Revista Dr Plinio 311

fevereiro de 2024 fevereiro de 2024

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Luzes da Civilização Cristã gary noon (CC3.0) no gótico. Cristandade propriamente em seu estado de saúde é a Idade Média. A pré-Revolução começou, por assim dizer, a matá-la; ela entrou em estado enfermiço com o fim da Idade Média e começa a morrer quando surgem as Revoluções. Ora, Cristandade, como ela existiu, é a europeia, marcada por um determinado feitio de alma próprio aos povos que a graça levou ao auge de si mesmos. Esses povos tinham diante de si um território, incluindo as ilhas, que eram agrestes. Em função de um estado de espírito deles, embebido de catolicismo, eles foram ora selecionando, agrupando e modelando o que lhes era afim, ora perseguindo implacavelmente o que lhes era contrário, mas definindo-se mais pela oposição ao contrário. De toda fauna que havia, prevaleceram os animais que correspondem ao gosto deles, por exemplo, a perdiz, o faisão, o rouxinol, para falar das aves. Eles foram criando uma literatura e uma arte que tomavam essas coisas e as apresentavam como deveriam ser vistas, ou seja, conforme o gosto deles. Quem analisa, por exemplo, uma perdiz, não a pode ver senão pelo prisma do europeu, cujo olhar seletivo afasta os aspectos que não são os da perdiz de legenda estilizada. Na Idade Média, o animal aparecia limpo, direito, como fundo de quadro da vida humana, mas nunca como um ser quase mais perfeito que o homem. É nos tempos modernos que começa a aparecer o bicho em porcelana de Sèvres ou em bordados; ele já não é uma unilateralidade sadia, mas é uma quimera. Ao la- Loicwood (CC3.0) é legítimo. do do bom soldado figura o carneirinho encantador, com fitinha azul, que não é o carneiro da realidade, tal como o medieval o punha. Ao passar os animais para a porcelana de Sèvres já houve uma decadência. Na heráldica é intencionalmente mostrado o símbolo do bicho e não ele em si. À medida que o europeu foi relegando a galinha ao galinheiro, por exemplo, ele foi aprendendo a se lavar, tirando sua conaturalidade com o animal; o homem foi se elevando, realizando assim algo de parecido com o Paraíso Terrestre na Terra não paradisíaca; é o resgate do calabouço, o qual vai tomando ares de lugar onde se habita. É algo artificial, porque não é o Paraíso Terrestre, mas A Igreja: harmonizadora da Europa cristã Houve na Europa uma progressiva caça a tudo quanto era prosaico. Não foi levada até o fim, mas foi tão obstinada quanto a Reconquista contra os mouros. O fruto disso foi a modelagem de um mundo construído de acordo com a mentalidade de certos povos formados à luz da Igreja, a qual fazia, dentro da raça, o que esta fez no mundo; é uma regra de três magnífica. A Igreja foi fazendo aparecer o “príncipe herdeiro”, o “menino de ouro” de dentro do romano sibarita decadente, ou dos godos e ostrogodos – elementos constitutivos da Idade Média – e foi enxotando deles os aspectos reprováveis. A ascensão como tipo humano do descendente do germano ou do latino constituiu uma ascensão positiva, na qual todos os aspectos reprováveis foram desaparecendo em vista de uma modelagem operada pela graça, sobrenaturalmente. Entre a graça e a natureza não há contradição, só pode haver uma harmonia. As leis que existem numa ordem são, mutatis mutandi, as mesmas leis para outra ordem, transpostas para realidades diferentes: uma natural, a outra sobrenatural. A graça age na natureza como uma mão dentro da luva. De si ela opera esse seletivo, mas opera devagar. Por exemplo, um Santo que ensinasse a prática da pureza; olhando para o olhar dele, seus discípulos passariam a se lavar melhor sem que ele recomendasse, por afinidade e conaturalidade. 32

António Godinho (CC3.0) Sabe-se que Dom Orione sempre se confessava antes de estar com São Pio X. Eu não teria a menor surpresa se ele tomasse um banho completo também. Não quero dizer que necessariamente tenha sido assim, mas seria um desdobrar-se lógico da mesma consequência. A mesma razão pela qual ele queria ter a alma pura o levaria a banhar-se para estar puro. Na Cristandade, era a graça que modelava o homem, o qual, animado por ela, modelava a natureza e fazia o seletivo. A Igreja ia fazendo uma miscigenação entre germanos, latinos, descendentes de mouros, húngaros – porque a Hungria pertenceu à Cristandade de fato, e de estatura inteira. Tal síntese constituiu a figura global do europeu em sua realidade psicológica e cultural mais importante, e até temperamental, porque a Igreja ia criando um temperamento mais importante do que as particularidades locais. É como quem olha para um vitral e vê como toda a policromia, de certo modo, vale mais do que cada pedaço de vidro. Assim era a Europa cristã na sua totalidade. Os defeitos das várias raças não tinham cidadania, porque elas se uniam pelas qualidades, formando o europeu total. Do ideal sacral ao heroísmo angélico Dentro desse quadro, um aspecto importante é o do heroísmo. No meu modo de entender, o heroísmo propriamente dito nasceu na Idade Média. Sem dúvida existiram heroísmos salientíssimos em povos anteriores. Mas, na Idade Média, pela ação da Igreja, o Lumen Christi penetrou nos aspectos temporais da vida muito mais do que no tempo do Império Romano. Na sociedade medieval foi modelada uma forma de heroísmo que não tinha tido ocasião de se realizar antes. Toda a epopeia, a beleza do heroísmo só foram inteiramente explicitadas com a ideia católica do herói a serviço de um ideal sacral. O heroísmo a serviço de Nosso Senhor Jesus Cristo é diferente do ideal de servir o Império Romano ou de outro qualquer. O heroísmo de Alexandre Magno, por exemplo, nada tinha em comum com o de Clóvis. Ambos Samuel Holanda Catedral de Notre-Dame de Paris 33

Luzes da Civilização Cristã<br />

gary noon (CC3.0)<br />

no gótico. Cristandade propriamente em seu estado de<br />

saúde é a Idade Média. A pré-Revolução começou, por<br />

assim dizer, a matá-la; ela entrou em estado enfermiço<br />

com o fim da Idade Média e começa a morrer quando<br />

surgem as Revoluções.<br />

Ora, Cristandade, como ela existiu, é a europeia, marcada<br />

por um determinado feitio de alma próprio aos povos<br />

que a graça levou ao auge de si mesmos. Esses povos<br />

tinham diante de si um território, incluindo as ilhas, que<br />

eram agrestes. Em função de um estado de espírito deles,<br />

embebido de catolicismo, eles foram ora selecionando,<br />

agrupando e modelando o que lhes era afim, ora perseguindo<br />

implacavelmente o que lhes era contrário, mas<br />

definindo-se mais pela oposição ao contrário.<br />

De toda fauna que havia, prevaleceram os animais<br />

que correspondem ao gosto deles, por exemplo, a perdiz,<br />

o faisão, o rouxinol, para falar das aves.<br />

Eles foram criando uma literatura e uma<br />

arte que tomavam essas coisas<br />

e as apresentavam como deveriam<br />

ser vistas, ou seja, conforme<br />

o gosto deles. Quem analisa,<br />

por exemplo, uma perdiz,<br />

não a pode ver senão pelo prisma<br />

do europeu, cujo olhar seletivo<br />

afasta os aspectos que não<br />

são os da perdiz de legenda estilizada.<br />

Na Idade Média, o animal aparecia<br />

limpo, direito, como fundo de<br />

quadro da vida humana, mas nunca<br />

como um ser quase mais perfeito que o<br />

homem. É nos tempos modernos que começa<br />

a aparecer o bicho em porcelana de<br />

Sèvres ou em bordados; ele já não é uma unilateralidade<br />

sadia, mas é uma quimera. Ao la-<br />

Loicwood (CC3.0)<br />

é legítimo.<br />

do do bom soldado figura o carneirinho encantador,<br />

com fitinha azul, que não é o carneiro<br />

da realidade, tal como o medieval o<br />

punha. Ao passar os animais para a porcelana<br />

de Sèvres já houve uma decadência.<br />

Na heráldica é intencionalmente mostrado<br />

o símbolo do bicho e não ele em si.<br />

À medida que o europeu foi relegando a<br />

galinha ao galinheiro, por exemplo, ele foi<br />

aprendendo a se lavar, tirando sua conaturalidade<br />

com o animal; o homem foi se elevando,<br />

realizando assim algo de parecido com o<br />

Paraíso Terrestre na Terra não paradisíaca;<br />

é o resgate do calabouço, o qual vai tomando<br />

ares de lugar onde se habita. É algo artificial,<br />

porque não é o Paraíso Terrestre, mas<br />

A Igreja: harmonizadora da Europa cristã<br />

Houve na Europa uma progressiva caça a tudo quanto<br />

era prosaico. Não foi levada até o fim, mas foi tão obstinada<br />

quanto a Reconquista contra os mouros. O fruto<br />

disso foi a modelagem de um mundo construído de acordo<br />

com a mentalidade de certos povos formados à luz<br />

da Igreja, a qual fazia, dentro da raça, o que esta fez no<br />

mundo; é uma regra de três magnífica.<br />

A Igreja foi fazendo aparecer o “príncipe herdeiro”, o<br />

“menino de ouro” de dentro do romano sibarita decadente,<br />

ou dos godos e ostrogodos – elementos constitutivos da<br />

Idade Média – e foi enxotando deles os aspectos reprováveis.<br />

A ascensão como tipo humano do descendente do germano<br />

ou do latino constituiu uma ascensão positiva, na<br />

qual todos os aspectos reprováveis foram desaparecendo<br />

em vista de uma modelagem operada<br />

pela graça, sobrenaturalmente.<br />

Entre a graça e a natureza<br />

não há contradição, só pode<br />

haver uma harmonia. As leis<br />

que existem numa ordem são,<br />

mutatis mutandi, as mesmas<br />

leis para outra ordem, transpostas<br />

para realidades diferentes:<br />

uma natural, a outra<br />

sobrenatural. A graça age na<br />

natureza como uma mão dentro<br />

da luva. De si ela opera esse seletivo,<br />

mas opera devagar.<br />

Por exemplo, um Santo que ensinasse<br />

a prática da pureza; olhando para<br />

o olhar dele, seus discípulos passariam a<br />

se lavar melhor sem que ele recomendasse,<br />

por afinidade e conaturalidade.<br />

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