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Revista Dr Plinio 312

Março de 2024

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Publicação Mensal<br />

Vol. XXVII - Nº <strong>312</strong> Março de 2024<br />

O trágico e glorioso<br />

caminho da Cruz


Consolações na via dolorosa<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo teve consolações durante a Paixão?<br />

Sem dúvida. Uma delas foi quando Ele pronunciou a primeira canonização<br />

da História.<br />

O Redentor conhecia os sintomas pelos quais São Dimas, enquanto se<br />

contorcia de dor na cruz, estava se convertendo ao reconhecer que merecia<br />

aquele suplício, mas que Nosso Senhor era inocente. Em certo momento,<br />

o Bom Ladrão disse-Lhe uma palavra de súplica e adoração:<br />

— Senhor, lembrai-Vos de mim quando<br />

entrardes em vosso<br />

Reino.<br />

Ao que Jesus<br />

respondeu:<br />

— Tu, hoje, estarás comigo<br />

no Paraíso!<br />

Esta afirmação das alegrias do Paraíso no<br />

momento em que descem as sombras da morte,<br />

que consolação!<br />

Alguém dirá: “Mas, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, debaixo de<br />

certo ponto de vista são consolações funéreas,<br />

porque todas elas misturadas com a dor.” Eu digo:<br />

no entanto, consolações muito maiores do que a de<br />

tantos homens entregues ao pecado.<br />

Todos nós, ao longo desta nossa via dolorosa, se<br />

perseverarmos, encontraremos consolações. Como e<br />

quando será? Nossa Senhora sabe. A nós compete<br />

pedir-Lhe uma força cheia de unção interior, de alegria,<br />

de bem-estar no meio das dores.<br />

Nosso Senhor recomendou que aqueles que fossem perseguidos<br />

por amor à Justiça superabundassem de gáudio, porque<br />

grande seria a sua recompensa no Céu.<br />

Gabriel K.<br />

(Extraído de conferência de 16/11/1984)


Sumário<br />

Publicação Mensal<br />

Vol. XXVII - Nº <strong>312</strong> Março de 2024<br />

Vol. XXVII - Nº <strong>312</strong> Março de 2024<br />

O trágico e glorioso<br />

caminho da Cruz<br />

Na capa,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, em<br />

abril de 1994.<br />

Foto: Arquivo <strong>Revista</strong><br />

As matérias extraídas<br />

de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

— designadas por “conferências” —<br />

são adaptadas para a linguagem<br />

escrita, sem revisão do autor<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

ISSN - 2595-1599<br />

CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />

INSC. - 115.227.674.110<br />

Diretor:<br />

Roberto Kasuo Takayanagi<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Virgílio Rodrigues, 66 - Tremembé<br />

02372-020 São Paulo - SP<br />

E-mail: editoraretornarei@gmail.com<br />

Impressão e acabamento:<br />

Pigma Gráfica e Editora Ltda.<br />

Av. Henry Ford, 2320<br />

São Paulo – SP, CEP: 03109-001<br />

Preços da<br />

assinatura anual<br />

Comum............... R$ 300,00<br />

Colaborador........... R$ 400,00<br />

Benfeitor ............. R$ 500,00<br />

Grande benfeitor....... R$ 800,00<br />

Exemplar avulso........ R$ 25,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

editoraretornarei@gmail.com<br />

Segunda página<br />

2 Consolações na via dolorosa<br />

Piedade pliniana<br />

4 Meditação das<br />

Horas da Paixão<br />

Editorial<br />

6 Cerimônias litúrgicas:<br />

canal de graças<br />

Dona Lucilia<br />

7 Peregrinando no olhar<br />

de Dona Lucilia<br />

Reflexões teológicas<br />

10 Panorama grandioso e trágico,<br />

prenunciativo da primavera do<br />

Reino de Maria<br />

Gesta marial de um varão católico<br />

16 Nosso Senhor Jesus Cristo, ponto de<br />

convergência extraordinário<br />

O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

19 A entrada no caminho<br />

do sofrimento<br />

Calendário dos Santos<br />

24 Santos de Março<br />

Hagiografia<br />

26 Nobreza e dignidade<br />

do Esposo Virgem de Maria<br />

Eco fidelíssimo da Igreja<br />

30 Como consolar<br />

nosso Redentor?<br />

Luzes da Civilização Cristã<br />

32 A divina impotência<br />

do Onipotente<br />

Última página<br />

36 Ter estampada no coração<br />

a Divina Face<br />

3


Piedade pliniana<br />

Meditação das<br />

Horas da Paixão<br />

Jaculatória para o início de cada hora<br />

Ó Jesus, que a esta hora eu Vos ame sobre<br />

todas as coisas e me una inteiramente a Vós,<br />

por meio de Maria, vossa Mãe. Concedei-me<br />

a vossa graça na hora da minha morte. Amém.<br />

18:00 – Jesus lava os pés<br />

de seus discípulos<br />

Obtende-me, ó minha Mãe, a graça de<br />

tratar meus irmãos na Fé como vosso Divino<br />

Filho tratou, nesse ato, os Apóstolos que<br />

iam abandoná-Lo, e até o mercator pessimus.<br />

19:00 – Jesus institui a<br />

Santíssima Eucaristia<br />

Fazei de mim, ó Mãe Santíssima, uma alma<br />

vigorosa e pura, nutrida pelo Pão dos fortes<br />

e pelo Vinho que gera virgens.<br />

20:00 – Jesus despede-Se de seus<br />

discípulos e Se dirige ao Horto<br />

Obtende-me, ó Sede da Sabedoria, algo<br />

da fortaleza de que meu Salvador me deu<br />

exemplo, caminhando com passo resoluto<br />

para o local onde se iniciaria sua Paixão.<br />

21:00 – Jesus ora no Horto das Oliveiras<br />

Ó Maria, alcançai-me de Jesus, triste e obediente<br />

até a morte, o conhecimento, o amor e<br />

a gratidão à Providência, pelas aflições que a<br />

alma fiel encontra no cumprimento do dever.<br />

22:00 – Jesus, tendo entrado<br />

em agonia, transuda sangue<br />

Ó Mãe Dolorosa, obtende-me, pelo mérito<br />

do Sangue Divino vertido nesse lance,<br />

a graça de compreender que também a mim<br />

cabe sofrer, até o fundo da alma, na previsão<br />

de todas as dores que afligem e ainda afligirão<br />

a Santa Igreja de Deus.<br />

23:00 – Jesus, ao receber o beijo<br />

de Judas, é traído e preso<br />

Senhora, dai-me a graça de compreender<br />

e odiar toda a traição da qual é vítima a Santa<br />

Igreja. E de lutar contra essa traição até<br />

que seja inteiramente derrotado o processo<br />

de descristianização pelo qual o mundo vai<br />

chegando a uma falta de religiosidade gnóstica<br />

e igualitária.<br />

Meia-noite – Jesus é apresentado a<br />

Anás e ferido com uma bofetada<br />

Senhora, quantas bofetadas sofre hoje<br />

vosso Filho, como Cabeça invisível que é<br />

da Igreja Santa. Dai-me a resolução de receber<br />

em mim todas as afrontas dos inimigos<br />

da Igreja. E de lutar até a última energia de<br />

meu corpo e a última gota de meu sangue na<br />

mais inteira correspondência à graça, para a<br />

derrota dos esbofeteadores.<br />

1:00 – Jesus diante de Caifás<br />

A autoridade da Sinagoga encabeça a luta<br />

contra o Messias! Fazei-me sentir, ó Maria,<br />

uma dor proporcionada à gravidade dos pecados<br />

de tantas pessoas sagradas, tristemente<br />

empenhadas no processo de autodemolição<br />

da Igreja.<br />

2:00 – Jesus é maltratado e escarnecido<br />

Quantas vezes tenho recuado diante da<br />

Revolução por medo de ser maltratado e escarnecido!<br />

Obtende-me de Jesus, ó Maria,<br />

que minha alma seja curada da chaga hedionda<br />

do respeito humano.<br />

3:00 – Jesus é negado por Pedro<br />

São Pedro menosprezou vossa predição, ó<br />

meu Jesus, e confiou totalmente em si. Por<br />

isso, antes de o galo ter cantado, ele Vos negou<br />

três vezes. E isto por medo de uma criada.<br />

Ó Maria, tornai-me atento à voz da graça,<br />

fazei-me vigilante contra meus defeitos e,<br />

mais uma vez vo-lo suplico, limpai minha alma<br />

da lepra do respeito humano.<br />

4:00 – Jesus na prisão<br />

Está preso, ó Maria, vosso Divino Filho.<br />

Pelo mérito infinito desse aprisionamento, fazei-me<br />

amar todas as legítimas dependências<br />

a que, por desígnio vosso, devo estar sujeito.<br />

5:00 – Jesus é levado diante do<br />

tribunal de Pilatos e acusado<br />

Ó Maria, obtende-me horror ao espírito<br />

egoístico, mole e cético manifestado por Pila-<br />

4


tos na Paixão. Fazei de mim um escravo vosso, cheio de fé, de<br />

generosidade e de fortaleza.<br />

6:00 – Jesus, perante Herodes, é<br />

escarnecido e desprezado<br />

Vosso Divino Filho está em face do homem que personificou<br />

o ódio contra Ele. Fazei-me compreender, ó Maria,<br />

quanto os inimigos da vossa Causa Vos odeiam e nos<br />

odeiam. Pedimo-Vos, ó Mãe, que desterreis de nossa alma<br />

qualquer visão ingênua, liberal e preguiçosa sobre a mentalidade<br />

dos adeptos da Revolução.<br />

7:00 – Jesus é de novo conduzido diante<br />

de Pilatos; Barrabás é preferido a Ele<br />

Tal é esse ódio, ó Rainha do Universo, que não só O quiseram<br />

matar, mas até preferiram o malfeitor a Ele. Tal é a<br />

abjeção de vossos inimigos! Ainda uma vez, peço-Vos que<br />

limpeis minha alma de ilusões tolas nascidas do liberalismo,<br />

do sentimentalismo e da tibieza.<br />

8:00 – Jesus é flagelado<br />

Hoje é flagelada – e por que mãos! – a Igreja de Deus.<br />

Por mãos sagradas para a celebração dos Mistérios Divinos.<br />

Por mãos de cristãos que deveriam estar dispostos a empunhar<br />

armas, se necessário fosse, para defendê-la contra<br />

o adversário. Abri minha alma para o conhecimento cabal<br />

dessa negra realidade, ó Maria, e enchei-me de dor, de santa<br />

cólera e de espírito de luta contra tão horrível pecado.<br />

9:00 – Jesus é coroado de espinhos<br />

Coroaram de espinhos a Fronte Divina, própria a levar a<br />

coroa da realeza do universo.É um modo de negar esta realeza,<br />

de negar todo poder legítimo, toda hierarquia, toda<br />

autoridade. Concedei-me, ó Maria, o espírito sacral, hierárquico,<br />

o ódio à Revolução, em suma, o amor à realeza de Jesus<br />

e à vossa sobre todas as criaturas.<br />

10:00 – Jesus é condenado à morte<br />

A Vida é condenada à morte. Que espantosa derrota!<br />

Mas daqui a pouco, a morte será derrotada pela Ressurreição<br />

d’Aquele que é a Vida. Nas piores horas, a virtude da<br />

confiança me deve preservar do desalento. Obtende-me a<br />

graça, ó Maria, de uma confiança sem limites na derrota da<br />

Revolução e na implantação de vosso Reino.<br />

11:00 – Jesus carrega a pesada Cruz<br />

Sim, Jesus carregou a Cruz. Por três vezes vergado ao peso<br />

dela, caiu ao chão. Porém, em momento algum Ele abandonou<br />

a Cruz. Que por Vós, ó Mãe, eu obtenha a graça de<br />

não abandonar o peso da luta pela verdadeira Fé e pela Civilização<br />

Cristã, ainda quando as forças pareçam me faltar.<br />

12:00 – Jesus é crucificado<br />

Os inimigos O cravam na Cruz, para assim O fixarem nela<br />

até a morte. Ó minha Mãe, alcançai-me graças que me<br />

cravem na cruz de minha vocação e não permitais que algum<br />

dia eu dela me separe.<br />

13:00 – Jesus,<br />

na Cruz, é insultado<br />

Ainda mais insultos! De vosso<br />

Filho, eles não se compadeceram.<br />

Assim é o ódio do revolucionário.<br />

Para Vós e para os verdadeiros<br />

seguidores de Jesus Cristo não<br />

existe compaixão. Fazei-me compreender<br />

e execrar, ó Maria, toda a ingratidão<br />

para com Deus e toda a maldade da Revolução.<br />

14:00 – Jesus sofre as últimas dores na Cruz<br />

Chegou a última agonia, todos os tormentos inimagináveis<br />

se concentram em vosso Filho. Mas Ele cumpriu até o<br />

fim a vontade do Pai Eterno. Alcançai-me, ó Coração Sapiencial<br />

e Imaculado de Maria, a graça de cumprir até o fim<br />

a vocação que me concedestes.<br />

15:00 – Jesus morre na Cruz<br />

Consummatum est! A obediência foi levada até o holocausto<br />

final. Ele morreu porque quis. E o quis porque assim<br />

Lhe foi mandado pelo Pai Eterno. Ó Mãe do Bom Conselho,<br />

fazei-me compreender, à luz deste divino exemplo, toda<br />

a sacralidade da obediência.<br />

16:00 – Jesus é descido da Cruz e depositado<br />

nos braços de sua Santíssima Mãe<br />

O Cadáver está em vossos braços. Jesus consentiu em ser<br />

morto porque Vós o quisestes, pois o Pai Eterno quis pedir<br />

vosso consentimento para que o holocausto se efetuasse. E<br />

Vós quisestes este holocausto, porque esta era a santíssima<br />

vontade de Deus.<br />

Ó Maria, modelo invencível, sublime e sacrossanto de obediência,<br />

fazei-me odiar a Revolução anárquica e insubmissa.<br />

17:00 – Jesus é depositado no sepulcro<br />

Tudo está acabado. É o fim... na aparência. Na realidade,<br />

em breve tudo começará a renascer. Abrireis logo mais, para<br />

os justos da Antiga Lei, as portas do Céu, ó Senhor!<br />

Junto a Vós, ó Refúgio dos pecadores, os Apóstolos choram<br />

seus pecados. Dentro em breve virão a Ressurreição, a<br />

Ascensão e Pentecostes.<br />

Quanto mais vitorioso parece o demônio, então mais<br />

próxima está a vossa vitória.<br />

Nestes dias em que, pelo atrativo de uma mal compreendida<br />

liberdade, está-se chegando a um assombroso desregramento<br />

dos costumes, ao caos na cultura e à anarquia nos<br />

países, dai-me, ó Mãe, uma crença firme nas vossas promessas<br />

em Fátima, uma esperança abrasada de que elas não tardam<br />

em se cumprir, uma certeza da derrota da Revolução e<br />

da instauração de vosso Reino. Amém.<br />

Gabriel K.<br />

5


Editorial<br />

Cerimônias litúrgicas:<br />

canal de graças<br />

Como diz o Concílio de Trento, está na natureza do homem a dificuldade de se elevar à contemplação<br />

das coisas divinas sem o socorro das coisas exteriores. Tal é a razão que levou a<br />

Santa Igreja a estabelecer os ritos sagrados. Por eles, a majestade das coisas se torna recomendável<br />

e a vista desses símbolos religiosos e piedosos excita o espírito dos fiéis à contemplação<br />

dos mais sublimes mistérios.<br />

As cerimônias sagradas, com efeito, representam, em símbolos sensíveis, as realidades invisíveis<br />

e exprimem as grandes verdades da Religião em uma linguagem facilmente compreendida<br />

por todos.<br />

Os ignorantes, as próprias crianças, apreendem o sentido desses ensinamentos que falam tão<br />

vivamente aos sentidos; e os doutos, os contemplativos mais profundos se deliciam em ler nesse<br />

livro rico de imagens a explicação dos mais sublimes e inefáveis mistérios.<br />

Sobretudo, além das cerimônias religiosas inspirarem respeito pelas coisas santas, elas trazem<br />

em si mesmas grandes tesouros de graças. A Fé nos ensina que não podemos praticar nenhuma<br />

obra salutar sem o socorro da graça divina. E Deus fez de cada criatura humana um canal e um<br />

instrumento da graça.<br />

Todos os seres que nos cercam, todos os fenômenos que eles apresentam, deveriam por si próprios<br />

produzir sobre nós apenas impressões naturais. Graças, porém, à bondade divina, transformam-se<br />

em ajudas de Deus para a salvação de seus eleitos e excitam em nós pensamentos e sentimentos<br />

sobrenaturais.<br />

Ora, além de comunicar suas graças por intermédio das criaturas, Deus também as comunica,<br />

e mais especialmente, por meio das cerimônias sagradas.<br />

Cada ano, no ciclo das solenidades litúrgicas, relembra a Igreja a série de mistérios da Redenção.<br />

Assim, durante a Quaresma, a Esposa Mística de Cristo se une pelos jejuns e por outras austeridades<br />

a Jesus em sua Paixão. Ela O segue ao Calvário e no mistério de sua Morte. No Tempo<br />

Pascal, a Ressurreição do Senhor a enche de alegria. *<br />

* Cf. O Legionário n. 559 de 25/4/1943.<br />

Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />

de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />

na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />

outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

6


Dona Lucilia<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Os olhos são a janela da alma.<br />

De fato, nada se compara<br />

ao olhar cheio de unção de<br />

uma alma virtuosa, cuja<br />

expressão transmite infinitas<br />

lições, eleva, santifica.<br />

Eu creio que uma das coisas<br />

mais pungentes na vida é<br />

conhecer um grande olhar<br />

– de uma grande alma – e, de repente,<br />

ver-se privado dele, porque ele se<br />

fechou para sempre e a alma foi-se<br />

para Deus. Aquilo que se viu não se<br />

verá mais, não se aprofundará mais,<br />

não conhecerá mais como deveria<br />

ter conhecido, e daí por diante é só a<br />

eternidade…<br />

Comunicação de olhares<br />

para além da morte<br />

Mil vezes eu peregrinei dentro<br />

dos olhos de mamãe, mas quantas<br />

e quantas vezes, e a partir de quantas<br />

portas desse olhar! O olhar dela<br />

quando me olhava, quando eu a via<br />

olhando para dentro do meu olhar;<br />

o olhar dela quando rezava, o olhar<br />

dela visto de lado, o olhar dela visto<br />

por detrás, o qual era percebido<br />

apenas por imponderáveis, sem se<br />

olhar.<br />

Quando ela faleceu eu me pus<br />

esta pergunta: “Para esta vida terminou,<br />

acabou, nunca mais eu passearei<br />

dentro deste olhar e nunca<br />

mais desvendarei esta alma… Agora,<br />

<strong>Plinio</strong>, pergunte-se: ‘Você aproveitou<br />

o tesouro? Você olhou tudo<br />

o que tinha que ver e chegou até o<br />

7


Dona Lucilia<br />

Divulgação (CC3.0) / Arquivo <strong>Revista</strong><br />

São Charbel Makhlouf<br />

conhecimento último? Você será capaz<br />

de fazer a viagem retrospectiva<br />

e complementar através dos véus sucessivos?’”<br />

Eu me fiz a pergunta distendido e<br />

calmo, em meio ao pranto da morte.<br />

E com toda a serenidade respondi<br />

a mim mesmo: “Sim e inteiramente.”<br />

Acabou, mas eu tenho tudo, levo<br />

tudo, oxalá assimilo tudo! Talvez<br />

ela tenha morrido a tempo para me<br />

comunicar os últimos fogos de um<br />

olhar em que a luz da vida, o lumen<br />

rationis, bruxuleavam, mas que ainda<br />

tinham belezas novas para me comunicar.<br />

No entanto, sinto que foi talvez<br />

há pouco que eu me comuniquei<br />

com ela.<br />

Uma janela da<br />

eternidade que se abre<br />

Dona Lucilia<br />

Outro dia um raio de Sol incidiu<br />

sobre uma fotografia dela, atingindo<br />

inclusive as flores ao redor, que tomaram<br />

vida, parecendo flores paradisíacas,<br />

iluminadas por dentro. Algo<br />

de extraordinário!<br />

Se quiséssemos fazer a iluminação<br />

de uma foto, jamais conseguiríamos<br />

fazer algo parecido. Lembrou-<br />

-me um pouco essas imagens modernas<br />

que há hoje em dia nas ruas, iluminadas<br />

por dentro. Mas era, sem<br />

comparação, melhor.<br />

A fisionomia dela reluziu, dando<br />

a ideia de uma janela da eternidade<br />

que se abria, transmitindo algo que<br />

não tem nada a ver com esta Terra.<br />

Deu-me a impressão de ela estar tão<br />

viva, que se diria que começaria a falar<br />

com alguém que estivesse ali para<br />

fazer-lhe uma pergunta. Vou dizer<br />

mais: com uma animação que<br />

anos antes da morte ela já não tinha,<br />

já muito abatida pela idade. Ela parecia<br />

bem disposta, forte até. Dir-se-<br />

-ia que havia passado uma temporada<br />

fora, que descansou…<br />

Olhar de futuro, de<br />

metafísica e de fé<br />

Há outro olhar de uma fisionomia<br />

dela aos cinquenta anos. É de uma<br />

tal seriedade que poderia ser colocada<br />

ao lado de uma foto de São Pio X<br />

ou do São Charbel Makhlouf, embora<br />

o olhar dele não tenha essa tristeza.<br />

São Pio X<br />

É um olhar ordenativo para nossa<br />

alma e, posto em quadro num ambiente,<br />

influencia a sala, acompanha<br />

as pessoas. Se alguém me perguntar<br />

qual foi a influência de Dona Lucilia<br />

em minha formação, eu diria: “Veja,<br />

está aí!”<br />

Precisamos nos sentir em casa em<br />

presença dessa fisionomia, a qual se<br />

poderia denominar: “Contra-Revolução<br />

tendencial.” Mamãe exercia<br />

uma ação pacificante já à distância.<br />

Paz é isso.<br />

Ela fez verdadeira psicologia com<br />

os brasileiros, permitindo que antes<br />

dessa foto nos chegasse às mãos o<br />

“Quadrinho”.<br />

Os dois quadros fazem uma combinação<br />

perfeita. O “Quadrinho”<br />

a reflete muito mais na intimidade.<br />

O outro exprime a fisionomia dela<br />

quando se encontrava em outros ambientes.<br />

Vê-se que ela faz um esforço<br />

para não romper o que resta de<br />

amizade com os outros, para poder<br />

fazer-lhes bem.<br />

O olhar reflete uma visão do futuro,<br />

mas sobretudo em função da<br />

ofensa a Deus, daquilo que ela via<br />

no Coração de Jesus, entristecido<br />

8


pelos pecados dos homens. É um ato<br />

de fé, de metafísica viva. Quem fez<br />

esse ato de fé tem uma limpeza de<br />

senso metafísico colossal.<br />

Há uma tal integridade, por onde<br />

vemos que ela era consciente de<br />

que, se aceitasse, por exemplo, uma<br />

joia um pouco moderna, ela quebrava<br />

a fé.<br />

É a fisionomia mais séria que eu<br />

já vi na vida, mas, ao mesmo tempo,<br />

com uma calma extraordinária, a<br />

qual se reflete muito pelo conjunto<br />

da fisionomia e por todo o corpo, no<br />

qual não há um músculo contraído.<br />

Ela tinha uma noção de delicadeza<br />

vinda do fato de ser muito digna,<br />

séria, sendo ela mesma, não querendo<br />

ser senão o que era, sem ganância.<br />

Ela não tinha jamais um sorriso<br />

que significasse qualquer conivência<br />

com o que de revolucionário<br />

houvesse no ambiente. É uma fisionomia<br />

que nos prepara para os acontecimentos<br />

de Fátima.<br />

Exercício para<br />

visão beatífica<br />

Assim eu olho sucessivamente<br />

para os olhares, para as coisas<br />

que esta vida se nos apresenta. Isso<br />

é viver. E não fazer isso é não viver.<br />

Falar, no fundo, é<br />

dizer coisas dessas. E<br />

quem nunca pensou<br />

nem viu, e não teve<br />

coisas semelhantes<br />

em vista, e nunca<br />

fez isso, este eu tenho<br />

dificuldade de<br />

explicar para mim<br />

mesmo como ele<br />

estará pronto para<br />

a visão beatífica.<br />

Porque a visão beatífica<br />

é isso: olhar<br />

Deus face a face<br />

e peregrinar dentro<br />

d’Ele e sempre,<br />

sempre, e imutável<br />

e novo para nós,<br />

afável, majestoso,<br />

acolhedor!<br />

E nós dentro d’Ele<br />

superpondo os aspectos<br />

sucessivos, para formar<br />

uma cognição que nunca<br />

cessará. Porque jamais O<br />

conheceremos em sua totalidade.<br />

Isso será a nossa<br />

alegria no Céu! v<br />

(Extraído de conferências<br />

de 23/12/1976,<br />

7/3/1982 e 20/8/1987)<br />

Flávio Lourenço<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1987<br />

Beau Dieu - Catedral de<br />

Notre-Dame, Amiens<br />

9


Reflexões teológicas<br />

Panorama grandioso e<br />

Gabriel K.<br />

trágico, prenunciativo<br />

da primavera do<br />

Reino de Maria<br />

Profeta Jeremias<br />

Basílica de Santa Maria,<br />

Cracóvia, Polônia<br />

Na Cruz, os brados e os gemidos de Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo não foram só por causa<br />

do povo que O abandonou. Ele sabia que outra<br />

Jerusalém, mais perfeita do que a primeira, iria<br />

deixá-Lo na desolação. Entretanto, devemos<br />

ter a certeza sobrenatural de que toda esta<br />

enxurrada e a atual catástrofe na Igreja não<br />

servirão senão para realçar a glória d’Ele.<br />

Gabriel K.<br />

Há fulgores que se desprendem<br />

subitamente das mais<br />

variadas coisas. Por exemplo,<br />

um tecido de seda sob a ação da<br />

luz, solta, de repente, uma claridade<br />

de prata. Também uma joia colocada<br />

sob a luminosidade dá um fulgor especial.<br />

Tantas coisas fulguram na vida! A<br />

dor também pode fulgurar.<br />

Jerusalém prefigura a Igreja<br />

Quando ouvimos as palavras da<br />

Sagrada Escritura a respeito de Jerusalém,<br />

a cidade de uma beleza perfeita,<br />

antiga alegria da Terra inteira<br />

(cf. Lm 2, 15), que chorava na sua<br />

solidão porque estava abandonada,<br />

vemos no seu pranto o majestoso soluçar<br />

profético que chega até nós.<br />

Quando os comentadores da Escritura<br />

haveriam de imaginar que os<br />

acontecimentos seriam tais, que algum<br />

dia houvesse admiradores e devotos<br />

do Profeta Jeremias, que olhariam<br />

para esse quadro que a Sagrada<br />

Escritura, inspirada pelo Espírito<br />

Santo, apresenta como o auge do<br />

quadro pungente, e diriam abanando<br />

a cabeça: “Nós descemos mais<br />

fundo, a nossa tristeza vai mais longe.<br />

Quão majestoso e belo é o pranto<br />

desse profeta e quanto ele dá glória<br />

a Deus! Mas a nós foi dado ver uma<br />

realidade ainda mais amarga e, sem<br />

sabermos soluçar como ele, entretanto<br />

temos uma dor que nos transpassa<br />

o coração.”<br />

Jerusalém prefigura a Santa Igreja<br />

Católica; pode ser considerada<br />

10


Gabriel K.<br />

também uma figura das nações que<br />

outrora constituíram a Cristandade,<br />

pobre fogueira extinta da qual se diria<br />

que uma ou outra brasa ainda rola<br />

acesa aqui, lá e acolá, por meio de<br />

cinzas; mas, de fato, é um abismo insondável.<br />

Imaginem a sensação de uma pessoa<br />

atirada dentro de um poço e,<br />

quando percebe apavorada estar chegando<br />

ao fundo e que dali a pouco virá<br />

o impacto com o chão, de repente,<br />

percebe, com espanto, que aquele<br />

fundo é fictício. Ela atravessa aquilo e<br />

cai num outro poço muito pior, mais<br />

profundo e não para de cair.<br />

Nós ainda não atingimos o fundo<br />

de nossa humilhação nem de nossa<br />

dor, mas estamos caindo, caindo,<br />

caindo… A cada vez que pensamos<br />

ter atingido o fundo do poço, ainda<br />

há mais. Até onde vai esse fundo?<br />

Onde estamos? O que é feito da glória<br />

de Deus? O que é feito da glória<br />

de Maria, Rainha do Universo?<br />

Como seria bom se pelo menos<br />

nós, a quem Nossa Senhora favorece<br />

com a graça de compreender essa situação,<br />

tivéssemos um pranto do tamanho<br />

dessa dor e uma indignação<br />

proporcionada a esse pecado e, portanto,<br />

nos desinteressássemos de tudo<br />

quanto é banal e voássemos mais<br />

alto, pensando apenas na Causa Católica!<br />

Situação de tragédia,<br />

condição para a glória<br />

As velas de um navio só deixam<br />

ver a sua beleza inteira quando<br />

o vento sopra e elas se enchem.<br />

O pulchrum de um navio só se deixa<br />

ver inteiro quando ele desencosta<br />

do cais. Se ele navega assim mesmo,<br />

quando está dentro do porto, dentro<br />

do golfo, ainda em circunstâncias<br />

onde se vê terra firme, ele não aparece<br />

no seu isolamento grandioso. É<br />

preciso que o barco seja imaginado<br />

num mar onde não se vê nada, onde<br />

de todos os lados os confins do horizonte<br />

e do mar se fecham em torno<br />

dele, e aí se começa a perceber como<br />

ele é pequeno diante do mar que<br />

singra e como ele é grande, porque<br />

ousa singrar o mar. Que vitória singrar<br />

o mar!<br />

Quando se inventou a fotografia,<br />

mil recursos foram empregados para<br />

fotografar navios em todas as posições<br />

e ações possíveis. Na época do<br />

avião, o homem ainda não cessa, a<br />

muito justo título, de se encantar e<br />

de se surpreender com a navegação.<br />

Ele se encanta, reproduz os navios<br />

de todas as ordens em toda espécie<br />

de mares. Isso vai para os álbuns, para<br />

os museus, por toda a parte. O homem<br />

canta a beleza dessa situação:<br />

um navio sozinho no mar e que navega.<br />

Se fosse só isso. Quantos literatos,<br />

pintores, se têm esmerado em mostrar<br />

o navio na tempestade. Ou sob<br />

céu aberto, quando o mar está refulgente,<br />

espelhando o Sol, tranquilo<br />

ou com ondas belas que o fazem<br />

apenas balouçar, brincam com ele<br />

sem ter vontade de tragá-lo quando<br />

passa. É muito bonito!<br />

Quando há tempestade, o navio<br />

continua; o infortúnio se abate, ele<br />

continua e resiste, ameaça naufragar,<br />

a tragédia… Até o seu soçobro<br />

é belo. A agonia e a morte de um navio<br />

são bonitas de tal maneira é bela<br />

a navegação.<br />

Na realidade, todo o infortúnio da<br />

navegação faz ver aspectos da reali-<br />

11


Reflexões teológicas<br />

dade náutica que dão a glória do navio<br />

até nos dias de bonança. Porque<br />

se não houvesse o perigo do soçobro,<br />

ninguém acharia tão bonito que o<br />

navio estivesse atravessando o mar.<br />

A verve da travessia que o navio faz<br />

é que por detrás está o perigo, e ele<br />

o vence.<br />

Realmente o perigo é a condição<br />

da glória do navio. Por assim dizer,<br />

o perigo espreme, deita o melhor de<br />

sua beleza nesse sulco da dor.<br />

As coisas se apresentam aos nossos<br />

olhos assim. Na tragédia da situação<br />

em que estamos, ao homem de<br />

hoje é dado ver uma desolação como<br />

igual o homem não conheceu. Ver<br />

tudo soçobrar é terrível.<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

Do pranto de indignação<br />

às amenidades e sorrisos<br />

Sem dúvida, o dilúvio foi um castigo<br />

terrível. Entretanto, uma coisa<br />

é verdadeira: muitos olharam para<br />

o Céu e se converteram. Quem olha<br />

para o Céu dentro deste Dilúvio de<br />

nossos dias? Quem está se convertendo?<br />

Não se tem conta do número de<br />

almas que vão se perdendo!<br />

A consideração desse panorama<br />

deve nos levar a pedir a Nossa Senhora,<br />

antes de tudo, a determinação<br />

de medi-lo inteiro, sem ocultar<br />

nada do que é, nem do que vem.<br />

Em segundo lugar, pedir uma certeza<br />

sobrenatural de que Nossa Senhora<br />

vencerá, e que toda esta enxurrada<br />

e a atual catástrofe não servirão<br />

senão para realçar a glória d’Ela.<br />

É o panorama que fica por detrás:<br />

grandioso e trágico, de um lado;<br />

mas, de outro, já prenunciativo<br />

de que primaveras e de que verões!<br />

Com efeito, na alma do varão<br />

que vê, se indigna e tem um pranto<br />

na medida do panorama, nascem<br />

alegrias, amenidades, sorrisos que já<br />

são o começo do Reino de Maria.<br />

Ao extremo da desolação e da justiça<br />

punitiva devem suceder a reconciliação<br />

bondosa, o banquete para o<br />

filho pródigo que volta, o arco-íris<br />

que aparece para o homem que sai<br />

de dentro da arca. Como será esse<br />

arco-íris? Que alegrias! São as amenidades,<br />

as glórias e a segurança férrea<br />

do Reino de Maria. Tudo isso<br />

que prevemos nos dá ânimo para enfrentar<br />

o que vemos.<br />

À vista desse panorama, o homem<br />

não deve ter medo da dor nem fugir<br />

dela.<br />

Coragem para ver a dor<br />

Dilúvio, por Gustave Doré<br />

Poderíamos imaginar alguns lances<br />

da Paixão de Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo como tendo se dado da seguinte<br />

maneira. Nosso Senhor Se fez<br />

ver no horror dos seus sofrimentos,<br />

que despertavam n’Ele uma dor que<br />

além de física era moral, cuja extensão<br />

nenhum homem pode calcular<br />

bem, porque transcende todo o entendimento.<br />

Em certo momento, Ele<br />

apresenta-Se assim e Verônica tem<br />

pena. Lancinada pela compaixão como<br />

ninguém, ela vai correndo de encontro<br />

a Ele, enfrenta tudo e passa<br />

o sudário no rosto d’Ele. E recebe o<br />

presente que conhecemos.<br />

Verônica teve coragem de ver a<br />

dor, olhou-a de frente e por isso praticou<br />

o gesto famoso. E quiçá tenha<br />

dito: “Meu Senhor e meu Deus!”<br />

Outra cena passou-se com São<br />

Pedro. Depois de ele ter negado três<br />

vezes ao seu Divino Mestre, o galo<br />

cantou e Nosso Senhor olhou para<br />

ele. Naquele olhar, que imensidade<br />

de dor moral Ele terá comunicado!<br />

Como São Pedro terá entendido me-<br />

12


Flávio Lourenço<br />

lhor naquele momento, inclusive as<br />

sacratíssimas dores físicas de Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo. Era como que<br />

uma confidência iluminadíssima que<br />

ele recebia de Nosso Senhor, que dizia:<br />

“Vem e segue-Me.”<br />

São Pedro chorou amargamente,<br />

e se conhece o resto: toda a glória<br />

que veio depois, como também o<br />

martírio. E, na hora de morrer, ele<br />

pede para ser crucificado de cabeça<br />

para baixo, porque não era digno de<br />

ser crucificado como Aquele a quem<br />

ele negou. Ainda é o último olhar<br />

que o acompanha até a morte.<br />

No olhar de Nosso Senhor para<br />

ele durante a Paixão, São Pedro<br />

se modificou, e acho que quando os<br />

olhos dele viram a última coisa terrena,<br />

ele tinha diante de si o olhar de<br />

Nosso Senhor.<br />

Itinerário de São João<br />

Evangelista na Paixão<br />

Como terá sido a contrição de São<br />

João Evangelista? Pode-se imaginá-<br />

-la de mil maneiras. Ele fugiu, como<br />

todos os Apóstolos, mas na narração<br />

do Evangelho, ele aparece, de<br />

repente, ao pé da Cruz.<br />

Entre a fuga e esse momento o<br />

que se passou? Esse homem que fugia<br />

quando Nosso Senhor era preso,<br />

A Verônica consola Jesus no caminho do Calvário - Museu de Belas Artes de Lille, França<br />

acaba tendo a coragem de aparecer<br />

quando Ele está morrendo naquelas<br />

circunstâncias? É muita coragem.<br />

Como podemos imaginar isso?<br />

Por exemplo, assim: que ele estava<br />

só, no quarto dele, pensando, gemendo,<br />

com vergonha de si mesmo,<br />

mas esmagado pela covardia, percebendo<br />

em si, enquanto ele mesmo<br />

chorava, as lerdezas do respeito humano<br />

e da preguiça, e agitado entre<br />

o “sim” e o “não”. Não ousando ir<br />

ver Nosso Senhor e acompanhá-Lo,<br />

ele ao menos quer ver de longe para<br />

saber o que está acontecendo. Ele<br />

não ousa dizer para si mesmo, porque<br />

sabe que fugiria, mas se ele ouvisse<br />

um pouco daquela voz que ele<br />

tantas vezes ouvira, ainda que fosse<br />

sob a forma de um gemido! Aquele<br />

timbre, que ele tantas vezes ouvira<br />

e cuja ausência o deixava lanhado<br />

de saudades. Por fim, ele acaba vencendo<br />

a preguiça, o respeito humano<br />

e caminha com o projeto de ver de<br />

longe o Mestre.<br />

Nosso Senhor, que sabia dele no<br />

quarto, conhecia tudo o que se passava<br />

com ele, o acompanhou em espírito<br />

nesse itinerário. Nossa Senhora<br />

está rezando por São João; Ele recebe<br />

as orações d’Ela por ele. Nosso<br />

Senhor, quando sabe que São João<br />

se aproxima, põe na inflexão da voz<br />

uma coisa qualquer que ele sente<br />

que é dirigida a ele.<br />

Ao longe, ele ouve o brado. Imaginemos<br />

que São João esteja escondido<br />

atrás de uma janela ou de uma<br />

esquina de rua, onde ele pensa estar<br />

certo de que Nosso Senhor não sabe<br />

da presença dele, apesar de saber<br />

que Nosso Senhor conhece tudo.<br />

De repente, chega-lhe aquela inflexão,<br />

com meiguice, mas com uma<br />

tristeza sem fim: “Meu filho, veja<br />

quanto eu sofro!” É um convite a<br />

São João para ser sério e se pôr à altura<br />

daquela dor. Ele se entrega.<br />

Depois, talvez, de um pranto<br />

amargo, ele afinal vê Nosso Senhor<br />

que já subiu o Calvário, está cruci-<br />

13


Reflexões teológicas<br />

ficado. Ele sobe correndo e ainda<br />

chega a tempo de receber a maior<br />

dádiva da História depois da Sagrada<br />

Eucaristia: Nossa Senhora, que<br />

lhe é dada como Mãe. É o dom perfeito,<br />

não se pode conceder mais belo<br />

do que esse. Se Deus desse a São<br />

João Evangelista a Cidade de Jerusalém<br />

na sua beleza perfeita, glória<br />

e alegria do mundo inteiro, não daria<br />

nada em comparação com dar-<br />

-lhe Nossa Senhora!<br />

Flávio Lourenço<br />

Diante da dramaticidade,<br />

um convite de Nosso Senhor<br />

Crucifixão - Capela da Ordem Terceira de São<br />

Francisco, Cuernavaca, México<br />

Teodoro Reis<br />

Pois bem, também nós poderíamos<br />

dizer que temos graças para medir<br />

a dor, o sofrimento insondável da<br />

Igreja nas atuais circunstâncias.<br />

Tudo quanto se passa agora, Nosso<br />

Senhor soube e sofreu por isso do<br />

alto da Cruz. Os brados e os gemidos<br />

d’Ele não foram só<br />

por causa daquele povo<br />

que O abandonou, mas porque<br />

Ele sabia que outra Jerusalém,<br />

mais perfeita do que a primeira<br />

e que seria muito mais estrita e literalmente<br />

a “alegria do mundo inteiro”,<br />

a Igreja fundada por Ele e<br />

da qual é a Cabeça mística, que essa<br />

Igreja haveria de fazer com Ele<br />

pior do que Jerusalém. Por que<br />

não choraria?<br />

Quem sabe, é conjectura,<br />

se toda a história da<br />

Igreja foi passando, como<br />

uma narração viva, diante<br />

do olhar exausto d’Ele,<br />

inundado de Sangue, de seu Corpo<br />

sacratíssimo do qual a vida ia<br />

se retirando. Quem sabe se no<br />

momento em que Ele bradou<br />

“Meu Deus, meu Deus, por que<br />

Me abandonaste?” (Mt 27, 46) estava<br />

passando diante d’Ele a cena da<br />

Igreja em nossos dias? É bem possível.<br />

É uma hipótese, mas essa hipótese<br />

é verdadeira.<br />

Há aqui um quadro de uma dramaticidade,<br />

de uma gravidade enorme!<br />

Eu acho que, diante dele, as almas<br />

estão muito desigualmente preparadas,<br />

se é que se pode falar que alguma<br />

esteja inteiramente preparada.<br />

Porque o mundo de hoje faz o homem<br />

fugir da dor a todo propósito,<br />

de todo jeito e a todo momento;<br />

o que ele não quer é ver isso; disso<br />

ele foge ainda que tenha que fazer o<br />

papel miserável do avestruz: quando<br />

caminham de encontro a ele, mete a<br />

cabeça dentro de um monte de areia<br />

e se deixa devorar. Mas, ainda que<br />

seja para fazer esse papel, o homem<br />

de hoje faz.<br />

14<br />

Nosso Senhor atado à coluna da<br />

flagelação - Gijón, Espanha


Nosso Senhor nos confidencia,<br />

porque nos dá a oportunidade de<br />

juntos medirmos, de juntos nos analisarmos.<br />

E eu não sei exprimir o afeto<br />

com que Ele nos pergunta:<br />

“A ti, a quem escolhi por filho, para<br />

ser mais íntimo, para ouvir o pulsar<br />

do meu Coração; ouve o pulsar<br />

da minha dor, mede-a e assume-a<br />

em ti. Para quem tiver em si a minha<br />

dor, Eu pagarei com todas as minhas<br />

suavidades, com todos os meus sorrisos,<br />

todas as minhas bênçãos e toda<br />

a minha recompensa. Meu filho,<br />

queres ouvir o meu Coração?”<br />

Flávio Lourenço<br />

Manancial de alegria cristã<br />

ao longo da História<br />

Tem-se conjugado o adjetivo cristão<br />

a tanta coisa santa, a tanta coisa<br />

justa; tenho ouvido poucas vezes falar<br />

de alegria cristã.<br />

Se fizéssemos uma história da<br />

alegria – como seria bonito fazê-la!<br />

– demonstraríamos, sem dificuldade,<br />

que o mundo não teve verdadeira<br />

alegria. Eu excluo a nação eleita<br />

nos tempos de sua fidelidade, e assim<br />

mesmo era uma prefiguração. O<br />

mundo não teve verdadeira alegria<br />

comparável com a que brotou quando<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo nasceu.<br />

E de lá para cá vem um manancial<br />

de alegria cristã feita de paz, de unção,<br />

de discernimento do sobrenatural,<br />

de fé, de espírito de sacrifício, de<br />

equilíbrio. Uma alegria como os séculos<br />

não conheceram igual.<br />

A alegria cristã foi morrendo, foi<br />

cedendo passo à mundana.<br />

Dou uma comparação: tomem a<br />

alegria de um vitral glorioso no momento<br />

em que o Sol o incendeia e a<br />

de um minueto. Que coisas diferentes!<br />

Como a alegria do minueto, que<br />

ainda tem alguma coisa da alegria<br />

cristã, é pequenina em comparação<br />

a de um azul, de um verde, de um rubro,<br />

de um áureo de um vitral onde o<br />

raio do Sol está penetrando.<br />

A alegria da música sacra, do órgão<br />

quando ele toca com todos os<br />

seus registros para celebrar a Ressurreição<br />

de Nosso Senhor! Quantas<br />

alegrias incomparáveis!<br />

Alegria da partida para a Cruzada,<br />

dos cruzados quando viram e tomaram<br />

Jerusalém! Nunca se conheceu<br />

alegria igual. A alegria dos Césares,<br />

o triunfo deles em Roma não era<br />

nada; uma alegria pesada, plúmbea,<br />

tendendo para a bebedeira e para o<br />

deboche, porque a alma não encontrava<br />

ali paz e precisava regalar o<br />

corpo em alegrias materiais, porque<br />

Órgão - Catedral de Béziers, França<br />

dentro da alma não havia alegria.<br />

Essa é a verdade.<br />

A alegria do Reino de Maria vai<br />

ser tão maior!<br />

Eu não sei como louvar suficientemente<br />

a ideia de quem deu a um vinho<br />

o nome de Lacrima Christi, para querer<br />

dizer que ele tinha um sabor indizível.<br />

Nós devemos saber tirar dessas<br />

dores o sabor das lágrimas de Cristo,<br />

o sabor dulcíssimo das lágrimas<br />

de Maria.<br />

v<br />

(Extraído de conferência de<br />

20/3/1982)<br />

15


Gesta marial de um varão católico<br />

Nosso Senhor<br />

Teodoro Reis<br />

Jesus Cristo,<br />

ponto de<br />

convergência<br />

extraordinário<br />

As cerimônias de Semana Santa tocavam<br />

profundamente <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>. Nelas ele via<br />

a grandeza, a seriedade e a majestade de<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo, entrevendo<br />

também que ainda há uma maravilha<br />

nova, um píncaro a ser conhecido<br />

dentro de toda a beleza da Igreja.<br />

Lembro-me de que, quando<br />

chegava a Semana Santa, eu<br />

assistia ao Ofício na Catedral.<br />

Entretanto, antigamente, a Igreja<br />

de Santa Ifigênia era a Catedral<br />

provisória de São Paulo 1 , porque a<br />

Catedral da Sé estava em construção.<br />

Junto ao órgão, acompanhando<br />

a sacralidade da cerimônia<br />

Com as ótimas relações que eu tinha<br />

com o clero naquele tempo, eu<br />

não assistia junto do povo, embaixo.<br />

Aquele bairro já era pouco residencial,<br />

com muitos escritórios, quase<br />

sem movimento paroquial. Aparecia<br />

um populacho, não sei vindo de<br />

onde, que enchia a Catedral, mas de<br />

uma convivência pouco propícia ao<br />

recolhimento. Levavam crianças que<br />

chupavam balas... era gente muito<br />

respeitável, muito direita, eu não tinha<br />

nada contra, mas as criancinhas<br />

e o choro delas não me ajudavam a<br />

prestar atenção no Ofício.<br />

Então, eu subia ao coro e ficava<br />

assistindo tudo junto ao órgão. Tendo<br />

assim uma grande distância em<br />

relação ao altar-mor e às cenas todas<br />

do Ofício, eu ia rezando e acompanhava<br />

com um livro de liturgia. Isso<br />

levava duas horas, às vezes três, e eu<br />

achava – e acho – aquilo de uma beleza,<br />

de uma imponência, de uma sacralidade<br />

extraordinárias!<br />

Na Sexta-feira Santa, a<br />

majestade de Cristo morto<br />

Na Sexta-feira Santa, na adoração<br />

da Santa Cruz, colocavam um Cruci-<br />

16


fixo comum, mas de tamanho grande,<br />

tendente ao natural, sobre uma<br />

espécie de ataúde. Algo fazia a cabeça<br />

do Crucificado ficar ligeiramente<br />

em plano superior ao resto do corpo.<br />

Enquanto o coro cantava melodias<br />

em gregoriano alusivas à Paixão,<br />

o povo fiel ia oscular. O primeiro<br />

a entrar, da porta da Catedral, recebido<br />

pelo clero, era o arcebispo em<br />

grande luto. O seu luto era uma coisa<br />

magnífica! Ele entrava todo vestido<br />

de roxo, com meias roxas, sem sapatos<br />

e com uma espécie de capuz, parecido<br />

um pouquinho com o do doge<br />

veneziano – ele todo dava um certo ar<br />

de doge veneziano – com uma capa<br />

imensa carregada por coroinhas.<br />

Órgão da Igreja de Santa Ifigênia<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Dom Duarte<br />

O Arcebispo Dom Duarte era um<br />

homem muito representativo. Era<br />

seco, magro, alto, muito teso e muito<br />

sério. Ele entrava e o coro cantava<br />

baixinho. Ele era o primeiro, se<br />

ajoelhava, depois osculava os pés<br />

do Cristo, o sagrado lado e as mãos<br />

de Nosso Senhor. Depois se retirava<br />

pela sacristia.<br />

Aquilo tudo era de uma grandeza,<br />

de uma seriedade! Percebia-se ali, de<br />

um modo magnífico, a majestade de<br />

Cristo morto! A cerimônia me tocava<br />

profundamente no lado intelectual,<br />

porque tudo isso se explica segundo<br />

a razão, mas me tocava também<br />

o lado sensível. Aliás, o aspecto sensível<br />

e o intelectual se compunham<br />

muito bem. De modo que, anos depois,<br />

eu ainda fixava essa cena.<br />

O Ofício de Trevas<br />

Havia também outras cenas grandiosas<br />

na Semana Santa. Por exemplo,<br />

quando rezavam o Ofício de<br />

Trevas. Na Catedral havia estalas de<br />

um lado e de outro do altar-mor. Por<br />

detrás do altar, eles estendiam um<br />

pano roxo azulado que tapava toda<br />

a parte posterior. Os Cônegos rezavam<br />

o Ofício de Trevas, uma parte<br />

para cada dia: para quarta e para<br />

quinta-feira... Não me lembro bem<br />

se Sexta-feira Santa havia Ofício de<br />

Trevas, mas, como é normal na liturgia,<br />

umas partes são próprias e outras<br />

comuns, com a diferença de que<br />

os Salmos escolhidos para este dia<br />

eram mais lúgubres do que os dos<br />

dias anteriores.<br />

Quando terminava, apagavam-se<br />

as velas e o cerimoniário pegava a última<br />

que ficava acesa – vela amarela,<br />

em sinal de dor e de luto – e a levava<br />

para trás do altar, de maneira que se<br />

percebia a vela, mas oculta, simbolizando<br />

ser Nosso Senhor Jesus Cristo<br />

a Luz oculta aos homens, que permanecia<br />

na Igreja já fundada, mas<br />

de modo velado.<br />

O último dia de trevas era a morte<br />

d’Ele. Então, se apagava a vela de<br />

trás e toda a igreja ficava no escuro.<br />

Os coroinhas tocavam uma matraca<br />

grande de pau, com uns fechos<br />

de metal que eles agitavam e fazia<br />

“plec-plec-plec”. Os sinos, silenciosos<br />

havia tempo; não havia mais velas<br />

nem flores no altar. Já havia sido<br />

a cerimônia trágica do desnudamento<br />

dos altares, na qual iam tirando<br />

as velas enquanto o coro recitava<br />

os Salmos que representam a tristeza<br />

de Nosso Senhor que estava para<br />

morrer. Estava tudo como se a igreja<br />

tivesse sido saqueada e pilhada.<br />

17


Gesta marial de um varão católico<br />

Levavam Nosso Senhor para o<br />

sepulcro, fechavam... O Santíssimo<br />

também não era mais exposto para<br />

adoração. Se não me engano, corriam<br />

um pano para não se ver a capela<br />

do Santíssimo.<br />

Sexta-feira Santa era o dia do horror<br />

e da desolação. Fazia pensar que<br />

só faltava aparecerem os justos da<br />

Antiga Lei. No caso concreto, em São<br />

Paulo, só faltava aparecer Anchieta<br />

e os justos que tinham aqui morado,<br />

andando pela cidade e increpando a<br />

população pelos pecados cometidos.<br />

Traços da bondade de<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo<br />

Divulgação<br />

Cópia do Santo Cristo de Limpias<br />

Tudo isso conjugado tem uma beleza<br />

extraordinária, mas lúgubre, grandiosa<br />

de arrepiar. Porém, com os traços<br />

bondosos muito à vista também.<br />

Era uma beleza o dia do lava-pés,<br />

na Quinta-feira Santa. Ainda não<br />

havia tanta treva na igreja e o bispo<br />

lavava os pés dos pobres, passando<br />

um pano, osculando-os. Isso representava<br />

o afeto de Nosso Senhor<br />

para com seus Apóstolos. Era algo<br />

muito bonito.<br />

A Missa da Quinta-feira Santa era<br />

uma celebração de alegria e de tristeza.<br />

Ao fim da Missa, começava o<br />

desnudamento do altar. Tudo muito<br />

bem calculado e pensado, próprio a<br />

tocar uma alma até o fundo.<br />

Eu pensava o seguinte: “Há algo<br />

que eu contemplo e adoro nisso, e que<br />

me faz pertencer à Igreja de um modo<br />

éperdu 2 ! De toda a alma eu pertenço à<br />

Igreja, eu a amo e creio nela. A Igreja<br />

é o meu Céu na Terra! Mas, há algo<br />

dentro disso que ainda não compreendi<br />

por inteiro... Uma maravilha nova,<br />

um píncaro qualquer. Eu queria ter<br />

entendido isso ainda melhor.”<br />

Figura completa de Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo<br />

Havia atrás da mesa de trabalho<br />

de Dom Duarte, na sala dele na cúria,<br />

uma versão do Santo Cristo de<br />

Limpias 3 . Era um trabalho bem feito,<br />

mas comum, de carpintaria, envernizado<br />

e encerado.<br />

Aquela imagem me chamava tanto<br />

a atenção que eu tinha dificuldade<br />

de conversar com ele e de me fixar<br />

no tema. Um dia perguntei a Dom<br />

Duarte, sem explicar o motivo da indagação:<br />

— Senhor Arcebispo, desculpe-<br />

-me a pergunta, mas que invocação é<br />

essa de Nosso Senhor?<br />

— É o Santo Cristo de Limpias. O<br />

que tem de particular são os movimentos<br />

dos nós da madeira. Observe<br />

que o pintor apenas com uns traços a<br />

óleo, de cá, de lá e de acolá figurou a<br />

Nosso Senhor.<br />

Era uma obra rara, uma coisa extraordinária.<br />

Ali, por exemplo, ou no<br />

Santo Sudário, eu contemplava inteiramente<br />

o que via naquelas cerimônias.<br />

E, portanto, Nosso Senhor era o<br />

ponto da reunião, da convergência<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1986<br />

de aspectos vários. Na iconografia,<br />

a santidade d’Ele me aparecia com<br />

certos dados e aspectos. Na liturgia,<br />

somavam-se outros, dando uma<br />

ideia mais completa d’Ele, que me<br />

faz muito bem considerar.<br />

Por fim, eu tomaria também os<br />

aspectos da ordem temporal cristã<br />

e, portanto, de edifícios temporais<br />

construídos sob o bafejo do espírito<br />

de Nosso Senhor Jesus Cristo. E da<br />

junção de tudo resultaria uma figura<br />

completa, a qual, considerada e conhecida,<br />

daria numa adoração de intensidade<br />

extraordinária, com uma<br />

capacidade imensa de atrair ou também<br />

de ser odiada...<br />

É este o aspecto no qual se encontra<br />

a união entre as esferas espiritual<br />

e temporal: na adoração de Nosso<br />

Senhor e na visão da Igreja assim.v<br />

1) Até o ano de 1954.<br />

(Extraído de conferência de<br />

6/12/1986)<br />

2) Do francês: delirante, desvairado.<br />

3) Santo Cristo de la Agonía de Limpias.<br />

Imagem milagrosa situada na igreja<br />

dos Padres Franciscanos de Limpias,<br />

província da Cantábria, Espanha.<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

18


O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Gabriel K.<br />

A entrada no<br />

caminho do<br />

sofrimento<br />

O caminho da cruz é lindo e cheio<br />

de surpresas. A entrada nele é uma<br />

resolução heroica e viril, mas ao<br />

mesmo tempo é uma ponderação<br />

dos mil matizes do sofrimento,<br />

conforme o Espírito Santo vai<br />

mostrando a cada alma.<br />

Santíssimo Cristo da<br />

sede - Sevilha, Espanha<br />

Muitos pregadores – eu<br />

não os censuro por isso<br />

–, quando falam da<br />

cruz, querem levar a alma num só<br />

voo para a admiração e para a eventual<br />

aceitação das consequências dela<br />

naquilo que têm de mais lancinante<br />

e terrível. Dizem: “Eu vou te falar<br />

da cruz. Olha, São Vicente sofreu tal<br />

martírio assim; esse outro suportou<br />

tal situação...”<br />

Isso é bom ou não?<br />

Mil gamas e mil modos<br />

de falar da cruz<br />

Ao se tratar da questão da cruz,<br />

é necessário, antes de tudo, um<br />

discernimento dos espíritos, porque,<br />

de fato, a graça chama as pessoas<br />

para ela conforme as almas e<br />

em momentos certos. Há casos em<br />

que a graça chama, de uma vez, para<br />

o pináculo da cruz, e pode ser um<br />

principiante. Às vezes, pelo contrário,<br />

ela vai se revelando lenta e gradualmente.<br />

Em determinado auditório, dependendo<br />

da situação, pode acontecer<br />

de um pregador ser levado, pelo<br />

discernimento dos espíritos, a ensinar<br />

a cruz no que ela tem de mais<br />

terrível: “Meus caros irmãos, quereis<br />

ouvir o que é a cruz? Ouvi estas palavras:<br />

‘Eli, Eli, lamma sabactani’” 1<br />

(Mt 27, 46). Começar por aí e produzir<br />

um choque.<br />

19


O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Pode também começar<br />

pela doutrina dos pequenos<br />

sacrifícios de Santa Teresinha<br />

do Menino Jesus, porque<br />

a cruz é tão divina, tão<br />

enorme, tão complexa, que<br />

não pega nela quem quer,<br />

do jeito que quer. Cada um<br />

é atraído pelo Espírito Santo,<br />

pela graça, a pegá-la de<br />

uma maneira. E, se pegar<br />

de modo errado, não entra<br />

no caminho da cruz.<br />

Há, pois, mil gamas e<br />

mil modos de falar da cruz.<br />

Diferentes vias<br />

Flávio Lourenço<br />

Martírio de São Pedro de Verona - Museu<br />

Castelo Sforzesco, Milão<br />

Há vias excepcionais<br />

e isso está ligado à teoria<br />

do estado de perfeição ao<br />

qual estão obrigadas as vocações<br />

religiosas. A perfeição,<br />

quando vivida em toda<br />

a sua autenticidade, é um<br />

estado de cruz. Entretanto,<br />

o estado de perfeição é<br />

para ser praticado por muitos,<br />

não, porém, por todos.<br />

Esses muitos constituem<br />

uma multidão e, ao mesmo<br />

tempo, uma minoria<br />

em comparação com toda<br />

a humanidade.<br />

A grande maioria das<br />

pessoas vive a cruz nas condições<br />

de vida de um fiel<br />

comum, porque, do contrário,<br />

a sociedade temporal desaparece.<br />

Assim sendo, há uma quantidade infindável<br />

de almas não chamadas para<br />

esse estado de perfeição. Contudo,<br />

são chamadas a admirar a perfeição<br />

e, pela caridade, alcançá-la. A partir<br />

do momento em que o indivíduo<br />

deixa de ter um amor abrasado, entusiasmado<br />

pela perfeição, ele começa<br />

a relaxar. Só consegue ser correta<br />

a alma que admirou profundamente<br />

a cruz para a qual ela não é chamada.<br />

Assim, pregar a cruz no que ela<br />

tem de mais terrível, mas tranquilizando<br />

o fiel: “Não se tome por um<br />

escrúpulo torturante por ser incapaz<br />

disso, mas ame um sofrimento<br />

que não lhe é pedido, sem ser tragado<br />

por ele. Se for pedido – porque<br />

não se sabe qual é o futuro do<br />

homem – você terá graças que não<br />

tem agora. Sentir-se proporcionado<br />

com isso, no momento, não é a<br />

sua obrigação.”<br />

Tenho a impressão de que, ao se<br />

levantar o estandarte da cruz, esta é<br />

a primeira precaução. Do contrário,<br />

perde-se o rumo.<br />

Admirar sem<br />

remorsos<br />

Lembro-me de uma experiência<br />

pessoal. Eu tinha<br />

muita admiração pelos<br />

mártires, mas tinha um<br />

medo imenso de passar pelos<br />

tormentos que eles passaram.<br />

Resultado: ficava<br />

perturbado, dizendo para<br />

mim mesmo: “Você está<br />

extasiado de admiração<br />

por eles. Quero ver quanto<br />

vale essa admiração. Queria<br />

ver se você, diante de<br />

um leão, tomaria a mesma<br />

atitude. Não tomaria!<br />

É um fracalhão. Este medo<br />

prova que sua admiração é<br />

hipócrita!”<br />

E isso me perturbava<br />

a fundo, porque parecia<br />

uma increpação virtuosa.<br />

Até que ouvi um padre dizer,<br />

de passagem: “A maior<br />

parte desses mártires tinha<br />

a graça no momento<br />

de chegar em contato com<br />

a fera.” Eu disse: “Aqui está!”<br />

Comecei a admirar os<br />

mártires sem nenhum arrepio.<br />

Isso acontece tanto com<br />

os sofrimentos lancinantes,<br />

quanto com os sofrimentos<br />

menores, na vida de todos<br />

os dias. De repente, vemos<br />

alguém fazer um sacrifício de<br />

que não somos capazes. Admiremos!<br />

E admiremos sem remorsos nem increpações<br />

tontas contra nós mesmos.<br />

Geralmente nós dizemos: “É bem<br />

verdade, essa cruz, eu, no momento,<br />

não carrego. Carregarei algum dia?<br />

Como vai ser quando eu tiver que<br />

carregar?”<br />

A resposta é a seguinte: “Não se<br />

ponha o problema! Admire energicamente<br />

e sem restrições, e peça a<br />

graça para, caso lhe for imposto esse<br />

sofrimento, você ter a coragem de<br />

20


enfrentá-lo, mas sem certa forma de<br />

angústia que faz mal à alma.” Porque,<br />

às vezes, a previsão é pior do<br />

que a realidade.<br />

Os matizes para<br />

aguentar a cruz<br />

Se, por outro lado, me deparo<br />

com um sacrifício sem nada de extraordinário,<br />

mas porque sou poltrão<br />

não tenho coragem de fazer, vou pedir<br />

para Nossa Senhora ter pena de<br />

mim e me dar as forças que eu deveria<br />

ter e não tenho: “Salve Regina,<br />

Mater misericordiæ, vita, dulcedo et<br />

spes nostra, salve...” Vou rezar e acabarei<br />

obtendo. Mas nunca me aproximar<br />

da cruz em seco.<br />

Assim a cruz se torna manuseável.<br />

Fora disso, não será possível. E<br />

o exemplo foi Nosso Senhor. Ele, como<br />

que se manifestou sem proporção<br />

com a sua Cruz, a tal ponto de<br />

dizer: “Pater, si fieri potest” (Mt 26,<br />

39). E a oração, como não podia deixar<br />

de ser, foi gratíssima a Deus, que<br />

mandou um Anjo para consolá-Lo.<br />

E na Via Crucis, um Cireneu, uma<br />

Verônica, o encontro com Nossa Senhora.<br />

Entenda-se que tudo é muito matizado.<br />

Sem essas matizações enviadas<br />

por Deus, fugimos da cruz. Ela<br />

se torna um disparate. Se Deus matiza<br />

tanto para nós o caminho do sofrimento,<br />

por que havemos de imaginá-lo<br />

sem isso?<br />

Alma aberta à admiração<br />

Então, recomendo: procure admirar<br />

muito a perfeição para a qual<br />

você não será chamado. Admire-a,<br />

porque é um modo de obtê-la! Quer<br />

a prova? Quem seria capaz de arcar<br />

com o sofrimento que arcou Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo ou Nossa Senhora?<br />

Não tem um! Nem de longe<br />

temos substância para isso!<br />

Mas, de tanto admirar aquilo de<br />

que não somos capazes, algo daquela<br />

graça entra em nós. A admiração é<br />

o cálice através do qual recebemos a<br />

qualidade superior.<br />

E, na medida em que admiro a capacidade<br />

de um outro sofrer, entra<br />

em mim a mesma capacidade. Não<br />

significa que entrará tanto quanto há<br />

no outro. Mas a medida de que sou<br />

capaz é, à força de admirar, que eu<br />

a recebo!<br />

A alma aberta à admiração é<br />

aberta a todas as estrelas, a todos os<br />

sóis. A alma fechada à admiração está<br />

entregue a si mesma. Da alma invejosa,<br />

então, não sei o que dizer...<br />

Esta apedreja, insulta as estrelas.<br />

Entrada no caminho da cruz<br />

Portanto, a entrada no caminho<br />

da cruz é a admiração à cruz. Naturalmente,<br />

antes de tudo ao Crucificado<br />

e à Co-Redentora. Mas não<br />

nos limitemos a exemplos históricos.<br />

Procuremos ver a cruz entre aqueles<br />

que, em torno de nós, praticam o<br />

amor a ela.<br />

A Paixão de Nosso Senhor não<br />

passou, de algum modo ela é permanente.<br />

Mas só entro em nexo com o<br />

que passou quando admiro aquilo<br />

de congênere passando em torno de<br />

Encontro de Nosso Senhor com Nossa Senhora - Igreja de São Pedro, Gante, Bélgica<br />

Flávio Lourenço<br />

21


O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Flávio Aliança<br />

mim. Devemos, portanto, olhar admirativamente<br />

em torno de nós.<br />

Sei que muitos têm a prática tão<br />

infeliz e miserável de não fazer exame<br />

de consciência e de nem saber o<br />

que se passa na própria alma. Por aí<br />

entram pedregulhos de inveja. Não<br />

tenhamos ilusão! Ou temos a certeza<br />

de que tratamos de expulsar a inveja,<br />

ou ela habita em nós. Não é alentador,<br />

mas é a pura verdade.<br />

O caminho da cruz e os<br />

graus de perfeição<br />

A respeito do condicionamento<br />

da via da cruz é preciso dizer o seguinte:<br />

seria um erro afirmar que as<br />

pessoas chamadas para a vida temporal<br />

não são chamadas à perfeição.<br />

Com efeito, todos os que pertencem<br />

a Ordens religiosas são chamados<br />

para o estado de perfeição. O religioso<br />

que se recusa explicitamente a tender<br />

para a perfeição comete, ipso facto,<br />

pecado mortal. É doutrina da Igreja,<br />

ele deve tender para a perfeição.<br />

Mas, se não houver na sociedade<br />

um bom número de pessoas que, dentro<br />

das suas condições<br />

de vida, busquem a perfeição<br />

cristã, ou ao menos<br />

tenham a intenção<br />

de buscá-la, a sociedade<br />

temporal fenece, perece.<br />

Não devemos, portanto,<br />

identificar “perfeição”<br />

somente com a condição<br />

eclesiástica ou religiosa,<br />

consentindo para<br />

a sociedade temporal<br />

a imperfeição desavergonhada.<br />

Cada um foi<br />

chamado a um grau de<br />

perfeição. Para o estado<br />

de perfeição dos religiosos<br />

a grande maioria não<br />

foi chamada, mas, sim,<br />

o foi a um certo teto de<br />

perfeição dentro da vida<br />

que leva, e para isso deve<br />

tender.<br />

Na Igreja de São Basílio, em<br />

Moscou, temos uma imagem disso.<br />

Aquelas cúpulas poderiam ser o gráfico<br />

das perfeições. Algumas<br />

perfeições são<br />

enormes, outras são pequenas,<br />

torreõezinhos<br />

tendo na ponta uma cúpula<br />

pequenininha também.<br />

Assim é a multidão<br />

das almas. Toda alma é<br />

como um torreão que<br />

tem no alto uma cúpula,<br />

ou seja, uma perfeição<br />

própria para a qual<br />

deve tender.<br />

Alguém pode chegar<br />

ao Céu sem passar pelo<br />

Purgatório, tendo vivido<br />

na sociedade temporal<br />

para uma perfeição menor.<br />

E, porque foi reto<br />

nessa perfeição, seguiu<br />

um ideal muito belo e alcançou<br />

a visão de Deus.<br />

Compreendendo isso,<br />

creio que a alma fica<br />

arejada e balizada para<br />

entrar no caminho da<br />

cruz, o qual é lindo e cheio de surpresas,<br />

como uma navegação num<br />

mar ignoto apresenta tanto as borrascas<br />

e as ciladas mais tenebrosas,<br />

como também os panoramas mais<br />

magníficos.<br />

Suavidades colocadas<br />

pela Providência<br />

Há coisas que para o comum das<br />

pessoas seria um sacrifício medonho<br />

praticar. No entanto, quando alguém<br />

é chamado a realizar aquilo pela vocação,<br />

se enche de alegria e de consolação<br />

até os últimos dias da vida.<br />

Na Gruta de Lourdes, por exemplo.<br />

Ali estão homens e mulheres<br />

que se esmeram em dar banho aos<br />

doentes. Alguém poderia dizer-lhes:<br />

“Olhe, ali você vai ter contato com<br />

tudo o que há de mais repugnante,<br />

de mais terrível. Quando você mexer<br />

na água daquele banho imundo,<br />

onde tem as cascas de ferida e o pus<br />

do mundo inteiro, os micróbios mais<br />

Cúpulas da Igreja de São Basílio<br />

Nagarjun(CC3.0)<br />

22


ameaçadores de toda doença vão se<br />

levantar em você. Aquelas piscinas<br />

são anti-higiênicas no sentido mais<br />

violento e literal da palavra, e você<br />

colocará as suas mãos limpas, desinfetadas,<br />

para lavar aqueles doentes.<br />

Será uma tortura todo dia.”<br />

Não é uma tortura! Vá, mexa naquilo,<br />

a graça vai mexer na sua alma<br />

de outro jeito e tudo será feito com<br />

naturalidade! Não considere a coisa<br />

como em concreto ela não vai ser.<br />

Com muitos sofrimentos se dá isso,<br />

com outros não. Sofre-se muito,<br />

mas não se percebe que a Providência<br />

põe uma suavidade na alma a propósito<br />

daquele sofrimento. Quando acaba,<br />

a pessoa gosta de se lembrar dele<br />

e, às vezes, volta ao lugar onde sofreu<br />

para dar graças a Nossa Senhora.<br />

Luis Samuel<br />

No âmago do sofrimento,<br />

uma doçura<br />

É mister cada um compreender:<br />

não se deve confrontar ao sofrimento<br />

futuro o seu estado de espírito atual,<br />

porque quando chegar a hora, Nossa<br />

Senhora obterá as forças. Ainda mais<br />

Ela, que é Mãe de Misericórdia, dará<br />

os meios de sofrermos potavelmente.<br />

Há uma doçura especial no âmago<br />

do sofrimento, quando nos lembrarmos<br />

do seguinte: esta cruz me<br />

foi dada por Deus, é o travesseiro<br />

suave que a Mãe de Misericórdia<br />

me preparou para aguentar. Vamos<br />

adiante! Quando isso terminar, eu<br />

terei saudades desses dias.<br />

É como Jesus com os discípulos de<br />

Emaús. Na hora de Ele ir embora, O<br />

reconhecem. Na hora do sofrimento<br />

cessar, nós percebemos que mão estava<br />

nos segurando e ficamos encantados.<br />

Não nos apavoremos! A entrada do<br />

caminho do sofrimento é uma resolução<br />

heroica e viril, mas ao mesmo tempo<br />

é uma ponderação dos mil acolchoados<br />

que entram nisso. Senão, não se<br />

viveu nem se sofreu catolicamente.<br />

O exemplo para mim é a iconografia<br />

do Sagrado Coração de Jesus.<br />

Todas as imagens O apresentam<br />

com o Coração coroado de espinhos,<br />

transpassado, ferido por uma<br />

dor. Em cima, ardendo uma bonita<br />

chama do amor de Deus, de virtude,<br />

e apontando o Coração para os outros<br />

verem o quanto Ele sofria. Mas,<br />

sorridente, afável, bondoso, digno e<br />

– por que não dizer? – até nobre, é<br />

Rei! Rex dolorum, mas Rex caritatis.<br />

Sagrado Corção de Jesus (acervo particular)<br />

Rei de amor de Deus e de amor dos<br />

outros. É um prodígio de equilíbrio<br />

na dor! <br />

v<br />

(Extraído de conferência de<br />

6/12/1985)<br />

1) “Meus Deus, meu Deus, por que me<br />

abandonaste?”<br />

23


Divulgação (CC3.0)<br />

C<br />

alendário<br />

São Tiago Cusmano<br />

1. São Suitberto, bispo (†713). Depois<br />

de ter sido monge na Nortúmbria,<br />

tornou-se companheiro de São<br />

Vilibrordo e, ordenado bispo por São<br />

Vilfredo, anunciou o Evangelho aos<br />

Batavos, aos Frisões e a outros povos<br />

da Germânia. Morreu piedosamente,<br />

já em idade avançada, no mosteiro<br />

que tinha fundado.<br />

2. Santa Ângela da Cruz (María<br />

dos Anjos Guerrero González), fundadora<br />

(†1932). Fundou o Instituto<br />

das Irmãs da Companhia da Cruz.<br />

3. III Domingo da Quaresma.<br />

Santos Cleônico e Eutrópio, mártires<br />

(†s. IV). Receberam a palma do<br />

martírio durante a perseguição do imperador<br />

Maximiano, sob as ordens do<br />

prefeito Asclepiódato.<br />

4. São Casimiro, príncipe (†1484).<br />

Beata Plácida (Eulália Viel), virgem<br />

(†1877). Resplandeceu pelo seu zelo e<br />

humildade no governo da Congregação<br />

das Escolas Cristãs da Misericórdia.<br />

5. São Teófilo, bispo (†195). Regeu<br />

a diocese de Cesareia, na Palestina,<br />

no tempo do imperador Septímio Severo,<br />

e resplandeceu por sua sabedoria<br />

e integridade de vida.<br />

dos Santos – ––––––<br />

6. São Crodegando, bispo (†766).<br />

Recomendou ao clero a observância<br />

claustral com uma norma de vida irrepreensível<br />

e promoveu de modo insigne<br />

o canto da Igreja.<br />

7. Santas Perpétua e Felicidade,<br />

mártires (†203).<br />

Beato Leônidas Fedorov, bispo e<br />

mártir (†1935). Exerceu o ministério<br />

como exarca apostólico dos católicos<br />

russos do Rito Bizantino. Foi martirizado<br />

em Kirov, cidade da Rússia.<br />

8. São João de Deus, religioso (†1550).<br />

Santo Estêvão, abade (†1159). Primeiro<br />

abade do mosteiro de Obazine,<br />

associou os três mosteiros por ele fundados<br />

à Ordem Cisterciense.<br />

9. Santa Francisca Romana, religiosa<br />

(†1440).<br />

São Vital de Castronuovo, monge<br />

(†993). Fez a profissão religiosa no mosteiro<br />

de São Filipe de Agira. Após uma<br />

peregrinação a Roma, estabeleceu-se na<br />

Calábria como ermitão. Fundou vários<br />

mosteiros, foi preso pelos sarracenos e,<br />

recuperando a liberdade, deslocou-se à<br />

região de Torri. Depois de iniciar a fundação<br />

do mosteiro de Rampolla, na Lucânia,<br />

morreu santamente.<br />

10. IV Domingo da Quaresma.<br />

11. Santo Engo Cúldeo, monge (†c.<br />

824). Escreveu um martirológio dos<br />

santos da Irlanda.<br />

12. São Maximiliano, mártir (†295).<br />

Filho do militar veterano Vítor, ao ser<br />

recrutado para o exército, respondeu ao<br />

procônsul Diônio que, na sua qualidade<br />

de cristão, não lhe era permitido servir<br />

como soldado e, por recusar o juramento<br />

militar, foi morto ao fio da espada.<br />

13. São Sabino, mártir (†s. IV). Na<br />

perseguição de Diocleciano confessou<br />

a Fé Cristã nos interrogatórios,<br />

motivo pelo qual foi submetido a vários<br />

tormentos, sendo depois lançado<br />

ao rio Nilo.<br />

14. Santa Matilde, rainha (†968).<br />

Filha de nobres saxões, casou-se com<br />

o rei Henrique I. Após a morte do esposo,<br />

foi exilada por seus filhos que a<br />

acusaram de esbanjar os bens em benefício<br />

da Igreja. Anos depois, se reconciliaram<br />

e lhe restituíram as posses,<br />

porém Matilde preferiu continuar<br />

a vida religiosa que havia abraçado.<br />

São Tiago Cusmano, presbítero<br />

(†1888). Fundou o Instituto de Missionários<br />

Servos e Servas dos Pobres, Itália.<br />

15. São Clemente Maria Hofbauer,<br />

presbítero (†1820). Membro<br />

da Congregação do Santíssimo Redentor,<br />

trabalhou na propagação da<br />

Fé em terras longínquas e na reforma<br />

da disciplina eclesiástica e, pelos<br />

seus dotes excepcionais de talento e<br />

virtudes, persuadiu muitas pessoas insignes<br />

nas ciências e nas artes a aderirem<br />

à Igreja.<br />

16. Beato João Sórdi (ou Cacciafronte),<br />

bispo e mártir (†1181). Sendo<br />

abade, foi condenado ao exílio por<br />

causa da sua fidelidade ao Papa; eleito<br />

depois bispo de Mântua e transferido<br />

finalmente para a sede episcopal<br />

de Vicenza, morreu pela liberda-<br />

Beata Plácida (Eulália Viel)<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

24


––––––––––––––––– * Março * ––––<br />

de da Igreja, trespassado à espada por<br />

um sicário.<br />

17. V Domingo da Quaresma.<br />

18. São Cirilo de Jerusalém, bispo<br />

e Doutor da Igreja (†c. 386).<br />

São Bráulio, bispo (†651). Ajudou<br />

Santo Isidoro, de quem foi grande<br />

amigo, a restaurar a disciplina eclesiástica<br />

em toda a Hispânia e foi seu<br />

digno sucessor na eloquência e sabedoria.<br />

19. Solenidade de São José, Esposo<br />

da Virgem Maria e Padroeiro da<br />

Igreja.<br />

Beata Sibilina Biscóssi, virgem<br />

(†1367). Ficou cega aos doze anos,<br />

passando sessenta e cinco anos reclusa<br />

numa cela, contígua à igreja da<br />

Ordem dos Pregadores, em Pavia, na<br />

Lombardia, região da Itália, iluminando<br />

com a sua luz interior muitas<br />

pessoas que a ela acorriam.<br />

20. Santo Arquipo (†s. I). Companheiro<br />

do Apóstolo São Paulo, mencionado<br />

nas epístolas a Filêmon e aos<br />

Colossenses.<br />

21. Beato Miguel Gómez Loza, pai<br />

de família e mártir (†1928). Por defender<br />

os direitos dos necessitados,<br />

foi encarcerado em diversas ocasiões.<br />

Unido à Liga Defensora da Liberdade<br />

Religiosa, aceitou o cargo de governador<br />

de Jalisco, sua região natal.<br />

Perseguido pelas forças federais,<br />

foi espancado próximo de Atotonilco<br />

el Alto, região de Jalisco, no México.<br />

22. Santa Lia, viúva (†c. 383). Dama<br />

romana, cujas virtudes recebeu os<br />

louvores de São Jerônimo.<br />

23. São Turíbio de Mogrovejo, bispo<br />

(†1606).<br />

Beato Pedro Higgins, presbítero e<br />

mártir (†1642). Dominicano, enforcado<br />

sem processo por perseverar na fidelidade<br />

à Igreja Romana, durante o<br />

reinado de Carlos I da Inglaterra.<br />

24. Domingo de Ramos da Paixão<br />

do Senhor.<br />

Santa Catarina da Suécia, virgem<br />

(†1381). Filha de Santa Brígida, ainda<br />

muito jovem contraiu matrimônio,<br />

mas, de comum acordo com seu<br />

esposo, guardou a virgindade e, após<br />

a morte dele, consagrou-se à vida de<br />

piedade.<br />

25. São Dimas (†s. I). Conhecido<br />

como o bom ladrão, na cruz professou<br />

a fé em Nosso Senhor e mereceu<br />

ouvir d’Ele as palavras: “Hoje estarás<br />

comigo no paraíso.”<br />

Santa Maria Alfonsina Danil Ghattas,<br />

virgem (†1927). Fundadora da<br />

Congregação das Irmãs Dominicanas<br />

do Santíssimo Rosário de Jerusalém.<br />

São Crodegando<br />

26. Beata Madalena Catarina Morano,<br />

virgem (†1908). Pertencia ao<br />

Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora,<br />

consagrou-se à obra da catequese,<br />

percorrendo incansavelmente toda<br />

a região de Catânia, cidade da Sicília,<br />

na Itália.<br />

27. Beata Panaceia de’Múzzi, virgem<br />

e mártir (†1383). Depois de ter<br />

Graoully/Archimatth (CC3.0)<br />

São Bráulio<br />

recebido contínuos maus-tratos de<br />

sua madrasta, foi por ela assassinada<br />

aos quinze anos de idade, quando rezava<br />

na igreja.<br />

28. Quinta-feira da Semana Santa.<br />

Ceia do Senhor.<br />

São Protério, bispo (†454). Após<br />

um motim popular, na Quinta-feira<br />

Santa da Ceia do Senhor, foi ferozmente<br />

assassinado pelos monofisitas,<br />

sequazes do seu predecessor Dióscoro.<br />

29. Sexta-feira da Semana Santa.<br />

Paixão do Senhor.<br />

30. Sábado Santo. Vigília Pascal.<br />

São Zósimo, bispo (†c. 600). Ainda<br />

menino, ingressou no mosteiro de<br />

Santa Luzia onde professou e tornou-<br />

-se custódio do túmulo da Santa. Com<br />

a morte do abade, foi eleito como sucessor<br />

e ordenado sacerdote. Anos<br />

mais tarde foi nomeado bispo de Siracusa,<br />

regendo essa diocese santamente<br />

durante treze anos.<br />

31. Domingo de Páscoa da Ressurreição<br />

do Senhor.<br />

Flávio Lourençoi<br />

25


Hagiografia<br />

Flávio Lourenço<br />

Nobreza e dignidade<br />

do Esposo Virgem de Maria<br />

Estabelecido como intercessor intermediário junto a Nossa<br />

Senhora, São José ocupa um lugar eminentíssimo no Céu.<br />

Sua nobre linhagem, sua santidade e seus excepcionais<br />

dons atestam a grandeza ímpar de sua missão.<br />

Por mais poderosa que seja<br />

a intercessão de Nossa Senhora,<br />

quis a Providência<br />

estabelecer intercessores secundários,<br />

como São José.<br />

Preparado para ser o<br />

pai adotivo de Jesus<br />

São José passou por tremendas perplexidades<br />

durante a vida; não conhecemos<br />

todas, mas por exemplo, a perda<br />

do Menino Jesus no Templo foi para<br />

ele ocasião de uma provação terrível.<br />

Assim como Nossa Senhora foi<br />

sendo preparada para ser a Mãe de<br />

Deus, deveria haver também uma<br />

preparação de São José, para que ele<br />

estivesse à altura de ser o pai adotivo<br />

do Menino Jesus.<br />

Dizer “adotivo”, no sentido comum<br />

da palavra, compreende algo de contratual:<br />

o pai adota um filho; este, se<br />

está em idade da razão concorda com<br />

a adoção. Senão, os pais ou os tutores<br />

entregam-no ao outro pai. Nenhum<br />

vínculo de caráter natural se firma.<br />

Ora, se bem que São José não tenha<br />

sido o pai natural do Menino Jesus,<br />

ele, como esposo de Nossa Senhora,<br />

tinha direito efetivo ao fruto<br />

das entranhas sacratíssimas d’Ela.<br />

Não era uma paternidade convencional,<br />

estipulada, mas de algum modo<br />

resultava da ordem natural das<br />

coisas. De maneira a ser evidente ter<br />

sido a alma dele preparada para tal<br />

missão.<br />

Grandeza proporcionada<br />

à missão<br />

Neste sentido, consideremos alguns<br />

trechos de um sermão de São<br />

Bernardino de Sena 1 a respeito da<br />

grandeza de São José:<br />

As graças de Deus, especialmente<br />

em São José, são proporcionadas<br />

à sua missão. A respeito de todas as<br />

graças particulares concedidas a qualquer<br />

criatura racional, é regra: sempre<br />

que a graça divina escolhe alguém para<br />

algum favor singular ou para algum<br />

estado elevado, concede-lhe todos os<br />

dons necessários à pessoa assim eleita<br />

e à sua missão; dons que a ornam<br />

abundantemente.<br />

Isso é evidente quanto aos padres<br />

do Antigo Testamento: Moisés, Josué,<br />

Abraão, Isaac, Jacó, Davi, Salomão e<br />

os outros profetas. É evidente também,<br />

no Novo Testamento, quanto à Virgem<br />

Santíssima, aos Apóstolos, Evangelistas,<br />

Doutores e fundadores de Ordens<br />

Religiosas. E realizou-se plenamente<br />

quanto a São José, pai adotivo<br />

26


de Nosso Senhor Jesus Cristo e verdadeiro<br />

esposo da Rainha do mundo e<br />

dos Anjos, o qual foi escolhido pelo Padre<br />

Eterno como fiel sustentador e custódio<br />

de seus principais tesouros, isto é,<br />

de seu Filho e de sua Esposa. Tal missão<br />

ele a cumpriu fidelissimamente.<br />

A respeito de São José, diretamente<br />

e por fonte histórica, muito<br />

pouco sabemos. A única descrição<br />

dele na Escritura é que era um “varão<br />

justo” (Mt 1, 19). Então, como<br />

imaginar as virtudes que o ornavam<br />

e qual dado se poderia ter para computar<br />

a extensão delas?<br />

São Bernardino de Sena dá aqui<br />

um argumento irretorquível: todos<br />

os homens dotados de uma grande<br />

missão, pela exemplificação histórica,<br />

são também ornados de altos<br />

dons. Ora, São José teve uma missão<br />

excepcional; logo, ele tem que ter tido<br />

uma grande profusão de dons.<br />

Durante a noite de Natal, São José<br />

recebeu graças extraordinárias.<br />

Quem não admite que os pastores,<br />

chamados para a primeira adoração,<br />

não receberam grandes graças? Ora,<br />

se isto se passou com aqueles simples<br />

homens que se encontravam por<br />

perto, como não admitir que, a fortiori,<br />

São José tenha recebido graças<br />

muito maiores? Pela sua união<br />

com Nossa Senhora, pela sua relação<br />

com o Menino Jesus.<br />

Temos uma certeza plena de que<br />

ele foi grandíssimo, embora não tenhamos<br />

nenhuma descrição concreta<br />

de como era essa grandeza. Mas é um<br />

silogismo do qual não se pode fugir.<br />

Primeiro, eis descrito nesse santíssimo<br />

varão, o estado da natureza na<br />

qual brilha a nobreza de sua geração.<br />

Ele foi efetivamente de raça patriarcal,<br />

régia e principesca segundo a linha reta<br />

de sua nobreza natural. Para melhor<br />

compreender, consideremos a nobreza<br />

natural de três pessoas: da Esposa,<br />

do esposo e de Cristo.<br />

É interessante esta argumentação.<br />

Talvez nunca se tenha ouvido um sermão<br />

elogiando São José enquanto<br />

nobre. Em geral, ele é apresentado<br />

como um pobre carpinteirinho, muito<br />

coitadinho, que serrava uma madeirinha,<br />

que ganhava um dinheirinho para<br />

comprar um pãozinho. Esta é a figura<br />

oferecida pela “heresia branca”.<br />

Fazer uma descrição do Santo Patriarca<br />

enquanto príncipe de Casa de<br />

Davi, e apelando para sua prodigiosa<br />

ascendência, isso não se vê.<br />

Da nobreza da Bem-Aventurada<br />

Virgem Maria segundo a carne<br />

A Bem-Aventurada Virgem foi mais<br />

nobre que todas as criaturas que existiram,<br />

existem e existirão. Pois Mateus,<br />

no capítulo 1, 1-16, colocando três vezes<br />

quatorze gerações desde Abraão até<br />

Cristo inclusive, mostra que Ela é descendente<br />

de quatorze patriarcas, de<br />

quatorze reis e de quatorze príncipes.<br />

Isso é saber argumentar! E os estudos<br />

genealógicos, tão desprezados<br />

pelos modernos, inclusive pela esquerda<br />

católica, adquirem aqui um<br />

brilho extraordinário. Porque bastaria<br />

dizer que Nossa Senhora foi Mãe<br />

de Deus para estar tudo dito. Está<br />

bem, o próprio Espírito Santo, pelas<br />

Sagradas Escrituras, quis indicar<br />

a grandeza d’Ela, apontando para a<br />

genealogia de patriarcas, de reis e de<br />

príncipes. São Bernardino de Sena –<br />

com imensa dor para o espírito democrático<br />

de nosso tempo –, põe isso<br />

maravilhosamente em evidência.<br />

Lucas também, descrevendo a nobreza<br />

d’Ela, expôs a sua genealogia<br />

começando justamente de Adão e Eva<br />

até Cristo Deus. Cristo recebeu da Virgem<br />

toda a humanidade e as dignidades<br />

consequentes d’Ela, a saber:<br />

de conhecimento, para que se dissesse<br />

“Filho de Davi”; e de consanguinidade,<br />

para que se dissesse ter irmãos<br />

de nobre linhagem. Tudo isso recebeu<br />

de sua bendita Mãe. E também para<br />

que fosse o último Príncipe, o último<br />

Rei e o último Patriarca de todo o povo<br />

de Israel. E isso não teve de nenhuma<br />

outra parte, senão da Virgem bendita,<br />

para demonstrar claramente que<br />

a nobreza corporal concedida ao gênero<br />

humano em Adão, foi dada por<br />

Deus principalmente para chegar, por<br />

meio de numerosas gerações, à Vir-<br />

Erico Silva<br />

Linhagem nobre: um<br />

adorno para Maria<br />

Da nobreza de São José segundo a<br />

carne<br />

Perda do Menino Jesus no Templo - Santuário do Sagrado Coração de Jesus, São Paulo<br />

27


Hagiografia<br />

SimonP(CC3.0)<br />

gem Maria. E pela Virgem Mãe terminar<br />

em Cristo, Filho Bendito de Deus.<br />

Em outros termos, a Providência<br />

julgou necessário, para a grandeza<br />

de Nossa Senhora, que Ela nascesse<br />

e procedesse de um sangue nobre; de<br />

tal maneira a nobreza é capaz de ser<br />

adorno, até para Aquela que é adorno<br />

de todas as coisas, Maria Santíssima.<br />

Consanguinidade de São<br />

José com Nosso Senhor<br />

Sobre a nobreza natural de São José<br />

São José nasceu de raça patriarcal, régia<br />

e principesca, em linha reta. Pois São<br />

Mateus leva em linha reta todos esses<br />

pais, de Abraão até o esposo da Virgem,<br />

demonstrando claramente que nele se<br />

terminou toda a dignidade patriarcal,<br />

régia e principesca. E se<br />

São Mateus, em vez da<br />

genealogia de Maria, deu a<br />

de São José, fê-lo por três<br />

razões.<br />

Realmente, São José<br />

não era o pai natural de<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />

Então, por que é que<br />

se deu a genealogia dele?<br />

Vem a explicação:<br />

Primeiro, para se conformar<br />

ao uso dos hebreus<br />

da Sagrada Escritura, que<br />

jamais estabelece genealogia<br />

pelas mulheres, ou pelas<br />

mães, mas sempre pelos<br />

homens e pais, porque a<br />

varonia prepondera. Em seguida,<br />

principalmente, por<br />

causa do parentesco. Maria<br />

e José pertenciam à mesma<br />

tribo, eram parentes. Além<br />

disso, segundo a lei, as mulheres<br />

e, principalmente, as<br />

herdeiras, como foi a Virgem,<br />

só deviam se casar<br />

com homens da sua tribo,<br />

e até do próprio parentesco,<br />

no grau permitido.<br />

Nossa Senhora era herdeira,<br />

não tinha homens<br />

A árvore de Jessé - Biblioteca Nacional da França<br />

na sua irmandade; Ela herdava a nobreza<br />

que Lhe vinha por meio de São<br />

Joaquim, e deveria casar-Se com um<br />

homem da mesma tribo e, de preferência,<br />

dos mesmos parentes; isso para<br />

que a nobreza herdada caísse o<br />

mais próximo possível dentro daquela<br />

mesma linhagem.<br />

Portanto, sendo São José um justo,<br />

como afirma São Mateus, se Maria<br />

não fosse de sua tribo, ele jamais<br />

A teria desposado. Enfim, recensearam-se<br />

ao mesmo tempo em Belém,<br />

como descendentes da mesma estirpe.<br />

Em terceiro lugar, dá-se a genealogia<br />

de José e não de Maria, para mostrar<br />

a excelência do matrimônio de Maria<br />

e José, durante o qual nasceu Cristo e<br />

no qual era tão estreita a união que,<br />

por sua causa, José foi chamado, de<br />

certo modo e verdadeiramente, o pai<br />

de Jesus Cristo.<br />

Convinha que São José, sendo pai<br />

apenas adotivo de Nosso Senhor, fosse<br />

parente num grau muito próximo<br />

d’Ele, para que, de algum modo, a<br />

consanguinidade conferisse mais calor<br />

vital, ontológico àquele parentesco<br />

adotivo.<br />

Da nobreza de Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo, de certo modo herdada de seus<br />

pais<br />

Cristo foi, portanto, como decorre do<br />

que foi dito, Patriarca, Rei e Príncipe, por<br />

parte de Mãe e de pai. […] Os Evangelistas<br />

descreveram a nobreza da Virgem<br />

e de José, para manifestar a nobreza de<br />

Cristo. José foi, portanto, de tanta nobreza<br />

que, de certo modo, se é permitido exprimir-se<br />

assim, deu a nobreza temporal<br />

a Deus em Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />

É o sumo em matéria de nobiliarquia!<br />

Dar sua própria nobreza a Deus,<br />

ser tão nobre que Deus quer revestir-<br />

-Se daquela carne nobre para Se fazer<br />

Homem! É uma maravilha. Vejam como<br />

um santo sabe tratar com superioridade<br />

um tema e tirar dele luzes, que<br />

pregações opacas e não santas, durante<br />

séculos de pregação, não saberiam<br />

tirar. Esse é o esplendor da santidade.<br />

28


Esposo virgem, à estatura<br />

da Virgem-Mãe<br />

Quão santa foi a vida de São José<br />

com a Santíssima Virgem e que perfeição<br />

ele alcançou<br />

Se na Paixão Cristo confiou sua Mãe<br />

somente a um discípulo virgem, não se<br />

deve supor que antes da conceição, enquanto<br />

jovem, Ele A tenha confiado aos<br />

cuidados de um homem virgem? Por isso<br />

diz São Jerônimo, que José foi virgem<br />

para que de Maria nascesse, de uma<br />

união virgem, um Filho virginal.<br />

Depois de mencionar a nobreza de<br />

São José, São Bernardino destaca a<br />

virtude mais conveniente ao nobre: a<br />

pureza; e cuja carência, isto é, a impureza,<br />

conspurca as duas coisas mais<br />

sublimes que há na Terra: em primeiro<br />

lugar, o sacerdócio e, em segundo<br />

lugar, a nobreza. Um nobre, ao ser<br />

impuro, cai no pecado que mais radicalmente<br />

destrói a sua condição.<br />

São José teve de modo supereminente<br />

a nobreza e a pureza; a nobreza,<br />

devido às razões explicadas; a pureza,<br />

pela razão aqui indicada. Ou seja,<br />

quando Nosso Senhor Jesus Cristo<br />

morreu, quis que sua Mãe Virgem fosse<br />

entregue a um Apóstolo virgem. E<br />

não teria querido que Ela fosse entregue<br />

e estivesse sob a guarda de um esposo<br />

virgem? Para alguém ser esposo<br />

da Virgem das virgens poderia não ser<br />

virgem? É uma coisa inconcebível.<br />

Aqui fica minha lamentação: é<br />

uma pena que não haja entre nós um<br />

artista que saiba fazer uma imagem<br />

de São José de acordo com estas<br />

concepções de São Bernardino de<br />

Sena. Homem de trajes simples, porque<br />

era pobre, mas brilhando, através<br />

da simplicidade dos trajes, a dignidade,<br />

a categoria, a largueza de visão,<br />

a segurança de si, de um homem<br />

que é patriarca, rei e príncipe. E, ao<br />

mesmo tempo, o fulgor da virgindade<br />

iluminando-o todo.<br />

Este seria um São José real, segundo<br />

o Sagrado Coração de Jesus e<br />

o Imaculado Coração de Maria, tão<br />

diferente de toda espécie de imagens<br />

que conheço: eu ainda estou para<br />

conhecer alguma que corresponda à<br />

figura que dele faz a piedade do verdadeiro<br />

católico e que dele faz essa<br />

estupenda descrição de São Bernardino<br />

de Sena.<br />

Essa é a grandeza do Santo Patriarca!<br />

E assim devemos ver nele<br />

um intercessor junto a Nossa Senhora,<br />

mas um grandíssimo intercessor<br />

entre os intercessores secundários,<br />

porque é secundário apenas no que<br />

diz respeito a Ela e não aos outros<br />

mediadores, em relação aos quais<br />

ele ocupa um lugar eminente e talvez<br />

o maior de todos. v<br />

(Extraído de conferências de<br />

8/10/1966 e 23/12/1968)<br />

1) Ficha retirada da obra: SÃO BER-<br />

NARDINO DE SENA. Sermo II. In<br />

vigilia Nativitatis Domini. De Sancto<br />

Ioseph sponso Beatæ Virginis. In:<br />

Opera Omnia. Florentiæ: Ad Claras<br />

Acquas, 1959, v. VII, p.16-21<br />

Gabriel K. / Flávio Aliança<br />

29


Eco fidelíssimo da Igreja<br />

Como consolar nosso Redentor?<br />

Na Paixão, Nosso Senhor Jesus Cristo sofreu muito<br />

mais pelos pecados e infidelidades da humanidade<br />

do que pelas dores físicas que Lhe foram infligidas.<br />

Levar uma vida íntegra é um modo de consolá-Lo.<br />

Flávio Lourenço<br />

Em breve entraremos na Semana<br />

Santa. Na Quinta-<br />

-feira Santa se comemora a<br />

Instituição da Sagrada Eucaristia, na<br />

Santa Ceia, onde Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo lava os pés dos Apóstolos<br />

e lhes perdoa, portanto, os pecados.<br />

Nesse dia Judas rompe com o Colégio<br />

Apostólico.<br />

O Evangelho é muito expressivo:<br />

“Era noite” (Jo 13, 30).<br />

Noite em que Nosso Senhor<br />

começa sua Paixão com a<br />

Agonia no Horto. Daí toda<br />

a sequência de acontecimentos,<br />

ao mesmo tempo<br />

sublimes e dramáticos, que a<br />

piedade católica se compraz em<br />

reconsiderar todos os anos.<br />

O Redentor sofreu mais<br />

na alma do que no corpo<br />

Para esta ocasião, devemos ter um<br />

sentimento de compaixão pelo que<br />

aconteceu com Nosso Senhor. Mas<br />

não podemos nos esquecer do seguinte,<br />

pois, a meu ver, deve ser a<br />

consideração central da Semana<br />

Santa: Nosso Senhor sofreu muito<br />

mais pelos pecados dos homens<br />

do que pelos sofrimentos que Lhe<br />

foram infligidos.<br />

Imaginemos, paradoxalmente,<br />

que Ele estivesse numa fogueira<br />

durante horas e horas, sofrendo<br />

o suplício de ser queimado vivo,<br />

mas soubesse que havia em torno de<br />

Si, genuflexa, uma multidão contrita<br />

de dor, e até os próprios autores desse<br />

crime estivessem contritos de dor;<br />

e soubesse também que, ao longo dos<br />

séculos, não se pecaria mais, porque<br />

Ele tinha sacrificado a sua vida. A dor<br />

física seria tremenda, mas o seu sofrimento<br />

seria muito menor do que o<br />

que Ele teve.<br />

Na Paixão, sua dor física foi tremenda,<br />

mas sua dor maior foi a dor moral.<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo, Deus, a Segunda<br />

Pessoa da Santíssima Trindade<br />

humanada, apesar de ver seu Sangue<br />

Divino vertido por nós, viu que este<br />

seria injuriado durante séculos e séculos.<br />

Viu os pecados que se cometeriam<br />

e os viu aumentar. De tal maneira que<br />

se aplica a Ele a passagem: “Quæ utilitas<br />

in Sanguine meo?” “Qual a utilidade<br />

do meu Sangue? (Cf. Sl 29, 10) Por que<br />

estou padecendo tudo isto?”<br />

Há alguma coisa dessa pergunta no<br />

momento lancinante do “Deus, Deus<br />

meus, quare dereliquisti me?” “Meu<br />

Deus, meu Deus, por que Me abandonastes?”<br />

Como quem diz: “Este sacrifício<br />

todo, por quê, ó meu Deus?” De<br />

fato, essas palavras iniciam um Salmo<br />

profético (Cf. Sl 21, 2).<br />

Ele deseja um ato de amor<br />

e reparação da nossa parte<br />

Ele viu nossos pecados, viu o pecado<br />

de Revolução e padeceu por tudo<br />

30


isso. Nessas condições, Nosso Senhor<br />

sofreu e deseja nossa reparação, deseja<br />

um ato de amor e de indignação.<br />

Se eu tenho um pai que está sendo<br />

esbofeteado e olho com mansidão para<br />

os malfeitores, eu não estou amando<br />

meu pai. Eu devo indignar-me, devo<br />

protestar, devo interpor-me entre<br />

ele e quem o ataca: “Não senhor! Isto<br />

é comigo! Eu assumo para mim este<br />

caso, quem está na luta sou eu!”<br />

Nós devemos lamentar que o mundo<br />

inteiro não esteja nessa situação.<br />

Devemos lamentar que nós mesmos<br />

não tenhamos a postura de alma integralmente<br />

assim, que a fidelidade<br />

e o agradecimento a tantos dons exigiriam.<br />

Então, não podemos apenas<br />

apresentar aos pés da Cruz os pecados<br />

da humanidade. Devemos também<br />

pedir perdão pelos nossos pecados<br />

individuais.<br />

Havendo almas interiores e<br />

puras, a Terra seria renovada<br />

Ao mesmo tempo, devemos apresentar<br />

o Sangue de Cristo e as lágrimas<br />

de Maria ao Pai Eterno como<br />

modo de agradecer o benefício inestimável<br />

de fazermos parte dos poucos<br />

que disseram sim. Um sim mais<br />

forte ou menos forte; mais puro ou<br />

menos puro; mais durável e cheio de<br />

entusiasmo, ou como o de Nicodemos;<br />

mas, enfim, disseram sim.<br />

Coloquemo-nos aos pés da imagem<br />

de Nosso Senhor flagelado para<br />

rezar, para pedir, para suplicar, por<br />

intercessão de sua Mãe Santíssima,<br />

que perdoe os nossos pecados e faça<br />

de nós aqueles homens de Deus contra<br />

quem nenhum adversário resiste.<br />

Se houvesse na Terra muitos homens<br />

de Deus, muitas almas interiores<br />

que sacrificassem tudo para serem<br />

puras, para não pecar de respeito<br />

humano, de orgulho, de vaidade,<br />

de comparações, de rivalidades; se<br />

os tivéssemos em grande número, a<br />

face da Terra se renovaria. Peçamos<br />

para ser desses homens.<br />

Renunciar aos defeitos<br />

ou ser um palhaço<br />

aos próprios olhos<br />

Há um pensamento que a mim<br />

sempre me fez muito bem. Ou se renuncia<br />

ao amor-próprio, à impureza<br />

e suas sequelas, ou se é palhaço, e<br />

palhaço aos próprios olhos.<br />

Estou proferindo estas palavras.<br />

Ora, elas só conseguirão fazer algum<br />

bem na medida em que eu for um<br />

homem puro, sem amor-próprio.<br />

Ao término do dia, quando for para<br />

minha casa e, afinal, começar a descansar,<br />

devo examinar se pronunciei estas<br />

palavras com o coração reto. Se tenho<br />

consciência de ter combatido a impureza<br />

e o orgulho, eu posso deitar o meu<br />

corpo exausto e dizer: “Senhor, quando<br />

o cansaço se evolar do meu corpo pelo<br />

repouso, será como um sacrifício que<br />

sobe a Vós. Querei recebê-lo em odor<br />

de suavidade diante de Vós. Maria<br />

Santíssima, intermediária de todos os<br />

homens junto a Deus, dai ao meu sacrifício<br />

o que ele não tem, para que Deus<br />

o tenha por agradável.” Cerro os olhos<br />

e durmo tranquilamente.<br />

Se não for isso, o que eu fiz? Renunciei<br />

a quantas comodidades, a<br />

quantos prazeres, a quantas vantagens<br />

na vida, mas não fiz apostolado.<br />

Levei uma vida dura e difícil, mas fui<br />

vaidoso, orgulhoso e, no fim do meu<br />

dia, gastei o tempo que Deus me deu<br />

fazendo uma comédia de apostolado.<br />

O que eu fui? Um palhaço!<br />

Não basta ter os passos<br />

no caminho certo<br />

Tomemos bem isso em consideração.<br />

É terrível a nossa situação. Recebemos<br />

uma opção admirável, pusemos<br />

nossos passos ao longo do caminho<br />

certo, mas neste caminho certo<br />

temos que levar a mente e o coração<br />

acertados.<br />

Peçamos isso a Nossa Senhora,<br />

preparando-nos, assim, para a Semana<br />

Santa, com esta jaculatória que se<br />

reza no começo de todas as estações<br />

da Via Sacra:<br />

Adoramus te, Christe, et benedicimus<br />

tibi, quia per sanctam Crucem<br />

tuam redemisti mundum.<br />

Nós vos adoramos, ó Cristo, e Vos<br />

bendizemos, porque por vossa Santa<br />

Cruz redimistes o mundo.<br />

Eu acrescento: Nossa Senhora das<br />

Lágrimas, Nossa Senhora das Dores,<br />

rogai por nós!<br />

Entremos, pois, com ardor na Semana<br />

Santa.<br />

v<br />

(Extraído de conferência de<br />

26/3/1986)<br />

Flávio Lourenço<br />

31


Luzes da Civilização Cristã<br />

A divina impotência<br />

do Onipotente<br />

Gabriel K.<br />

Há horas sinistras na História em que Deus dá a impressão<br />

de que Se deixou amarrar, parecendo colaborar com seus<br />

torpíssimos adversários. Entretanto, por detrás da divina e<br />

voluntária impotência, Ele inflige a maior das derrotas a Satanás,<br />

operando seus desígnios redentores de um modo magnífico.<br />

32


Entre as relíquias da Paixão<br />

que membros do nosso Movimento<br />

puderam venerar<br />

durante uma peregrinação que fizeram,<br />

duas me impressionaram sobremaneira.<br />

Flávio Lourenço<br />

Dois símbolos da<br />

divina e voluntária<br />

impotência de Deus<br />

Para guardar uma delas, se eu pudesse,<br />

mandaria construir a maior<br />

catedral da face da Terra. Trata-se da<br />

corda, entre todas sacrossanta, que<br />

ligou as divinas mãos de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo.<br />

Eu a imagino uma corda forte,<br />

bruta, de qualidade ordinária; que<br />

tão longamente e tão de perto apertou<br />

o pulso sagrado, que ela mesma<br />

ficou meio desgastada e ainda deve<br />

estar empapada daquele Sangue já<br />

coagulado que nos fechou o Inferno e nos abriu as<br />

portas do Céu. Sangue do qual nasceram a Santa<br />

Igreja e a Civilização Cristã.<br />

A outra relíquia é um fragmento da cana<br />

ou vara que, como um cetro de irrisão,<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo carregou nas<br />

mãos.<br />

Ambas as relíquias são símbolos da<br />

impotência do Onipotente. Elas marcam<br />

essas horas sinistras da História<br />

em que Deus dá a impressão de que<br />

Se deixou amarrar e não pode fazer<br />

nada, nas quais devemos compreender<br />

a divina e voluntária impotência<br />

d’Ele.<br />

Ele, Senhor de todos os Exércitos<br />

Angélicos, que venceram tão garbosamente<br />

Satanás e que o tem<br />

acorrentado no Inferno; Ele,<br />

por cujo poder infinito os astros<br />

gravitam e os Anjos sustentam<br />

a ordem do universo;<br />

os animais nascem e se reproduzem,<br />

se alimentam e vão enchendo<br />

a Terra, e as plantas<br />

prosperam e vicejam.<br />

Ele, por cuja força voam os<br />

passarinhos e as borboletas,<br />

e com cuja força investem os<br />

J. P. Braido<br />

leões. Ele, manietado, tendo na sua mão a vara<br />

da imbecilidade, sendo tratado como um bobo,<br />

como um cretino, um impostor que Se diz<br />

dono do reino que não existe e que, a existir,<br />

não é seu. Esta vara de irrisão é apenas uma<br />

provocação, porque Ele será objeto de sacrilégios<br />

ainda muito mais terríveis. Ele carrega,<br />

com a majestade de sua dor, com a majestade<br />

de sua impotência, a vara do bobo.<br />

Ele, a Sabedoria Encarnada, o Filho<br />

de Maria!<br />

O que daria eu para poder oscular essa<br />

corda e essa vara! E eu rezaria antes aquela<br />

oração lindíssima que o sacerdote reza<br />

durante a Missa, antes de ler o Evangelho:<br />

“Deus, que ao Profeta Isaías purificastes<br />

os lábios com uma brasa ardente, purificai<br />

também os meus lábios para que, com dignidade<br />

e competência, eu anuncie o vosso<br />

santo Evangelho.” 1 Eu adaptaria: “para<br />

que, não com muita indignidade, eu<br />

oscule a vossa corda sagrada.”<br />

Presságio da situação<br />

atual da Igreja<br />

Tal é a visão esplêndida, magnífica de<br />

um Deus manietado, a respeito de Quem,<br />

tantos séculos depois, Bossuet cantaria<br />

33


Luzes da Civilização Cristã<br />

a glória do alto de uns dos púlpitos da França, chamando-O<br />

de um Deus brisé, rompu, anéanti 2 – um Deus rachado,<br />

rompido, aniquilado –, mas onipotente, que, com as<br />

mãos amarradas e reduzido a nada, ali estava sofrendo a<br />

sua Paixão e, de fato, sem que ninguém percebesse, infligia<br />

a maior das derrotas ao adversário.<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo fazia pressagiar a atual<br />

situação da Santa Igreja, Corpo Místico de Cristo,<br />

realmente parecida a mais não poder com Ele manietado.<br />

Estava posto o desígnio: uma vez cometido e lançado<br />

na História o pecado de Revolução e postas as tentações<br />

sucessivas que haveriam de desabar sobre os<br />

homens – as fraquezas, as infâmias, as torpezas com<br />

que eles se portariam diante dessas tentações, a liberdade<br />

crescente dada ao demônio para ele ir tomando<br />

o império sobre a Terra – tudo chegaria até uma derrota.<br />

Tem-se a impressão de estarem a Igreja e a Civilização<br />

Cristã como Nosso Senhor Jesus Cristo manietado.<br />

A cada século que passa na História da Revolução, temos<br />

a impressão de que a Igreja está cada vez mais fortemente<br />

manietada, que as cordas vão amarrando-a mais e, como<br />

que, a sua possibilidade de ação vai diminuindo, até o<br />

momento de chegar a esta celeste e divina “impotência”<br />

de nossos dias.<br />

Amarrava-O, não a corda, mas<br />

seu desígnio redentor<br />

Que mistério! O que amarrava aquelas mãos não era a<br />

corda, mas somente o seu desígnio de não a romper, nada<br />

mais. Misterioso desígnio pelo qual Ele parecia colaborar<br />

com seus sinistros e torpíssimos adversários, porque os<br />

inimigos O quiseram amarrar e Ele não quis Se desamarrar.<br />

Pareceria haver uma convergência de intenções nisso<br />

e, entretanto, Ele derrubava, de ponta a ponta, a intenção<br />

criminosa, celerada de Satanás, preparando a Redenção<br />

do gênero humano de um modo magnífico.<br />

Na majestosa impassibilidade com que, humilde e<br />

desdenhoso ao mesmo tempo, sujeitava-Se a todos aqueles<br />

maus tratos, tinha na sua mente sagrada outros desígnios.<br />

E não tardaria muito a hora em que Ele diria:<br />

“Consummatum est!” O demônio estaria rachado mais<br />

uma vez e o gênero humano resgatado. A Igreja nasceria<br />

do seu Flanco sagrado.<br />

v<br />

(Extraído de conferência de 28/11/1981)<br />

1) Cf. Missal Romano, 2008.<br />

2) Cf. BOSSUET, Jacques-Bénigne. Troisième sermon pour le<br />

Vendredi Saint. In: Ouvres complètes. Tomo I. Besançon: Outhenin-Chalandre<br />

Fils, Éditeur, 1836. p. 549 e 553.<br />

J.P. Ramos<br />

Nosso Senhor após a Flagelação - Pinacoteca do Templo de São Felipe Neri, Cidade do México<br />

34


35<br />

Flávio Lourenço


Encontro com a Verônica no<br />

caminho do Calvário - Museu<br />

de Belas Artes de Lille, França<br />

Flávio Lourenço<br />

T<br />

Ter estampada no coração<br />

a Divina Face<br />

odos se riem de Vós, meu Senhor, todos Vos ferem, Vos ultrajam. Vossa Face Divina, outrora<br />

radiante de formosura, está agora desfigurada inteiramente. Ela só exprime a dor na<br />

sua forma mais aguda, mais pungente.<br />

Aos olhos dessa turbamulta, que papel faria quem Vos consolasse, quem tomasse vosso partido,<br />

quem se declarasse vosso? Atrairia sobre si muito do ódio, do desprezo, da humilhação que<br />

sobre Vós se lançava como impetuosa torrente, do íntimo daqueles corações empedernidos, e,<br />

mais, de todas as ruas, praças e vielas da cidade deicida.<br />

A Verônica viu isso, mas não teve medo. Aproximou-se de Vós, consolou-Vos. E, oh! Divina recompensa!<br />

Vossa Face Divina ficou para sempre estampada na toalha com que ela quis enxugá-la.<br />

Meu Deus, queira meu coração consolar-Vos sempre. Especialmente quando todos se envergonharem<br />

de Vós, dai-me forças para Vos consolar, proclamando-Vos, em alto e bom som, o meu<br />

Divino Rei.<br />

Como recompensa, não quero outra, senão ter vossa Face estampada em meu coração.<br />

(Extraído de Catolicismo n. 231, março de 1970)

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