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Revista Dr Plinio 315

Junho de 2024

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Publicação Mensal<br />

Vol. XXVII - Nº <strong>315</strong> Junho de 2024<br />

Discernindo a História<br />

no pulsar do Coração<br />

de Jesus e Maria


Flávio Lourenço<br />

Maria Mãe da<br />

Divina Providência<br />

Igreja de Santa Maria<br />

de Caravaggio, Nápoles<br />

Quintessências de misericórdias<br />

Omais terno, puro, soberano, excelso, sacral e sacrificado dos amores que tenha existido<br />

na Terra, o amor do Filho de Deus pelos homens, foi por Ele comparado ao instinto<br />

animal. Pouco antes de padecer e morrer, chorou Jesus sobre Jerusalém, dizendo:<br />

“Jerusalém, Jerusalém, quantas vezes quis eu reunir os teus filhos como a galinha recolhe<br />

os seus pintainhos debaixo das asas, e tu não o quiseste!”<br />

Para exprimir o extremo do seu amor o Homem-Deus quis compará-lo com o amor materno,<br />

mas nesse grau, nessa forma: uma ave em relação aos seus pintainhos. Ele recorreu a<br />

essa figura para exprimir de modo tocante e nos fazer entender o que há de inesgotável no<br />

amor materno.<br />

Nosso Senhor quis, ademais, que sentíssemos e conhecêssemos na Mãe d’Ele quintessências<br />

de misericórdias que Ele deu a Ela e que, simplesmente na consideração d’Ele, não chegaríamos<br />

a perceber.<br />

(Extraído de artigo na Folha de São Paulo de 18/12/1968 e conferência de 24/10/1981)


Sumário<br />

Publicação Mensal<br />

Vol. XXVII - Nº <strong>315</strong> Junho de 2024<br />

Vol. XXVII - Nº <strong>315</strong> Junho de 2024<br />

Discernindo a História<br />

no pulsar do Coração<br />

de Jesus e Maria<br />

Na capa,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1983.<br />

Foto: Arquivo <strong>Revista</strong><br />

As matérias extraídas<br />

de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

— designadas por “conferências” —<br />

são adaptadas para a linguagem<br />

escrita, sem revisão do autor<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

ISSN - 2595-1599<br />

CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />

INSC. - 115.227.674.110<br />

Diretor:<br />

Roberto Kasuo Takayanagi<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Virgílio Rodrigues, 66 - Tremembé<br />

02372-020 São Paulo - SP<br />

E-mail: editoraretornarei@gmail.com<br />

Impressão e acabamento:<br />

Pigma Gráfica e Editora Ltda.<br />

Av. Henry Ford, 2320<br />

São Paulo – SP, CEP: 03109-001<br />

Preços da<br />

assinatura anual<br />

Comum............... R$ 300,00<br />

Colaborador. .......... R$ 400,00<br />

Benfeitor ............. R$ 500,00<br />

Grande benfeitor....... R$ 800,00<br />

Exemplar avulso. ....... R$ 25,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

editoraretornarei@gmail.com<br />

Segunda página<br />

2 Quintessências de misericórdias<br />

Editorial<br />

4 Coração dulcíssimo de Jesus,<br />

fonte divina de graças<br />

Piedade pliniana<br />

5 Prece pelo triunfo do<br />

Imaculado Coração de Maria<br />

Dona Lucilia<br />

6 Uma chama acesa no<br />

Sagrado Coração de Jesus<br />

Sagrado Coração de Jesus<br />

10 I - O Modelo perfeito de homem<br />

Sagrado Coração de Jesus<br />

17 II - Recusa culpada ao<br />

Sagrado Coração de Jesus<br />

Sagrado Coração de Jesus<br />

21 III - Uma devoção para o<br />

Reino de Maria<br />

Calendário dos Santos<br />

28 Santos de Junho<br />

Perspectiva pliniana da História<br />

30 O convite de Deus ao Rei Sol:<br />

unir grandeza e doçura na<br />

devoção ao Coração de Jesus<br />

Última página<br />

36 Porta do Céu aberta de<br />

par em par<br />

3


Editorial<br />

Coração dulcíssimo de Jesus,<br />

fonte divina de graças<br />

A<br />

Santa Igreja tem ensinado reiteradas vezes que nenhum fiel, só por suas forças, pode praticar duravelmente<br />

e em sua totalidade os Mandamentos. De onde parece razoável considerar exagerada toda<br />

atitude de muita exatidão no cumprimento da Lei.<br />

Na realidade, a solução do problema se encontra numa outra ordem de ideias. Se é verdade que a fraqueza<br />

da natureza humana é tal que a observância dos Mandamentos é superior a ela, devemos, entretanto, considerar<br />

a infinita misericórdia divina. Não para dela deduzir que Nosso Senhor coonesta o pecado, o crime, Ele<br />

que é a perfeição infinita. A misericórdia de Deus não pode consistir em nos deixar jazendo desamparados em<br />

nossa corrupção, mas em nos tirar dela.<br />

Diante dos cegos, dos coxos, dos leprosos, Ele não Se limitava a sorrir e passar adiante. Ele os curava. Diante<br />

de nossos pecados, sua compaixão não consiste em nos deixar presos, mas em nos tirar deles amorosamente<br />

e nos levar aos ombros. O que esperamos da misericórdia de Deus são os recursos necessários para nos tornarmos<br />

capazes de praticar a lei moral. Temos para isto a graça, que nos foi alcançada pelos méritos infinitos<br />

de Nosso Senhor Jesus Cristo. A graça torna a inteligência do homem capaz do ato de fé. Torna a vontade humana<br />

capaz de uma energia tal, que se lhe faz possível praticar os Mandamentos.<br />

O grande dom de Deus para os homens, insistimos, não consiste em condescender com suas faltas, no sentido<br />

de que, sem censurar, os deixe com displicência mergulhados nelas. O grande dom de Deus consiste em<br />

dar-nos os meios sobrenaturais para evitar o pecado e atingir a santidade. E daí também uma grande responsabilidade<br />

para os que recusem esse dom inestimável.<br />

Símbolo expressivo desse amor misericordioso de Deus, da abundância dos seus perdões e da insistência<br />

com que Ele está constantemente convidando o homem a que se arrependa, a que peça as graças necessárias<br />

para praticar a virtude, a que por meio da oração consiga todos os recursos necessários para a reforma do seu<br />

caráter, é o Sagrado Coração de Jesus.<br />

É, pois, no Sagrado Coração de Jesus que toda verdadeira intransigência tem sua norma e sua explicação.<br />

A bondade não consiste em deixar o pecador na ilusão de que seu estado de alma é satisfatório. Cumpre mostrar<br />

ao ímpio todo o horror de sua impiedade para o demover dela. Cumpre apontar-lhe os cimos da perfeição<br />

para que almeje alcançá-los. O que, tudo, lhe é possível se pedir com perseverança a graça de Deus e com<br />

ela cooperar. Nesta convicção profunda e alegre de que o homem tudo pode com a graça, está a razão da santa<br />

virtude da intransigência cristã.<br />

Toda misericórdia constitui um grande dom. Mas constitui também uma enorme responsabilidade. Posto<br />

que o homem, pela oração e pela fidelidade à virtude, pode e deve praticar os Mandamentos, é bem evidente<br />

que não lhe resta desculpa nenhuma se ele se obstinar no pecado.<br />

As graças jorram superabundantes do Coração dulcíssimo de Jesus. Por isso mesmo, a fórmula do apostolado<br />

eficaz consiste, não em silenciar aos homens sua malícia, mas em convidá-los a se lavarem dela na fonte divina,<br />

onde brotam as torrentes da graça. *<br />

* Cf. Catolicismo n. 62, agosto de 1956.<br />

Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />

de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />

na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />

outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


Piedade pliniana<br />

Flávio Lourenço<br />

Nossa Senhora do<br />

Sagrado Coração<br />

Igreja de São Pedro,<br />

Cidade Real, Espanha<br />

Prece pelo triunfo do<br />

Imaculado Coração de Maria<br />

Rainha nossa e Mãe de misericórdia, nós Vos suplicamos do fundo de nossas misérias,<br />

do fundo de nossas dores, que nos concedais a graça de que nossos olhos não<br />

se fechem para esta vida antes que tenhamos visto a vitória, anunciada em Fátima,<br />

de vosso Imaculado Coração, de vossa sagrada mentalidade.<br />

De maneira que essa mentalidade reine sobre cada um de nós, calcados aos pés os nossos<br />

defeitos. Que ela reine sobre os vossos adversários esmagados, destruídos, humilhados. Que<br />

ela reine sobre os vossos filhos regenerados, convertidos, aureolados pela graça do Grand<br />

Retour. De maneira tal que, contemplando o mundo ressurrecto, nós possamos dizer:<br />

“Minha Mãe, realmente vossa promessa se realizou, vosso Imaculado Coração reina. Reina<br />

para o esplendor final e supremo da Santa Igreja, na plena manifestação de toda vossa<br />

beleza, todo vosso poder e toda vossa graça, diante dos católicos que têm para convosco uma<br />

devoção plena.”<br />

De tal sorte, minha Mãe, que quando chegarem os acontecimentos ultimíssimos e vosso<br />

Divino Filho aparecer para julgar os vivos e os mortos, Vós tenhais patenteado aos homens<br />

toda a vossa grandeza e eles Vos tenham venerado com toda a devoção que estava nos desígnios<br />

de Deus que existisse para convosco, no momento em que Ele Vos criou; no momento<br />

em que Ele Vos convidou para sua Esposa; no momento em que Ele Vos confortou no alto<br />

do Calvário; no momento em que Ele colheu a vossa alma expirante; no momento em que<br />

Ele Vos coroou no Céu. Assim seja!<br />

(Composta em 2/7/1975)<br />

5


Luis C. R. Abreu<br />

Dona Lucilia<br />

Tal como uma vela, a vida de<br />

Dona Lucilia foi um contínuo<br />

consumir-se diante do Sagrado<br />

Coração de Jesus. E como<br />

um pavio ávido dessa chama,<br />

era <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> junto a ela.<br />

Em mais de uma oportunidade<br />

tive ocasião de dizer<br />

que mamãe era profundamente<br />

devota do Sagrado Coração<br />

de Jesus. Ela demonstrava essa devoção<br />

em casa pelas orações que fazia,<br />

mas também, e de um modo talvez<br />

mais acentuado, quando ia, aos<br />

domingos, à Igreja do Sagrado Coração<br />

de Jesus.<br />

Haurindo graças do<br />

Sagrado Coração de Jesus<br />

Eu a via envolta naquele ambiente<br />

tão esplêndido e peculiar àquela<br />

igreja, relacionado a fundo com<br />

o Sagrado Coração de Jesus. Ela rezava<br />

diante da imagem d’Ele, que se<br />

encontra na nave ao lado esquerdo.<br />

Essa imagem é expressiva, do esti-<br />

6


Arquivo <strong>Revista</strong><br />

lo artístico “sulpiciano”; sem embargo<br />

disso, piedosa, muito respeitável.<br />

Minha mãe terminava de assistir à<br />

Missa e se dirigia para lá.<br />

A imagem tinha a intenção de<br />

mostrar o Sagrado Coração de Jesus<br />

como Ele é, ou seja, um símbolo<br />

do amor misericordioso que Nosso<br />

Senhor tem para com as suas criaturas,<br />

em especial para com os católicos.<br />

Ele a fazia sentir esse amor, essa<br />

doçura, essa suavidade. Era uma<br />

graça que ela recebia ali.<br />

Por outro lado, em casa, diante<br />

de uma imagem pequena do Sagrado<br />

Coração de Jesus que havia num<br />

oratório em seu quarto, mamãe rezava<br />

muito também e se entregava<br />

à mesma atitude espiritual. Naquela<br />

sua posição de oração, eu notava<br />

muito que aquilo que ela tinha<br />

de melhor não era dela, era<br />

algo que o Sagrado Coração de Jesus<br />

passava a ela.<br />

Oratório com a imagem do Sagrado Coração<br />

de Jesus pertencente a Dona Lucilia<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Mais ou menos como uma vela<br />

bonita, reta, branca, de bom fabrico,<br />

mas apagada, a qual alguém aproxima<br />

de uma fogueira; o fogo passa da<br />

fogueira para a vela que fica incendiada<br />

por uma chama que vai consumi-la<br />

por inteiro.<br />

Assim também se dá conosco: nós<br />

somos velas e recebemos a chama da<br />

Fogueira das fogueiras, que é o Sagrado<br />

Coração de Jesus, fornalha ardente<br />

de caridade. A caridade é o<br />

amor de Deus e o amor ao próximo<br />

por amor de Deus. Essa “fornalha<br />

ardente de caridade” comunica sua<br />

chama e a vela passa a viver daquilo.<br />

Eu notava que, cada vez mais,<br />

Dona Lucilia ia vivendo do que recebia<br />

do Coração de Jesus a rogos,<br />

é evidente, de Nossa Senhora,<br />

porque tudo o que vem de Jesus<br />

Nosso Senhor passa por Ela. E a vida<br />

de mamãe era queimar-se diante<br />

do Sagrado Coração de Jesus.<br />

7


Dona Lucilia<br />

Por detrás de todas as realidades<br />

havia a Igreja Católica<br />

Eu fazia um raciocínio assim: por<br />

que essa imagem produz esse efeito?<br />

Porque ela exprime um ensinamento<br />

da Igreja a respeito de como é o Coração<br />

de Jesus. Isso foi deduzido dos<br />

Evangelhos, foi escrito, passado em<br />

linguagem corrente. A Igreja fazia<br />

o possível para que esse ensinamento<br />

contagiasse todos os católicos, sua<br />

missão era principalmente essa. Então<br />

a Igreja inspirava a feitura da<br />

imagem, a construção de um edifício<br />

consagrado ao Sagrado Coração de<br />

Jesus e determinava que aquela imagem<br />

fosse exposta ali para a veneração<br />

dos fiéis, significando que ela<br />

queria que os fiéis fossem assim.<br />

Logo, por detrás de todas<br />

essas realidades, havia<br />

uma mais alta: era a Igreja<br />

Católica que queria isso,<br />

mas queria quase como<br />

uma criatura humana quer.<br />

Ela, templo do Espírito<br />

Santo, queria que isto fosse<br />

assim, de um querer inspirado<br />

pelo Espírito Santo.<br />

Tudo isso, com todas as<br />

suas sublimidades, perfeições,<br />

excelências, provinha<br />

da Igreja. E havia nela um<br />

principium vitæ – um princípio<br />

de vida – que é o Divino<br />

Espírito Santo, o próprio<br />

Deus, inspirando tudo<br />

aquilo que os homens que a<br />

dirigiam faziam para levá-<br />

-la à realização de suas sublimíssimas<br />

finalidades.<br />

O conjunto desse ensinamento,<br />

da grei enorme de<br />

fiéis especialmente fiéis ao<br />

Sagrado Coração de Jesus,<br />

formava um só todo com a<br />

Igreja Católica. Eu deveria<br />

amá-la com um amor maior<br />

do que amava minha mãe e<br />

amava as outras pessoas a<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

quem eu queria porque eram devotas<br />

do Sagrado Coração de Jesus. A<br />

Igreja é o princípio de vida superior<br />

a tudo isso.<br />

Como um pavio<br />

ávido pela chama<br />

Em mamãe eu via o espelho do<br />

Sagrado Coração de Jesus e de tudo<br />

quanto essa devoção ensina. Encontrava<br />

nela um reflexo daquilo que eu<br />

contemplava nas imagens do Coração<br />

de Jesus, do que tinha aprendido<br />

na História Sagrada, no Catecismo e,<br />

enfim, nas vidas dos Santos e naquilo<br />

que cercava a minha vida religiosa.<br />

Eu notava muito tudo isso nela e,<br />

por um princípio de coerência, se eu<br />

gostava tanto que essas coisas fossem<br />

assim, eu não podia deixar de gostar<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1995<br />

muito que ela fosse assim. E o fundo<br />

do meu amor a ela era esse. É evidente<br />

que o fato de ela ser minha mãe<br />

colaborava com isso, mas de maneira<br />

muito secundária. O fato fundamental<br />

é que eu a amava mais como filha da<br />

Igreja do que como minha mãe. Essa<br />

influência dela passava para mim, mas<br />

eu era um pavio ávido da chama. Eu<br />

queria essa influência, eu me abria a<br />

ela e, enquanto estava com ela, o mais<br />

que eu podia, eu reforçava essa influência<br />

em mim, na lógica do elemento<br />

primordial que é o grande amor que<br />

eu tinha a Deus Nosso Senhor, à Santa<br />

Igreja e, portanto, a Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo, Homem-Deus, a Nossa Senhora,<br />

ao Divino Espírito Santo.<br />

Perfeição beligerante<br />

Em contato com o mundo moderno,<br />

através do Colégio São<br />

Luís que eu cursava, eu sentia<br />

muito a modernidade<br />

das coisas e todo o mal que<br />

havia nisso. Ela sentia a modernidade,<br />

de algum modo,<br />

no ambiente geral onde ela<br />

e toda a cidade de São Paulo<br />

estavam imersos. Mas ela<br />

não chegava a compreender,<br />

no começo, toda a malícia<br />

disso. E não compreendia,<br />

portanto, o caráter militante<br />

que eu tinha como católico.<br />

Ela achava bom, mas<br />

não percebia até que ponto<br />

esse aspecto deveria ser predominante<br />

para quem estava<br />

chamado a viver no tempo<br />

em que eu vivi sem ela e<br />

não no tempo em que nós<br />

vivíamos juntos.<br />

Por exemplo, das abominações<br />

de nossos dias, ela<br />

não chegou a ter conhecimento.<br />

De modo vago, de<br />

conjunto, uma certa noção<br />

sim, mas a ideia propriamente<br />

não. O que também se devia,<br />

em parte, ao seu feitio<br />

de espírito: muito comedido,<br />

8


Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Prédio do Colégio São Luís em fins de 1910. Em destaque, <strong>Plinio</strong> aos 4 anos.<br />

moderado eu não diria,<br />

mas prudente, e<br />

no qual as realidades<br />

apareciam com matizes<br />

muito delicados. É também próprio<br />

ao ser feminino. E em mim, pelo<br />

contrário, as realidades apareciam,<br />

desde logo, com cores fortes.<br />

Eu só julgava que uma determinada<br />

realidade tinha sido bem compreendida<br />

por mim quando eu compreendia<br />

por inteiro o que ela<br />

tinha de bom, no que ela estava<br />

oposta ao mal que em nossa<br />

época circulava a respeito disso.<br />

Era a Revolução e a Contra-<br />

-Revolução que, em menino, pela<br />

bondade de Nossa Senhora,<br />

meu espírito ia tecendo, sem perceber<br />

o que fazia. Então, vontades<br />

de destruir, entenda-se bem,<br />

não de destruir pelo destruir; era<br />

a vontade de destruir aquilo que<br />

destrói.<br />

É mais ou menos como uma<br />

pessoa que vê uma casa antiga,<br />

boa, mas toda carcomida de cupim<br />

e percebe que ele, de um modo<br />

inevitável, vai contagiar e destruir<br />

todas as outras casas do bairro.<br />

A pessoa que perceba isso quer<br />

a destruição da casa que é o foco dos<br />

cupins. Não é pelo gosto de destruir,<br />

mas é porque naquela casa está um<br />

princípio, um elemento ativo de destruição<br />

que vai liquidar, e contra isso<br />

eu me erguia indignado.<br />

Com mamãe eu me abria por inteiro,<br />

falava de Cruzada… de quanta<br />

coisa! Ela aprovava, mas não chegava<br />

a compreender até que ponto<br />

aquilo devia ser daquele jeito. Ela<br />

não teria contra isso uma objeção,<br />

mas uma zona de admiração<br />

menor.<br />

Foi com o curso do tempo<br />

e vendo, por exemplo, as<br />

abominações que faziam os<br />

comunistas, depois, durante<br />

a Segunda Grande Guerra,<br />

os nazistas, que ela foi<br />

compreendendo a imensidade<br />

de maldade que tinha entrado<br />

por toda parte, além da<br />

“hollywoodização”.<br />

Muito cedo surgiu na minha<br />

alma uma lamentação:<br />

a Igreja do Coração de Jesus<br />

estaria perfeita, mas nela<br />

faltava alguma coisa para<br />

ser inteiramente de meu<br />

gosto. Essa alguma coisa<br />

era, por exemplo, uma bela<br />

alabarda atada com uma fita bonita<br />

e varonil – nada de fita de cabelo<br />

de menina – junto a cada confessionário.<br />

Isso, com o tempo, Dona Lucilia<br />

foi compreendendo. v<br />

Revolução de 1917 - Museu de História Política Russa, São Petersburgo<br />

(Extraído de conferência de<br />

4/1/1995)<br />

Vicente Torres<br />

9


Sagrado Coração de Jesus<br />

I<br />

O Modelo perfeito<br />

de homem<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo é insondável e<br />

superior a toda compreensão. Entretanto,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> discernia numa imagem do<br />

Sagrado Coração de Jesus a plenitude<br />

da harmonia de tudo quanto há dentro<br />

de uma alma humana, com mais algo<br />

de divino, e chegava à conclusão de que<br />

Ele é o arquétipo de toda dignidade.<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

10<br />

Desde que me lembro de<br />

mim na Igreja do Sagrado<br />

Coração de Jesus, nos<br />

meus primeiros enlevos – eu era tão<br />

pequenino que isso se perde na noite<br />

dos tempos... deveria ter quatro,<br />

cinco ou seis anos –, a piedade católica<br />

se apresentou para mim envolta<br />

em graças místicas, à maneira de “flashes”.<br />

Mas “flashosa” no seguinte sentido:<br />

como sendo um ambiente que<br />

correspondia por inteiro às aspirações<br />

que minha alma tinha de convívio e de<br />

contato com ambientes e com outras<br />

almas que me dessem uma elevação<br />

tão grande, que o olhar humano quase<br />

não chega a medir até o fim.<br />

Elevação de alma, de sentimento,<br />

de maneiras, de grandeza, e esta<br />

não entendida à Luís XIV, mas de<br />

uma grandeza que encontro representada<br />

na jaculatória da Ladainha<br />

do Sagrado Coração de Jesus: Cor<br />

Iesu, maiestatis infinitæ, miserere no-<br />

Imagem do Sagrado Coração de Jesus<br />

que Dona Lucilia ganhou de seu pai<br />

Arquivo <strong>Revista</strong>


is. Ou seja, imaginando no Coração<br />

d’Ele, mas tomando a palavra “coração”<br />

não só como o órgão físico,<br />

mas também como a mentalidade e,<br />

portanto, a santidade d’Ele infinitamente<br />

majestosa, de tal maneira alta,<br />

que o espírito humano não chega<br />

a ver bem como é, superando todas<br />

as majestades concebíveis.<br />

Arquetipizando uma imagem<br />

do Sagrado Coração de Jesus<br />

Como eu via Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo, como era meu amor a Ele e<br />

que papel Ele teve na formação do<br />

meu espírito?<br />

Ele me era apresentado por imagens<br />

diferentes, mas muito coerentes<br />

entre si. Uma delas encontra-se<br />

no oratório que existe no quarto de<br />

mamãe, presente de seu pai quando<br />

ainda era solteira. Minha mãe prezava<br />

muito essa imagem. Pode-se dizer<br />

até que era o analogado primário de<br />

todas as devoções dela.<br />

Eu punha na minha cabeça a ideia<br />

de criança de que Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo era como aquela imagem,<br />

sem tirar nem pôr. Portanto, se eu<br />

quisesse fazer uma ideia d’Ele, eu<br />

deveria certificar-me de que Ele era<br />

como estava concebido ali, e que a<br />

mentalidade d’Ele era a representada<br />

naquela imagem.<br />

Por uma coincidência feliz, eu também<br />

tinha com frequência diante dos<br />

olhos duas representações do Sagrado<br />

Coração de Jesus existentes no santuário<br />

a Ele dedicado, no Bairro Campos<br />

Elíseos, e para as quais eu olhava<br />

muito durante a Missa. Uma delas fica<br />

na nave do lado do Evangelho, à esquerda<br />

de quem olha para o altar.<br />

Eu via que o artista tivera a intenção<br />

de fazer algo melhor do que estava<br />

lá, o que representava o suco da<br />

expressão da imagem. E que a Igreja,<br />

consentindo em apresentar essa<br />

imagem à minha veneração, tomava<br />

isso em conta e credenciava o Coração<br />

de Jesus para que eu a considerasse<br />

como o artista<br />

tinha querido fazê-la e<br />

não como ele a fizera.<br />

Eu olhava e pensava:<br />

“Eu sei bem que isso<br />

é uma imagem, não um<br />

homem. Mas essa gente<br />

que montou esta igreja<br />

quer que Deus seja visto<br />

assim. Por isso eles compraram<br />

uma imagem que<br />

exprime isso. Ora, como<br />

é verdade que Deus deve<br />

ser visto assim! Como<br />

está certo! Deus visto assim<br />

é completo!”<br />

Por esse movimento<br />

da lógica e do espírito<br />

eu dava importância<br />

à imagem. Só mais tarde,<br />

na verdade há pouco<br />

tempo, percebi que<br />

eu arquetipizava aquela<br />

representação, porque<br />

eu imaginava uma<br />

imagem ideal do Sagrado<br />

Coração de Jesus,<br />

e como essa tinha uma certa analogia<br />

com a ideal, saltavam muito aos<br />

meus olhos as analogias e não os desacordos.<br />

De onde eu quase que só a<br />

via pelos lados das analogias. Numa<br />

atitude de respeito, de adoração, eu<br />

fazia esse jogo de espírito.<br />

Eu não via senão a imagem material.<br />

Tenho toda a certeza de que não<br />

tive nenhuma visão ou aparição. Entretanto,<br />

até hoje me parece ver algo<br />

do que eu via outrora. É uma coisa<br />

curiosa, mas parece-me discernir<br />

na imagem a plenitude da harmonia,<br />

no mais alto grau, de tudo quanto há<br />

dentro de uma alma humana, mais alguma<br />

coisa que é divina. Reconheço<br />

bem que uma pessoa que não tenha<br />

tido uma graça não veja isso. É como<br />

se eu olhasse para uma pessoa e de repente<br />

visse o espírito dela. Ainda hoje,<br />

olhando para essa imagem, tenho esse<br />

discernimento e me sinto ainda tocado,<br />

consolado naquela linha da infância.<br />

Sem dúvida, é uma graça.<br />

Imagem do Sagrado Coração de Jesus venerada<br />

no Santuário a Ele dedicado, em São Paulo<br />

Plenitude da harmonia<br />

e da perfeição<br />

Além dela, há pintada no teto da<br />

igreja uma aparição de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo a Santa Margarida Maria<br />

Alacoque, na qual Ele lhe apresenta<br />

seu Sagrado Coração. Ao lado há a<br />

frase: “Eis o Coração que tanto amou<br />

os homens.” De fato, essa pintura<br />

tem alguma coisa em comum com a<br />

imagem que está no quarto de Dona<br />

Lucilia. De maneira que isso consolidava<br />

em meu espírito a ideia de que<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo tinha sido<br />

exatamente como estava representado<br />

no oratório de mamãe.<br />

Nas duas imagens e na pintura, eu<br />

notava uma grande e serena seriedade,<br />

doce, afável, mas que na sua lógica<br />

chegava às últimas consequências.<br />

Eu via também nelas uma harmonia<br />

perfeita e admirável com tudo quanto<br />

o Evangelho contava que Ele fazia<br />

e dizia.<br />

J.P.Ramos<br />

11


Sagrado Coração de Jesus<br />

Essas representações, sobretudo<br />

a que mamãe possuía, pareciam<br />

tornar patente aos meus<br />

olhos uma certeza, uma firmeza...<br />

Nosso Senhor está tão bem-<br />

-posto sobre os próprios pés, tão<br />

ereto; o busto, o porte d’Ele tão<br />

varonis representam a perfeição<br />

da varonilidade. Seu semblante<br />

tão sério, próprio a quem pensa<br />

tudo seriamente para ver a realidade<br />

das coisas, revela um intelecto<br />

em extremo capaz de pensar,<br />

de adquirir a verdade pelo<br />

uso bem feito de uma inteligência<br />

sublimíssima; uma amplitude<br />

das grandes visões do universo,<br />

enfim, de tudo quanto existe;<br />

convicções inabaláveis, iguais<br />

à evidência. N’Ele se apresentavam,<br />

num reluzimento perfeito e<br />

reversível, o esplendor do raciocínio<br />

e a perfeição da intuição.<br />

Também uma vontade boníssima,<br />

dulcíssima, mas inquebrantável.<br />

O que Ele queria, fazia.<br />

Queria porque devia querer<br />

e nunca deixaria de querer.<br />

Seu ato de vontade é eterno.<br />

Portanto, uma pessoa sem<br />

manias, sem caprichos; nem<br />

vem à imaginação a ideia de capricho!<br />

Tudo é razoável, sério, sereno.<br />

E também sem nenhum maquiavelismo.<br />

Diz o que tem a dizer. “Seja<br />

a vossa linguagem sim-sim, não-não”<br />

(Mt 5,37). O que está no espírito, na<br />

mente d’Ele, Ele diz.<br />

Luis C. R. Abreu<br />

Um verdadeiro Rei e Mestre<br />

Os cabelos d’Ele caem ao longo da<br />

cabeça e sobre os ombros de um modo<br />

tão manso e liso, em uma ordem tão<br />

perfeita, tão impecável, mas ao mesmo<br />

tempo tão suave, acolhedora e afável,<br />

por onde não há um fio de cabelo que<br />

não esteja bem-posto. Ao dividir a cabeça<br />

em duas partes, parecem marcar<br />

uma simetria universal, segundo a qual<br />

tudo pode ser considerado sob dois aspectos<br />

distintos, mas afins, e que constituem<br />

uma harmonia superior.<br />

Aparição de Nosso Senhor Jesus Cristo a Santa<br />

Margarida Maria Alacoque - Santuário do<br />

Sagrado Coração de Jesus, São Paulo<br />

Tudo num plano tão alto, tão extraordinário,<br />

que Ele aparece ao<br />

mesmo tempo como um verdadeiro<br />

Rei e como um Mestre. Muitas vezes<br />

eu refleti nisso: houve muita gente<br />

que frequentou na Terra ambientes<br />

mais distintos do que aqueles em<br />

que Nosso Senhor esteve. Mas distinção<br />

é a d’Ele! Todos são uns perequetés<br />

em comparação com Ele,<br />

somem, desintegram-se por completo!<br />

Ele me parecia o próprio símbolo<br />

da dignidade, da gravidade, da seriedade.<br />

Muito distinto, muito fino,<br />

nobre, régio, não régio porque tem<br />

o hábito de mandar nem porque os<br />

outros reconhecem nele o direito de<br />

mando, mas régio por essência. Por<br />

ser rei na sua essência e independente<br />

do que os outros achem ou não<br />

achem, queiram ou não queiram,<br />

Ele é rei por excelência.<br />

Também o Mestre por excelência<br />

é Ele, que ensina uma verdade<br />

perfeita, total, a respeito da<br />

qual não há nada a objetar, mas<br />

somente dizer-Lhe, com um entusiasmo<br />

recolhido, afável e persuadido:<br />

“Sim, adoro Te!”<br />

Ao lado de tudo isso que representa<br />

o fator força, varonilidade,<br />

seriedade, decisão, eu via<br />

algo de um sorriso, com tanta<br />

doçura, tanta harmonia interna<br />

n’Ele e externa d’Ele com tudo o<br />

que existe, um modo tão bondoso<br />

de tomar todas as coisas, que<br />

se fica sem saber o que dizer.<br />

Uma bondade insondável, que<br />

levava sua condescendência para<br />

comigo a um grau inimaginável.<br />

Na bondade exatamente o que<br />

encanta é que ela seja insondável.<br />

Porque uma bondade que tem limite…<br />

No começo da caminhada<br />

dentro das luzes dessa bondade,<br />

encontramos “sim, sim, sim...”<br />

Mas chega um determinado momento<br />

em que sabemos que vamos<br />

encontrar um “não”.<br />

Ora, o desejo do coração humano<br />

é de uma bondade que não<br />

tenha “não”. Sem o auxílio da graça isso<br />

é impossível num homem. Mas, com<br />

o auxílio da graça, é possível. Os Santos<br />

foram assim, sobretudo Nossa Senhora.<br />

Pois bem, infinitamente acima<br />

d’Ela está Ele. Nosso Senhor é o arquétipo<br />

da mansidão, a perfeição da<br />

doçura, da suavidade; e sumamente<br />

atraente, afável também. Ele nos<br />

ama de um amor sereno, que nos envolve<br />

e nos penetra por inteiro, que<br />

faz todo o bem cabível.<br />

Inimigo inexorável dos defeitos,<br />

mas de uma bondade<br />

requintada e cheia de perdão<br />

Digno a mais não poder, mas disposto<br />

a ouvir, inclusive qualquer<br />

ofensa, com bondade, desde que haja<br />

12


uma vantagem para as almas ou para<br />

a glória do Padre Eterno. É o que<br />

tão bem simboliza a figura do pelicano<br />

que fere o próprio peito para alimentar<br />

seus filhotes. É uma imagem<br />

do Sagrado Coração de Jesus.<br />

Entretanto, eu compreendia ser<br />

Ele bastante firme para não ter, por<br />

causa dessa bondade, nenhuma forma<br />

de condescendência mole que<br />

implicasse em qualquer grau de pacto<br />

com um defeito meu. Pelo contrário,<br />

era um inimigo inexorável dos<br />

meus defeitos e teria horror a qualquer<br />

perturbação na ordem que Ele<br />

criou. Porém, com um amor – porque<br />

é amor – muito cheio de intransigência<br />

porque cheio de ordem, mas<br />

também cheio de perdão. Então, é<br />

Nosso Senhor esbofeteado, flagelado,<br />

tratado como sabemos e<br />

não perdendo a paciência nenhuma<br />

vez. Bondoso, patiens<br />

et multæ misericordiæ: paciente,<br />

quer dizer, capaz de sofrer,<br />

e de muita misericórdia.<br />

O apelo ao coração para exprimir<br />

essa bondade requintava<br />

essa ideia ainda mais, pois o que<br />

o homem tem simbolicamente<br />

de mais sensível, mais delicado,<br />

o que exprime melhor tudo<br />

quanto na alma dele não é brutalidade<br />

e egoísmo, é o coração.<br />

Ademais, por uma particularidade<br />

minha, pois sou muito<br />

sensível a cores, a cor com que<br />

era pintado o Coração de Nosso<br />

Senhor era de um certo tom de<br />

vermelho que me parecia exprimir<br />

muito bem esses conceitos.<br />

Eu não era capaz de explicitar,<br />

mas o que estava na minha<br />

cabeça, com muita força, era<br />

que quem reunia virtudes tão diversas<br />

com um tão alto grau de<br />

perfeição não poderia deixar de<br />

ser Deus. Porque está acima das<br />

condições humanas reunir virtudes<br />

não contraditórias, pois nunca<br />

há contradição entre virtudes<br />

verdadeiras, mas virtudes tão<br />

diversas, e reuni-las de um modo tão<br />

profundamente harmônico...<br />

Isso me agradava sobremaneira,<br />

porque eu percebia haver aí uma<br />

perfeição extraordinária e que o modelo<br />

perfeito do homem é assim. No<br />

fundo, tudo capitulado pela majestade<br />

divina, que é, debaixo de certo<br />

ponto de vista – embora a expressão<br />

não seja apropriada – a qualité maîtresse<br />

que ordena tudo isso.<br />

Adoração sem limites<br />

ao Homem-Deus<br />

Jesus pregando aos discípulos - Igreja de<br />

Santa Marta, Sarasota, Estados Unidos<br />

Daí minha admiração sem limites,<br />

cujo nome é adoração, e reconhecimento<br />

de que Ele é Homem-<br />

-Deus! Em primeiro lugar existiu assim,<br />

porque com essa perfeição ninguém<br />

inventaria. E é Homem-Deus<br />

porque, se o artista quisesse representar<br />

um Homem-Deus conceberia<br />

esse. É, portanto, o Homem-Deus,<br />

não tem conversa! Um ser humano<br />

não inventa uma figura como essa.<br />

Contemplando o feitio do rosto<br />

d’Ele, eu pensava: “Olhe a fisionomia<br />

d’Ele! Como Ele é bonito! Isso é que<br />

é beleza! Bonito que ouço falar por aí<br />

é doce de confeitaria, não vale nada!<br />

Ele tem beleza! Se um dia eu quisesse<br />

analisar a ideia de beleza, eu viria aqui<br />

olhar para o semblante d’Ele, porque<br />

bonito é só Ele. Esse é o padrão. É um<br />

bonito mais de alma do que de corpo.<br />

Mas que corpo! E, por detrás desse<br />

corpo, que alma! Que maravilha!”<br />

Cheguei a manifestar a hipótese<br />

de todas as regras da estética do universo<br />

estarem contidas no rosto<br />

de Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />

A expressão da fisionomia é<br />

muito serena, muito compassiva<br />

e um tanto entristecida, com<br />

um sorriso ligeiramente triste, fitando<br />

a pessoa ajoelhada diante<br />

d’Ele, com uma leve inclinação<br />

para frente, como quem está<br />

com vontade de se dirigir ao<br />

fiel, imensamente convidativo,<br />

acenando com o Coração, que<br />

toca com a mão, e fazendo uma<br />

pergunta muda, um pouco como<br />

quem diz: “Você não quer um<br />

lugar aqui dentro para si? Você<br />

não me aceita? Olhe que tesouro!<br />

Isto é para você!”<br />

O rosto era o “vidro” através<br />

do qual eu via todo o resto:<br />

uma beleza de alma, um modo<br />

de ser extraordinário, de uma<br />

harmonia inimaginável.<br />

Angelo D. F.<br />

Amando cada coisa em<br />

sua devida proporção<br />

O trato de Nosso Senhor<br />

com os elementos da natureza<br />

era de uma superioridade, uma<br />

coisa extraordinária! Por exemplo,<br />

venti et mares obœdiunt ei<br />

13


Sagrado Coração de Jesus<br />

Luis C. R. Abreu<br />

(Mt 8, 27). Quando Ele aplacou aquela<br />

tempestade no Lago de Genezaré<br />

foi por uma ordem. Ele deu ordem<br />

aos ventos e às águas que se aplacassem,<br />

e diante desse ato imperativo o<br />

vento e os mares obedeceram.<br />

Era o domínio absoluto, com o direito<br />

e o poder de dominar, ordenando<br />

tudo segundo essa elevação de<br />

que falei; ao mesmo tempo, seguro<br />

de Si e, por causa disso, infinitamente<br />

sereno. E porque ordenando tudo<br />

segundo uma ordem que é o reflexo<br />

de Si próprio, amando cada coisa na<br />

proporção e na medida que lhe são<br />

próprias; e sendo amado também na<br />

medida e na proporção que Lhe são<br />

próprias.<br />

Então, no trato com a natureza,<br />

como também com os homens, aparece<br />

n’Ele um outro lado: uma suavidade<br />

e uma doçura extraordinárias!<br />

Uma doçura infinita em fazer o<br />

seu amor repousar sobre tudo quanto<br />

existe, com uma torrencialidade que<br />

até desconcerta, abarcando até o passarinho<br />

ou o fio de cabelo que<br />

caem e que ninguém nota –<br />

nem quem está junto da árvore<br />

de onde cai o passarinho,<br />

nem o dono do fio de cabelo<br />

–, mas que Ele conhece e ama<br />

como aquilo deve ser amado.<br />

Quando Ele fala, por<br />

exemplo da ovelha tresmalhada<br />

que se perdeu num<br />

carrascal e foi resgatada pelo<br />

bom pastor, entra tanto<br />

conhecimento do que há de<br />

suave, de doce, de débil e,<br />

portanto, próprio a ser benquisto<br />

na ovelha; ela, por ser<br />

frágil, é desejosa de se fundir<br />

em respeito, em veneração,<br />

em afeto por aquele que<br />

a pegou e a pôs nos ombros,<br />

que se vê que a própria imagem<br />

de uma ovelha, a qual<br />

teríamos como um bicho que<br />

vimos num campo, se transforma.<br />

Nosso Senhor eleva a<br />

dignidade da ovelha a um nível<br />

extraordinário pelo carinho com<br />

que Se refere a ela. Mesmo uma boa<br />

mãe não fala do seu filho como Ele<br />

falou da ovelha.<br />

E a ovelha passa a tomar a vida<br />

de um símbolo de certas disposições<br />

da alma humana, suaves, doces,<br />

as quais, em confronto com as disposições<br />

fortes, percebe-se que entre<br />

uma e outra linha de disposições<br />

existe uma diferença profunda, mas<br />

uma afinidade tão grande, que mal<br />

sabemos exprimir, pois é superior ao<br />

próprio vocabulário humano. Quem<br />

ouviu contar a parábola da ovelha<br />

tresmalhada, se procurar se lembrar,<br />

verá que isso que estou tentando<br />

descrever, sua alma apreendeu<br />

com vivacidade; mas alguma coisa<br />

lhe diz: “A felicidade está com Ele;<br />

acerta na escolha do caminho da vida<br />

quem se põe afim com Ele, porque<br />

recebe essa bondade. Ele tem o<br />

poder de dar aquilo que o seu afeto<br />

promete. E Ele não mente, dá de<br />

qualquer jeito, custe o que custar.”<br />

Proteção sobre tudo<br />

quanto é fraco e débil<br />

Há outras coisas desse gênero. Por<br />

exemplo, quando Nosso Senhor diz:<br />

“Olhai os lírios do campo...” (Lc 12,<br />

27). Parece uma canção! Uma frase<br />

simples, mas parece trazer algo do<br />

próprio timbre de voz d’Ele. Que coisa<br />

extraordinária!<br />

Se eu for num campo e encontrar<br />

um lírio, é o miserável lírio que o miserável<br />

<strong>Plinio</strong> Corrêa de Oliveira viu.<br />

Jesus viu um lírio do campo, o olhar<br />

d’Ele pousou ali, aquele lírio ficou<br />

valendo mais do que um sol porque<br />

Ele olhou. Quando Ele fala do lírio<br />

do campo é uma promoção maior do<br />

que promover um homem a príncipe.<br />

O lírio do campo aparece numa pureza,<br />

numa suavidade, numa dignidade!<br />

Tudo quanto é virginal, cândido,<br />

inocente aparece tão digno de respeito<br />

e de proteção, que se teria vontade<br />

de fazer uma Cruzada só para proteger<br />

os lírios do campo contra os maometanos,<br />

de tal maneira essa<br />

palavra do Divino Mestre penetra<br />

com profundidade dentro<br />

do espírito; pelo menos foi<br />

o que se deu comigo.<br />

A sabedoria que vai neste<br />

pensamento: “...não tecem<br />

nem fiam...” Ou seja, não fazem<br />

qualquer espécie de trabalho,<br />

mas o Pai Celeste cuida<br />

deles. Há nisso um tal desprezo<br />

pela procura das coisas<br />

da vida com excesso, como<br />

quem diz: “O Pai Celeste cuida<br />

de você. Por que você está<br />

se atormentando tanto assim?<br />

Tranquilize-se, deixe essa febricitação.<br />

Olhe para os lírios<br />

do campo; não teça nem fie,<br />

confie n’Ele, confie em Nossa<br />

Senhora, que você terá o que<br />

precisa. Não esteja correndo.<br />

Sobretudo, não procure ser<br />

um businessman, nem o admire.<br />

Este é o erro. Seja como o<br />

lírio do campo.”<br />

14


Essa proteção sobre tudo<br />

quanto é fraco, débil, vinda<br />

d’Aquele que há pouco fizera<br />

aplacar as tempestades,<br />

revela tal plenitude que eu<br />

não saberia dizer quanto isso<br />

me agrada.<br />

Outra passagem do Evangelho<br />

que sempre me impressionou<br />

muito são as palavras<br />

de Nosso Senhor sobre<br />

Jerusalém, quando caminhava<br />

rumo a essa cidade<br />

antes de começar sua Paixão,<br />

e nas quais Ele dizia: “Jerusalém,<br />

Jerusalém... quantas<br />

vezes Eu quis te reunir junto<br />

a Mim como a galinha reúne<br />

os seus pintainhos...” (cf.<br />

Mt 23, 37). No meu espírito,<br />

esse episódio forma um todo<br />

de harmonias mais ou menos<br />

insondável, com outras duas<br />

passagens: uma foi quando,<br />

passando diante do Templo,<br />

os Apóstolos começaram a<br />

achá-lo muito bonito (cf. Lc<br />

21, 5-6); outra, quando Jesus,<br />

vendo aquele panorama,<br />

chorou sobre Jerusalém (cf.<br />

Lc 19, 41-44).<br />

Ora, a comparação mais desigual<br />

que se possa imaginar é esta entre a figura<br />

de que estou falando e uma galinha.<br />

Um ser tão superior como Ele<br />

comparar-Se com uma galinha seria ridículo.<br />

Eu chego a dizer mesmo que,<br />

para um espírito desavisado, poderia<br />

parecer uma blasfêmia. Entretanto,<br />

n’Ele não. Ele empregou essa metáfora<br />

de tal maneira que fica tocante, enobrece,<br />

fica-se sem saber o que dizer.<br />

É muito bonito ver a elevação<br />

do pensamento d’Ele ao olhar para<br />

a galinha. É alguma coisa da alma<br />

d’Ele, eu quase ousaria dizer da vida<br />

interior d’Ele que transparece.<br />

Um de nós olha para a galinha,<br />

tem um desprezo natural e antipatiza.<br />

Mas Ele, olhando a galinha e vendo-a<br />

pôr os pintainhos sob as asas,<br />

que riquezas de maravilhas Ele traz<br />

O Bom Pastor - Convento da Imaculada<br />

Conceição, Torrijos, Espanha<br />

à tona! Isso indica o diapasão habitual<br />

do pensamento d’Ele.<br />

Dois aspectos da personalidade<br />

de Nosso Senhor<br />

É precisamente como eu achava<br />

que o arquétipo do homem deveria<br />

ser, mas como eu nunca seria capaz<br />

de imaginar. É sabendo como Ele foi<br />

que chego a compreender e, assim<br />

mesmo, de modo incompleto, porque<br />

Ele é insondável, superior a toda<br />

compreensão.<br />

É a harmonia, a delicadeza, a suavidade<br />

que têm uma ligação profunda<br />

com a força. A força assegura à delicadeza<br />

as condições de existência e<br />

permite-lhe ser delicada, porque ela é<br />

forte. Não é um jogo de palavras nem<br />

de retórica, mas na realidade as coisas<br />

são assim.<br />

Então vem ao espírito a<br />

profunda interpenetração dos<br />

dois aspectos da personalidade<br />

de Nosso Senhor que dão<br />

numa espécie de serenidade<br />

plácida, mas muito profunda.<br />

Tudo aquilo de que Ele tratava<br />

era considerado com essa<br />

profunda seriedade. Se refizermos<br />

um pouco o caminho<br />

desta exposição, considerando<br />

como Ele olhava para<br />

os lírios do campo, para uma<br />

tempestade que ameaçava devorá-Lo,<br />

para a ovelha, para a<br />

galinha, enfim, para tudo, vemos<br />

que as metáforas d’Ele<br />

mostram com que imensa profundidade<br />

Ele olhava para todas<br />

as coisas e qual era a altura<br />

transcendental de cima<br />

da qual Ele as considerava. É<br />

a Sabedoria Encarnada que,<br />

olhando o objeto, ressalta e<br />

faz ver a luz que há nele.<br />

Isso supõe uma infinita<br />

seriedade, cheia de força, de<br />

doçura, de estabilidade, de<br />

considerações, que até assustam<br />

um tanto, porque as promessas<br />

de felicidade que essa seriedade<br />

traz são tão grandes, que são<br />

um pouco desmedidas para os nossos<br />

anseios de felicidade. Mas também<br />

as ameaças de castigo tão tonitruantes,<br />

que são meio desmedidas<br />

para a nossa mísera fome de justiça.<br />

De maneira que tudo parece de uma<br />

medida desajustada para nós.<br />

Entretanto, devemos procurar ter<br />

esse espírito sendo bastante sérios,<br />

profundos e grandes, para estarmos<br />

proporcionados com isso. É como<br />

passar dos vermes às estrelas.<br />

Flávio Lourenço<br />

Sublimidade que convida<br />

a cogitar outras realidades<br />

na ordem do universo<br />

Com esta exposição, compreendemos<br />

melhor qual é o mundo de maravilhas<br />

que quereríamos, que nos daria<br />

15


Sagrado Coração de Jesus<br />

Blackburn, Jemima (CC3.0)<br />

uma alegria e uma felicidade de um<br />

gênero especial; não são as que os entusiastas<br />

dos vermes gostam, mas das<br />

que gostam os entusiastas das estrelas.<br />

É um outro mundo para o qual fomos<br />

feitos, no ápice do qual está, evidentemente,<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />

Essa situação confere a tudo quanto<br />

é d’Ele e de Nossa Senhora uma<br />

sublimidade que, quando não se está<br />

bem adestrado a essa ordem de<br />

ideias, tem-se dificuldade em medir.<br />

Porém, através dessa sublimidade,<br />

quem visse e adorasse Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo ficaria em condições de<br />

perceber uma porção de outras realidades<br />

na ordem do universo.<br />

Eu prestava atenção nessas coisas<br />

e isso tudo me enlevava muito. Era<br />

assim que eu via e vejo o Sagrado<br />

Coração de Jesus.<br />

Em vista disso, sou levado a procurar<br />

nos seres com que tenho contato<br />

o por onde podem ser ordenáveis<br />

para o Sagrado Coração de Jesus ou<br />

no que constitui a “Cor-Iesucidade”<br />

de cada criatura, desejando ver tudo<br />

desse modo e não sossegando a não<br />

ser na medida em que cada coisa seja<br />

assim, encontrando nisso o repouso<br />

de minha alma e de meus nervos.<br />

Porque, querendo isso, a pessoa não<br />

fica nervosa. Ainda que possa passar<br />

pelas contrariedades que forem, neste<br />

ponto está tudo em ordem e ela repousa<br />

no Sagrado Coração de Jesus.<br />

Daí se torna possível a sensibilidade<br />

humana expandir-se em todas as<br />

suas formas retas e nobres,<br />

de maneira caudalosa,<br />

torrencial, abrindo-se<br />

a toda espécie de variedades<br />

musicais,<br />

pictóricas, etc.,<br />

contanto que não<br />

entre desordem,<br />

todas elas não só<br />

resignadas a estar<br />

dentro disso, mas fazendo<br />

da apetência plena<br />

disso a fonte da sua originalidade<br />

boa.<br />

Seria como participar de uma<br />

grande orquestra, aberta a todos os<br />

instrumentos possíveis, mas dentro<br />

de uma certa harmonia, e que toca<br />

melodias sempre novas, as quais são<br />

uma glosa original da primeira partitura<br />

que, no Sagrado Coração de Jesus,<br />

é a majestade sacral, misericordiosa,<br />

onde tudo está contido.<br />

Amá-Lo com um<br />

amor sem medidas<br />

Aí está o fundo de minha mentalidade<br />

e de meu espírito católico. Mas<br />

está também o choque com a Revolução.<br />

Analisando os meninos de meu<br />

tempo, vinha a meu espírito uma objeção<br />

muito forte: como é que esses<br />

todos que vêm aqui e que têm a possibilidade<br />

de ver isso, como é que esses<br />

todos não tomam profundamente<br />

a sério? Olham como uns bobos,<br />

tartamudeiam uma oraçãozinha e<br />

vão embora. Onde estão com a cabeça?<br />

A frase pintada no teto da Igreja<br />

do Coração de Jesus – “Eis aqui<br />

o Coração que tanto amou os homens”<br />

–, como é verdadeira, a começar<br />

por mim que quereria amá-Lo<br />

muito mais do que amo! Pois bem,<br />

se eu amo menos do que quereria, o<br />

mundaréu de gente que eu vejo por<br />

aqui, como O ama? Não estão percebendo<br />

que essa frase foi dirigida<br />

a Santa Margarida Maria, mas também<br />

a cada homem que tem conhecimento<br />

dessa devoção? Então, por<br />

que não se importam? Onde está a<br />

lógica deles?<br />

Era já um pouco da polêmica contrarrevolucionária<br />

que começava.v<br />

Missa solene no Santuário do Sagrado Coração de Jesus,<br />

nos tempos da infância de <strong>Plinio</strong><br />

Inspetoria Salesiana de São Paulo<br />

16


Sagrado Coração de Jesus<br />

II<br />

Recusa culpada ao<br />

Sagrado Coração de Jesus<br />

A devoção ao Sagrado Coração de Jesus foi maculada pela<br />

Revolução, a qual procurou abafá-la e dar-lhe uma conotação de<br />

algo antiquado e sem vida. Com isso, as fontes de graças que a<br />

Providência abriu para salvar o mundo foram abandonadas.<br />

Pedro K.<br />

Eu notava uma diferença<br />

muito grande entre o espírito<br />

hollywoodiano que estava<br />

dominando cada vez mais a sociedade<br />

civil e Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo, e era levado a comparar a firmeza<br />

e a afabilidade d’Ele com as<br />

brutalidades e as “doçuras” sensuais<br />

da Revolução. Porque o homem<br />

revolucionário era brutal, o trato de<br />

uns com outros era de uma familiaridade<br />

desabrida, desagradável, uma<br />

coisa incrível.<br />

Quando tinham intimidades era<br />

para criar cumplicidades. Eram amigos<br />

na medida em que eles eram inimigos<br />

da autoridade e cúmplices para<br />

desobedecer, para organizar a revolta,<br />

para defraudar a autoridade,<br />

para diminuí-la. Nesses momentos<br />

eles eram amigos, do contrário eram<br />

inimigos uns dos outros.<br />

Assim outras coisas. Por exemplo,<br />

o boxe era um esporte muito praticado<br />

entre os rapazes de minha idade,<br />

mas eu nunca o pratiquei. Não permitia<br />

que um outro pusesse aquela<br />

luva e fosse de socos em cima de minha<br />

face. Absolutamente não. Mas<br />

eles gostavam e viam na minha atitude<br />

uma censura a eles.<br />

O uso da motocicleta. Um veículo<br />

feio que não tem nada de imoral em<br />

si, mas aquela barulheira enchendo a<br />

rua era o contrário de uma música. Se<br />

houvesse uma máquina que emitisse<br />

sons musicais, mas aquela porcaria...<br />

E quanto mais a pessoa pudesse<br />

obrigar a máquina a produzir sons e<br />

quanto mais esses sons fossem disparatados,<br />

mais ela ficava contente.<br />

Flávio Lourenço<br />

Sagrado Coração de Jesus<br />

Igreja Santa Maria dos Anjos,<br />

Ponte Lima, Portugal<br />

17


Sagrado Coração de Jesus<br />

Todas essas coisas produziam uma<br />

oposição enorme entre mim e a Revolução<br />

e faziam parte de minhas reflexões<br />

em menino.<br />

O espírito do Sagrado<br />

Coração contundido<br />

por Hollywood<br />

Bruce Wells CC3.0)<br />

sa trombada, ela teme que o conjunto<br />

existente dentro dela esteja ameaçado.<br />

E, no temer isso, ela analisa o que<br />

vem e percebe que toda coisa revolucionária<br />

ameaça a ordem universal.<br />

É uma revolução universal em germe<br />

que põe em risco a ordem universal.<br />

Entretanto, eu me sentia como dentro<br />

de um verdadeiro cárcere por não<br />

poder dizer isso a ninguém. Porque, se<br />

dissesse, eu ouviria de todo mundo a<br />

mesma resposta: “Você acha feio o barulho<br />

da motocicleta? Eu acho engraçado.<br />

Aliás, é coisa de moço. Moço é<br />

assim, gosta de fazer barulho.” Eu tinha<br />

vontade de perguntar: “Moço é<br />

besta quadrada, é isso?”<br />

Eu sabia que viria daí uma inimizade<br />

de morte, mas todos responderiam<br />

com as mesmas fórmulas estereotipadas.<br />

Eu ficava para lá de indignado, porque<br />

me sentia como se me amarrassem<br />

um pano na boca e me impedissem<br />

de falar. Então, uma incompatibilidade<br />

não sei de que tamanho, da altura<br />

de uma torre, do Pão de Açúcar!<br />

Nova fonte de graças num<br />

século em decadência<br />

A respeito das revelações do Sagrado<br />

Coração a Santa Margarida<br />

Maria, haveria um pormenor a comentar<br />

que faz parte do que nós,<br />

Analisando o estado de espírito<br />

de uma pessoa que reza ao Sagrado<br />

Coração de Jesus, comparando isso<br />

com o estado de espírito das músicas<br />

norte-americanas, aloucadas, desordenadas,<br />

daquele tempo, eu as julgava<br />

tão diferentes d’Ele que nem havia<br />

comparação. Eu chegava à conclusão<br />

de que Ele era o contrário de<br />

tudo aquilo. Portanto, o oposto da<br />

Revolução. Mas era uma conclusão<br />

baseada numa antinomia evidente.<br />

Uma vez que eu tinha visto como<br />

era Nosso Senhor Jesus Cristo, tinha-<br />

-O amado, e querido que as coisas fossem<br />

semelhantes a Ele, concordando<br />

com isso até o fundo da minha alma,<br />

eu não podia deixar de detestar o que<br />

era feito “hollywoodianamente”, diante<br />

do que eu tomava atitude, pondo-<br />

-me do lado d’Ele por completo, embora<br />

com prejuízo pessoal. E opondo-<br />

-me aos que se opunham a Ele.<br />

Daí, então, a luta total! Eu pensava:<br />

“Se é assim, vou lutar com todas<br />

as forças de minha alma dentro<br />

desta ordem, porque do<br />

contrário eu faria o papel<br />

de uma besta quadrada,<br />

colaborando para<br />

destruir aquilo cuja continuação<br />

eu quero.”<br />

De fato, uma alma encantada<br />

com as harmonias<br />

da majestade sacral<br />

do Sagrado Coração de<br />

Jesus, perante Hollywood<br />

sente-se violentamente<br />

posta em choque. Para<br />

usar a palavra francesa:<br />

heurtée. Tem um choque<br />

com as coisas que não são<br />

como Ele. E, em face descom<br />

dor, poderíamos chamar de a<br />

pós-história dessas revelações, e que<br />

é a história delas em nossos dias.<br />

O Sagrado Coração de Jesus apareceu<br />

a Santa Margarida Maria Alacoque<br />

num período em que o processo<br />

revolucionário já vinha se desenvolvendo<br />

largamente. E, debaixo de<br />

um certo ponto de vista, era um processo<br />

irreversível, pois a Idade Média<br />

estava extinta e a degringolada já<br />

começara. Embora restassem muitos<br />

aspectos magníficos e até em ascensão,<br />

por alguns lados, do velho corpo<br />

medieval, também é verdade que<br />

penetrara por toda parte a corrupção<br />

dos costumes e, com isto, o começo<br />

da Revolução sofística. Disso podemos<br />

ter bem a ideia se folheamos o<br />

Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima<br />

Virgem e consideramos as páginas<br />

que São Luís Maria Grignion<br />

de Montfort consagra à descrição da<br />

apostasia no tempo dele. É um quadro<br />

trágico e precursor da Revolução.<br />

Nesse momento interveio o Sagrado<br />

Coração de Jesus manifestando-Se<br />

a essa religiosa da Ordem da Visitação<br />

e declarando-lhe que Ele abria para as<br />

almas uma nova fonte de graças. Esta<br />

era a devoção ao Sagrado Coração<br />

d’Ele, e quem a praticasse receberia<br />

graças maiores, mais abundantes, mais<br />

generosas do que se tinham no passado,<br />

e com isso Ele atraía toda a humanidade<br />

à conversão.<br />

Essa devoção teve peripécias<br />

na sua expansão,<br />

mas, afinal de contas, pode-se<br />

dizer que atingiu o<br />

seu auge na Santa Igreja<br />

Católica no século XIX<br />

e no período que vai até<br />

mais ou menos 1935;<br />

portanto, meados do reinado<br />

de Pio XI.<br />

Com efeito, essa devoção<br />

foi muito estudada,<br />

teve grandes doutores, entre<br />

os quais São João Eudes;<br />

ela foi bem recebida<br />

pelos Papas, Leão XIII<br />

18


fez uma consagração do mundo<br />

ao Sagrado Coração de Jesus 1 e<br />

vemos, um pouco por toda parte,<br />

nas cidades construídas em<br />

fins do século XIX e no começo<br />

do XX – no Brasil, por exemplo<br />

–, haver igrejas consagradas ao<br />

Sagrado Coração de Jesus. Era<br />

uma devoção que estava muito<br />

em vista e que fazia muito bem<br />

às almas.<br />

Dupla campanha<br />

contra a devoção ao<br />

Sagrado Coração<br />

A partir do momento em<br />

que a heresia modernista –<br />

condenada por São Pio X e<br />

que esteve em letargo, mas jamais<br />

morta –, com o rótulo de<br />

Ação Católica, de Movimento<br />

Litúrgico, começou a levantar<br />

a cabeça no reinado de Pio<br />

XI e, daí em diante, até o pontificado<br />

de Pio XII, ela não fez senão se<br />

desenvolver à socapa dentro da Igreja,<br />

passando a combater a devoção<br />

ao Sagrado Coração de Jesus.<br />

Esse combate era feito de dois modos:<br />

um, venenoso, mas não o mais<br />

eficiente, de cochichar nos meios da<br />

Ação Católica e do Liturgicismo que<br />

era uma devoção sentimental, efeminada,<br />

sem conteúdo teológico e que<br />

só um tipo mal formado espiritualmente<br />

poderia ter. Quem objetasse:<br />

“Mas a Igreja aprovou essa doutrina<br />

como verdadeira, canonizou São<br />

João Eudes, Santa Margarida Maria.<br />

Onde está, então, a infalibilidade<br />

da Igreja?”, tal pessoa perdia as boas<br />

graças das autoridades eclesiásticas<br />

infiltradas nesse erro e ficava posta<br />

de lado no Movimento Católico.<br />

Era, portanto, uma espécie de<br />

máfia contra o Sagrado Coração de<br />

Jesus. Ao lado disso, havia uma manobra<br />

mais perigosa: o silêncio. Deixou-se<br />

de impulsionar essa devoção<br />

e de falar a respeito dela em larguíssimos<br />

meios. Não se construíram<br />

Aparição do Sagrado Coração a Santa Margarida Maria<br />

Alacoque - Igreja dos Jesuítas, Córdoba, Argentina<br />

mais igrejas em louvor ao Sagrado<br />

Coração de Jesus. O mês de junho,<br />

que era instituído para honrá-Lo em<br />

quase todas as matrizes, deixou também<br />

de ser consagrado a Ele. Fez-se<br />

caso omisso disso e começaram a fazer<br />

circular outras devoções novas e<br />

de um conteúdo teológico suspeito.<br />

A virtude e a devoção<br />

apresentadas como uma<br />

imagem da morte<br />

Eu assisti, assim, ao ocaso das graças<br />

da devoção ao Sagrado Coração<br />

de Jesus, com certas formas dessa devoção<br />

que pareciam carentes de vida.<br />

De maneira que, no fim, ela era praticada<br />

por velhotas em confrarias agonizantes,<br />

com fórmulas assim: “Você<br />

tem um parente ou um amigo que está<br />

com dificuldade? Meta uma estampa<br />

do Sagrado Coração de Jesus no bolso<br />

dele que tudo se arranjará.” Com base<br />

num fato que alguma vez se fez isso<br />

com alguém e deu um resultado extraordinário,<br />

que conferia com as promessas<br />

de Paray-le-Monial.<br />

Sebastião C.<br />

Reduzir essa devoção a isso?<br />

Estão conspurcando! O zelador<br />

e a zeladora do Coração<br />

de Jesus usavam uma fita vermelha<br />

da qual pendia uma espécie<br />

de medalhão branco com<br />

o Sagrado Coração de Jesus<br />

impresso. Em si mesmo muito<br />

venerável, mas que estava cercado<br />

de conotações que já não<br />

eram portadoras das verdadeiras<br />

graças.<br />

O indivíduo, então, ia procurar<br />

a vida e em vez de buscá-la<br />

na devoção ao Sagrado<br />

Coração de Jesus, tomava como<br />

sendo vida aquilo que era o<br />

contrário, pois em torno dessa<br />

devoção tudo parecia ser morte.<br />

Ora, pela operação normal<br />

das coisas isso é morte; logo, a<br />

vida é o oposto disso.<br />

A vida era, por exemplo,<br />

o Ford Bigode, o Chevrolet,<br />

mas também um pêssego da Califórnia,<br />

grande, suculento, com uma cor<br />

muito bonita. Aquela cor de pêssego<br />

me dava a impressão de vida, em<br />

contraste com uns pesseguinhos nascidos<br />

aqui, não sei em que lugar, sequinhos,<br />

mirradinhos, verdinhos e<br />

que me pareciam conaturais com minha<br />

tradição colonial, não com o ribombo<br />

de vida que a coisa norte-<br />

-americana, hollywoodiana, teria introduzido<br />

no mundo.<br />

Nessa perspectiva também era vida<br />

o jazz, comparado, por exemplo,<br />

a uma música muito bem feita, muito<br />

direita: “Bendito e louvado seja<br />

o Santíssimo Sacramento; os Anjos,<br />

todos os Anjos digam para sempre<br />

amém…” Mas a questão era como<br />

se cantava isso… Depois, as vozes...<br />

Tinha sempre uma que era o<br />

“Bayard” 2 do desafinamento, ou seja,<br />

possuía todas as ousadias do desafinamento,<br />

era uma espécie de<br />

analogado primário nessa matéria.<br />

O pior era o modo mole de cantar:<br />

“Os Anjos, todos os Anjos digam<br />

a Deus para seemmmmmpre<br />

19


Sagrado Coração de Jesus<br />

Flávio Lourenço<br />

amémmm!” O que dizer de uma coisa<br />

dessas?<br />

O mesmo se dava com o tipo humano<br />

do rapaz. Para o meu tempo<br />

de jovem, tudo quanto se podia querer<br />

para um rapaz era que fosse bem<br />

apessoado, rico, fino, bonito, bem<br />

sucedido; nas brigas dele, todo mundo<br />

recuava; nas audácias dele, todo<br />

mundo o admirava; no lugar onde<br />

estava, tinha um primado natural,<br />

ímpio, porco e alegre de sua impureza<br />

e blasonava de sua impiedade.<br />

O contrário disso era o conceito<br />

que faziam a respeito do rapaz piedoso<br />

que, juntamente com as velhotas<br />

que cantavam “...digam sempre<br />

amém” e tudo quanto se referia à piedade,<br />

eram a imagem da morte, em<br />

oposição a Hollywood. O que era a vida,<br />

então? Ora, as velhotas, o rapaz<br />

piedoso etc., representavam a virtude.<br />

Portanto, não só a devoção ao Sagrado<br />

Coração de Jesus, mas a virtude<br />

é igual à morte. E, pelo contrário, o<br />

hollywoodianismo é igual à vida. Deste<br />

dilema parecia não ter escapatória.<br />

Nessa história da vida e da morte,<br />

tenho a impressão de que entrava<br />

qualquer coisa de ação diabólica<br />

acentuando toda forma de concupiscência<br />

e de vontade de viver a vida<br />

terrena com descaso da vida eterna.<br />

A majestade infinita e tudo quanto<br />

falei sobre o Sagrado Coração de<br />

Jesus era contrário à forma de fruição<br />

de vida hollywoodiana. Como o<br />

referente ao Sagrado Coração de Jesus<br />

era sobrenatural, desconfio que<br />

o resto estava sob ação do demônio.<br />

O hollywoodismo foi uma ofensiva<br />

na ordem temporal, mas com repercussões<br />

espirituais de toda ordem, que<br />

acentuou o conceito de que a Igreja<br />

Católica constantiniana era morta<br />

e despertou a ideia de que a Igreja só<br />

poderia viver no progressismo.<br />

O pecado do mundo<br />

contemporâneo<br />

Hoje em dia, pode-se dizer que a<br />

devoção ao Sagrado Coração de Jesus,<br />

como tantas outras, estão postas de lado<br />

e são tesouros com que ninguém se<br />

preocupa. São fontes de graças que a<br />

Providência abriu para salvar o mundo<br />

e que estão abandonadas, já ressequidas,<br />

porque como os homens não<br />

vão procurar essas graças, o resultado<br />

é que eles também não as recebem.<br />

Essa recusa da devoção ao Coração<br />

de Jesus é muito mais culpada do<br />

que a do centurião que perfurou com<br />

a lança o cadáver de Nosso Senhor<br />

morto, atingindo o Coração, símbolo<br />

do amor de Deus aos homens, assim<br />

transpassado barbaramente, e de<br />

São João Eudes - Igreja de São<br />

Salvador, Rennes, França<br />

onde saíram água e sangue. Conta-<br />

-se que esse centurião era quase cego<br />

e que, quando ele atingiu o Coração,<br />

aquela água e aquele sangue que<br />

restavam do corpo de Nosso Senhor<br />

caíram em parte sobre ele, que ficou<br />

curado e, com isto, se converteu.<br />

Pecado análogo foi cometido pelo<br />

mundo contemporâneo, recusando<br />

e extinguindo a devoção ao Sagrado<br />

Coração de Jesus entre os católicos.<br />

Contudo, desse crime não saiu nenhuma<br />

água e nenhum sangue que<br />

lavassem e curassem a cegueira. O<br />

mundo está rolando cada vez mais<br />

para o abismo.<br />

v<br />

Flávio Lourenço<br />

Longinus crava a lança no costado do Salvador - Galeria Nacional de Úmbria, Itália<br />

1) Realizada em 11 de junho de 1899.<br />

Um tempo antes, anunciou a consagração<br />

através da Encíclica Annum<br />

Sacrum, de 25 de maio de 1899.<br />

2) Pierre Terrail LeVieux, senhor de<br />

Bayard (*1476 - †1524). Cavaleiro<br />

destemido e irrepreensível.<br />

20


Sagrado Coração de Jesus<br />

III<br />

Uma devoção para o<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Reino de Maria<br />

Torre do Santuário do Sagrado<br />

Coração de Jesus em São Paulo<br />

Assim como a obra-prima da fidelidade de Maria foi<br />

conceber na mente a fisionomia do Messias antes<br />

da Encarnação, algo análogo se passará com a Igreja<br />

em relação à devoção a Nossa Senhora. O Sagrado<br />

Coração de Jesus e o Imaculado Coração de Maria<br />

são o ponto central em torno do qual gira a História.<br />

Ainda em menino, como eu<br />

era acostumado a raciocinar,<br />

vinha-me a ideia de<br />

que a essas formas transatas de piedade<br />

faltava uma certa seiva que tiveram<br />

outrora, mas que a hora delas<br />

na História tinha passado. Soara um<br />

gongo a partir do qual ou era a Revolução<br />

Francesa ou a irrupção de<br />

Hollywood no mundo inteiro.<br />

Graças que a devoção<br />

ao Sagrado Coração de<br />

Jesus trazia consigo<br />

Entretanto, remontando através<br />

dos restos da devoção ao Sagrado<br />

Coração de Jesus que eu conheci<br />

mais límpidos, mais direitos, ao frequentar<br />

a Igreja do Coração de Jesus,<br />

no meu tempo de menino, quando<br />

ela difundia, irradiava algo dessa<br />

graça; e tomando, sobretudo, essa<br />

devoção como era praticada por minha<br />

mãe e como ela a levou até o fim<br />

de sua vida, eu sentia, no palpitar de<br />

sua alma, uma espécie de foco contínuo<br />

do que havia de melhor do pulsar<br />

da devoção ao Sagrado Coração<br />

de Jesus que eu conheci, em outras<br />

ocasiões, quando pulsava bem.<br />

Quantas vezes eu, olhando para<br />

ela, dizia de mim para comigo:<br />

“Se mamãe não tivesse recebido<br />

o olhar d’Ele, ela não teria esse<br />

olhar para mim.” A devoção que<br />

eu tenho ao Sagrado Coração de<br />

Jesus é vista através dos olhos dela.<br />

E, considerando aquela imagem<br />

do Coração de Jesus que está no<br />

quarto dela, mas, a bem dizer, vista<br />

de dentro dos olhos de mamãe e, menos<br />

do que isso, em alguma medida,<br />

a imagem do Coração de Jesus que<br />

está na sala de visitas de meu apartamento,<br />

tomando tudo isso em sucessão,<br />

aparece um estilo de graça a qual<br />

eu tenho a impressão que havia, em<br />

grau intenso e excelente, no Paray-le-<br />

-Monial do tempo de Santa Margari-<br />

<strong>Plinio</strong> por volta do ano de 1922<br />

da Maria, e que durante muito tempo<br />

foi assim. Esse estilo de graça deve<br />

ter estado na raiz do movimento<br />

contrarrevolucionário do século XIX,<br />

mas foi sendo gradualmente mingua-<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

21


Sagrado Coração de Jesus<br />

do e deteriorado, antes de perder<br />

a vitalidade, uma espécie de<br />

constrição pré-mortal.<br />

Nessa constrição, durante algum<br />

tempo as graças que passaram<br />

ainda eram de nível individual,<br />

quando o horizonte era muito<br />

maior. E no nível individual,<br />

excelsas. Quando a graça bate, é<br />

uma forma de bondade, de comiseração<br />

que invade e o Sagrado<br />

Coração de Jesus toma conta.<br />

Mas eu sou levado a supor,<br />

com esses dados, que o verdadeiro<br />

horizonte dessa devoção<br />

seja ainda muito mais amplo e<br />

que esse horizonte individual<br />

que conhecemos seja uma parte<br />

apenas daquele que essa devoção<br />

trazia consigo. O que explica<br />

mais as graças extraordinárias<br />

ligadas a essa devoção.<br />

Verdadeiro ponto em<br />

torno do qual tudo gira<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Imagem do Sagrado Coração de Jesus<br />

pertencente a Dona Lucilia<br />

ra. E que, tirado desse ponto, tudo gira<br />

errado, e que a vida é compreender<br />

e desejar isto, ou seja, mais especificamente,<br />

o Sagrado Coração de Jesus e<br />

o Imaculado Coração de Maria.<br />

As descrições que fiz do Sagrado<br />

Coração de Jesus dão inteira e linearmente<br />

isso. Ele é superior a qualquer<br />

consideração, por um lado. Por outro<br />

lado, na sua superioridade, Ele habita<br />

em nós mais do que nós mesmos, está<br />

no fundo de cada um de nós. Ao mesmo<br />

tempo em que está no alto de um<br />

Céu inatingível por nós, Ele habita no<br />

fundo de nós e tem a possibilidade<br />

de tomar contato conosco de manei-<br />

Quais seriam a envergadura<br />

e o horizonte total da devoção<br />

ao Sagrado Coração de Jesus?<br />

Quem se abrisse a essa devoção<br />

– estou falando agora em<br />

escala individual –, introduziria<br />

na alma uma espécie de respiração<br />

de um ar sobrenatural<br />

impregnado de muita misericórdia,<br />

de muita clemência. Mas<br />

uma misericórdia e uma clemência<br />

impregnadas, por sua vez, de uma<br />

grandeza, de uma elevação de vistas,<br />

que eu não chamo de senso metafísico<br />

só porque o senso metafísico<br />

é muito pouco para designar isso. É<br />

um senso do sobrenatural.<br />

Essa realidade superior, a alma encontra<br />

quando é tocada pela graça a<br />

propósito de Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />

de Nossa Senhora e de toda a ordem<br />

celeste, por onde ela contempla<br />

almas de uma categoria, de uma beleza,<br />

de uma maravilha tais, que ela fica<br />

compreendendo que este é o verdadeiro<br />

ponto em torno do qual tudo gira<br />

a vibrarem cordas de nossas<br />

almas que não sabíamos existirem.<br />

Assim é Ele.<br />

Reconciliação augusta<br />

entre a inteligência<br />

e a vontade<br />

Nesse estado de alma se estabelece<br />

um equilíbrio pelo qual<br />

se dá uma espécie de reconciliação<br />

augusta entre a inteligência<br />

e a vontade, por onde a inteligência<br />

só apresenta à vontade<br />

coisas que a vontade reta possa<br />

querer, e à vontade só apetecem<br />

coisas que a inteligência possa<br />

justificar. A vontade fica consumida<br />

nisso; essa graça do Coração<br />

de Jesus entra na vontade<br />

humana quase à maneira de<br />

uma espada dentro da bainha.<br />

Não é uma superação do pecado<br />

original, mas uma contenção<br />

muito grande das desordens<br />

dele em virtude de um auxílio<br />

sobrenatural. Não que o<br />

efeito no homem seja menor,<br />

caso a natureza humana seja<br />

entregue a si mesma, mas é um<br />

auxílio que, ab extrinseco, produz<br />

esse efeito no homem que<br />

se abra a essa graça e uma sensibilidade<br />

amiga do ordenado,<br />

do lógico, do verdadeiro, que<br />

apetece uma forma de beleza augusta,<br />

tranquila, serena, forte, ordenada,<br />

correspondendo a um padrão<br />

de homem contrário ao do Humanismo.<br />

Portanto, está presente ali a<br />

Contra-Revolução A, é inegável.<br />

Alguns ultramontanos 1 do século<br />

XIX foram humanistas de tendências<br />

e, às vezes, de cultura. Uma espécie<br />

de Voltaire 2 com água benta,<br />

fazendo sarcasmos, graças, por vezes<br />

de muito bom quilate, mas que não<br />

tinham aquele ar augusto, sereno,<br />

nobre da devoção ao Sagrado Coração<br />

de Jesus. Ora, o modelo para o<br />

homem é Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />

não o Humanismo.<br />

22


Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Interior do Santuário do Sagrado Coração de Jesus em São Paulo<br />

Mas desejo ressaltar a prodigiosa<br />

proposta da Contra-Revolução A feita<br />

por essa devoção, devido a uma ação<br />

ordenadora no fundo da alma humana,<br />

na junção entre o espírito e a alma de<br />

que fala São Paulo (cf. Hb 4, 12), a partir<br />

da qual se regenerasse o homem.<br />

Um horizonte muito maior<br />

ligado ao segredo de Fátima<br />

Isso corresponderia à envergadura<br />

das graças que sentimos pulsar na devoção<br />

ao Sagrado Coração de Jesus e,<br />

portanto, vê-se como é provável que<br />

a amplitude do horizonte fosse muito<br />

maior do que aquilo que se conhecia<br />

nos ambientes católicos de então.<br />

Tenho uma certa suspeita de que,<br />

lidas as revelações a Santa Margarida<br />

Alacoque – supostamente íntegras –,<br />

com o que se passou desde essas aparições<br />

de Paray-le-Monial até os dias<br />

de hoje, se perceberia um horizonte<br />

dessa devoção de algum modo relacionado<br />

com a crise da Igreja. Portanto,<br />

com o tema tratado no Segredo de<br />

Fátima. Não quero afirmar que a devoção<br />

trouxesse um prenúncio de que<br />

Nossa Senhora apareceria em Fátima,<br />

mas a temática presumível do segredo<br />

se encontraria lá, embora na atmosfera<br />

própria dessa devoção.<br />

O efeito do olhar de Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo<br />

Para minha sensibilidade, o ambiente<br />

da Igreja do Sagrado Coração de Jesus<br />

traz esse estado de espírito mencionado<br />

acima. Sem dúvida, existem na<br />

Europa milhares de igrejas de um valor<br />

artístico muito maior do que a do Sagrado<br />

Coração de Jesus dos Campos<br />

Elíseos. Contudo, há uma coisa qualquer<br />

nessa igreja que, estando lá, tenho<br />

a impressão de que os olhos d’Ele<br />

estão pousando em mim naquele momento.<br />

Eu me delicio em ver-me visto<br />

e envolvido pela serenidade afetiva, doce,<br />

cheia de sabedoria, mas ao mesmo<br />

tempo pelo império d’Ele e pelo terror<br />

da rejeição d’Ele. O pior que pode haver<br />

é ser rejeitado por Ele.<br />

Ali, todos os mistérios da devoção<br />

ao Sagrado Coração de Jesus e ao<br />

Imaculado Coração de Maria vêm à<br />

tona. Quanto nós gostaríamos de nos<br />

ver fisicamente olhados por Ele! Eu<br />

tenho a impressão de que “asperges<br />

me hyssopo et mundabor, lavabis me<br />

et super nivem dealbabor” (Sl 50,9).<br />

O olhar d’Ele me lavaria, eu ficaria<br />

mais alvo do que a neve.<br />

Diante do olhar d’Ele eu diria: “Anima<br />

Christi, santifica me!” Eu estaria<br />

tendo o que eu desejo, o ideal de minha<br />

vida! Aquele olhar meio interrogativo,<br />

ligeiramente reprobatório, enormemente<br />

amoroso, envolvente e, para<br />

dizer mais, encomiástico, no seguinte<br />

sentido: não há barreiras, venha!<br />

Vem-me à memória aquela canção<br />

de Francisco Guerrero 3 , que termina<br />

com esta frase: “si, pues, morís<br />

por mí, miradme al menos.” A poesia<br />

se refere a uma alma pecadora<br />

que está aos pés da Cruz, onde Nosso<br />

Senhor agoniza. E essa alma tem<br />

em mente os pecados que cometeu<br />

e pede perdão. Mas parece sentir<br />

que seus pedidos não são atendidos,<br />

porque ela insiste: “Perdoai,<br />

perdoai, perdoai!” Então ela tem es-<br />

23


Sagrado Coração de Jesus<br />

ta apóstrofe final: “Mas, afinal,<br />

se Vós morreis por mim<br />

na Cruz, pelo menos, antes de<br />

morrer, olhai-me.”<br />

Mas aqui vem a ideia de que<br />

os dois olhares se encontrando,<br />

ela está resgatada, pois esse<br />

olhar contém o perdão que<br />

ela deseja. Assim, o pecador,<br />

conseguindo cruzar o olhar<br />

com Nosso Senhor, sente que<br />

Ele lhe diz: “Meu filho, como<br />

és diferente de Mim! Entretanto,<br />

que imensidade de afinidades<br />

há entre Mim e ti! Vem, Eu<br />

te perdoo!”<br />

Profundidade de<br />

um olhar, de uma<br />

fisionomia<br />

Luis C.R. Abreu<br />

Certa ocasião, entrando<br />

numa livraria católica, vi um<br />

livro de Antero de Figueiredo<br />

4 – escritor português com<br />

quem me correspondi, porque<br />

ele me escreveu uma carta<br />

muito bonita, felicitando-<br />

-me pela publicação do Em Defesa da<br />

Ação Católica – intitulado: O último<br />

olhar de Jesus. Eu ainda não conhecia<br />

o autor, mas comprei o livro, embora<br />

sempre estivesse curto de dinheiro.<br />

Pensei o seguinte: “Isso é tema! O<br />

último olhar de Jesus que, com certeza<br />

não foi, como imaginou Francisco<br />

Guerrero, para um pecador, mas<br />

para Nossa Senhora. Compreender,<br />

nessa última troca de olhares, com<br />

que profundidade Se amaram e como,<br />

naquele derradeiro momento, se<br />

coroava a vida de contínua e crescente<br />

afinidade! Um homem que escreve<br />

sobre isso tem esse estado de espírito,<br />

esse mirante dentro da alma.”<br />

A meu ver, se nós recebermos essa<br />

graça dizendo a Ele, por meio d’Ela:<br />

“Miradme al menos! Fazei com que, em<br />

certo momento, meu olhar encontre o<br />

vosso e eu, por assim dizer, ressuscite”,<br />

então se compreende como será o Reino<br />

de Maria, com os homens dotados<br />

Sagrado Coração de Jesus - Convento da Luz, São Paulo<br />

desse espírito e vendo tudo, até uma<br />

galinha, como Nosso Senhor via.<br />

É a partir disso que se estabelece<br />

a boa amizade segundo Deus: amar o<br />

próximo como a si mesmo por amor<br />

de Deus; e nasce um relacionamento<br />

humano que eu creio que, com tanta<br />

plenitude, talvez não tenha sido frequente<br />

na própria Idade Média.<br />

Suponho que se a Idade Média tivesse<br />

continuado, o Sagrado Coração<br />

de Jesus teria revelado essa devoção<br />

de qualquer forma. A grande<br />

maravilha d’Ele foi perdoar as rupturas<br />

da Idade Média e, apesar disso,<br />

chamar para essa devoção.<br />

Obra-prima da fidelidade<br />

de Nossa Senhora<br />

Nota-se essa maravilha neste fenômeno:<br />

as imagens antigas de Nosso<br />

Senhor, do tempo das catacumbas,<br />

não representam de modo adequado<br />

a fisionomia d’Ele.<br />

Aos poucos, a Igreja foi elaborando<br />

essa fisionomia e<br />

quando aparece o Santo Sudário,<br />

vê-se que corresponde<br />

à elaboração da Igreja. Durante<br />

séculos ela teve uma espécie<br />

de intuição, de tal maneira<br />

que quando se vê o Santo<br />

Sudário, se exclama: “É esse!”<br />

O mesmo que foi intuído<br />

e elaborado pelo sensus fidelium<br />

ao longo dos tempos.<br />

Se eu adoto em relação a<br />

Nossa Senhora o mesmo processo<br />

de análise da piedade<br />

como ela é, inclusive em mim,<br />

eu noto um fato curioso que<br />

me levanta também uma hipótese<br />

certamente muito bonita.<br />

Não sei até que ponto os fatos<br />

a confirmarão. É a seguinte:<br />

Depois de elaborada pela<br />

Igreja a face do Sagrado Coração<br />

de Jesus, a Igreja faz o<br />

mesmo que Nossa Senhora,<br />

que compôs a fisionomia do<br />

Messias antes de se dar n’Ela<br />

a Encarnação do Verbo. Quando Ela<br />

acabou de construir a fisionomia, o<br />

Anjo baixou e A convidou para ser a<br />

Mãe do Messias.<br />

Ao tomar conhecimento desse comentário,<br />

pensei: “Estava à altura<br />

d’Ela, sim, imaginá-Lo.” Para mim<br />

era normal que a Mãe d’Ele O tivesse<br />

imaginado antes de tê-Lo concebido<br />

e que só Ela pudesse ter feito<br />

isso. E é compreensível que, logo depois,<br />

tenha vindo o Anjo e coroado<br />

essa obra-prima de fidelidade à graça<br />

existente no espírito d’Ela. Quem<br />

imaginou é digna de gerar. Sempre<br />

que penso nisso eu me entusiasmo.<br />

A figura completa de Nossa<br />

Senhora a ser modelada<br />

no Reino de Maria<br />

Há uma coisa muito curiosa nas<br />

imagens de Nossa Senhora que são<br />

dois modos diferentes de olhá-las.<br />

24


Divulgação<br />

Um é o juízo que se faz da imagem,<br />

correspondente àquele ente feminino<br />

representado ali, considerado com<br />

a psicologia que teria se não fosse a<br />

Mãe de Deus. Outro é considerado<br />

com a psicologia que teria se fosse a<br />

Mãe de Deus. E sempre, na segunda<br />

hipótese, aparece por detrás algo que<br />

é o mesmo em todas as imagens, por<br />

mais que elas sejam diferentes entre<br />

si, mas que não tem muita relação<br />

com o rosto da imagem.<br />

Seria como se a Igreja também<br />

estivesse compondo o retrato d’Ela<br />

através dos séculos, mas da seguinte<br />

maneira: por enquanto, Ela faz<br />

sentir um imponderável em todas as<br />

imagens d’Ela. Nisso está o começo<br />

da modelagem, mas, de fato, o rosto<br />

ainda não está composto.<br />

Tomem, por exemplo, a imagem<br />

de Nossa Senhora do Carmo que está<br />

na Sede do Reino de Maria. Todos<br />

sabem como venero essa imagem.<br />

Entretanto, nós vemos nela<br />

uma como que “trans-imagem”. Há<br />

uma graça que recebemos de conceber<br />

Nossa Senhora como Ela é, distinta<br />

da figura física de uma senhora<br />

portuguesa representada naquela<br />

imagem.<br />

Comparem Nossa Senhora de<br />

Montserrat com Nossa Senhora de<br />

Genazzano: a diferença é enorme! E<br />

assim poderíamos tomar imagens do<br />

rito oriental, aqueles ícones etc.<br />

As duas imagens que, a meu ver,<br />

levam mais longe a manifestação<br />

desse imponderável de Nossa Senhora<br />

são Nossa Senhora do Bom<br />

Sucesso – que leva bem longe – e<br />

Nossa Senhora das Graças.<br />

Nossa Senhora de Genazzano leva<br />

um certo olhar de Nossa Senhora<br />

mais longe, talvez, do que essas duas,<br />

mas não o geral da personalidade<br />

d’Ela, que me parece entrever muito<br />

especialmente nessas outras duas.<br />

Porém, compreendo que, conforme<br />

a devoção individual, um ou outro<br />

veja de modo diferente. Mas todas<br />

realmente caminham, de algum<br />

modo, para uma semelhança com<br />

o Santo Sudário. O mistério, o pulchrum<br />

está nisso.<br />

Eu me pergunto se não há uma<br />

elaboração pela Igreja da figura de<br />

Nossa Senhora a estar concluída para<br />

o Reino de Maria, de maneira a<br />

ser a imagem mestra do Reino de<br />

Maria, como, que eu saiba, nenhuma<br />

existe, e que teria uma semelhança<br />

impressionante, se bem que não<br />

seja cópia e, portanto, com variantes<br />

quase de espantar, em relação a<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />

A fórmula não seria tomar a Sagrada<br />

Face e imaginá-la em ponto<br />

Cristo ensina a seus discípulos - Catacumba de Santa Domitila, Roma<br />

feminino, mas conceber Nossa Senhora<br />

abaixo d’Ele e sumamente parecida<br />

com Ele, de uma semelhança<br />

física que seria apenas uma imagem<br />

da semelhança espiritual.<br />

Assim nós teríamos uma ideia melhor<br />

do ambiente próprio a essas duas<br />

devoções tão distintas, mas tão afins,<br />

a ponto de São João Eudes referir-se<br />

ao Coração de Jesus e Maria. A nós<br />

foi dada a tarefa de fazer uma síntese<br />

e encontrar o Sagrado Coração de Jesus<br />

no Coração Imaculado de Maria.<br />

A amplitude do Sagrado<br />

Coração de Jesus visto<br />

por meio de Maria<br />

Com efeito, enquanto a devoção<br />

ao Sagrado Coração de Jesus foi objeto<br />

de um itinerário longo e muitas<br />

vezes doloroso, na devoção a Nossa<br />

Senhora como São Luís Grignion a<br />

deixou, com a amplitude característica<br />

dele, e depois nas sucessivas revelações<br />

d’Ela, nós vemos um outro horizonte,<br />

que não é o que está presente<br />

na devoção ao Sagrado Coração<br />

de Jesus. É um horizonte especial, no<br />

qual entra a doçura e a misericórdia,<br />

mas também a combatividade d’Ela.<br />

A meu ver, é preciso fazer uma soma,<br />

tomando Nossa Senhora da Salve<br />

Regina, do Memorare – eu formularia<br />

assim: Nossa Senhora de São Bernardo<br />

– e somá-la-ia com Nossa Senhora<br />

Profética de São Luís Grignion, precursora<br />

da Chouannerie, da luta contra<br />

a Revolução Francesa e de tudo mais.<br />

Nessa perspectiva, Nossa Senhora<br />

deveria ser vista como Medianeira.<br />

Ela não é o fundo do horizonte e, por<br />

mais que seja parecida com Nosso Senhor,<br />

é Ela quem convida para, através<br />

d’Ela, ver a Ele. Ela pede, para<br />

ser devoto a Ela, que se olhe um determinado<br />

horizonte, enquanto Nosso<br />

Senhor aparecendo diz: “Eu sou o<br />

horizonte.” Ele não encaminha para<br />

nenhum horizonte, enquanto Ela encaminha.<br />

Ele é o horizonte e, portanto,<br />

o ponto terminal do culto. O hori-<br />

25


Sagrado Coração de Jesus<br />

zonte é o infinito onde nenhum olhar<br />

alcança, pois transcende tudo e vai<br />

até onde não podemos imaginar. Mas<br />

Ela é o “telescópio” para ajudar a ver<br />

mais fundo, para levar mais além, tomando-nos<br />

de dentro de nossa proporção<br />

e colocando-nos à altura de<br />

olhá-Lo por meio desse telescópio<br />

que é Ela mesma.<br />

O requinte dentro do requinte<br />

Gabriel K.<br />

A devoção ao Sagrado Coração<br />

de Jesus é uma graça que, como todas<br />

as graças, vem por meio d’Ela. É<br />

certo que Ele não teria aparecido se<br />

Ela não tivesse pedido e é certo que<br />

essa graça tem que trazer um aumento<br />

da devoção a Ela, senão a mediação<br />

universal desaparece.<br />

Então podia-se dizer que nas imagens<br />

do Coração Imaculado de Maria<br />

o ponto alto tem uma chama<br />

e o Coração é coroado de<br />

rosas e tem uma espada, um<br />

gládio. Aquela chama é a devoção<br />

a Ele que arde n’Ela e<br />

por onde Ela chama para Ele,<br />

atrai, queima n’Ele, e quem se<br />

une ao Coração d’Ela, une-se,<br />

de modo certo, de modo fácil,<br />

de modo rápido, como diz<br />

São Luís Maria Grignion, ao<br />

Sagrado Coração de Jesus.<br />

A devoção a Ela é uma espécie<br />

de requinte, porque tem<br />

por objeto toda espécie de pecadores<br />

– o que se deixa queimar,<br />

evidentemente, também;<br />

mas distingue-se da devoção<br />

ao Sagrado Coração de Jesus<br />

neste ponto: que o miserável<br />

que não tenha se deixado queimar<br />

pelo Sagrado Coração de<br />

Jesus, tocando, não o grosso<br />

bordão dos sinos de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo, mas o sino<br />

leve e alegre de Nossa Senhora,<br />

ainda tem n’Ela um recurso<br />

de uma espécie de ultraextremo<br />

de misericórdia, requinte<br />

dentro do requinte e auge<br />

dentro do auge, por onde, recorrendo<br />

a Ela, até esse pecado tem<br />

perdão. E, o que Ele não perdoaria se<br />

Ela não existisse, Ele acaba, a rogos<br />

d’Ela, perdoando mais uma vez.<br />

De maneira que há n’Ela inflexões<br />

de ternura, de misericórdia, de bondade<br />

para esse tipo de miseráveis que<br />

não é que exista n’Ela e não n’Ele,<br />

mas é algo que, existindo n’Ele, através<br />

d’Ela se explicita melhor. Nosso<br />

Senhor quis que assim fosse, como se<br />

não coubesse na dignidade suprema<br />

d’Ele, enquanto Juiz, dar esse perdão;<br />

mas Ele é um Juiz que, por debaixo do<br />

pano, manda o recado a um advogado<br />

omnipotente: “Este está condenado,<br />

mas peça, porque ainda haverá meio<br />

de movê-lo, apesar dessa recusa.”<br />

É uma espécie de – eu quase diria<br />

de joelhos – pia fraus do Sagrado Coração<br />

de Jesus. Assim é o Imaculado<br />

Sagrado Coração de Jesus (coleção particular)<br />

Coração de Maria para as causas ultradesesperadas.<br />

Como um raio do<br />

Coração de Jesus<br />

Maria Santíssima põe junto a essa<br />

seriedade infinita de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo uma nota qualquer de<br />

louçania, que fala em perdão, em esperança,<br />

em alegria. Está n’Ele, tem<br />

fundamento n’Ele tudo isso, mas Ele<br />

é grande demais para um olhar poder<br />

abarcar. Então olha-se n’Ela.<br />

Porque, ao cabo de algum tempo,<br />

aquela imensidade nos faz sentir tão<br />

pequenos, tão pequenos, tão pequenos,<br />

petit vérmisseaux et miserable pecheur,<br />

que se tem vontade de dizer:<br />

“Senhor, não me esmague de tanto<br />

me amar!” Mas entra Ela e dá um<br />

repouso, uma distensão; está<br />

feito tudo na perfeição.<br />

Encontramos aí, de cheio,<br />

com uma força de expressão<br />

particular, o Imaculado Coração<br />

de Maria de São Bernardo:<br />

Ó clemente, ó pia, ó<br />

doce Virgem Maria! Aquela<br />

a quem nunca se ouviu dizer<br />

que alguém recorresse e não<br />

fosse atendido, que é nossa vida,<br />

doçura, esperança nossa.<br />

Eu me lembro de que quando<br />

pequeno julgava que aquele<br />

“salve” queria dizer “salvai-<br />

-me” e achava nisso uma força<br />

maravilhosa, porque começa<br />

mesmo um brado: “Salvai-me,<br />

porque eu…” Eu sabia que<br />

salve era uma expressão latina,<br />

mas não tinha relacionado;<br />

me ficara na cabeça “salve-me,<br />

Rainha, Mãe de Misericórdia”;<br />

mas o brado tem esse calor.<br />

Assim, vejo n’Ela um requinte<br />

daquilo que, por ser tão<br />

alto, poderia parecer não ser<br />

requintável, que é a devoção<br />

ao Sagrado Coração de Jesus.<br />

Para me exprimir por uma<br />

comparação, Nosso Senhor<br />

26


seria mais como a Catedral<br />

de Notre-Dame<br />

e Nossa Senhora seria<br />

mais como a Sainte-Chapelle.<br />

A devoção<br />

ao Sagrado Coração<br />

de Jesus toda em granito<br />

e vitrais, mas a Sainte-Chapelle<br />

é toda feita<br />

de vitral. O granito<br />

quase que desaparece e<br />

é quase só vitral.<br />

Essa é a atmosfera<br />

característica de Nossa<br />

Senhora. Usando uma<br />

linguagem imprópria,<br />

seria como um determinado<br />

raio do Coração<br />

de Jesus, por assim<br />

dizer, destacado d’Ele<br />

e feito outra pessoa distinta<br />

d’Ele para poder<br />

discutir com Ele e arrancar<br />

d’Ele o que Ele<br />

quer que se arranque.<br />

Em certo sentido, vista<br />

nesta perspectiva, Ela<br />

é a “forte contra Deus”<br />

por excelência.<br />

Quem recusa até a<br />

graça d’Ela, contra este<br />

se faz sentir a força<br />

d’Ela. E a advogada<br />

extrema torna-Se a vingadora extrema,<br />

pela lógica do papel de advogada.<br />

A última bondade levada ao<br />

último requinte e à última ternura,<br />

uma vez recusada, Aquela que sofreu<br />

a recusa faz da última bondade<br />

recusada a pedra com que Ela condena.<br />

Parece uma antítese, mas é<br />

sumamente harmonioso, lógico. É a<br />

Mãe de Nosso Senhor que Ele manda<br />

para tentar uma última mediação;<br />

à sua Mãe, Ele confere o poder<br />

de exterminar.<br />

Uma graça extrema recusada<br />

Imaginem um reino no qual uma<br />

parte do território se levante contra<br />

o rei. O rei vai visitar esse feudo com<br />

bondade, misericórdia, dá graças,<br />

Imaculado Coração de Maria. Ao fundo,<br />

interior da Sainte-Chapelle, Paris<br />

Flávio Lourenço<br />

procura atender; tudo em vão, eles<br />

recusam e o rei volta deixando a população<br />

revoltada.<br />

Ele então tenta mandar a mãe dele,<br />

que não é parte na briga, que ficou<br />

alheia e que é nascida naquele feudo,<br />

com um convite: “Ide, vós que sois<br />

conterrânea deles e vede se lhes falais<br />

por algumas cordas que talvez ainda<br />

se possam tocar em suas almas.”<br />

De repente, ele recebe a mensagem<br />

de que a mãe dele não só foi recusada<br />

também, mas até agredida.<br />

Então envia tropas à mãe e diz: “Vingai<br />

vós a ofensa que recebestes!”<br />

É tão lógico, que não seria fácil<br />

conceber outra coisa!<br />

Então se compreende que n’Ela<br />

haja certas refulgências onde a bondade<br />

do Coração de Jesus<br />

toma aspectos maternos,<br />

mas que também<br />

reflitam a indignação<br />

d’Ele. Tanto mais<br />

que essa rainha da metáfora<br />

não avança dizendo:<br />

“Vós me recusastes<br />

e eu vos puno!”,<br />

mas sim: “Vós recusastes<br />

meu filho, até quando<br />

ele teve o extremo<br />

de me mandar a mim<br />

mesma. Por meu filho<br />

ofendido, indignada<br />

pelo ódio mostrado<br />

a ele quando vós me<br />

recusastes até a mim,<br />

conterrânea vossa, eu<br />

agora vos extermino!”<br />

Então, nós temos<br />

Nossa Senhora, mensageira<br />

e medianeira,<br />

enquanto profetisa dos<br />

castigos anunciados<br />

em Fátima, porque é a<br />

graça extrema recusada.<br />

5 <br />

v<br />

1) Partidários do ultramontanismo.<br />

Doutrina<br />

nascida na França, na primeira<br />

metade do século<br />

XIX, que defendia as prerrogativas<br />

e o poder do Papa em matéria de Fé e<br />

costumes, contra o galicanismo e fenômenos<br />

análogos em outros países. O<br />

nome significa “além das montanhas”,<br />

referindo-se aos Alpes, além dos quais<br />

está a Itália e, portanto, a Sede de Roma.<br />

2) François-Marie Arouet (*1694 -<br />

†1778), escritor e filósofo francês.<br />

3) Francisco Guerrero de Burgos (*1528<br />

- †1599), foi um dos mais célebres<br />

compositores espanhóis do período<br />

renascentista.<br />

4) *1866 - †1953.<br />

5) Cf. Conferências de 6/6/1978,<br />

17/10/1970, 20/9/1980, 5/10/1980,<br />

6/11/1985, 6/2/1986, 17/3/1987,<br />

15/9/1989, 19/2/1991, 21/1/1993,<br />

11/12/1993.<br />

27


Pedro K.<br />

C<br />

alendário<br />

1. São Justino, mártir (†165).<br />

São Caprásio, eremita (†430). Renunciando<br />

ao mundo, retirou-se à<br />

ilha de Lérins e neste lugar viveu como<br />

eremita. Foi o principal guia espiritual<br />

de Santo Honorato.<br />

2. IX Domingo do Tempo Comum.<br />

3. São Carlos Lwanga e companheiros,<br />

mártires (†1886).<br />

Beato André Caccioli, presbítero<br />

(†1254). Natural de Perúgia, foi o primeiro<br />

presbítero agregado aos Frades<br />

Menores. Recebeu o hábito da Ordem<br />

das mãos de São Francisco e assistiu<br />

à sua morte.<br />

4. São Filipe Smaldone, presbítero<br />

(†1923). Fundador da Congregação<br />

das Irmãs Salesianas dos Sagrados<br />

Corações.<br />

Beato Francisco Pacheco<br />

dos Santos – ––––––<br />

5. São Bonifácio, bispo e mártir<br />

(†754).<br />

Santos Eubano, bispo, Adelário e<br />

nove companheiros, mártires (†754).<br />

Receberam a palma do martírio junto<br />

com São Bonifácio. Os nomes dos<br />

companheiros são: Vintrungo e Gualter,<br />

presbíteros; Amundo, Sevibaldo e<br />

Bosa, diáconos; Vacaro, Gundecaro,<br />

Eluro e Atevulfo, monges.<br />

6. São Norberto de Magdeburgo,<br />

fundador (†1134). Nasceu em Xanten,<br />

Alemanha, e depois de uma vida<br />

dissipada na corte do Imperador,<br />

retirou-se do mundo. Sendo ordenado<br />

sacerdote, dedicou-se à pregação.<br />

Em Prémontré, França, fundou a Ordem<br />

Premonstratense. Sagrado bispo,<br />

governou a diocese de Magdeburgo.<br />

7. Solenidade do Sagrado Coração<br />

de Jesus.<br />

8. Imaculado Coração de Maria.<br />

São Tiago Berthieu, presbítero e<br />

mártir (†1896). Jesuíta, dedicou-se incansavelmente<br />

à pregação do Evangelho<br />

e, após ser expulso das missões,<br />

preso por homens armados e instado<br />

sem êxito à apostasia, foi assassinado<br />

em ódio à fé, em Ambiatibé, na ilha<br />

de Madagascar.<br />

9. X Domingo do Tempo Comum.<br />

São José de Anchieta, presbítero<br />

(†1597).<br />

10. Santo Itamar, bispo (†666). Foi<br />

o primeiro procedente da região de<br />

Cantuária a ser chamado para a ordem<br />

episcopal, resplandecendo pela<br />

sua erudição e santidade de vida.<br />

11. São Barnabé, apóstolo (†s. I).<br />

Beata Iolanda da Polônia, abadessa<br />

(†1298). Após o falecimento do esposo,<br />

o duque Boleslau Pio, renunciando<br />

às riquezas terrenas, professou<br />

a vida monástica com sua filha, na Ordem<br />

de Santa Clara.<br />

12. São Leão III, papa (†816). Impôs<br />

a coroa do Império Romano a Carlos<br />

Magno, rei dos Francos, e defendeu<br />

com grande ardor a verdadeira Fé.<br />

13. Santo Antônio de Pádua, presbítero<br />

e Doutor da Igreja (†1231).<br />

São Trifílio, bispo (†370). Defendeu<br />

com pujança a verdadeira fé nicena<br />

e, comenta São Jerônimo, foi o<br />

orador mais eloquente do seu tempo<br />

e admirável comentador do “Cântico<br />

dos Cânticos”.<br />

14. Santo Eliseu, profeta (†s. IX<br />

a. C.).<br />

São Proto, mártir (†data inc.).<br />

15. São Landelino, abade (†686).<br />

Convertido pelo bispo Santo Autberto<br />

do banditismo à prática da virtude,<br />

fundou o mosteiro de Lobbes, dirigindo-se<br />

depois para Crespin, França, da<br />

onde partiu deste mundo.<br />

16. XI Domingo do Tempo Comum.<br />

Santos Julieta e Quirico, mártires<br />

(†303). Durante a perseguição de<br />

Diocleciano, Julieta foi presa por ser<br />

cristã; enquanto professava a fé em<br />

Cristo, seu filho pequeno, Quirico, repetia<br />

sua declaração, fato pelo qual<br />

ambos foram martirizados, em Tarso.<br />

17. Beato Paulo Buráli, bispo<br />

(†1578). Membro da Ordem dos Clérigos<br />

Regrantes Teatinos, eleito bispo<br />

de Piacenza e depois de Nápoles, empenhou-se<br />

em restaurar a disciplina<br />

da Igreja e confirmar na fé as dioceses<br />

a ele confiadas.<br />

18. São Calógero, eremita (†s. V).<br />

Beata Hosana Andreasi, virgem<br />

(†1505). Natural de Mântua, Itália,<br />

fez-se terciária dominicana e soube<br />

unir com sabedoria a vida ativa à vida<br />

mística.<br />

19. São Romualdo, abade (†1027).<br />

Conhecido como pai dos monges Camaldulenses.<br />

28


–––––––––––––––––– * Junho * ––––<br />

Flávio Lourenço<br />

Santos Julieta e Quirico<br />

Beatos Sebastião Newdigate, Hunfredo<br />

Middlemore e Guilherme Exmew,<br />

presbíteros e mártires (†1535).<br />

Viviam na Cartuxa de Londres. No<br />

reinado de Henrique VIII, por perseverarem<br />

fiéis à Igreja Católica, passaram<br />

dezessete dias de pé, presos a<br />

umas colunas. Foram enforcados na<br />

praça de Tyburn.<br />

20. Beatos Francisco Pacheco, presbítero,<br />

e oito companheiros, mártires<br />

(†1626). Pertenciam à Companhia<br />

de Jesus e testemunharam a verdadeira<br />

fé sendo queimados vivos, em Nagasaki,<br />

Japão.<br />

21. São Luís Gonzaga, religioso<br />

(†1591).<br />

Beata Liberata Ferrarons i Vives,<br />

virgem (†1842). Terciária Carmelita, de<br />

Olot, Catalunha, região da Espanha.<br />

22. Beato Inocêncio V, papa (†1276).<br />

Depois de ter tomado o hábito da Ordem<br />

dos Pregadores e ensinado Teologia<br />

em Paris, aceitou com relutância a<br />

sede episcopal de Lião e orientou, com<br />

São Boaventura, o Concílio Ecumênico<br />

para a unidade entre os Latinos e os<br />

Gregos separados; eleito para a Cátedra<br />

de Pedro, exerceu por pouco tempo<br />

a função de Pontífice.<br />

23. XII Domingo do Tempo Comum.<br />

Beata Maria de Oignies, reclusa<br />

(†1213). Com o assentimento do esposo,<br />

viveu reclusa próxima ao convento<br />

agostiniano de Oignies, onde<br />

fundou e dirigiu o instituto designado<br />

das “Beguinas”. Foi agraciada por<br />

muitas graças místicas.<br />

24. Natividade de São João Batista.<br />

Santa Maria Guadalupe (Anastásia<br />

Guadalupe Garcia Zavala), virgem<br />

(†1963). Cofundadora da Congregação<br />

das Servas de Santa Margarida Maria e<br />

dos Pobres, em Guadalajara, México,<br />

conhecida como Madre Lupita.<br />

25. São Próspero de Aquitânia,<br />

monge (†463). Formado em Filosofia<br />

e Arte Literária, depois de uma vida<br />

matrimonial íntegra e honesta, fez-se<br />

monge em Marselha; defendeu com<br />

vigor a doutrina de Santo Agostinho<br />

contra os pelagianos; exerceu a função<br />

de secretário do papa São Leão<br />

Magno, em Roma, reluzindo como<br />

polemista e notável exegeta.<br />

26. São Deodato de Nola, bispo<br />

(†405). Sucessor de São Paulino no<br />

governo da diocese de Nola.<br />

27. Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.<br />

São Cirilo de Alexandria, bispo e<br />

Doutor da Igreja (†444).<br />

28. Santo Irineu, bispo e mártir<br />

(†202).<br />

Santa Potamiena de Alexandria,<br />

virgem e mártir (†c. 202). No tempo<br />

do imperador Sétimo Severo, concomitantemente<br />

com outros discípulos<br />

de Orígenes, travou inúmeros combates<br />

pela sua virgindade e sofreu tormentos<br />

inauditos pela Fé. Foi lançada<br />

ao fogo junto com sua mãe, Marcela.<br />

29. São Paulo Wu Juan, pai de família<br />

e mártir (†1900). Durante a perseguição<br />

dos “Yihetuan”, por professar<br />

o cristianismo, foi assassinado<br />

junto com seu filho João Batista Wu<br />

Mantang e seu sobrinho Paulo Wu<br />

Wanshu, em Xiaoluyi, China.<br />

30. Solenidade de São Pedro e São<br />

Paulo, Apóstolos.<br />

Santos Protomártires da Igreja de<br />

Roma (†64).<br />

São Ladislau da Hungria, rei<br />

(†1095). Filho do Rei Bela I, da Hungria,<br />

nasceu na Polônia e sucedeu a<br />

seu irmão Géza I no trono. Durante<br />

seu governo, restabeleceu as leis cristãs<br />

introduzidas por Santo Estêvão,<br />

reformou os costumes dando exemplo<br />

de grande virtude.<br />

São Ladislau da Hungria<br />

Flávio Lourenço<br />

29


Perspectiva pliniana da História<br />

O convite de Deus ao Rei Sol:<br />

unir grandeza e doçura na<br />

devoção ao Coração de Jesus<br />

Na abençoada “terra dos Luíses”, entre<br />

os esplendores da corte do Rei Sol,<br />

ouviu-se o suave apelo do Coração de<br />

Jesus a Luís XIV pedindo-lhe uma<br />

entrega, da qual manaria, não só para<br />

a França, mas para toda a humanidade,<br />

uma graça de valor incomparável,<br />

uma luz que, quiçá, prenunciaria<br />

o alvorecer do Reino de Maria...<br />

Flávio Lourenço<br />

Europicture.de(CC3.0)<br />

Em várias ocasiões temos<br />

conversado sobre<br />

uma figura que,<br />

queiram ou não, depois de Carlos<br />

Magno foi o francês com os dotes<br />

naturais mais eminentes: Luís<br />

XIV, o rei por excelência. Pode-<br />

-se afirmar que outros terão sido<br />

mais inteligentes, mas apenas como<br />

síntese e até certo ponto; como<br />

quintessência, o foi Luís XIV, apesar<br />

de seus erros, defeitos, pecados.<br />

Homem feito para ser<br />

o grande devoto do<br />

Coração de Jesus<br />

Luís XIV, mais do que o Rei da<br />

França, era o rei da opinião pública<br />

Sagrado Coração - Igreja do Santo Anjo, Sevilha<br />

europeia, e, portanto, mundial! E de<br />

tal maneira, que os monarcas de todos<br />

os países, para valerem algo aos olhos<br />

dos povos, tiveram de assemelhar-se a<br />

ele; inclusive os reis da Prússia, Dinamarca,<br />

Holanda, entre outros, dançaram<br />

todos o mesmo minueto.<br />

30<br />

Luís XIV - Galeria do<br />

Palácio de Versailles


A grandeur de Luís XIV era legitimamente<br />

francesa, ele era francês.<br />

Mas nada impede que reconheçamos<br />

haver nele algo da grandeza do<br />

fidalgo espanhol, misturado às mil<br />

graças e mil agilidades francesas, o<br />

que lhe conferia mais valor.<br />

No mosqueteiro D’Artagnan, a<br />

força francesa é sobretudo agilidade;<br />

no cruzado, é o avanço. Mas, em<br />

ambos, uma força leve e ágil. Forte!<br />

Não é uma força fraca, é força forte,<br />

a qual está também no corpo, mas é<br />

sobretudo da alma. E tem a destreza,<br />

o improvisado, a agilidade, para<br />

tocar as coisas adiante.<br />

Luís XIV possuía todas essas qualidades<br />

somadas ainda a uma estabilidade<br />

compassada e solene, que lhe<br />

vinha mais do lado espanhol 1 e o tornava<br />

um homem muito completo!<br />

A Providência conferiu-lhe tudo isso<br />

para fazer dele, entre outros efeitos,<br />

um grande devoto do<br />

Sagrado Coração de Jesus.<br />

Luís XIV entrou num certo declínio,<br />

não cumpriu a sua missão. Ele<br />

teve os pecados contra a pureza que<br />

todos conhecem; os pecados contra<br />

a tradição medieval também conhecidos,<br />

por seu governo centralizador,<br />

despótico. E, além do mais, tornou-se<br />

um megalômano solto!<br />

Saint-Simon 2 – tido como exagerado<br />

em seus comentários, mas não<br />

se diz que os fatos narrados por ele<br />

sejam mentirosos – conta que durante<br />

o jantar na corte, enquanto<br />

se tocavam músicas populares, Luís<br />

XIV tinha a fraqueza de permitir<br />

que se tocassem canções em sua<br />

honra e ele mesmo as acompanhava<br />

cantando, enquanto comia! O que é<br />

realmente lamentável!<br />

Foi a esse Luís XIV, com todos<br />

os egoísmos e vaidades, que Nosso<br />

Senhor Se dirigiu, através de Santa<br />

Margarida Maria Alacoque.<br />

Uma mensagem para<br />

o “filho primogênito”<br />

do Coração de Jesus<br />

Luís XIV recebeu a mensagem do<br />

Convento de Paray-le-Monial, para<br />

consagrar a França ao Sagrado Coração<br />

de Jesus. Deste ato lhe viria o<br />

resto em catadupa! Não se sabe que<br />

Carlos Magno tenha recebido convite<br />

tão grande quanto este, nem temos<br />

conhecimento de haver sido feito<br />

a algum outro monarca depois da<br />

Revolução Francesa.<br />

As palavras do Sagrado Coração<br />

a Santa Margarida Maria são as seguintes:<br />

“Foram estas as palavras que eu<br />

ouvi a respeito de nosso rei:<br />

Faça saber ao filho primogênito do<br />

meu Sagrado Coração que, assim como<br />

seu nascimento temporal foi obtido<br />

pela devoção aos méritos de mi-<br />

Philippe de Champaigne (CC3.0)<br />

Desígnios de eleição<br />

que sobrepujam<br />

a miséria<br />

Ora, a par disso, Luís<br />

XIV era de tanta distinção<br />

no convívio com as pessoas,<br />

que acabou sendo a grandeza<br />

e o tormento da França,<br />

porque ninguém podia<br />

manter-se prolongadamente<br />

em seu diapasão. Ao cabo<br />

de algum tempo, entrou em<br />

choque com o gênio francês<br />

– isto é verdade histórica! –<br />

por causa daquilo que ele tinha<br />

de compassado, de solene,<br />

de sério, de não permitindo<br />

nunca um gracejo… Volto<br />

a dizer, meio espanholão! Isso<br />

produziu um choque, cuja<br />

reação contrária foi o estilo<br />

Luís XV, todo feito de meios-<br />

-tons, frivolidades e pasmaceiras,<br />

de onde veio a decadência<br />

do Ancien Régime.<br />

Luís XIII e Ana d’Áustria - Galeria do Palácio de Versailles<br />

Frans Pourbus filho (CC3.0)<br />

31


Perspectiva pliniana da História<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

nha santa infância, assim ele obterá<br />

seu nascimento para a graça e a glória<br />

eterna pela consagração que ele fará<br />

de si mesmo ao meu adorável Coração,<br />

que quer triunfar sobre o seu e,<br />

por seu intermédio, sobre os dos grandes<br />

da Terra. Ele [Coração de Jesus]<br />

quer reinar no seu palácio, ser pintado<br />

nos seus estandartes e gravado nas<br />

suas armas, para torná-las vitoriosas<br />

sobre todos os seus inimigos.”<br />

Ele veio procurar para devoto<br />

d’Ele o arquétipo de devoto, o Rei<br />

Sol!<br />

A par da reparação, um<br />

pedido de glorificação<br />

“Querendo o Padre Eterno reparar<br />

as amarguras e angústias que o Coração<br />

adorável de seu Divino Filho recebeu<br />

nos palácios dos príncipes da<br />

Terra, por meio das humilhações e ultrajes<br />

de sua Paixão, deseja estabelecer<br />

seu império no coração de nosso<br />

grande monarca; é dele que Ele quer<br />

Se servir para a execução de seu desígnio,<br />

o qual deseja que se cumpra desta<br />

maneira: de mandar fazer um edifício,<br />

onde esteja o quadro desse Divino<br />

Coração, para aí receber a consagração<br />

e as homenagens do rei e de toda<br />

a corte.”<br />

Que coisa linda, mandar fazer um<br />

edifício para isso! Naturalmente já<br />

estava designado o pintor, pela Providência!<br />

Quem seria esse pintor?<br />

Como seria esse quadro?<br />

Imaginemos o Santíssimo Sacramento<br />

sendo levado em procissão,<br />

acompanhado em alas por todos<br />

os cardeais, os bispos, a família<br />

real, os duques e pares da França,<br />

porque essa entronização não poderia<br />

ser dissociada da presença real<br />

de Nosso Senhor. Se o rei tivesse<br />

“Salão Azul” no apartamento de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, tendo à direita<br />

a imagem do Sagrado Coração de Jesus<br />

correspondido, não se poderia esperar<br />

que vários deles, nessa ocasião,<br />

tivessem recebido graças especiais?<br />

Ou seja, tudo convergiria à conversão<br />

da França.<br />

Isso nos faz lembrar o vazio das<br />

entronizações do Sagrado Coração<br />

de Jesus nas casas. O princípio era<br />

o mesmo: na sala de pompa de cada<br />

casa, uma imagem. Mas, como era<br />

executado… Lembro-me da entronização<br />

do Coração de Jesus na casa<br />

de minha avó e em outras casas onde<br />

estive presente; não era nada em<br />

comparação ao que deveria ser, já<br />

era um desvio.<br />

Consagração própria<br />

a mudar o rei e a<br />

alma da França<br />

“Além do mais, quer esse Divino<br />

Coração tornar-Se protetor e defensor<br />

de sua sagrada pessoa contra todos<br />

os seus inimigos visíveis e invisíveis,<br />

dos quais Eu quero defendê-lo e<br />

colocar, por este meio, sua saúde em<br />

segurança. É porque Eu o escolhi como<br />

meu fiel amigo, para fazer a Santa<br />

Sé Apostólica autorizar a Missa em<br />

minha honra…”<br />

É extraordinária a ideia de se introduzir<br />

na Igreja um rito para o<br />

mundo inteiro, e enquanto tendo sido<br />

pedido pelo rei da França. Não<br />

fazemos ideia o papel de glória que<br />

dava ao rei!<br />

“…e obter todos os outros privilégios<br />

que devem acompanhar a devoção<br />

deste Sagrado Coração, pela qual<br />

Ele quer repartir os tesouros de suas<br />

graças de santificação e de salvação,<br />

distribuindo com abundância suas<br />

bênçãos sobre todos os seus empreendimentos,<br />

que Ele fará resultar para<br />

sua glória, e dando às suas almas um<br />

feliz sucesso e fazendo triunfar sobre a<br />

malícia dos seus inimigos.”<br />

Na referência à malícia dos inimigos,<br />

temos a impressão de que eles<br />

estavam coligados contra o Rei da<br />

32


Hyacinthe Rigaud (CC3.0)<br />

Library and Archives Canada (CC3.0)<br />

Luís XIV e Luís XV - Galeria do Palácio de Versailles<br />

França, porque ele, de algum modo,<br />

ainda representava a Igreja.<br />

Essa mensagem não pode ser vista<br />

apenas como a pronúncia de um<br />

ato de consagração, como os existentes<br />

nas casas de família: todos<br />

se consagram, a família continua do<br />

mesmo jeito. Era evidentemente um<br />

ato de grande profundidade, que deveria<br />

mudar a alma do rei, a alma da<br />

França e, portanto, transformar o<br />

espírito do reino.<br />

Luís XIV transformado<br />

segundo o Coração de Jesus<br />

Tomemos a psicologia da devoção<br />

ao Sagrado Coração de Jesus, tal como<br />

ela foi apresentada por Santa<br />

Margarida Maria.<br />

É uma devoção, de um lado, muito<br />

majestosa. O Coração de Jesus é<br />

muito augusto, elevado, transcendental,<br />

como é adequado ao Coração<br />

humano do Homem-Deus. De<br />

outro lado, é de uma afabilidade, de<br />

um dégagé e de uma bondade irresistíveis.<br />

Colocada em presença d’Ele<br />

e daquele amor transbordante que<br />

d’Ele emana, a alma reta não resiste,<br />

ela se entrega.<br />

Com Luís XIV, creio que Nosso<br />

Senhor havia feito uma obra-prima<br />

da natureza; a alma dele era como<br />

um pavio, feito para ser iluminado<br />

por uma graça sobrenatural extraordinária,<br />

que ele deveria ter aceitado.<br />

O que seria Luís XIV se tivesse se<br />

transformado segundo o Coração de<br />

Jesus! Imaginarmos um rei daquela<br />

nobreza, sem nada perder de sua<br />

grandeza, dulcificado nas mil misericórdias,<br />

nas mil suavidades, nas divinas<br />

amenidades, se assim pudermos<br />

dizer, do Coração de Jesus! Ele teria<br />

acrescentado às suas qualidades humanas<br />

este modo de ser ao mesmo<br />

tempo augusto e bondoso, completando<br />

o autoritarismo; mas, então,<br />

descentralizado, generoso, afável.<br />

Ele teria uma nobreza à Jesus.<br />

Tão maior, tão mais radicada no fundo<br />

da alma, tão superior e, ao mesmo<br />

tempo, tão mais acolhedora, tão<br />

mais bondosa, que ficaríamos um<br />

pouco estrábicos a olhar esse sol.<br />

Ou, por outra, ao vê-lo, perceberíamos<br />

termos estrabismos a respeito<br />

da aristocracia, por não a termos visto<br />

assim.<br />

Eu sei que talvez não seja muito<br />

fácil imaginar… Mas procurem<br />

compô-lo com aquela bondade, condescendência,<br />

afabilidade do Coração<br />

de Jesus, e compreenderão que<br />

aquilo que o espírito francês recusa-<br />

33


Perspectiva pliniana da História<br />

va na hirteza e dureza de<br />

Luís XIV teria se recomposto.<br />

A história inteira do<br />

talento e do espírito francês<br />

não teria passado por<br />

essa ruptura que houve de<br />

Luís XIV para Luís XV.<br />

A recusa da doçura<br />

e o não desabrochar<br />

de uma era histórica<br />

Anne Baptiste Nivelon (CC3.0)<br />

Luís XIV recusou a doçura,<br />

e, de algum modo,<br />

recusou fazer essa harmonia<br />

entre a supremacia<br />

da sociedade temporal<br />

e o Sagrado Coração de<br />

Jesus. Mas rejeitou também<br />

uma forma de majestade<br />

transcendente, que<br />

não era aquela olímpica e<br />

pagã, mas era uma majestade<br />

sobrenatural, a verdadeira,<br />

de Deus! A pureza<br />

teria entrado em sua alma<br />

e ele teria tomado outro<br />

aspecto. A grandeza teria<br />

sido muito mais sobrenatural<br />

e, portanto, menos<br />

mundana.<br />

Se Luís XIV tivesse<br />

se convertido à devoção ao Sagrado<br />

Coração de Jesus, ele a espalharia<br />

pela Europa e medievalizaria o<br />

Ancien Régime; teríamos tido uma<br />

França que poderia ter saído dos<br />

seus lençóis de agonia.<br />

Creio que poderia ter recomeçado<br />

o curso da Idade Média no mundo,<br />

por regime “remedievalizado”<br />

inatacável! O único que restaria à<br />

Revolução era enterrar-se com suas<br />

caraminholas e porcarias. A Revolução<br />

poderia ter sido destruída, se ele<br />

tivesse dito inteiramente “sim” à devoção<br />

ao Sagrado Coração de Jesus!<br />

E tivesse sido não só um homem que<br />

mandava pintar o Coração de Jesus<br />

nos estandartes, mas fosse o Carlos<br />

Magno da devoção ao Sagrado Coração<br />

de Jesus.<br />

Dauphin Louis - Galeria do Palácio de Versailles<br />

Porque se nós pudéssemos imaginar<br />

um Luís XIV com toda a sua<br />

grandeza, mas com aquela doçura,<br />

ficaria cunhada uma moeda para todo<br />

o sempre do que é o senhorio, a<br />

grandeza, o ser rei! Do que é a hierarquia,<br />

a bondade! Do que é suavidade,<br />

do que é misericórdia! Digo<br />

“para todo o sempre”, porque, por<br />

um tempo indefinido, quebraria os<br />

sofismas da Revolução.<br />

Analisando a História<br />

à luz da devoção ao<br />

Sagrado Coração de Jesus<br />

Só calculamos bem o que é a<br />

França imaginando-a segundo o Coração<br />

de Jesus. Em última análise,<br />

vendo com profundidade os fatos,<br />

todas as objeções da Revolução<br />

Francesa contra Luís<br />

XIV e a monarquia de<br />

direito divino não teriam<br />

existido, se ele tivesse se<br />

deixado transfigurar pela<br />

devoção ao Sagrado Coração<br />

de Jesus.<br />

Isso dá uma visão da<br />

História e das causas da<br />

Revolução tão completa,<br />

que me entusiasmam! Mil<br />

coisas tomam o seu colorido!<br />

Quando a Luís XIV foi<br />

feito o convite, ainda havia<br />

na França bastante consonância<br />

com a realeza para<br />

que, ele se consagrando,<br />

o povo o acompanhasse. E<br />

a impressão é que a França<br />

caiu no que está porque,<br />

por um pecado coletivo<br />

do rei e da nação – mais<br />

do rei do que da nação –<br />

foi cortada a possibilidade<br />

de encaminhar o espírito<br />

francês para onde deveria<br />

caminhar.<br />

E logo depois de Luís<br />

XIV morrer, deu-se isso:<br />

como ele não deu a doçura,<br />

a França caiu no relaxamento,<br />

porque não aguentou aquele píncaro<br />

em que ele a mantinha. Então, vem<br />

Luís XV com aquelas cores… é lindo!<br />

Mas não se tratava só do bonito,<br />

no caso!<br />

A França infiel, mas<br />

nunca abandonada pela<br />

luz de seu chamado!<br />

É preciso tomar em consideração<br />

que foi durante o reinado de<br />

Luís XIV que Santa Margarida Maria<br />

Alacoque recebeu as revelações<br />

em Paray-le-Monial e que São Luís<br />

Grignion de Montfort fazia as pregações;<br />

foi no tempo dele que Sœur<br />

Marie des Vallées teve a troca de<br />

vontades, sobre a qual São João Eu-<br />

34


des escreveu. Nessa ocasião, portanto,<br />

São João Eudes e São Luís<br />

Grignion de Montfort pregavam<br />

nas regiões da Normandia e da Vandeia.<br />

Bastava Luís XIV ser fiel, que<br />

essas graças teriam chegado a ele.<br />

Em vez de mandar as tropas destruírem<br />

o Calvário construído por São<br />

Luís Grignion 3 , atitude que nunca<br />

teria tomado se ele tivesse correspondido<br />

à graça de Paray-le-Monial,<br />

ele teria, pelo contrário, visto<br />

florescer a escravidão a Nossa Senhora<br />

e, pode-se admitir que ele tivesse<br />

a vocação de escravo de amor<br />

de Nossa Senhora. Podemos imaginar<br />

o que é isto!<br />

Esses atos não trouxeram a realização<br />

das promessas do Sagrado Coração<br />

de Jesus, cada uma mais tocante<br />

e mais bonita que a outra.<br />

Quantos tesouros para o Reino<br />

de Maria a Providência faria nascer<br />

no reino dele e que ele rejeitou. Isso<br />

serve para nos dar a ideia de como<br />

havia no plano da Providência uma<br />

imagem ideal da França para a regeneração<br />

do mundo.<br />

O que interessa é que ficou como<br />

uma espécie de luz difusa<br />

esse chamado presente durante<br />

toda essa história. E<br />

é esta luz ainda meio difusa<br />

que amamos nesses restos.<br />

O que eu amo em Versailles<br />

é a possibilidade que<br />

ele tinha de ter sido o que<br />

não foi! Não é a construção<br />

que está lá, mas o lampadário<br />

onde podia entrar<br />

essa lamparina divina, que<br />

era a mensagem do Sagrado<br />

Coração de Jesus de<br />

Paray-le-Monial, São Luís<br />

Grignion, e tudo o mais!<br />

Isso forma uma concatenação<br />

para compreendermos<br />

a grande batalha, porque<br />

foi isso que a Revolução<br />

odiou. E quando ela cortou<br />

a cabeça de Luís XVI, ela<br />

quis cortar essa luz.<br />

Da recusa ao Coração<br />

de Jesus à adoração ao<br />

coração de Marat...<br />

Ficou na dinastia através dos tempos<br />

uma graça que, durante todo o<br />

Ancien Régime, ainda pulsava, fazendo<br />

o convite para os reis se consagrarem,<br />

o que não foi atendido. Uma<br />

possibilidade de consagração e algo<br />

dessa graça havia, porque era um<br />

presente que Nossa Senhora e Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo queriam fazer<br />

ao mundo a partir da aceitação,<br />

pelo Rei da França ou por algum dos<br />

reis sucessores, já em escala menor.<br />

É sabido que o Dauphin Louis, o<br />

filho de Luís XV, o pai de Luís XVI,<br />

portanto trineto de Luís XIV, mandou<br />

instalar uma capela em honra ao<br />

Sagrado Coração de Jesus na Capela<br />

de Versailles, mas do lado de trás do<br />

altar-mor 4 . Era, portanto, uma veneração<br />

feita meio em segredo, porque havia<br />

ficado na família real este apelo.<br />

A tal ponto que, preso no Templo,<br />

Luís XVI fez uma espécie de consagração<br />

da França ao Sagrado Coração de<br />

Jesus, que era ao mesmo tempo uma<br />

Morte de Marat - Museus Reais de Belas<br />

Artes da Bélgica, Bruxelas<br />

promessa de consagração caso ele fosse<br />

libertado e restaurada a monarquia.<br />

Uma “consagração”, com o texto mais<br />

inexpressivo que se possa imaginar!<br />

Isso mostra algo de sacral que<br />

permaneceu no Ancien Régime, apesar<br />

de todos os seus desvarios e, para<br />

ponderarmos exatamente sobre ele,<br />

é preciso tomar isso em consideração:<br />

esse convite ficou sempre.<br />

É assim que compreendemos a<br />

abominação da Revolução Francesa.<br />

Quando Marat 5 foi morto, tiraram o<br />

seu coração, embalsamaram-no, puseram-no<br />

em um relicário e fizeram<br />

uma espécie de altar nos jardins de<br />

Luxemburgo; em cima escreveram:<br />

“Sagrado Coração de Jesus, tende<br />

piedade de nós. Sagrado coração de<br />

Marat, tende piedade de nós.”<br />

A recusa da consagração ao Sagrado<br />

Coração de Jesus resultou no<br />

culto satânico do coração diabólico<br />

de Marat… 6 <br />

v<br />

1) Seus progenitores eram o Rei Luís<br />

XIII de França e Ana d’Áustria, filha<br />

do Rei Felipe III de Espanha.<br />

2) Duque de Saint-Simon<br />

(*1675 - †1755). Após deixar a<br />

carreira militar, viveu na corte,<br />

no tempo de Luís XIV. Escreveu<br />

as “Memórias”, nas<br />

quais descreve com penetração,<br />

finura e charme a vida na<br />

Versailles de seu tempo. (Errata:<br />

na edição anterior, os<br />

dados sobre Saint-Simon publicados<br />

na nota ao final da p.<br />

14 estão incorretos.)<br />

3) Trata-se do Calvário de<br />

Pontchâteaux, que Luís XIV<br />

mandou destruir em 1710.<br />

4) A obra consistiu em aproveitar<br />

o espaço entre os dois<br />

contrafortes que enquadram<br />

o vão central da abside, para<br />

acolher a nova capela.<br />

5) Jean-Paul Marat (*1743 -<br />

†1793).<br />

6) Cf. Conferências de<br />

21/9/1980, 1/10/1980,<br />

5/10/1980, 10/5/1981,<br />

11/12/1993.<br />

GCA (CC3.0)<br />

35


Porta do Céu aberta<br />

de par em par<br />

Flávio Lourenço<br />

Na Sagrada Escritura encontramos esta frase:<br />

“Porque és fraco, eis que pus diante de ti uma<br />

porta aberta que ninguém poderá fechar” (cf.<br />

Ap 3, 8). Esta porta aberta para a fraqueza do homem<br />

contemporâneo é o Coração Imaculado de Maria.<br />

Com efeito, nada nos pode dar maior confiança, esperança<br />

mais fundada, estímulo mais certo, do que<br />

a convicção de que em todas as nossas misérias,<br />

em todas as nossas quedas, não temos apenas,<br />

a nos olhar com o rigor de Juiz,<br />

a infinita Santidade de Deus, mas<br />

também o Coração cheio de ternura,<br />

de compaixão, de misericórdia,<br />

de nossa Mãe Celeste.<br />

Onipotência Suplicante, Ela saberá<br />

conseguir para nós tudo<br />

quanto nossa fraqueza pede para<br />

a grande tarefa de nosso reerguimento<br />

moral. Com este Coração,<br />

todos os terrores se dissipam, todos<br />

os desânimos se esvaem, todas<br />

as incertezas se desanuviam.<br />

O Coração Imaculado de Maria<br />

é a Porta do Céu aberta<br />

de par em par aos homens de<br />

nosso tempo, tão extremamente<br />

fracos. E esta porta “ninguém<br />

a poderá fechar”, nem<br />

o demônio, nem o mundo,<br />

nem a carne.<br />

(Extraído de Legionário<br />

de 30/7/1944)<br />

Imaculado Coração de Maria<br />

Museu Hyacinthe-Rigaud,<br />

Perpignan, França

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