Revista Dr Plinio 311

fevereiro de 2024 fevereiro de 2024

23.01.2024 Views

Reflexões teológicas Arquivo Revista mos que tolerar cada casca-grossa e cada imperfeição do arco-da-velha! Essa é a vida. No Céu o convívio é outro. “Alguns cantavam, outros tocavam. Cada nota fazia o efeito de mil instrumentos reunidos.” Imaginar um instrumento que faça o efeito de mil...! Faço aqui um parêntese todo pessoal: um dos encantos que eu tenho pelo órgão. Ao tocar cada nota, ele me dá a impressão de haver uma porção de instrumentos que tocam ao mesmo tempo. Por isso acho- -o, a perder de vista, superior a qualquer outro instrumento. Lembro-me de que quando comecei a prestar atenção nele eu pensava: “As pessoas não percebem que isso é um concerto de concertos? Falam em dó, ré, mi. No órgão há isso, mas sobretudo existe mais. No piano existe um “lá”, mas no órgão existe um universo de “lás”, acentuado ainda por aqueles registros que dão uma ideia global do universo dos sons.” É a perfeição das perfeições em matéria de harmonia. “Ouviam-se os vários graus de escala harmônica, desde os mais baixos aos mais altos que se possa imaginar. Mas tudo em acordes perfeitos. Ah! para descrever essa harmonia não bastam comparações humanas! Via- -se pelo rosto daqueles felizes habitantes dos jardins que os cantores não só experimentavam extraordinário prazer em cantar...” O que torna o canto particularmente deleitável: quando a pessoa canta um canto perfeito e notam-se nela as harmonias perfeitas da alma perfeita, na alegria perfeita. “...mas, ao mesmo tempo, sentiam um imenso gáudio em ouvir cantar os demais.” Isso é um senso de harmonia pouco comum. Um cantor gostar de ouvir outros cantores ao invés de fazer solo, não é comum... Um músico gostar de ouvir os outros tocarem tão bem ou melhor do que ele na orquestra onde apenas ele tenha um clarinete... No Céu é diferente: “Este, como canta bem! E aquele, como é estupendo! Canta ainda melhor!” É um universo sem inveja. “Mais um cantava, mais se acendia nele o desejo de cantar e quanto mais escutava, mais desejava escutar.” É a convivência e a harmonia perfeitas da alma descrita de modo a impressionar a imaginação. Está contido aqui um verdadeiro tratadozinho de Filosofia ou de Moral. Cântico sobrenatural cheio de pensamento Steven Pisano(CC3.0) Dr. Plinio em 1979 “Este era um dos cantos: Salus, honor, gloria Deo Patri omnipotenti, Auctor sæculi, qui erat, qui est et qui venturus est, judicare vivos et mortuos, in sæcula sæculorum.” Podemos imaginar um pouco as inflexões. “Saudação, honra, glória a Deus Pai onipotente, Autor de todos os séculos, que era, que é e que será, e que virá julgar os vivos e os mortos nos séculos dos séculos.” Ora, cada palavra dessas contém um pensamento; e cada pensamento 14

desses é susceptível de ser musicado. Porque não há um pensamento que não seja susceptível de ser musicado. É questão de ter talento e saber musicar. Podemos imaginar esse “salus” contendo a nobreza de todas as reverências, a humildade de todas as genuflexões e o élan de alma de todas as orações que nos ritos orientais católicos se fazem de pé. “Honor”, falando da honra de Deus, que repercussões tem! A palavra honra, nas línguas que eu conheço, como no francês “honneur”, é sempre muito bonita. Mesmo nas línguas de origem não latina, como o alemão, “Ehre”, com h, porque sem h a palavra não valeria nada. É solene, superior, honorífica. Como é bonita honneur! E como é bonita honra! Algo do pulchrum da ideia da honra se musica na própria palavra. E eu tenho a seguinte impressão: que na linguagem que se perdeu na torre de Babel, mas que ainda vinha do Paraíso, as palavras musicavam os conceitos. E isso desapareceu para castigo nosso e deu nessa Babel em que vivemos. Mas isso cantado deveria ser assim: “salus”, uma profunda reverência; “honor”, um temor reverencial e um respeito; “gloria”, uma explosão diante da manifestação de Deus. Três estágios da representação da música. Agora, não sei como pronunciar essa palavra “Deo”, porque a palavra Deus é tudo: é inefável, é perfeita. Quem poderá musicá-la? Talvez os lábios da Santíssima Virgem e, assim mesmo, à maneira de uma criatura. Entretanto, podemos ter uma ideia. Ouve-se um pouco desse som no Evangelho quando Nosso Senhor reza: “Meu Pai.” Aí transparece algo da vida trinitária. Mas é algo, não conseguimos atingi-la. Em seguida cantam: “Patri omnipotenti”: Deus Pai; Pai, enquanto gera o Filho e procede d’Eles o Espírito Santo, mas também porque é Pai de todos nós. Depois de pronunciar a palavra inefável “Deus”, pronunciar a palavra “Pai” demonstra a intimidade, a junção, o afeto. Onipotente é uma exclamação que eu imaginaria quase militar da glória de Deus. Depois eu imaginaria uma cadência: “Auctor sæculi”; o tempo foi criado por Ele. Isso deixa ver uma eternidade misteriosa para trás e uma outra para frente. “Auctor”, Aquele que fez. E fez o quê? Os séculos, procissão grandiosa das centúrias andando pela História! Isso deve ser musicável. Para indicar bem o tamanho desses séculos, o cântico continua: Órgão da Basílica de Saint-Denis, Paris “qui erat, qui est et qui venturus est” – que foi, que é e que será. Abrange tudo, e, no fim, um misto de glória e de castigo: virá para julgar os vivos e os mortos. Encerram-se os séculos com chave de ouro. Acaba o tempo e o destino é eterno. Os bem-aventurados do sonho já estão julgados. Esperam no Céu apenas os seus próprios corpos. Isso é uma beleza! E termina “in sæcula sæculorum”, a melodia se esvai de repente e se dilui numa música diferente. v (Extraído de conferência de 8/9/1979) Diliff(CC3.0) 15

Reflexões teológicas<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

mos que tolerar cada casca-grossa e<br />

cada imperfeição do arco-da-velha!<br />

Essa é a vida. No Céu o convívio é<br />

outro.<br />

“Alguns cantavam, outros tocavam.<br />

Cada nota fazia o efeito de mil instrumentos<br />

reunidos.”<br />

Imaginar um instrumento que faça<br />

o efeito de mil...!<br />

Faço aqui um parêntese todo pessoal:<br />

um dos encantos que eu tenho<br />

pelo órgão. Ao tocar cada nota,<br />

ele me dá a impressão de haver<br />

uma porção de instrumentos que tocam<br />

ao mesmo tempo. Por isso acho-<br />

-o, a perder de vista, superior a qualquer<br />

outro instrumento. Lembro-me<br />

de que quando comecei a prestar<br />

atenção nele eu pensava: “As pessoas<br />

não percebem que isso é um concerto<br />

de concertos? Falam em dó, ré,<br />

mi. No órgão há isso, mas sobretudo<br />

existe mais. No piano existe um “lá”,<br />

mas no órgão existe um universo de<br />

“lás”, acentuado ainda por aqueles<br />

registros que dão uma ideia global<br />

do universo dos sons.” É a perfeição<br />

das perfeições em matéria de<br />

harmonia.<br />

“Ouviam-se os vários graus de escala<br />

harmônica, desde os mais baixos<br />

aos mais altos que se possa imaginar.<br />

Mas tudo em acordes perfeitos.<br />

Ah! para descrever essa harmonia não<br />

bastam comparações humanas! Via-<br />

-se pelo rosto daqueles felizes habitantes<br />

dos jardins que os cantores não só<br />

experimentavam extraordinário prazer<br />

em cantar...”<br />

O que torna o canto particularmente<br />

deleitável: quando a pessoa<br />

canta um canto perfeito e notam-se<br />

nela as harmonias perfeitas da alma<br />

perfeita, na alegria perfeita.<br />

“...mas, ao mesmo tempo, sentiam<br />

um imenso gáudio em ouvir cantar os<br />

demais.”<br />

Isso é um senso de harmonia pouco<br />

comum. Um cantor gostar de ouvir outros<br />

cantores ao invés de fazer solo, não<br />

é comum... Um músico gostar de ouvir<br />

os outros tocarem tão bem ou melhor<br />

do que ele na orquestra onde apenas<br />

ele tenha um clarinete... No Céu é diferente:<br />

“Este, como canta bem! E aquele,<br />

como é estupendo! Canta ainda melhor!”<br />

É um universo sem inveja.<br />

“Mais um cantava, mais se acendia<br />

nele o desejo de cantar e quanto mais<br />

escutava, mais desejava escutar.”<br />

É a convivência e a harmonia perfeitas<br />

da alma descrita de modo a<br />

impressionar a imaginação. Está<br />

contido aqui um verdadeiro tratadozinho<br />

de Filosofia ou de Moral.<br />

Cântico sobrenatural<br />

cheio de pensamento<br />

Steven Pisano(CC3.0)<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1979<br />

“Este era um dos cantos: Salus,<br />

honor, gloria Deo Patri omnipotenti,<br />

Auctor sæculi, qui erat, qui est et qui<br />

venturus est, judicare vivos et mortuos,<br />

in sæcula sæculorum.”<br />

Podemos imaginar um pouco as<br />

inflexões. “Saudação, honra, glória a<br />

Deus Pai onipotente, Autor de todos<br />

os séculos, que era, que é e que será,<br />

e que virá julgar os vivos e os mortos<br />

nos séculos dos séculos.”<br />

Ora, cada palavra dessas contém<br />

um pensamento; e cada pensamento<br />

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