandecendo pela<br />
sua erudição e santidade de vida.<br />
11. São Barnabé, apóstolo (†s. I).<br />
Beata Iolanda da Polônia, abadessa<br />
(†1298). Após o falecimento do esposo,<br />
o duque Boleslau Pio, renunciando<br />
às riquezas terrenas, professou<br />
a vida monástica com sua filha, na Ordem<br />
de Santa Clara.<br />
12. São Leão III, papa (†816). Impôs<br />
a coroa do Império Romano a Carlos<br />
Magno, rei dos Francos, e defendeu<br />
com grande ardor a verdadeira Fé.<br />
13. Santo Antônio de Pádua, presbítero<br />
e Doutor da Igreja (†1231).<br />
São Trifílio, bispo (†370). Defendeu<br />
com pujança a verdadeira fé nicena<br />
e, comenta São Jerônimo, foi o<br />
orador mais eloquente do seu tempo<br />
e admirável comentador do “Cântico<br />
dos Cânticos”.<br />
14. Santo Eliseu, profeta (†s. IX<br />
a. C.).<br />
São Proto, mártir (†data inc.).<br />
15. São Landelino, abade (†686).<br />
Convertido pelo bispo Santo Autberto<br />
do banditismo à prática da virtude,<br />
fundou o mosteiro de Lobbes, dirigindo-se<br />
depois para Crespin, França, da<br />
onde partiu deste mundo.<br />
16. XI Domingo do Tempo Comum.<br />
Santos Julieta e Quirico, mártires<br />
(†303). Durante a perseguição de<br />
Diocleciano, Julieta foi presa por ser<br />
cristã; enquanto professava a fé em<br />
Cristo, seu filho pequeno, Quirico, repetia<br />
sua declaração, fato pelo qual<br />
ambos foram martirizados, em Tarso.<br />
17. Beato Paulo Buráli, bispo<br />
(†1578). Membro da Ordem dos Clérigos<br />
Regrantes Teatinos, eleito bispo<br />
de Piacenza e depois de Nápoles, empenhou-se<br />
em restaurar a disciplina<br />
da Igreja e confirmar na fé as dioceses<br />
a ele confiadas.<br />
18. São Calógero, eremita (†s. V).<br />
Beata Hosana Andreasi, virgem<br />
(†1505). Natural de Mântua, Itália,<br />
fez-se terciária dominicana e soube<br />
unir com sabedoria a vida ativa à vida<br />
mística.<br />
19. São Romualdo, abade (†1027).<br />
Conhecido como pai dos monges Camaldulenses.<br />
28
–––––––––––––––––– * Junho * ––––<br />
Flávio Lourenço<br />
Santos Julieta e Quirico<br />
Beatos Sebastião Newdigate, Hunfredo<br />
Middlemore e Guilherme Exmew,<br />
presbíteros e mártires (†1535).<br />
Viviam na Cartuxa de Londres. No<br />
reinado de Henrique VIII, por perseverarem<br />
fiéis à Igreja Católica, passaram<br />
dezessete dias de pé, presos a<br />
umas colunas. Foram enforcados na<br />
praça de Tyburn.<br />
20. Beatos Francisco Pacheco, presbítero,<br />
e oito companheiros, mártires<br />
(†1626). Pertenciam à Companhia<br />
de Jesus e testemunharam a verdadeira<br />
fé sendo queimados vivos, em Nagasaki,<br />
Japão.<br />
21. São Luís Gonzaga, religioso<br />
(†1591).<br />
Beata Liberata Ferrarons i Vives,<br />
virgem (†1842). Terciária Carmelita, de<br />
Olot, Catalunha, região da Espanha.<br />
22. Beato Inocêncio V, papa (†1276).<br />
Depois de ter tomado o hábito da Ordem<br />
dos Pregadores e ensinado Teologia<br />
em Paris, aceitou com relutância a<br />
sede episcopal de Lião e orientou, com<br />
São Boaventura, o Concílio Ecumênico<br />
para a unidade entre os Latinos e os<br />
Gregos separados; eleito para a Cátedra<br />
de Pedro, exerceu por pouco tempo<br />
a função de Pontífice.<br />
23. XII Domingo do Tempo Comum.<br />
Beata Maria de Oignies, reclusa<br />
(†1213). Com o assentimento do esposo,<br />
viveu reclusa próxima ao convento<br />
agostiniano de Oignies, onde<br />
fundou e dirigiu o instituto designado<br />
das “Beguinas”. Foi agraciada por<br />
muitas graças místicas.<br />
24. Natividade de São João Batista.<br />
Santa Maria Guadalupe (Anastásia<br />
Guadalupe Garcia Zavala), virgem<br />
(†1963). Cofundadora da Congregação<br />
das Servas de Santa Margarida Maria e<br />
dos Pobres, em Guadalajara, México,<br />
conhecida como Madre Lupita.<br />
25. São Próspero de Aquitânia,<br />
monge (†463). Formado em Filosofia<br />
e Arte Literária, depois de uma vida<br />
matrimonial íntegra e honesta, fez-se<br />
monge em Marselha; defendeu com<br />
vigor a doutrina de Santo Agostinho<br />
contra os pelagianos; exerceu a função<br />
de secretário do papa São Leão<br />
Magno, em Roma, reluzindo como<br />
polemista e notável exegeta.<br />
26. São Deodato de Nola, bispo<br />
(†405). Sucessor de São Paulino no<br />
governo da diocese de Nola.<br />
27. Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.<br />
São Cirilo de Alexandria, bispo e<br />
Doutor da Igreja (†444).<br />
28. Santo Irineu, bispo e mártir<br />
(†202).<br />
Santa Potamiena de Alexandria,<br />
virgem e mártir (†c. 202). No tempo<br />
do imperador Sétimo Severo, concomitantemente<br />
com outros discípulos<br />
de Orígenes, travou inúmeros combates<br />
pela sua virgindade e sofreu tormentos<br />
inauditos pela Fé. Foi lançada<br />
ao fogo junto com sua mãe, Marcela.<br />
29. São Paulo Wu Juan, pai de família<br />
e mártir (†1900). Durante a perseguição<br />
dos “Yihetuan”, por professar<br />
o cristianismo, foi assassinado<br />
junto com seu filho João Batista Wu<br />
Mantang e seu sobrinho Paulo Wu<br />
Wanshu, em Xiaoluyi, China.<br />
30. Solenidade de São Pedro e São<br />
Paulo, Apóstolos.<br />
Santos Protomártires da Igreja de<br />
Roma (†64).<br />
São Ladislau da Hungria, rei<br />
(†1095). Filho do Rei Bela I, da Hungria,<br />
nasceu na Polônia e sucedeu a<br />
seu irmão Géza I no trono. Durante<br />
seu governo, restabeleceu as leis cristãs<br />
introduzidas por Santo Estêvão,<br />
reformou os costumes dando exemplo<br />
de grande virtude.<br />
São Ladislau da Hungria<br />
Flávio Lourenço<br />
29
Perspectiva pliniana da História<br />
O convite de Deus ao Rei Sol:<br />
unir grandeza e doçura na<br />
devoção ao Coração de Jesus<br />
Na abençoada “terra dos Luíses”, entre<br />
os esplendores da corte do Rei Sol,<br />
ouviu-se o suave apelo do Coração de<br />
Jesus a Luís XIV pedindo-lhe uma<br />
entrega, da qual manaria, não só para<br />
a França, mas para toda a humanidade,<br />
uma graça de valor incomparável,<br />
uma luz que, quiçá, prenunciaria<br />
o alvorecer do Reino de Maria...<br />
Flávio Lourenço<br />
Europicture.de(CC3.0)<br />
Em várias ocasiões temos<br />
conversado sobre<br />
uma figura que,<br />
queiram ou não, depois de Carlos<br />
Magno foi o francês com os dotes<br />
naturais mais eminentes: Luís<br />
XIV, o rei por excelência. Pode-<br />
-se afirmar que outros terão sido<br />
mais inteligentes, mas apenas como<br />
síntese e até certo ponto; como<br />
quintessência, o foi Luís XIV, apesar<br />
de seus erros, defeitos, pecados.<br />
Homem feito para ser<br />
o grande devoto do<br />
Coração de Jesus<br />
Luís XIV, mais do que o Rei da<br />
França, era o rei da opinião pública<br />
Sagrado Coração - Igreja do Santo Anjo, Sevilha<br />
europeia, e, portanto, mundial! E de<br />
tal maneira, que os monarcas de todos<br />
os países, para valerem algo aos olhos<br />
dos povos, tiveram de assemelhar-se a<br />
ele; inclusive os reis da Prússia, Dinamarca,<br />
Holanda, entre outros, dançaram<br />
todos o mesmo minueto.<br />
30<br />
Luís XIV - Galeria do<br />
Palácio de Versailles
A grandeur de Luís XIV era legitimamente<br />
francesa, ele era francês.<br />
Mas nada impede que reconheçamos<br />
haver nele algo da grandeza do<br />
fidalgo espanhol, misturado às mil<br />
graças e mil agilidades francesas, o<br />
que lhe conferia mais valor.<br />
No mosqueteiro D’Artagnan, a<br />
força francesa é sobretudo agilidade;<br />
no cruzado, é o avanço. Mas, em<br />
ambos, uma força leve e ágil. Forte!<br />
Não é uma força fraca, é força forte,<br />
a qual está também no corpo, mas é<br />
sobretudo da alma. E tem a destreza,<br />
o improvisado, a agilidade, para<br />
tocar as coisas adiante.<br />
Luís XIV possuía todas essas qualidades<br />
somadas ainda a uma estabilidade<br />
compassada e solene, que lhe<br />
vinha mais do lado espanhol 1 e o tornava<br />
um homem muito completo!<br />
A Providência conferiu-lhe tudo isso<br />
para fazer dele, entre outros efeitos,<br />
um grande devoto do<br />
Sagrado Coração de Jesus.<br />
Luís XIV entrou num certo declínio,<br />
não cumpriu a sua missão. Ele<br />
teve os pecados contra a pureza que<br />
todos conhecem; os pecados contra<br />
a tradição medieval também conhecidos,<br />
por seu governo centralizador,<br />
despótico. E, além do mais, tornou-se<br />
um megalômano solto!<br />
Saint-Simon 2 – tido como exagerado<br />
em seus comentários, mas não<br />
se diz que os fatos narrados por ele<br />
sejam mentirosos – conta que durante<br />
o jantar na corte, enquanto<br />
se tocavam músicas populares, Luís<br />
XIV tinha a fraqueza de permitir<br />
que se tocassem canções em sua<br />
honra e ele mesmo as acompanhava<br />
cantando, enquanto comia! O que é<br />
realmente lamentável!<br />
Foi a esse Luís XIV, com todos<br />
os egoísmos e vaidades, que Nosso<br />
Senhor Se dirigiu, através de Santa<br />
Margarida Maria Alacoque.<br />
Uma mensagem para<br />
o “filho primogênito”<br />
do Coração de Jesus<br />
Luís XIV recebeu a mensagem do<br />
Convento de Paray-le-Monial, para<br />
consagrar a França ao Sagrado Coração<br />
de Jesus. Deste ato lhe viria o<br />
resto em catadupa! Não se sabe que<br />
Carlos Magno tenha recebido convite<br />
tão grande quanto este, nem temos<br />
conhecimento de haver sido feito<br />
a algum outro monarca depois da<br />
Revolução Francesa.<br />
As palavras do Sagrado Coração<br />
a Santa Margarida Maria são as seguintes:<br />
“Foram estas as palavras que eu<br />
ouvi a respeito de nosso rei:<br />
Faça saber ao filho primogênito do<br />
meu Sagrado Coração que, assim como<br />
seu nascimento temporal foi obtido<br />
pela devoção aos méritos de mi-<br />
Philippe de Champaigne (CC3.0)<br />
Desígnios de eleição<br />
que sobrepujam<br />
a miséria<br />
Ora, a par disso, Luís<br />
XIV era de tanta distinção<br />
no convívio com as pessoas,<br />
que acabou sendo a grandeza<br />
e o tormento da França,<br />
porque ninguém podia<br />
manter-se prolongadamente<br />
em seu diapasão. Ao cabo<br />
de algum tempo, entrou em<br />
choque com o gênio francês<br />
– isto é verdade histórica! –<br />
por causa daquilo que ele tinha<br />
de compassado, de solene,<br />
de sério, de não permitindo<br />
nunca um gracejo… Volto<br />
a dizer, meio espanholão! Isso<br />
produziu um choque, cuja<br />
reação contrária foi o estilo<br />
Luís XV, todo feito de meios-<br />
-tons, frivolidades e pasmaceiras,<br />
de onde veio a decadência<br />
do Ancien Régime.<br />
Luís XIII e Ana d’Áustria - Galeria do Palácio de Versailles<br />
Frans Pourbus filho (CC3.0)<br />
31
Perspectiva pliniana da História<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
nha santa infância, assim ele obterá<br />
seu nascimento para a graça e a glória<br />
eterna pela consagração que ele fará<br />
de si mesmo ao meu adorável Coração,<br />
que quer triunfar sobre o seu e,<br />
por seu intermédio, sobre os dos grandes<br />
da Terra. Ele [Coração de Jesus]<br />
quer reinar no seu palácio, ser pintado<br />
nos seus estandartes e gravado nas<br />
suas armas, para torná-las vitoriosas<br />
sobre todos os seus inimigos.”<br />
Ele veio procurar para devoto<br />
d’Ele o arquétipo de devoto, o Rei<br />
Sol!<br />
A par da reparação, um<br />
pedido de glorificação<br />
“Querendo o Padre Eterno reparar<br />
as amarguras e angústias que o Coração<br />
adorável de seu Divino Filho recebeu<br />
nos palácios dos príncipes da<br />
Terra, por meio das humilhações e ultrajes<br />
de sua Paixão, deseja estabelecer<br />
seu império no coração de nosso<br />
grande monarca; é dele que Ele quer<br />
Se servir para a execução de seu desígnio,<br />
o qual deseja que se cumpra desta<br />
maneira: de mandar fazer um edifício,<br />
onde esteja o quadro desse Divino<br />
Coração, para aí receber a consagração<br />
e as homenagens do rei e de toda<br />
a corte.”<br />
Que coisa linda, mandar fazer um<br />
edifício para isso! Naturalmente já<br />
estava designado o pintor, pela Providência!<br />
Quem seria esse pintor?<br />
Como seria esse quadro?<br />
Imaginemos o Santíssimo Sacramento<br />
sendo levado em procissão,<br />
acompanhado em alas por todos<br />
os cardeais, os bispos, a família<br />
real, os duques e pares da França,<br />
porque essa entronização não poderia<br />
ser dissociada da presença real<br />
de Nosso Senhor. Se o rei tivesse<br />
“Salão Azul” no apartamento de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, tendo à direita<br />
a imagem do Sagrado Coração de Jesus<br />
correspondido, não se poderia esperar<br />
que vários deles, nessa ocasião,<br />
tivessem recebido graças especiais?<br />
Ou seja, tudo convergiria à conversão<br />
da França.<br />
Isso nos faz lembrar o vazio das<br />
entronizações do Sagrado Coração<br />
de Jesus nas casas. O princípio era<br />
o mesmo: na sala de pompa de cada<br />
casa, uma imagem. Mas, como era<br />
executado… Lembro-me da entronização<br />
do Coração de Jesus na casa<br />
de minha avó e em outras casas onde<br />
estive presente; não era nada em<br />
comparação ao que deveria ser, já<br />
era um desvio.<br />
Consagração própria<br />
a mudar o rei e a<br />
alma da França<br />
“Além do mais, quer esse Divino<br />
Coração tornar-Se protetor e defensor<br />
de sua sagrada pessoa contra todos<br />
os seus inimigos visíveis e invisíveis,<br />
dos quais Eu quero defendê-lo e<br />
colocar, por este meio, sua saúde em<br />
segurança. É porque Eu o escolhi como<br />
meu fiel amigo, para fazer a Santa<br />
Sé Apostólica autorizar a Missa em<br />
minha honra…”<br />
É extraordinária a ideia de se introduzir<br />
na Igreja um rito para o<br />
mundo inteiro, e enquanto tendo sido<br />
pedido pelo rei da França. Não<br />
fazemos ideia o papel de glória que<br />
dava ao rei!<br />
“…e obter todos os outros privilégios<br />
que devem acompanhar a devoção<br />
deste Sagrado Coração, pela qual<br />
Ele quer repartir os tesouros de suas<br />
graças de santificação e de salvação,<br />
distribuindo com abundância suas<br />
bênçãos sobre todos os seus empreendimentos,<br />
que Ele fará resultar para<br />
sua glória, e dando às suas almas um<br />
feliz sucesso e fazendo triunfar sobre a<br />
malícia dos seus inimigos.”<br />
Na referência à malícia dos inimigos,<br />
temos a impressão de que eles<br />
estavam coligados contra o Rei da<br />
32
Hyacinthe Rigaud (CC3.0)<br />
Library and Archives Canada (CC3.0)<br />
Luís XIV e Luís XV - Galeria do Palácio de Versailles<br />
França, porque ele, de algum modo,<br />
ainda representava a Igreja.<br />
Essa mensagem não pode ser vista<br />
apenas como a pronúncia de um<br />
ato de consagração, como os existentes<br />
nas casas de família: todos<br />
se consagram, a família continua do<br />
mesmo jeito. Era evidentemente um<br />
ato de grande profundidade, que deveria<br />
mudar a alma do rei, a alma da<br />
França e, portanto, transformar o<br />
espírito do reino.<br />
Luís XIV transformado<br />
segundo o Coração de Jesus<br />
Tomemos a psicologia da devoção<br />
ao Sagrado Coração de Jesus, tal como<br />
ela foi apresentada por Santa<br />
Margarida Maria.<br />
É uma devoção, de um lado, muito<br />
majestosa. O Coração de Jesus é<br />
muito augusto, elevado, transcendental,<br />
como é adequado ao Coração<br />
humano do Homem-Deus. De<br />
outro lado, é de uma afabilidade, de<br />
um dégagé e de uma bondade irresistíveis.<br />
Colocada em presença d’Ele<br />
e daquele amor transbordante que<br />
d’Ele emana, a alma reta não resiste,<br />
ela se entrega.<br />
Com Luís XIV, creio que Nosso<br />
Senhor havia feito uma obra-prima<br />
da natureza; a alma dele era como<br />
um pavio, feito para ser iluminado<br />
por uma graça sobrenatural extraordinária,<br />
que ele deveria ter aceitado.<br />
O que seria Luís XIV se tivesse se<br />
transformado segundo o Coração de<br />
Jesus! Imaginarmos um rei daquela<br />
nobreza, sem nada perder de sua<br />
grandeza, dulcificado nas mil misericórdias,<br />
nas mil suavidades, nas divinas<br />
amenidades, se assim pudermos<br />
dizer, do Coração de Jesus! Ele teria<br />
acrescentado às suas qualidades humanas<br />
este modo de ser ao mesmo<br />
tempo augusto e bondoso, completando<br />
o autoritarismo; mas, então,<br />
descentralizado, generoso, afável.<br />
Ele teria uma nobreza à Jesus.<br />
Tão maior, tão mais radicada no fundo<br />
da alma, tão superior e, ao mesmo<br />
tempo, tão mais acolhedora, tão<br />
mais bondosa, que ficaríamos um<br />
pouco estrábicos a olhar esse sol.<br />
Ou, por outra, ao vê-lo, perceberíamos<br />
termos estrabismos a respeito<br />
da aristocracia, por não a termos visto<br />
assim.<br />
Eu sei que talvez não seja muito<br />
fácil imaginar… Mas procurem<br />
compô-lo com aquela bondade, condescendência,<br />
afabilidade do Coração<br />
de Jesus, e compreenderão que<br />
aquilo que o espírito francês recusa-<br />
33
Perspectiva pliniana da História<br />
va na hirteza e dureza de<br />
Luís XIV teria se recomposto.<br />
A história inteira do<br />
talento e do espírito francês<br />
não teria passado por<br />
essa ruptura que houve de<br />
Luís XIV para Luís XV.<br />
A recusa da doçura<br />
e o não desabrochar<br />
de uma era histórica<br />
Anne Baptiste Nivelon (CC3.0)<br />
Luís XIV recusou a doçura,<br />
e, de algum modo,<br />
recusou fazer essa harmonia<br />
entre a supremacia<br />
da sociedade temporal<br />
e o Sagrado Coração de<br />
Jesus. Mas rejeitou também<br />
uma forma de majestade<br />
transcendente, que<br />
não era aquela olímpica e<br />
pagã, mas era uma majestade<br />
sobrenatural, a verdadeira,<br />
de Deus! A pureza<br />
teria entrado em sua alma<br />
e ele teria tomado outro<br />
aspecto. A grandeza teria<br />
sido muito mais sobrenatural<br />
e, portanto, menos<br />
mundana.<br />
Se Luís XIV tivesse<br />
se convertido à devoção ao Sagrado<br />
Coração de Jesus, ele a espalharia<br />
pela Europa e medievalizaria o<br />
Ancien Régime; teríamos tido uma<br />
França que poderia ter saído dos<br />
seus lençóis de agonia.<br />
Creio que poderia ter recomeçado<br />
o curso da Idade Média no mundo,<br />
por regime “remedievalizado”<br />
inatacável! O único que restaria à<br />
Revolução era enterrar-se com suas<br />
caraminholas e porcarias. A Revolução<br />
poderia ter sido destruída, se ele<br />
tivesse dito inteiramente “sim” à devoção<br />
ao Sagrado Coração de Jesus!<br />
E tivesse sido não só um homem que<br />
mandava pintar o Coração de Jesus<br />
nos estandartes, mas fosse o Carlos<br />
Magno da devoção ao Sagrado Coração<br />
de Jesus.<br />
Dauphin Louis - Galeria do Palácio de Versailles<br />
Porque se nós pudéssemos imaginar<br />
um Luís XIV com toda a sua<br />
grandeza, mas com aquela doçura,<br />
ficaria cunhada uma moeda para todo<br />
o sempre do que é o senhorio, a<br />
grandeza, o ser rei! Do que é a hierarquia,<br />
a bondade! Do que é suavidade,<br />
do que é misericórdia! Digo<br />
“para todo o sempre”, porque, por<br />
um tempo indefinido, quebraria os<br />
sofismas da Revolução.<br />
Analisando a História<br />
à luz da devoção ao<br />
Sagrado Coração de Jesus<br />
Só calculamos bem o que é a<br />
França imaginando-a segundo o Coração<br />
de Jesus. Em última análise,<br />
vendo com profundidade os fatos,<br />
todas as objeções da Revolução<br />
Francesa contra Luís<br />
XIV e a monarquia de<br />
direito divino não teriam<br />
existido, se ele tivesse se<br />
deixado transfigurar pela<br />
devoção ao Sagrado Coração<br />
de Jesus.<br />
Isso dá uma visão da<br />
História e das causas da<br />
Revolução tão completa,<br />
que me entusiasmam! Mil<br />
coisas tomam o seu colorido!<br />
Quando a Luís XIV foi<br />
feito o convite, ainda havia<br />
na França bastante consonância<br />
com a realeza para<br />
que, ele se consagrando,<br />
o povo o acompanhasse. E<br />
a impressão é que a França<br />
caiu no que está porque,<br />
por um pecado coletivo<br />
do rei e da nação – mais<br />
do rei do que da nação –<br />
foi cortada a possibilidade<br />
de encaminhar o espírito<br />
francês para onde deveria<br />
caminhar.<br />
E logo depois de Luís<br />
XIV morrer, deu-se isso:<br />
como ele não deu a doçura,<br />
a França caiu no relaxamento,<br />
porque não aguentou aquele píncaro<br />
em que ele a mantinha. Então, vem<br />
Luís XV com aquelas cores… é lindo!<br />
Mas não se tratava só do bonito,<br />
no caso!<br />
A França infiel, mas<br />
nunca abandonada pela<br />
luz de seu chamado!<br />
É preciso tomar em consideração<br />
que foi durante o reinado de<br />
Luís XIV que Santa Margarida Maria<br />
Alacoque recebeu as revelações<br />
em Paray-le-Monial e que São Luís<br />
Grignion de Montfort fazia as pregações;<br />
foi no tempo dele que Sœur<br />
Marie des Vallées teve a troca de<br />
vontades, sobre a qual São João Eu-<br />
34
des escreveu. Nessa ocasião, portanto,<br />
São João Eudes e São Luís<br />
Grignion de Montfort pregavam<br />
nas regiões da Normandia e da Vandeia.<br />
Bastava Luís XIV ser fiel, que<br />
essas graças teriam chegado a ele.<br />
Em vez de mandar as tropas destruírem<br />
o Calvário construído por São<br />
Luís Grignion 3 , atitude que nunca<br />
teria tomado se ele tivesse correspondido<br />
à graça de Paray-le-Monial,<br />
ele teria, pelo contrário, visto<br />
florescer a escravidão a Nossa Senhora<br />
e, pode-se admitir que ele tivesse<br />
a vocação de escravo de amor<br />
de Nossa Senhora. Podemos imaginar<br />
o que é isto!<br />
Esses atos não trouxeram a realização<br />
das promessas do Sagrado Coração<br />
de Jesus, cada uma mais tocante<br />
e mais bonita que a outra.<br />
Quantos tesouros para o Reino<br />
de Maria a Providência faria nascer<br />
no reino dele e que ele rejeitou. Isso<br />
serve para nos dar a ideia de como<br />
havia no plano da Providência uma<br />
imagem ideal da França para a regeneração<br />
do mundo.<br />
O que interessa é que ficou como<br />
uma espécie de luz difusa<br />
esse chamado presente durante<br />
toda essa história. E<br />
é esta luz ainda meio difusa<br />
que amamos nesses restos.<br />
O que eu amo em Versailles<br />
é a possibilidade que<br />
ele tinha de ter sido o que<br />
não foi! Não é a construção<br />
que está lá, mas o lampadário<br />
onde podia entrar<br />
essa lamparina divina, que<br />
era a mensagem do Sagrado<br />
Coração de Jesus de<br />
Paray-le-Monial, São Luís<br />
Grignion, e tudo o mais!<br />
Isso forma uma concatenação<br />
para compreendermos<br />
a grande batalha, porque<br />
foi isso que a Revolução<br />
odiou. E quando ela cortou<br />
a cabeça de Luís XVI, ela<br />
quis cortar essa luz.<br />
Da recusa ao Coração<br />
de Jesus à adoração ao<br />
coração de Marat...<br />
Ficou na dinastia através dos tempos<br />
uma graça que, durante todo o<br />
Ancien Régime, ainda pulsava, fazendo<br />
o convite para os reis se consagrarem,<br />
o que não foi atendido. Uma<br />
possibilidade de consagração e algo<br />
dessa graça havia, porque era um<br />
presente que Nossa Senhora e Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo queriam fazer<br />
ao mundo a partir da aceitação,<br />
pelo Rei da França ou por algum dos<br />
reis sucessores, já em escala menor.<br />
É sabido que o Dauphin Louis, o<br />
filho de Luís XV, o pai de Luís XVI,<br />
portanto trineto de Luís XIV, mandou<br />
instalar uma capela em honra ao<br />
Sagrado Coração de Jesus na Capela<br />
de Versailles, mas do lado de trás do<br />
altar-mor 4 . Era, portanto, uma veneração<br />
feita meio em segredo, porque havia<br />
ficado na família real este apelo.<br />
A tal ponto que, preso no Templo,<br />
Luís XVI fez uma espécie de consagração<br />
da França ao Sagrado Coração de<br />
Jesus, que era ao mesmo tempo uma<br />
Morte de Marat - Museus Reais de Belas<br />
Artes da Bélgica, Bruxelas<br />
promessa de consagração caso ele fosse<br />
libertado e restaurada a monarquia.<br />
Uma “consagração”, com o texto mais<br />
inexpressivo que se possa imaginar!<br />
Isso mostra algo de sacral que<br />
permaneceu no Ancien Régime, apesar<br />
de todos os seus desvarios e, para<br />
ponderarmos exatamente sobre ele,<br />
é preciso tomar isso em consideração:<br />
esse convite ficou sempre.<br />
É assim que compreendemos a<br />
abominação da Revolução Francesa.<br />
Quando Marat 5 foi morto, tiraram o<br />
seu coração, embalsamaram-no, puseram-no<br />
em um relicário e fizeram<br />
uma espécie de altar nos jardins de<br />
Luxemburgo; em cima escreveram:<br />
“Sagrado Coração de Jesus, tende<br />
piedade de nós. Sagrado coração de<br />
Marat, tende piedade de nós.”<br />
A recusa da consagração ao Sagrado<br />
Coração de Jesus resultou no<br />
culto satânico do coração diabólico<br />
de Marat… 6 <br />
v<br />
1) Seus progenitores eram o Rei Luís<br />
XIII de França e Ana d’Áustria, filha<br />
do Rei Felipe III de Espanha.<br />
2) Duque de Saint-Simon<br />
(*1675 - †1755). Após deixar a<br />
carreira militar, viveu na corte,<br />
no tempo de Luís XIV. Escreveu<br />
as “Memórias”, nas<br />
quais descreve com penetração,<br />
finura e charme a vida na<br />
Versailles de seu tempo. (Errata:<br />
na edição anterior, os<br />
dados sobre Saint-Simon publicados<br />
na nota ao final da p.<br />
14 estão incorretos.)<br />
3) Trata-se do Calvário de<br />
Pontchâteaux, que Luís XIV<br />
mandou destruir em 1710.<br />
4) A obra consistiu em aproveitar<br />
o espaço entre os dois<br />
contrafortes que enquadram<br />
o vão central da abside, para<br />
acolher a nova capela.<br />
5) Jean-Paul Marat (*1743 -<br />
†1793).<br />
6) Cf. Conferências de<br />
21/9/1980, 1/10/1980,<br />
5/10/1980, 10/5/1981,<br />
11/12/1993.<br />
GCA (CC3.0)<br />
35
Porta do Céu aberta<br />
de par em par<br />
Flávio Lourenço<br />
Na Sagrada Escritura encontramos esta frase:<br />
“Porque és fraco, eis que pus diante de ti uma<br />
porta aberta que ninguém poderá fechar” (cf.<br />
Ap 3, 8). Esta porta aberta para a fraqueza do homem<br />
contemporâneo é o Coração Imaculado de Maria.<br />
Com efeito, nada nos pode dar maior confiança, esperança<br />
mais fundada, estímulo mais certo, do que<br />
a convicção de que em todas as nossas misérias,<br />
em todas as nossas quedas, não temos apenas,<br />
a nos olhar com o rigor de Juiz,<br />
a infinita Santidade de Deus, mas<br />
também o Coração cheio de ternura,<br />
de compaixão, de misericórdia,<br />
de nossa Mãe Celeste.<br />
Onipotência Suplicante, Ela saberá<br />
conseguir para nós tudo<br />
quanto nossa fraqueza pede para<br />
a grande tarefa de nosso reerguimento<br />
moral. Com este Coração,<br />
todos os terrores se dissipam, todos<br />
os desânimos se esvaem, todas<br />
as incertezas se desanuviam.<br />
O Coração Imaculado de Maria<br />
é a Porta do Céu aberta<br />
de par em par aos homens de<br />
nosso tempo, tão extremamente<br />
fracos. E esta porta “ninguém<br />
a poderá fechar”, nem<br />
o demônio, nem o mundo,<br />
nem a carne.<br />
(Extraído de Legionário<br />
de 30/7/1944)<br />
Imaculado Coração de Maria<br />
Museu Hyacinthe-Rigaud,<br />
Perpignan, França