Revista Dr Plinio 311

fevereiro de 2024 fevereiro de 2024

23.01.2024 Views

O pensamento filosófico de Dr. Plinio to, sua sensibilidade, seu estilo de vida e todos seus hábitos transmitem uma doutrina e estão ajustados a ela. Cercado dos símbolos, ele compõe ainda uma poesia a fim de fazer outros sentirem a gostosura do que ele experimenta. O espírito humano precisa conhecer a verdade e a virtude inteiras dentro da doutrina, mas esta deve ser tornada para ele cognoscível em todos seus aspectos, de modo a que toda sua pessoa assimile a doutrina quando, por exemplo, ele entra num ambiente cercado de símbolos. Deus dispôs que o homem formasse sua mentalidade assim. Para isso a Igreja foi constituída Mestra da Revelação, para garantir que chegasse a todos os povos o conhecimento da verdade. Mas ela depois promoveu a liturgia, as cerimônias, os templos, como ambientação para a prática da doutrina e para se ter horror ao que é lhe oposto. Assim é que a doutrina forma a mentalidade. Ou é isto, ou o indivíduo adere a uma doutrina e tem a mentalidade formada de outra maneira. Como pode haver essa contradição? Dou alguns exemplos. Doutrina sem mentalidade, mentalidade sem doutrina O escritor fala em partilha, o que supõe, portanto, que se tenham herdado bens. Imaginemos que ele tenha recebido de seu trisavô um velho romance de Cavalaria, um bonito livro das primeiras encadernações. Ele não lê, mas guarda-o em casa, porque acha interessante ter sobre a mesa de um de seus salões. Esse homem tem um neto que nas horas vagas vai brincar em sua casa, e como ele reputa o avô supremamente sem graça, começa a ler o romance de Cavalaria. O menino, que gosta do livro, pode até entusiasmar- -se com a história, mas, habituado à casa do avô e à casa do pai formado pelo avô, ele não viverá o espírito de Cavalaria. Neste caso, ele tem a doutrina, não tem a mentalidade. Há pessoas que gostam de assistir a romances ou novelas policiais. Se a novela é reproduzida às onze da noite, por exemplo, elas trancam bem a casa antes, sentam-se na poltrona mais cômoda; conforme o nível, põem-se de chinelos e ligam a televisão pouco antes do horário para pegarem a narrativa inteira, e a acompanham com uma torcida única. Acaba a sessão, todos se retiram, tomam um copo de água ou de leite, vão com calma para o quarto dormir, pensando como acabará o ca- Samuel Holanda Mosteiro da Batalha, Portugal 20

Flávio Lourenço so da moça aflita que ficou pendurada num fio de eletricidade, prestes a cair na rua. Deitam-se e dormem um sono monumental. Uma pessoa assim pode até encantar-se doutrinariamente com o risco enquanto sendo um ornato da vida, e gosta inclusive de vê-lo na vida do outro. Mas... em sua vida, ela mesma não quer riscos, porque não tem aquela mentalidade e sim a do Plantin 2 . E a pessoa sofre uma contradição interna, a qual tona-se fonte de mal-estar. Mas ninguém há que não tenha uma mentalidade segundo uma certa doutrina. Pode-se estar dividido entre duas doutrinas distantes, mas alguém a-doutrinário não existe. O explícito vazio e o implícito envergonhado Conhecer a doutrina não basta. Quantos há no Inferno que conheceram a verdade, entretanto não amoldaram sua mentalidade. Alguém dirá: “Mas uma pessoa nunca será capaz de explicitar isso.” Quem tem a mentalidade assim não se incomoda em explicitar, isso já seria parte do pensamento; ela gosta de ser. E esse tipo de mentalidade, que vive à margem de sua própria doutrina, até prefere não explicitar nada, para não se comprometer. Voltando ao exemplo imaginário do rapazinho lendo o Amadís de Gaula 3 , imaginemos que ele, enquanto faz a leitura, se regala em tomar uma coalhada deliciosa que a avó lhe preparou. Depois ele vai passear debaixo das espaldeiras pensando consigo: “Como o vovô é um colosso! Ninguém o amola.” E o avô lhe diz: “Meu filho, aprenda comigo. Ah! Vida sossegada é isso!” O rapaz percebe de modo confuso que, se explicitar a doutrina, ele tem um choque; então, se há algo que ele não quer é que as coisas lhe fiquem claras. É a convivência vergonhosa de um explícito vazio com um implícito envergonhado. Esse é o estado de espírito. Se a pessoa não explicita e persiste em não explicitar, em determinado momento a Providência a chama. E Deus, que odeia a mentira e odeia que se fechem os olhos para a verdade, sobretudo a verdade interior, vem com um castigo. Começa uma vida ordenada pela Providência, que dá esbarrões para convidar a pessoa à explicitação. Ou poderá acontecer de a pessoa, de repente, rachar. Comete uma infâmia, cai em si: “Isso eu não deveria ter feito… agora não tem remédio”, e se desespera. Choque de mentalidades; Judas e o moço rico Com Judas não terá havido um processo assim? Ele foi afundando meio subconscientemente; em certo momento rouba um dinheiro do caixa dos Apóstolos. Ora, onde está Nosso Senhor o caixa não é de ninguém, porque tudo é d’Ele. Judas rouba um valor, gasta-o na ideia de repor depois; mas para isso roubará outra vez, fazendo um negocinho para dar o lucro da reposição e para ele poder tomar mais um trago de vinho; o negocinho, entretanto, dá errado e ele desanima de pagar. Ele começa a ficar com nó, porque São Pedro percebeu a coisa e começa a olhar feio; ele fica inseguro na presença de Nosso Senhor e o processo segue seu curso. Em cer- Judas no Horto das Oliveiras - Museu Nacional Bávaro, Munich Flávio Lourenço 21

O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

to, sua sensibilidade, seu estilo de vida<br />

e todos seus hábitos transmitem<br />

uma doutrina e estão ajustados a ela.<br />

Cercado dos símbolos, ele compõe<br />

ainda uma poesia a fim de fazer outros<br />

sentirem a gostosura do que ele<br />

experimenta.<br />

O espírito humano precisa conhecer<br />

a verdade e a virtude inteiras<br />

dentro da doutrina, mas esta deve<br />

ser tornada para ele cognoscível<br />

em todos seus aspectos, de modo a<br />

que toda sua pessoa assimile a doutrina<br />

quando, por exemplo, ele entra<br />

num ambiente cercado de símbolos.<br />

Deus dispôs que o homem formasse<br />

sua mentalidade assim.<br />

Para isso a Igreja foi constituída<br />

Mestra da Revelação, para garantir<br />

que chegasse a todos os povos o conhecimento<br />

da verdade. Mas ela depois<br />

promoveu a liturgia, as cerimônias,<br />

os templos, como ambientação<br />

para a prática da doutrina e para se<br />

ter horror ao que é lhe oposto.<br />

Assim é que a doutrina forma a<br />

mentalidade. Ou é isto, ou o indivíduo<br />

adere a uma doutrina e tem a<br />

mentalidade formada de outra maneira.<br />

Como pode haver essa contradição?<br />

Dou alguns exemplos.<br />

Doutrina sem mentalidade,<br />

mentalidade sem doutrina<br />

O escritor fala em partilha, o que<br />

supõe, portanto, que se tenham herdado<br />

bens. Imaginemos que ele tenha<br />

recebido de seu trisavô um velho<br />

romance de Cavalaria, um bonito livro<br />

das primeiras encadernações.<br />

Ele não lê, mas guarda-o em casa,<br />

porque acha interessante ter sobre a<br />

mesa de um de seus salões.<br />

Esse homem tem um neto que nas<br />

horas vagas vai brincar em sua casa,<br />

e como ele reputa o avô supremamente<br />

sem graça, começa a ler o romance<br />

de Cavalaria. O menino, que<br />

gosta do livro, pode até entusiasmar-<br />

-se com a história, mas, habituado à<br />

casa do avô e à casa do pai formado<br />

pelo avô, ele não viverá o espírito de<br />

Cavalaria. Neste caso, ele tem a doutrina,<br />

não tem a mentalidade.<br />

Há pessoas que gostam de assistir<br />

a romances ou novelas policiais. Se a<br />

novela é reproduzida às onze da noite,<br />

por exemplo, elas trancam bem<br />

a casa antes, sentam-se na poltrona<br />

mais cômoda; conforme o nível,<br />

põem-se de chinelos e ligam a televisão<br />

pouco antes do horário para pegarem<br />

a narrativa inteira, e a acompanham<br />

com uma torcida única.<br />

Acaba a sessão, todos se retiram,<br />

tomam um copo de água ou de leite,<br />

vão com calma para o quarto dormir,<br />

pensando como acabará o ca-<br />

Samuel Holanda<br />

Mosteiro da Batalha, Portugal<br />

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