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Revista Dr Plinio 310

Janeiro de 2024

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Publicação Mensal<br />

Vol. XXVII - Nº <strong>310</strong> Janeiro de 2024<br />

O maravilhoso, uma<br />

escada para o Céu


Modelo de simplicidade<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

Como afirma São Tomás na Suma Teológica (I, q.3, a.7), Deus é<br />

absolutamente simples. Logo, a simplicidade absoluta é a causa da<br />

variedade das criaturas.<br />

Uma pedra que me maravilha debaixo desse ponto de vista é a opala,<br />

porque ela é um modelo de simplicidade. Tem uma cor leitosa, mas com<br />

isto de característico: conforme gira à luz do Sol, ela apresenta em seu<br />

interior as mais lindas e variadas cores. Isso eu reputo a glorificação da<br />

simplicidade.<br />

Em menino, quantas vezes, olhando para opalas, eu pensava:<br />

“Por que não há uma opala imensa na qual eu possa<br />

entrar e em cujas irisações eu possa morar e viajar? Eu<br />

sairia deste mundo e viveria lá, banhando-me em cores<br />

diversas, indiferente ao que os outros estivessem<br />

fazendo fora. *<br />

* Cf. Conferências de<br />

21/9/1976 e 18/5/1978.


Sumário<br />

Publicação Mensal<br />

Vol. XXVII - Nº <strong>310</strong> Janeiro de 2024<br />

Vol. XXVII - Nº <strong>310</strong> Janeiro de 2024<br />

O maravilhoso, uma<br />

escada para o Céu<br />

Na capa,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, em<br />

junho de 1992.<br />

Foto: Arquivo <strong>Revista</strong><br />

As matérias extraídas<br />

de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

— designadas por “conferências” —<br />

são adaptadas para a linguagem<br />

escrita, sem revisão do autor<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

ISSN - 2595-1599<br />

CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />

INSC. - 115.227.674.110<br />

Diretor:<br />

Roberto Kasuo Takayanagi<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Virgílio Rodrigues, 66 - Tremembé<br />

02372-020 São Paulo - SP<br />

E-mail: editoraretornarei@gmail.com<br />

Impressão e acabamento:<br />

Pigma Gráfica e Editora Ltda.<br />

Av. Henry Ford, 2320<br />

São Paulo – SP, CEP: 0<strong>310</strong>9-001<br />

Preços da<br />

assinatura anual<br />

Comum............... R$ 300,00<br />

Colaborador. .......... R$ 400,00<br />

Benfeitor ............. R$ 500,00<br />

Grande benfeitor....... R$ 800,00<br />

Exemplar avulso. ....... R$ 25,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

editoraretornarei@gmail.com<br />

Segunda página<br />

2 Modelo de simplicidade<br />

Editorial<br />

4 Confiança na amorosa<br />

Providência Divina<br />

Piedade pliniana<br />

5 Convite para uma via<br />

admirável e suprema<br />

Dona Lucilia<br />

6 Incondicional desejo<br />

de fazer o bem<br />

Reflexões teológicas<br />

9 Autênticos sonhos, perpassados<br />

da ação de Deus<br />

O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

14 Maldição da ambiguidade, choque<br />

entre mentalidade e princípio - I<br />

Calendário dos Santos<br />

18 Santos de Janeiro<br />

Hagiografia<br />

20 Um monumento de virtudes<br />

Revolução Industrial<br />

25 A superficialidade da Revolução Industrial<br />

e a verdadeira formação cultural<br />

Apóstolo do pulchrum<br />

30 O esplendor do pequeno<br />

Última página<br />

36 Porta de misericórdia<br />

que ninguém fechará<br />

3


Editorial<br />

Confiança na amorosa<br />

Providência Divina<br />

É<br />

frequente, por ocasião da passagem de ano, ouvirem-se nas mais variadas rodas termos como:<br />

“O ano que passou foi azarento”, “Espero que o destino me seja favorável no próximo ano”,<br />

“Este será o ano da sorte”...<br />

Infelizmente, não são raras as pessoas que, à meia-noite do dia 31 para o 1º, entregam-se às mais hirsutas<br />

manifestações de superstição. Alguns se conservam de pé só sobre a perna direita; outros fazem figa;<br />

outros, enfim, batem na madeira ou apertam amuletos e outros objetos supersticiosos, aos quais por vezes<br />

está misturada alguma medalhinha representando um Santo.<br />

Todas essas manifestações, além de serem impróprias a católicos, são de molde a afastar de nós numerosas<br />

graças. Em primeiro lugar, convém frisar que a sorte não existe. O que existe é a Providência<br />

de Deus.<br />

Na sua infinita sabedoria, Nosso Senhor dispõe os acontecimentos conforme melhor convém à santificação<br />

dos homens, condicionando a essa santificação as vantagens temporais de que possam gozar. Ora<br />

interferindo no curso natural dos acontecimentos, ora deixando que este siga ao sabor do livre arbítrio humano,<br />

Deus de tudo sabe tirar proveito para a sua glória e para a salvação das almas. Assim, manda-nos a<br />

Igreja que adoremos, ainda mesmo nos fatos os mais dolorosos e surpreendentes, os insondáveis e amorosíssimos<br />

desígnios divinos que escapam à frágil e miserável compreensão das criaturas.<br />

Supor que os acontecimentos, em lugar de serem dirigidos pelo Criador, são orientados por forças brutas<br />

e cegas, que se chamariam “destino”, “sorte”, “azar” etc., é colocar em lugar de Deus coisas imaginárias.<br />

É, portanto, ofendê-Lo e, por isto mesmo, provocar a ação vingadora de sua justiça.<br />

Evidentemente, a Providência de Deus não é inflexível. Pai amoroso, quis Nosso Senhor que o homem<br />

pudesse, por meio da oração, obter graças que de outra maneira não receberia. E tão grande lhe pareceu<br />

a importância da oração que, depois de ter suscitado nos discípulos o desejo de saber orar bem, o próprio<br />

Salvador lhes ensinou a oração dominical.<br />

É lícito ao homem, premido pelas tormentas espirituais ou pelo peso das desgraças temporais, levantar<br />

seus olhos a Deus pedindo-Lhe alívio, o qual Ele concede misericordiosamente, se suplicado de modo<br />

conveniente e não nocivo à nossa santificação. De quantos benefícios espirituais ou temporais se priva o<br />

homem que não sabe pedir!<br />

O Divino Mestre não se limitou a ensinar os homens a rezar. Sua Igreja instituiu o uso de certos objetos<br />

bentos, cujo porte atrai, por especial disposição da Esposa de Cristo, graças particulares, tanto espirituais<br />

quanto temporais. Estão neste caso, por exemplo, a água benta, o escapulário, as medalhas.<br />

Entretanto, atribuir semelhantes efeitos a objetos que não foram bentos pela Igreja e a cujo porte nenhuma<br />

intenção piedosa se pode ligar, como amuletos, constitui uma ofensa a Deus, pois implica em um<br />

ato de confiança na matéria inerte, em forças preternaturais ocultas e misteriosas, que não passam de fantasmagorias<br />

suscitadas pelo demônio.<br />

Assim, não contem com as graças de Deus aqueles que as pedirem por meios vãos e supersticiosos. *<br />

* Cf. O Legionário n. 434, 5/1/1941.<br />

Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />

de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />

na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />

outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


Piedade pliniana<br />

Convite para uma via<br />

admirável e suprema<br />

Flávio Lourenço<br />

Minha Mãe, Vós nos fizestes ver que o centro da vida<br />

de todo homem é o amor ao verum, ao bonum,<br />

ao pulchrum, que para um católico nada mais é<br />

do que o Sagrado Coração de Jesus, o Coração Imaculado e<br />

Sapiencial de Maria, o Divino Espírito Santo, a Santa Igreja<br />

Católica e tudo quanto, segundo a natureza ou o reluzimento da<br />

vida sobrenatural, conhecemos e o relacionamento com o próximo<br />

na participação de todos nesse amor.<br />

Sabemos que isso que nos mostrastes é, ao mesmo tempo,<br />

um convite e uma promessa; um convite a entrarmos<br />

por essa via admirável e suprema, com renúncia a todos os<br />

bens de ordem inferior, quando não vistos nessa perspectiva;<br />

promessa de que, se nos unirmos neste ponto e de<br />

modo inteiro a Vós, nos fareis atingir as culminâncias<br />

a cuja plenitude tanto desejamos chegar.<br />

À vista disto, Santa Mãe de Deus e nossa, e tendo<br />

em consideração que vosso convite é uma<br />

promessa, comprometemo-nos por inteiro a seguir<br />

essa via, pedindo-Vos, entretanto, que nos<br />

deis continuamente as forças necessárias para<br />

todos os holocaustos em que nossa aceitação<br />

importe.<br />

Tendo em vista nossas fraquezas passadas e<br />

deslumbrados com a maravilhosa misericórdia<br />

que até aqui para conosco tivestes, suplicamo-<br />

-vos que abrais ainda mais para nós os firmamentos<br />

de misericórdia que enchem os espaços incomensuráveis<br />

de vosso Sapiencial e Imaculado Coração<br />

e que tenhais para conosco, ao longo desse<br />

caminho, aquela abundância de perdões e aquela<br />

efusão de carinhos, sem o que nada podemos,<br />

nada somos, nada alcançaremos, ó Mãe.<br />

(Composta em 12/3/1989)<br />

A Virgem com o Menino<br />

(coleção particular)<br />

5


Dona Lucilia<br />

Dona Lucilia possuía<br />

um afeto penetrante,<br />

envolvente, constante,<br />

com modos de afabilidade<br />

sumamente curativos<br />

para cada circunstância.<br />

Eis um motivo intenso<br />

para se ter uma confiança<br />

especial nela e em seu poder<br />

impetratório junto de Deus.<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Compreende-se que uma alma<br />

reta, virtuosa, tendo ido para<br />

o Céu, pedindo a Deus, receba<br />

da bondade d’Ele tesouros enormes<br />

para distribuir aos outros, proporcionados<br />

à vontade que teve na<br />

Terra de fazer o bem.<br />

Poder impetratório<br />

de fazer o bem<br />

A vontade de Dona Lucilia de fazer<br />

o bem era enorme, torrencial!<br />

Eu não sei a quem ela não o tenha<br />

feito, dando um bom conselho, uma<br />

diretriz, uma orientação, um afago,<br />

uma esmola, ajeitando uma situação.<br />

Daí deduzo que no Céu ela<br />

deve pedir isso ardentíssimamente e<br />

deve ter um poder impetratório muito<br />

grande nesse sentido. Não quero<br />

com isto fazer comparação dela com<br />

outras almas que estão no Céu.<br />

É um pouquinho como se eu considerasse<br />

o Bem-Aventurado Urbano<br />

II, que teve o desejo ardente de<br />

fazer a Cruzada. No Céu, o poder<br />

impetratório dele para todos que<br />

conduzem lutas do tipo das Cruzadas<br />

é especial. O que ele quis na<br />

Terra, no Céu lhe é dado em abundância.<br />

Mamãe quis fazer o bem com<br />

muita amplitude e com uma espécie<br />

de incondicionalidade: a pessoa podia<br />

estar animada em relação a ela<br />

ou com as intenções mais pífias, mais<br />

frias, mais indiferentes, mais ingratas.<br />

O desejo dela de fazer o bem era<br />

o mesmo.<br />

De outro lado, uma compaixão!<br />

Ela sentia em si a dor dos que estavam<br />

sofrendo e, fosse qual fosse a<br />

circunstância, ela tinha jeito para dizer<br />

uma palavra, para introduzir um<br />

afeto, de um modo tão extraordinário<br />

que tudo isso eu considero, a justo<br />

título, lhe seja dado realizar ago-<br />

6


a. Isso é um motivo intenso para<br />

nós termos uma confiança especial<br />

nela, pelo seu vínculo conosco.<br />

Afeto envolvente e penetrante<br />

Qual é o ponto mais sensível para<br />

mim do benefício que ela pode nos<br />

fazer e que eu acredito que ela faz,<br />

indiscutivelmente, se pedirmos?<br />

Dela eu recebi, como filho, toda<br />

espécie de benefícios. Ao menos<br />

os que a limitação dos recursos dela<br />

permitia fazer, ela levava<br />

até o extremo. Ela era<br />

muito prudente: fazer dívida,<br />

nunca; estar com conta<br />

atrasada, nunca; mas, com<br />

o pouco que ela possuía,<br />

sabia fazer aquilo render<br />

para que nos comprouvesse<br />

– a minha irmã e a mim<br />

– ao último ponto.<br />

Eu me lembro, por<br />

exemplo, que, não tendo<br />

dinheiro para comprar certos<br />

brinquedos para nós e<br />

apesar de doente do fígado,<br />

ela às vezes passava até<br />

meia-noite – horário muito<br />

tardio para aquele tempo<br />

– ou até uma ou duas<br />

horas da madrugada, cortando<br />

umas figurinhas de<br />

dançarinas, de boizinhos,<br />

de bichos, coisas assim, em<br />

papel crepom, de acordo<br />

com modelos, e depois ela<br />

mesma os pintava fazendo,<br />

com uma espécie de pó de<br />

mica, uma cintura prateada,<br />

uma coroa dourada, e<br />

depois dava para nós brincarmos.<br />

Ela ficava até tarde fazendo<br />

isso sozinha, todo<br />

mundo dormindo. Nessa<br />

hora ela não estava rezando,<br />

mas trabalhando pelos<br />

filhos, com compreensão e<br />

elaboração de brinquedos<br />

que levavam a fazer bem à<br />

alma, extraordinárias!<br />

Isso tudo ia num ponto: é que eu<br />

sentia nela um afeto envolvente,<br />

penetrante, não no sentido de um<br />

dardo, mas de um perfume, de um<br />

aroma; penetrante e estável, que<br />

nunca tinha a menor diminuição<br />

de afeto, conforme o dia ou a hora,<br />

conforme as circunstâncias ou<br />

as condições do fígado. Era sempre<br />

o mesmo “meio-dia”, nunca havia<br />

alteração. E amparando-me em todas<br />

as condições. Fizesse eu a ela<br />

Papa Urbano II convocando a Cruzada - Basílica<br />

de Nossa Senhora de Luján, Buenos Aires<br />

o que fizesse, eu podia contar com<br />

ela até o fim.<br />

Reflexo da infinita<br />

bondade de Deus<br />

Danilo I.<br />

Não é fácil imaginar até que ponto<br />

isso estabiliza, faz bem à alma,<br />

areja, – para usar um verbo que não<br />

existe – “desintumora”, ou seja, cura<br />

o tumor de uma certa solidão da alma<br />

de quem nunca encontrou uma<br />

coisa assim e para a qual a<br />

vida acaba sendo uma coisa<br />

anti-axiológica.<br />

Agradava-me muito ver<br />

como isso não ficava nela.<br />

Ela dava muito valor a que<br />

a quiséssemos bem, mas se<br />

não a quiséssemos, a atitude<br />

dela era a mesma, de<br />

um lado. De outro lado, ficar<br />

com rancor, com um<br />

ponto dolorido, absolutamente<br />

não. A confiança<br />

que se podia ter nela era<br />

como um eixo do mundo.<br />

Todos sabem quanto é<br />

raro encontrar isso. Desde<br />

a primeira infância, sendo<br />

carregado nos braços,<br />

com penetração de criança,<br />

perceber isso é um benefício<br />

que não tem palavras.<br />

Creio que, se lhe pedirmos,<br />

ela nos faz sentir<br />

isso com toda a seriedade,<br />

toda a solidez.<br />

Eu percebia que a fonte<br />

disso não estava nela, mas<br />

no Sagrado Coração de<br />

Jesus, por meio de Nossa<br />

Senhora. Portanto, a fonte<br />

estava no Absoluto, em<br />

Deus mesmo. E era como<br />

que apalpar a própria bondade<br />

infinita de Deus. Isso<br />

era muito benfazejo.<br />

Creio que, no ponto de<br />

partida de grande número<br />

de defeitos e de crises espirituais,<br />

coisas que uma pes-<br />

7


Dona Lucilia<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

soa possa ter, no fundo há essa sensação<br />

de isolamento parcial ou total. A<br />

verdade é que, quando um estilhaço<br />

está quebrado, o conjunto não vale nada.<br />

Isso ou é completo ou não é nada.<br />

Isso foi o que me levou a colocá-<br />

-la, desde pequeno, acima de todas as<br />

pessoas, abaixo de Deus, nos devidos<br />

termos abaixo da Igreja, das pessoas<br />

que constituem a direção da Igreja<br />

que, evidentemente, eu colocava<br />

no mais alto ponto de minha admiração<br />

e confiança. Ela mesma me fazia<br />

ver assim, porque ela soprava para lá,<br />

não se punha como termo final.<br />

Relações baseadas no<br />

Sagrado Coração de Jesus<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1987<br />

Creio ser uma experiência para se<br />

fazer, pois toda a alma se abre com<br />

uma outra concepção para a vida e<br />

para uma outra ideia do que poderia<br />

ser o Reino de Maria. Porque no<br />

Reino de Maria as verdadeiras relações<br />

de afeto serão baseadas no Sagrado<br />

Coração de Jesus, no Sapiencial<br />

Coração de Maria. São relações<br />

muito mais próximas disso do<br />

que podemos imaginar e que se fazem<br />

sentir de um modo ou de outro<br />

em todas as articulações da vida, fazendo-nos<br />

entender como existirão<br />

no Reino de Maria certas situações<br />

que, fora desse clima, imaginaríamos<br />

incompreensíveis.<br />

Enfim, para todo esse gênero<br />

de coisas ela teria atendimento,<br />

teria compreensões, teria explicações,<br />

com modos de afabilidade<br />

sumamente curativos<br />

para cada circunstância.<br />

Outro ponto: ela não<br />

gostava que se caçoasse das<br />

pessoas – crianças são levadas<br />

a caçoar. A tendência dela<br />

era de intervir com compaixão<br />

e dizer: “Coitado! Veja, tem isto,<br />

tem aquilo.” Ela sabia mostrar um lado<br />

por onde se compreendia que não<br />

se devia caçoar daquela pessoa.<br />

Por natureza, Rosée, eu e a nossa<br />

prima, tínhamos línguas afiadíssimas<br />

e os comentários fazíamos na presença<br />

dela. Ela ia ouvindo<br />

e conversando, como<br />

uma mãe faz com seus<br />

filhos. Quando chegava<br />

uma caçoada mais pontuda<br />

– e eu era dos líderes<br />

da ponta – dizia:<br />

— Filhão, não é assim,<br />

você também pense<br />

tal coisa.<br />

— Mas, mamãe,<br />

porque tem isso<br />

e aquilo...<br />

— Mas veja tal<br />

coisa...<br />

Outro aspecto era a<br />

melodia da voz dela...<br />

Não era própria para<br />

cantar num teatro,<br />

mas era cheia de afabilidade,<br />

por assim dizer,<br />

retórica, de uma<br />

conversa individual.<br />

Uma coisa extraordinária!<br />

Tudo isto deve nos propiciar confiança<br />

no sermos atendidos. Também<br />

outro ponto: se assim era ela,<br />

como será Nossa Senhora? Se nós tivéssemos<br />

conhecido Nossa Senhora…!<br />

Aí a “Salve Regina”, o “Lembrai-Vos”<br />

e tantas outras orações tomam<br />

todo seu valor, todo seu sabor,<br />

toda sua força de confiança! v<br />

(Extraído de conferência de<br />

25/4/1987)<br />

Flávio Lourenço<br />

8


Reflexões teológicas<br />

Angelo L.<br />

Autênticos sonhos,<br />

perpassados da ação de Deus<br />

Devemos saber interpretar as descrições celestes dos sonhos de<br />

São João Bosco de modo a sentir o pulchrum das narrações, porém,<br />

sem remover o senso da combatividade e a ideia da batalha, do<br />

trágico, instalados no mar imenso e supremo da felicidade eterna.<br />

Vamos juntos passear pelos<br />

sonhos de Dom Bosco.<br />

Serão realmente sonhos?<br />

Quem os lê percebe bem tratar-se<br />

de autênticos sonhos, mas dos<br />

quais Deus Se servia para lhe fazer ver<br />

uma porção de coisas próprias ao Céu.<br />

Sonhos de significado<br />

sobrenatural<br />

Sabemos que no Antigo e no Novo<br />

Testamento se deram diversos<br />

episódios com sonhos: foi em sonhos<br />

que um Anjo apareceu a São José<br />

e lhe explicou o mais indecifrável,<br />

mais alto, nobre e belo dos mistérios<br />

que houve na História.<br />

Por aí podemos compreender que<br />

o grande São João Bosco tenha tido<br />

comunicações de Deus através<br />

de sonhos. Tudo quanto ele narra<br />

parece vindo do Céu. E o lusco-fusco<br />

da linguagem empregada por ele<br />

para transmiti-los a seus filhos espirituais<br />

parece traduzir bem a verdadeira<br />

situação dele, que não tem visões<br />

claras. Mas nota-se que são coisas<br />

comunicadas pelo sobrenatural,<br />

as quais devem ser tomadas com espírito<br />

de fé por aqueles que as leem.<br />

São João Bosco chamava seus filhos<br />

espirituais de “birichini”. Eu<br />

não conheço a língua italiana e não<br />

sei bem o que significa, mas parece-<br />

-me que quer dizer meninote, rapazola,<br />

adolescente.<br />

São João Bosco teve grupos enormes<br />

de meninos que passaram e se<br />

9


Reflexões teológicas<br />

santificaram sob o<br />

seu olhar. Ele foi<br />

chamado a educar,<br />

sobretudo, as classes<br />

mais modestas da população.<br />

Sem a luta, a<br />

vida é insípida<br />

e sem graça<br />

Flávio Lourenço<br />

O sonho sobre a<br />

antecâmara do Céu<br />

deixou-me numa perplexidade<br />

porque,<br />

quando comecei a lê-<br />

-lo, fui me lembrando<br />

das fisionomias<br />

que, com tanto afeto<br />

e tanta estima, tenho<br />

diante dos olhos<br />

nas reuniões de sábado<br />

à noite. Não me<br />

lembrava da fisionomia<br />

deste ou daquele<br />

individualmente,<br />

mas do conjunto, da<br />

“orquestração” fisionômica.<br />

Assim como<br />

se pode guardar<br />

a lembrança de uma<br />

orquestra tocando sem individualizar<br />

cada instrumento, do mesmo modo<br />

não individualizei ninguém. Mas eu<br />

me perguntava que efeito isso produziria<br />

nas almas daqueles que me ouviriam.<br />

O sonho descreve um desenrolar<br />

de harmonias, de gentilezas, de afabilidades,<br />

de esplendores, onde tudo<br />

existe e se relaciona de modo magnífico<br />

com tudo. Tinha a impressão de<br />

que, descrita a cena, à primeira vista<br />

ela seria muito bonita, mas que,<br />

de outro lado, causaria estranheza e<br />

uma sensação de insipidez por não<br />

ter o choque, a contradição, não ter a<br />

batalha nem a luta e, por isso, produzir<br />

a sensação de uma vida não muito<br />

apetecível.<br />

Vou dar um exemplo. Nós vivemos<br />

vencendo cacofonias. Há pouco,<br />

Sonho de São José - Museu Diocesano de Brescia, Itália<br />

enquanto alguns proclamavam, se<br />

naquele momento tivesse passado o<br />

caminhão da limpeza pública fazendo<br />

seu barulho característico, todos<br />

seriam obrigados a fazer uma seleção<br />

interna para não prestar atenção<br />

naquilo e continuar a ouvir a proclamação.<br />

Isso é um esforço subconsciente,<br />

mas dolorido, interno, que<br />

desmembra da alma uma categoria<br />

de impressões rejeitadas e seleciona<br />

outra bem-amada. Essa rejeição tem<br />

um vigor, uma força e uma varonilidade,<br />

tem um quê de áspero, de rude,<br />

capaz de conferir aquela forma<br />

especial de nostalgia que um velho<br />

lobo do mar tinha quando navegava<br />

em mares sem tempestades nem acidentes.<br />

Os navegantes dizem que uma<br />

coisa é navegar no Oceano Atlântico,<br />

no imenso Oceano<br />

Pacífico, e outra,<br />

no Mediterrâneo. O<br />

Atlântico é um mar<br />

grande e misterioso,<br />

e a todo momento<br />

se modifica; depois<br />

de deitar os sorrisos<br />

mais encantadores e<br />

afagar com as placidezes<br />

mais atraentes,<br />

de repente se transforma,<br />

não se sabe<br />

como, e cria problemas,<br />

fazendo balançar<br />

o navio, dando<br />

dor de cabeça a todos<br />

os tripulantes. E<br />

se a viagem é na zona<br />

norte, lá aparecem<br />

os icebergs; se é<br />

na zona do meridiano,<br />

são os calores desoladores,<br />

desalentadores,<br />

desanimadores,<br />

arrasadores;<br />

mais para o sul, começa<br />

de novo a natureza<br />

com seus bafos<br />

gélidos. Assim o<br />

oceano tem suas lutas,<br />

seus rangidos, seus problemas.<br />

E um velho lobo do mar que viajasse<br />

no Mediterrâneo, muito mais<br />

tranquilo, com seu mar azul, com suas<br />

belezas mais civilizadas, menos<br />

cheias de incógnitas, menos fascinantes<br />

e mais proporcionadas ao homem,<br />

ele poderia sentir-se navegando<br />

insipidamente num barco dentro<br />

de uma piscina ou numa dessas represas<br />

artificiais e sem graça, que, no<br />

fundo, é uma espécie de imensa piscina<br />

colocada entre montanhas, onde<br />

a água não se move, tem uma placidez<br />

sem gosto, sem graça, e em que<br />

as pessoas remam e remam. Tem-<br />

-se vontade de perguntar a esse navegante<br />

de represa: “Você não tem<br />

com que lutar, não tem com que se<br />

entreter! Seu divertimento é estar no<br />

meio da água. Você pelo menos sabe<br />

10


apreciá-la? Não sabe? Então, o que<br />

você está fazendo aqui? É o que você<br />

faz por toda parte, ou seja, nada.<br />

Este é você!”<br />

A natureza humana<br />

pede a luta<br />

Ora, é legítimo que o lobo do mar<br />

sinta saudade das tempestades, sinta<br />

a nostalgia da luta. E se lhe propuserem<br />

uma viagem na qual se ofereça<br />

o seguinte: “Você vai sair de Barcelona<br />

e vai parar em Alexandria, na<br />

mais tranquila das viagens. O mar<br />

vai ser azul e liso, não haverá um vagalhão,<br />

nada irá acontecer; você poderá<br />

dormir doze horas e o resto é<br />

bebericar; tem jogo de dados etc.”<br />

É compreensível que ele hesitasse e<br />

dissesse: “Vale a pena ir?”<br />

Há alguma coisa na natureza humana<br />

nesta Terra que pede a luta, o<br />

ríspido, o choque, a força. E nós devemos<br />

saber interpretar<br />

de tal maneira<br />

os sonhos de São<br />

João Bosco com essas<br />

descrições celestes,<br />

que possamos<br />

sentir o pulchrum delas,<br />

mas sem remover<br />

o senso de nossa<br />

combatividade e<br />

da ideia da batalha,<br />

do trágico, instalados<br />

no mar imenso e<br />

supremo da felicidade<br />

eterna. Sem que<br />

essas duas coisas estejam<br />

conjugadas,<br />

nós não nos sentiremos<br />

em casa nem tomaremos<br />

o gosto da<br />

descrição celeste.<br />

Duas razões para<br />

se desejar a luta<br />

Como seria belo<br />

nos imaginar navegando<br />

num veleiro,<br />

num belo dia todo azul, com mar<br />

azul, no mês de maio, atravessando<br />

o Oceano Atlântico indo para a Europa.<br />

Oh! Que coisa agradável! No<br />

percurso já iríamos pensando em<br />

nossos amigos portugueses nos esperando<br />

em Lisboa; nossos amigos espanhóis,<br />

em Barcelona; depois, atracaríamos<br />

na França e atravessaríamos<br />

o doux pays de France para visitar<br />

nossos amigos franceses. Em seguida<br />

iríamos à Itália e passaríamos<br />

para a Áustria e para a Alemanha.<br />

Que magnífica viagem seria se todos<br />

nós estivéssemos no mesmo transatlântico!<br />

Imaginem um dia azul, temperatura<br />

moderada, ventos que são brisas<br />

e nós passeando no tombadilho do<br />

barco de um lado para o outro, gozando<br />

a alegria do mútuo convívio.<br />

Temos alegria de estarmos a bordo<br />

juntos uns com os outros, sermos<br />

um só e sermos muitos. Quando nos<br />

encontramos com cada um temos a<br />

sensação de ser uma novidade; correm<br />

os burburinhos, correm os boatos,<br />

mas sem críticas; todo mundo<br />

está contente, não há rivalidades entre<br />

estados do Brasil, não há zum-<br />

-zum: “Olha tal estado assim, tal outro,<br />

aquele, cuidado!”, mas há uma<br />

plena e serena confiança; não há rivalidades<br />

entre nações, todos somos<br />

um só. Como seria agradável e deleitável<br />

esse dia!<br />

Entretanto, é preciso entender bem<br />

que a alegria desse dia seria sensível a<br />

nós se o gozássemos entre duas tempestades.<br />

Quer porque nós fomos concebidos<br />

no pecado original e por causa<br />

disso nossa natureza range e procura<br />

uma consonância com o rangido, e<br />

aqui é um defeito; quer porque somos<br />

chamados para a luta e nela somos<br />

convidados a uma confrontação pela<br />

qual sentimos que chegamos ao extremo<br />

limite da nossa vocação e da nossa<br />

realização. Procuramos<br />

e desejamos esse<br />

limite porque o homem<br />

deve desejar a<br />

perfeição. E o extremo<br />

limite de um homem<br />

é o extremo limite<br />

de suas virtudes,<br />

o qual se chama santidade.<br />

Aí se compreende<br />

que um homem<br />

possa e deva desejar<br />

isso.<br />

Flávio Lourenço<br />

Efeitos trágicos<br />

da Revolução<br />

Há uma terceira<br />

razão, negra como<br />

o pecado original,<br />

que nos faria também<br />

estranhar essas<br />

harmonias celestes.<br />

É a Revolução. Ela<br />

implanta no espírito<br />

do homem contemporâneo<br />

uma<br />

disposição para não<br />

11


Reflexões teológicas<br />

gostar do maravilhoso, para gostar<br />

do banal, do vulgar; para dizer tudo<br />

numa palavra: gostar do chulo.<br />

A todo momento, tudo em torno de<br />

nós vai se transformando. No fundo,<br />

nós todos estamos sendo devorados<br />

pela atração do abismo e vamos<br />

caminhando para o abismo da<br />

negação de toda verdade, através de<br />

um relativismo insondável; o abismo<br />

da negação de todo bem, através<br />

de um permissivismo sem conta;<br />

a negação de todo pulchrum, através<br />

de uma indiferença indescritível<br />

em relação ao que é maravilhoso;<br />

quase se diria a preguiça do maravilhoso<br />

e do alçar-se até os mais elevados<br />

páramos da admiração; e preferimos<br />

ficar no banal.<br />

É preciso lembrar que a Revolução<br />

nos conduz aos horrores que<br />

conhecemos. Ela nos dá o gosto do<br />

feio, do desordenado, do asqueroso,<br />

do contraditório, do chocante, e corre-se<br />

o risco de as pessoas ficarem<br />

habituadas a isso. De maneira que,<br />

Flávio Lourenço<br />

Gabriel K.<br />

quando elas vão tomar<br />

contato com as coisas<br />

celestes, sentem também<br />

o desejo, a nostalgia<br />

do prazer péssimo,<br />

da coisa chocante, contraditória,<br />

do errado; a<br />

nostalgia de um antegozo<br />

do Inferno.<br />

Tendo bastante clara<br />

a presença desse fator,<br />

poderemos nos situar<br />

bem nas descrições<br />

do sonho de Dom Bosco.<br />

Ele descreve verdadeiras<br />

maravilhas, mas<br />

para uma “birichinada”<br />

que ainda não estava<br />

imersa na civilização<br />

moderna. Estava na antessala.<br />

Na sombria moradia dos horrores, há<br />

uma diferença entre a câmara e a antecâmara.<br />

E, apesar de tudo, a situação<br />

do tempo dele era bem diferente<br />

da nossa.<br />

Aquilo que poderia maravilhar e<br />

encantar os “birichini” dele, até que<br />

ponto aos meus jovens, sem essa introdução,<br />

não causaria uma sensação<br />

de certa inadaptação e insipidez?<br />

Eu os ajudo, então, a detectarem<br />

em si as razões explicáveis, legítimas<br />

e nobres, que vêm da vocação<br />

e do gosto da luta; a razão não culposa,<br />

mas lamentável, que é o pecado<br />

original: no Paraíso terrestre não<br />

havia essas coisas e a razão culpável<br />

e péssima da adesão à Revolução.<br />

12


Todas essas coisas se somam para<br />

produzir uma espécie de defasagem<br />

que eu não queria deixar de acentuar<br />

antes de tratar do assunto.<br />

Maravilhamento na<br />

antecâmara do Céu<br />

Feita esta introdução, descrevo o<br />

que se passou.<br />

São João Bosco dorme e é introduzido<br />

no Céu Empíreo. É um ambiente<br />

material no qual há belezas<br />

que o maravilham e o deixam deslumbrado.<br />

Ele encontra ali uma coorte<br />

enorme de meninos que ele formou<br />

e santificou, e dela se destaca,<br />

com especial brilho, São Domingos<br />

Sávio, um dos discípulos perfeitos<br />

que esse santo vitorioso e triunfante<br />

teve. O pequeno discípulo entra<br />

numa interlocução com São João<br />

Bosco e lhe diz: “Eu vou fazer-vos<br />

ver mais um pouco, porque mais não<br />

aguentareis”, dando a entender que<br />

aquela parte do Céu é onde a natureza<br />

de quem não morreu ainda<br />

aguenta estar – a outra parte é tão<br />

bela que o homem ali não aguenta –<br />

mas ainda é Céu material. Não é a<br />

visão de Deus face a face.<br />

E há um fenômeno qualquer no<br />

sonho que é tão empolgante, tão superior<br />

à carga emocional do homem,<br />

que São João Bosco dá um grito tão<br />

alto que acorda o padre que dormia<br />

na cela contígua à dele. É um grito<br />

de maravilhamento, onde o instinto<br />

de conservação dele brada; e ele<br />

acorda, vendo-se, então, restituído a<br />

esta Terra.<br />

Compilação dos sonhos<br />

Faço duas ressalvas. Em primeiro<br />

lugar, os sonhos de São João Bosco<br />

são editados pelos padres salesianos<br />

e são autênticos, mas nas “Boas-Noites”<br />

de Dom Bosco ele contava esses<br />

sonhos e havia muitos que tomavam<br />

nota. Não havia gravador naquele<br />

tempo. Um bom número de anos<br />

após a morte dele, creio que vinte<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1979<br />

anos depois, talvez mais, por determinação<br />

dos superiores, um padre<br />

salesiano recolheu as anotações de<br />

todos, fez uma compilação dos sonhos<br />

para colocar num só livro e teve<br />

bom resultado. Entretanto, ele fez<br />

um desastre: pegou todas as anotações<br />

e as queimou. Hoje o original é<br />

essa compilação. Ora, quem faz uma<br />

compilação, faz uma seleção. Compilar<br />

é, até certo ponto, selecionar.<br />

Que tudo isso tenha sido sonhado<br />

por São João Bosco é certo. Mas, terá<br />

sonhado só isso? Com que critério<br />

foi feita a seleção? É legítimo que<br />

nossa segurança seja bem menor. E,<br />

portanto, podemos nos perguntar se<br />

o Céu é só isso.<br />

Há ainda uma segunda questão:<br />

as coisas que ele via em sonho eram<br />

como ele descreve ou eram símbolos<br />

de uma realidade mais alta que devemos<br />

imaginar? Tudo o que ele viu<br />

é material, não há dúvida. As belezas<br />

do Céu material simbolizam belezas<br />

de alma. Será que as coisas materiais<br />

que ele descreveu são como foi descrito<br />

ou simbolizam uma matéria diferente?<br />

Ainda não encontrei uma<br />

elucidação para esse ponto.<br />

Li este sonho com muita atenção<br />

e parece-me, ao menos no tocante a<br />

ele, que reproduz realidades materiais<br />

como ele as viu. Portanto, salvo<br />

melhor juízo – talvez os próprios<br />

teólogos salesianos tenham elaborado<br />

uma explicação para isso –, parece-me<br />

que a coisa pode ser entendida<br />

materialmente.<br />

Vamos ver a descrição dessa antecâmara<br />

do Céu e ver esse silvo, esse<br />

corisco, esse relâmpago do que poderíamos<br />

chamar o Céu mais alto,<br />

que passa num zigue-zague, e vamos<br />

fazer a análise de tudo isso, pois é o<br />

futuro bem-aventurado para o qual<br />

Nossa Senhora nos convida.<br />

Com a devida reverência, podemos<br />

entrar no encalço de São João<br />

Bosco e de São Domingos Sávio.v<br />

(Continua no próximo número)<br />

(Extraído de conferência<br />

de 8/9/1979)<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

13


O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Maldição da ambiguidade,<br />

choque entre<br />

mentalidade e princípio - I<br />

Há homens medíocres que fazem do gozo da vida seu único ideal.<br />

Vivendo comodamente, sem heroísmos, sem sacrifícios e sem grandes<br />

desejos, eles constituem para si uma verdadeira mentalidade, oposta<br />

aos ensinamentos da doutrina católica. Em análise minuciosa de uma<br />

obra literária, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> nos adverte contra essa falsa concepção.<br />

Vamos examinar uma poesia<br />

retirada do artigo<br />

O príncipe encarcerado.<br />

Apontamentos para um perfil psicológico<br />

de Salazar, por Barradas de Oliveira,<br />

na Obra Quem era Salazar?, da<br />

Editora Resistência, de Lisboa. 1<br />

Expressão da mentalidade<br />

“heresia-branca”<br />

O soneto é atribuído a Plantin 2 ,<br />

poeta francês do século XVI.<br />

Flávio Lourenço<br />

14<br />

Avoir une maison commode, propre et belle.<br />

Un jardin tapissé d’espaliers odorants.<br />

Des fruits, d’excellent vin, peu de train, peu d’enfants,<br />

Posséder seul sans bruit une femme fidèle.<br />

N’avoir dettes, amour, ni procès ni querelle,<br />

Ni de partage à faire avec ses parents,<br />

Se contenter de peu, n’espérer rien des grands,<br />

Régler tous ses desseins sur un juste modèle.<br />

Vivre avec franchise et sans ambition,<br />

S’adonner sans scrupule à la dévotion,<br />

Dompter ses passions, les rendre obéissantes.<br />

Conserver l’esprit libre, et le jugement fort,<br />

Dire son chapelet en cultivant ses entes,<br />

C’est attendre chez soi bien doucement la mort.<br />

Escritor - Museu da Revolução<br />

Francesa, Domaine de Vizille, França


Creio ser difícil haver<br />

uma poesia que exprima<br />

tão bem aquilo que chamamos<br />

o ideal da “heresia<br />

branca” 3 .<br />

Ausência da Cruz<br />

na vida do medíocre<br />

O autor descreve um<br />

tom de vida no qual está<br />

presente certa forma de<br />

virtude e de piedade: ele<br />

fala do dominar as próprias<br />

paixões, do ter firmeza<br />

de juízo para ponderar<br />

as coisas, dos deveres de<br />

piedade bem cumpridos,<br />

da esposa fiel. Ao menos<br />

em linhas gerais, ele apresenta<br />

uma vida que, na primeira<br />

impressão, é conforme<br />

aos Mandamentos,<br />

porque nada se nota que<br />

seja pecado.<br />

Dir-se-ia que todos os<br />

Mandamentos da Lei de<br />

Deus estão cumpridos. Eu<br />

diria que é verdade, exceto<br />

o Primeiro. Porque está<br />

excluída inteiramente a ideia de<br />

que o escritor é um membro da Igreja<br />

Militante, posto na Terra para ser<br />

provado, que há de deparar-se com<br />

tragédias, com coisas duras e difíceis,<br />

sendo preciso enfrentá-las com<br />

generosidade; que não basta viver só<br />

com ideal de esperar “doucement la<br />

mort” e depois ir para o Céu, mas deve-se<br />

empenhar no serviço de Deus,<br />

de uma causa nobre, deve-se lutar.<br />

Estas ideias estão ausentes e o<br />

que ele apresenta é a vidinha medíocre,<br />

rasa, de quem, em última análise,<br />

pensa o seguinte: “Contanto que eu<br />

tenha nesta vida o mínimo de amolação<br />

e depois consiga um lugarzinho<br />

pequeno no Céu, eu estou arranjado.<br />

Na Terra, quero virtude com o mínimo<br />

de sofrimento; no Céu… um pouquinho<br />

de Céu já basta. O que almejo<br />

é chegar até lá sem amolações.”<br />

“O violeiro” - Pinacoteca do Estado de São Paulo<br />

Onde está a Cruz de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo que nós tanto amamos?<br />

Está completamente ausente.<br />

Gostosuras vazias e<br />

irreais da vida<br />

Vale a pena analisarmos com que<br />

comunicatividade o poeta faz saborear<br />

todas as “gostosurazinhas” da<br />

vida. O pensamento que há por detrás<br />

é maléfico, mas a poesia enquanto<br />

tal não está malfeita; ela não<br />

é um golpe de gênio, mas tem algum<br />

valor literário. Vejamos:<br />

“Avoir une maison commode, propre<br />

et belle.”<br />

“Ter uma casa cômoda, limpa e<br />

bela.” A justaposição desses três adjetivos<br />

faz-nos sentir a casa, a qual<br />

não é um palácio, nada tem de grande,<br />

é um edifício para “nhonhô” 4 , e<br />

por isso a característica é<br />

“cômoda”. E o resto vem<br />

apresentado depois.<br />

“Un jardin tapissé d’espaliers<br />

odorants.”<br />

Espaliers odorants são<br />

renques de árvores odoríferas,<br />

plantadas ao longo<br />

de um muro grande. Naquele<br />

tempo os terrenos<br />

eram muito menos caros<br />

do que hoje, porque as cidades<br />

eram menos povoadas,<br />

e ter um jardim grande<br />

com espaldeiras era<br />

conforto, não luxo.<br />

Está tudo apresentado<br />

no termo de uma vida média,<br />

do medíocre que pode<br />

sair de sua casa cômoda,<br />

para rezar seu Rosário<br />

caminhando tranquilo de<br />

um lado para outro, debaixo<br />

das árvores odoríferas,<br />

sem nenhum sacrifício,<br />

sem heroísmo, sem grandes<br />

generosidades…<br />

“Des fruits, d’excellent<br />

vin, peu de train, peu d’enfants,”<br />

“Frutas, vinhos excelentes.” É o<br />

único superlativo do soneto, o qual<br />

aparece para qualificar o vinho. A<br />

França é a terra dos grandes vinhos,<br />

do vinho excelente – tanto mais naquele<br />

tempo –, e o tê-los estava ao<br />

alcance da mão ou da mesa de qualquer<br />

homem confortável.<br />

“...peu de train...”<br />

Train o que é? Ele quis dizer<br />

“trem” não como objeto de locomoção,<br />

mas para dar expressão à ideia<br />

de vida pouco representativa, pouco<br />

brilhante, pouco decorativa. É a vidoca<br />

do “nhonhô”.<br />

“...peu de train, peu d’enfants,”<br />

Naquele tempo não havia limitação<br />

da natalidade, os anticonceptivos<br />

não existiam. Trata-se de um voto para<br />

que Deus concedesse poucos filhos.<br />

Ora, na Escritura se considera exatamente<br />

o contrário: a prole abundante<br />

Gabriel K.<br />

15


O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Flávio Lourenço<br />

A morte e o homem rico - Museu<br />

Diocesano, Freising, Alemanha<br />

é uma bênção de Deus. “Fulano morreu<br />

deixando uma grande descendência…”<br />

É uma graça! Este egoísta quer<br />

ter poucas crianças para estar à vontade<br />

e despreocupado em sua casa.<br />

“Posséder seul sans bruit une femme<br />

fidèle.”<br />

“Possuir só uma mulher fiel, sem ruídos”<br />

significa que ele não quer aparecer<br />

aos olhos de ninguém, mas viver<br />

apenas dentro de seu mundinho, como<br />

a tartaruga está dentro de sua carapaça.<br />

No fundo ele quer ter uma mulher que<br />

não o aborreça, não crie caso e esteja<br />

dentro de casa ao serviço dele.<br />

Homem de poucas relações,<br />

sem sonhos nem aspirações<br />

gio bater tique-taque, esperando<br />

a hora das refeições<br />

e do sono, razão única<br />

de seu viver. Não há<br />

idealismo nenhum!<br />

“Ni de partage à faire<br />

avec ses parentes,”<br />

“Não ter mais inventários<br />

para ter brigas com os<br />

parentes.” Partage é partilha.<br />

Tudo o que ele tinha<br />

que herdar já herdou, está<br />

encaixadinho, direitinho,<br />

não deseja mais nada.<br />

“Se contenter de peu,<br />

n’espérer rien des grands,”<br />

“Contentar-se com o<br />

pouco, não esperar nada<br />

dos grandes.” Quer dizer,<br />

não ser dos homens que esperam,<br />

e não esperar nada<br />

dos grandes, do rei, da rainha,<br />

do ministro, do Conselho de Estado,<br />

dos duques… “Que eles vivam para<br />

lá, não quero saber. Tenho minha ‘casinhoca’,<br />

meu patrimoniozinho no qual<br />

vivo; o resto que se arranje.”<br />

“Régler tous ses desseins sur un juste<br />

modèle.”<br />

“Regular todos os seus desígnios<br />

segundo um modelo correto.” Na<br />

proporção desta vidoca, não ter aspirações.<br />

Esta é a definição do homem<br />

que não sonha, é a definição do “macro-bios”<br />

e do “micro-Mamon” 5 , ou<br />

seja, do ter uma grande vida com um<br />

pouquinho de dinheiro, o suficiente<br />

para se sentir – volto a dizer – como<br />

a tartaruga que se acomoda dentro<br />

de sua carapaça: “Aqui está bem.”<br />

“Vivre avec franchise et sans ambition,”<br />

Franchise, no francês arcaico equivaleria<br />

à franquia. Significa ter certa<br />

liberdade de gastar, sem se afligir<br />

em contar os tostões; mas tudo dentro<br />

desse modelinho, longe de passar<br />

apertos nem ambicionar nada. “Não<br />

quero mais do que sou.”<br />

A grande mentira de<br />

uma vida sem dor<br />

“S’adonner sans scrupule à la dévotion,”<br />

“Entregar-se à devoção sem escrúpulo”,<br />

porque o escrúpulo atormenta<br />

e é preciso ter uma devoção<br />

gostosa. Derreter-se diante de uma<br />

imagem e ir embora contente: “Tem<br />

o trambolho da morte, é verdade,<br />

mas é um susto. A imagem diante<br />

da qual eu estive na Terra me servirá<br />

de resseguro no Céu. Tudo se arranja.”<br />

Há nisso uma hipocrisia e não sei<br />

a que Purgatório esse estado de espírito<br />

é capaz de levar…<br />

Paulo Fabrício<br />

“N’avoir dettes, amour, ni procès ni<br />

querelle,”<br />

“Não ter dívida, não ter vínculos<br />

amorosos, não ter processos judiciais,<br />

não ter briga com ninguém.” É ser<br />

uma pessoa sem ligação, sem ter muitas<br />

visitas, sem visitar alguém. Quando<br />

quer, vai cheirar flores debaixo de<br />

suas espaliers; o resto do tempo permanece<br />

em casa acocorado, se balançando,<br />

vendo o tempo passar, o reló-<br />

A morte do pecador - Igreja do Senhor do Bonfim, Salvador<br />

16


“Dompter ses passions, les<br />

rendre obéissantes.”<br />

“Dominar suas paixões, torná-las<br />

obedientes.” O que está<br />

insinuado aqui é que a vida espiritual<br />

tem, no começo, umas<br />

certas encrencas, mas depois<br />

de dominar os tais impulsos<br />

contra os quais é preciso fazer<br />

esforço, pode-se levar uma vida<br />

gostosinha… Na cadeira de<br />

balanço. É como um cachorro<br />

que amansou: mora dentro de<br />

casa sem perturbar ninguém.<br />

“Conserver l’esprit libre, et<br />

le jugement fort,”<br />

“Conservar o espírito livre”<br />

é um convite a ter o espírito desanuviado<br />

e desinibido, o qual<br />

se move com facilidade para<br />

analisar as coisas. “Juízo forte”<br />

é a única menção na qual aparece<br />

a palavra “forte”, indicando<br />

o não se deixar bobear, mas<br />

ter um cadeado trancado em<br />

tudo e pensar de maneira a dar<br />

nessa mentalidade errada.<br />

“Dire son chapelet en cultivant ses<br />

entes,”<br />

“Rezar seu Rosário cultivando os<br />

enxertos de suas plantações.” É o<br />

jardim gostoso que tem suas espaldeiras<br />

e outras tantas plantas cultivadas<br />

por ele.<br />

“C’est attendre chez soi bien doucement<br />

la mort.”<br />

Bien doucement la mort! Em certo<br />

momento a morte chega, mas ele<br />

a apresenta como sendo “dulçorosona”;<br />

é um morrer com glicerina e<br />

acabou-se.<br />

Todos esses pensamentos conduzem<br />

à podridão de costumes e contêm<br />

em si uma grande mentira.<br />

As batalhas e dificuldades<br />

nos são inevitáveis<br />

A Providência Divina não permite<br />

que alguém leve uma vida fácil como<br />

o poeta a apresenta. Querer dar a entender<br />

que se vive assim é burlar-se e<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1981<br />

enganar os outros; porque é inevitável<br />

que, de vez em quando, irrompam<br />

as paixões ardentes, venham tentações<br />

fortíssimas do demônio que assaltam<br />

o indivíduo. E, ou ele batalha<br />

com ardor, ou vai ao arrastão.<br />

E, para que isto não se suceda, é<br />

preciso que ele seja habitualmente<br />

forte, porque a tentação vem como<br />

um ladrão, assalta de um instante<br />

para outro – em qualquer idade!<br />

– e até na hora da morte, momento<br />

em que as tentações costumam ser<br />

mais terríveis do que as enfrentadas<br />

em vida.<br />

A Providência permite dificuldades<br />

para provar o homem: será uma<br />

doença, em si ou em sua mulher ou<br />

no filho; será um vizinho que arma<br />

encrenca durante a noite, foge para<br />

a casa dele, ele se vê arrastado a um<br />

processo, é acusado…<br />

Quando não é isso, será ele viver<br />

sob um desprezo universal, produzindo<br />

ao seu redor o desinteres-<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

se e ficar reduzido a uma pequena<br />

estatura em comparação<br />

com os outros. Pessoa assim<br />

nem se olha. Ele torna-se<br />

um dentre os despercebidos,<br />

os isolados, não só porque se<br />

isolou, mas porque ninguém<br />

o quer. E isso produz a amargura<br />

que bem se pode imaginar.<br />

v<br />

(Continua no próximo número)<br />

(Extraído de conferência<br />

de 12/6/1981)<br />

1) O artigo mencionado é parte<br />

integrante da obra que reúne<br />

textos diversos sobre Salazar, o<br />

famoso estadista português. Cf.<br />

BARRADAS DE OLIVEIRA.<br />

O príncipe encarcerado. Apontamentos<br />

para um perfil psicológico<br />

de Salazar. In: Quem era Salazar?<br />

Lisboa: Resistência, 1978.<br />

2) Christophe Plantin (*1514 -<br />

†1589). Encadernador e humanista<br />

francês.<br />

3) “Heresia branca” é uma expressão forjada<br />

por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> para denominar a<br />

mentalidade frequente em certos ambientes<br />

católicos, daquelas pessoas<br />

que concebem a Religião apenas na<br />

escala individual. Tal atitude procede<br />

de um otimismo sistemático que leva o<br />

homem a viver como se o pecado original<br />

e o mal não existissem, o que traz<br />

como consequência a falta de vigilância<br />

e de combatividade em relação aos<br />

defeitos morais próprios e alheios.<br />

4) Nhonhô era o nome que os escravos<br />

davam ao filho mais velho do patrão,<br />

nas antigas fazendas brasileiras,<br />

por deturpação da palavra senhor. O<br />

nhonhô era alvo de todos os cuidados<br />

e atenções da parte dos escravos que<br />

o serviam, tendo, portanto, vida fácil<br />

e regalada. <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> usava o termo<br />

– bem como a forma derivada que<br />

cunhou, “nhonhozeira” – para caracterizar<br />

a mentalidade comodista dos<br />

que têm aversão ao sacrifício.<br />

5) Termo de origem hebraica, que significa<br />

dinheiro ou bens materiais; enquanto<br />

ser, é considerado o que personifica<br />

o pecado de avareza.<br />

17


Flávio Lourenço<br />

C<br />

alendário<br />

Santa Margarida<br />

1. Solenidade da Santa Mãe de<br />

Deus, Maria.<br />

São Claro, abade (†660/670). Governou<br />

o mosteiro de São Marcelo,<br />

sendo para os monges um exemplo insigne<br />

da perfeição religiosa.<br />

2. Santos Basílio Magno (†379) e<br />

Gregório Nazianzeno (†c. 389), bispos<br />

e Doutores da Igreja.<br />

São Vicenciano, eremita (†672).<br />

3. Santíssimo Nome de Jesus.<br />

São Ciríaco Elias Chavara, presbítero<br />

(†320). Fundador da Congregação<br />

dos Irmãos Carmelitas de Maria<br />

Imaculada.<br />

4. Santa Ângela de Foligno, viúva<br />

(†1309). Após a morte do esposo e dos<br />

filhos, seguiu os passos de São Francisco,<br />

consagrando-se inteiramente a<br />

Deus. Escreveu um livro sobre as experiências<br />

de sua vida mística.<br />

5. Santo Eduardo o Confessor, rei<br />

(†1066). Rei dos ingleses, muito estimado<br />

pelo povo por causa da sua exímia<br />

caridade; conseguiu estabelecer a<br />

paz no seu reino e promoveu a comunhão<br />

com a Sé Apostólica.<br />

Santa Sinclética, eremita (†s. IV).<br />

Segundo a tradição, seguiu a vida eremítica,<br />

em Alexandria.<br />

dos Santos – ––––––<br />

Flávio Lourenço<br />

6. Santos Julião e Basilissa, mártires<br />

(†s. IV).<br />

7. Solenidade da Epifania do Senhor<br />

(no Brasil, transferida do dia 6).<br />

Esta Solenidade remonta à chegada<br />

dos Magos em Belém. Antigamente celebrava-se<br />

a tríplice manifestação de<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo: em Belém,<br />

o Menino Jesus adorado pelos Reis<br />

Magos; no Jordão, Jesus batizado por<br />

João Batista, ungido pelo Espírito Santo<br />

e chamado Filho de Deus Pai; em<br />

Caná da Galileia, em uma festa nupcial,<br />

a água é transformada em vinho e Nosso<br />

Senhor manifestou a sua glória.<br />

8. Batismo do Senhor.<br />

Santo Apolinário, bispo (†s. II). No<br />

tempo do imperador Marco Aurélio,<br />

resplandeceu pela sua doutrina e santidade.<br />

9. Santas Águeda Yi, virgem e Teresa<br />

Kim, viúva (†1840). Depois de<br />

cruelmente flageladas no cárcere pela<br />

sua fé em Cristo, ambas morreram<br />

mártires, degoladas, em Seul, Coreia.<br />

10. São Gregório de Nissa, bispo<br />

(†400). Irmão de São Basílio Magno,<br />

insigne pela sua vida e doutrina; por<br />

ter proclamado a verdadeira Fé, foi<br />

São Julião<br />

expulso da sua cidade no tempo do<br />

imperador ariano Valente.<br />

São Pedro Urséolo, monge (†987/<br />

988). Depois de ter sido doge de Veneza<br />

se fez monge; foi célebre por sua<br />

piedade e austeridade e passou a vida<br />

num ermo próximo do mosteiro.<br />

11. São Paulino, bispo (†802). Bispo<br />

de Aquileia, empenhou-se na conversão<br />

dos ávaros e dos eslovenos e<br />

dedicou ao rei Carlos Magno um célebre<br />

poema sobre a Regra da fé.<br />

12. São Martinho da Santa Cruz,<br />

presbítero (†1203). Cônego regular,<br />

foi mestre insigne da Sagrada Escritura.<br />

Beato Antônio Fournier, mártir<br />

(†1794). Sendo artesão, durante a Revolução<br />

Francesa foi fuzilado por sua<br />

fidelidade à Igreja.<br />

13. Santo Hilário de Poitiers, bispo<br />

e Doutor da Igreja (†367).<br />

Santo Agrício, bispo (†330). Converteu<br />

em igreja o palácio que lhe foi<br />

doado por Santa Helena.<br />

Beata Verônica Negróni de Binasco,<br />

virgem (†1497). Entrou no mosteiro<br />

de Santa Marta sob a Regra de<br />

Santo Agostinho, onde se consagrou<br />

profundamente à contemplação.<br />

14. II Domingo do Tempo Comum.<br />

15. Santa Ida, virgem (†570). Fundou<br />

o mosteiro de Cluain Credal, na Irlanda.<br />

Beato Nicolau Gross, pai de família<br />

e mártir (†1945). Opôs-se ao regime<br />

opressor da dignidade humana e<br />

hostil à religião e, por não querer atuar<br />

contra os Mandamentos de Deus,<br />

foi encarcerado e enforcado em Berlim,<br />

Alemanha.<br />

16. São Tiago, bispo (†s. V). Foi discípulo<br />

de Santo Honorato de Lérins.<br />

17. Santo Antão, abade (†356). Colaborou<br />

com grande zelo no fortalecimento<br />

da Igreja, ajudando os confessores<br />

da Fé durante a perseguição de<br />

18


––––––––––––––––– * Janeiro * ––––<br />

Diocleciano e apoiou Santo Atanásio<br />

na luta contra os arianos. Foram tantos<br />

os seus discípulos, que mereceu<br />

ser considerado pai dos monges.<br />

18. Santa Margarida, virgem<br />

(†1270). Filha do rei Bela IV. Sendo<br />

prometida em voto a Deus pelos seus<br />

pais para libertar dos tártaros a sua<br />

pátria, foi entregue em tenra idade<br />

às monjas da Ordem dos Pregadores<br />

e, com doze anos, se consagrou totalmente<br />

ao Senhor na profissão religiosa,<br />

procurando intensamente assemelhar-se<br />

a Cristo crucificado.<br />

19. Santas Liberata e Faustina, virgens<br />

(†c. 580). Irmãs de sangue, juntas<br />

fundaram o mosteiro de Santa<br />

Margarida, em Como, Itália.<br />

20. São Fabiano, Papa e mártir<br />

(†250).<br />

São Sebastião, mártir (†’s. IV). Natural<br />

de Narbonne. Nomeado capitão<br />

da Guarda Pretoriana, foi acusado<br />

de traidor por tratar com bondade os<br />

prisioneiros cristãos. Morreu na perseguição<br />

promovida por Dioclesiano.<br />

21. III Domingo do Tempo Comum.<br />

Santa Inês, virgem e mártir (†s. IV).<br />

22. São Vicente, diácono e mártir<br />

(†304).<br />

Beata Maria Mancíni, viúva (†1431).<br />

Depois de enviuvar duas vezes e ter perdido<br />

todos os filhos, por conselho de<br />

Santa Catarina de Sena seguiu a vida comunitária<br />

no mosteiro de São Domingos,<br />

o qual presidiu durante dez anos.<br />

23. Santo Severiano e Santa Áquila,<br />

mártires (†s. III). Cônjuges, consumaram<br />

seu martírio queimados no<br />

fogo, em Cesareia da Mauritânia, hoje<br />

Cherchell, na Argélia.<br />

24. São Francisco de Sales, bispo<br />

e Doutor da Igreja (†1622). Foi bispo<br />

de Genebra, declarado Doutor da<br />

Igreja pelo Papa Pio IX, em 1877.<br />

Santo Exuperâncio, bispo (†s. V).<br />

25. Conversão de São Paulo, Apóstolo<br />

(†c. 67).<br />

26. São Timóteo e São Tito, bispos<br />

(†s. I).<br />

Beata Maria de la Dive, viúva e<br />

mártir (†1794). Durante a Revolução<br />

Francesa foi decapitada na guilhotina<br />

por sua fidelidade à Igreja.<br />

Beata Verônica Negróni de Binasco<br />

27. Santa Ângela Merici, virgem<br />

(†1540). Fundadora das Irmãs Ursulinas.<br />

São João Maria, mártir (†1887).<br />

Cognominado Muzei ou Ancião por<br />

causa da sua maturidade espiritual.<br />

Era fâmulo do rei quando professou<br />

a fé cristã e não quis fugir à perseguição,<br />

por isso declarou a sua fé<br />

em Cristo diante de Mwenga, primeiro<br />

ministro do rei; morreu degolado,<br />

perto de Mengo, no Uganda, como<br />

última vítima da perseguição.<br />

28. IV Domingo do Tempo Comum.<br />

São Tomás de Aquino, presbítero e<br />

Doutor da Igreja (†1274).<br />

Flávio Lourenço<br />

São Martinho da Santa Cruz<br />

29. São Sarbélio, presbítero e Santa<br />

Bebaia, sua irmã (†250). Segundo a<br />

tradição, foram conduzidos ao Batismo<br />

pelo bispo São Barsimeu e padeceram<br />

o martírio por Cristo, em Edessa,<br />

na atual Turquia.<br />

30. São Teófilo o Jovem, mártir<br />

(†792). Sendo comandante da frota<br />

cristã, foi capturado pelos inimigos<br />

junto a Chipre e conduzido a Harun,<br />

califa dos sarracenos; não podendo<br />

este obrigá-lo a negar a Cristo,<br />

nem com promessas nem com ameaças,<br />

mandou que fosse passado ao fio<br />

da espada.<br />

Santa Martinha, mártir (†677). Filha<br />

de um cônsul romano já convertido<br />

ao cristianismo, praticou desde a<br />

infância as virtudes cristãs. Ainda jovem<br />

perdeu os pais e doou seus bens<br />

aos pobres. Foi martirizada por ordem<br />

de Alexandre Severo, após recusar<br />

várias honrarias e o título de imperatriz.<br />

31. São João Bosco, presbítero<br />

(†1888).<br />

São Francisco Xavier Maria Bianchi,<br />

presbítero (†1815). Pertencia à<br />

Ordem dos Clérigos Regulares de São<br />

Paulo, em Nápoles, na Itália; foi dotado<br />

de dons místicos e conduziu muitos<br />

à vida da graça.<br />

Flávio Lourenço<br />

19


Hagiografia<br />

Francisco Barros<br />

São Tomás de<br />

Aquino - Igreja<br />

de Nossa Senhora<br />

da Consolação,<br />

Carey, Ohio, EUA<br />

Um monumento<br />

de virtudes<br />

São Tomás, o maior dos Doutores, punha-se diante do Santíssimo<br />

Sacramento quando a ciência não bastava para resolver qualquer<br />

problema. Eis um traço característico do caráter desse grande gênio:<br />

a humildade, virtude tão desconhecida por muitos dos intelectuais.<br />

20


Aquele que seria o Doutor<br />

Angélico, nasceu no castelo<br />

de Roccasecca, perto da<br />

cidade de Aquino.<br />

Ra Boe (CC3.0)<br />

Dificuldades para entrar<br />

na Ordem Dominicana<br />

ThePhotografer (CC3.0)<br />

Menino de excepcional inteligência<br />

e de índole extremamente dócil,<br />

o futuro Frei Tomás afagava a vaidade<br />

de seus pais e de toda a sua família.<br />

Mas, ainda jovem, seu pai o retirou<br />

da abadia de Monte Cassino, onde<br />

estudava. Enviado a Nápoles para<br />

continuar os estudos, lá conheceu<br />

os dominicanos. Estes monges julgaram<br />

mais prudente mandá-lo para<br />

Paris, mas os seus irmãos e sua<br />

mãe se opuseram formalmente a essa<br />

resolução, interceptando-o no caminho<br />

conduziram-no ao castelo de<br />

San Giovanni. Lá, todos os meios foram<br />

usados para afastá-lo dessa sua<br />

determinação, mesmo os mais torpes.<br />

Mas nada o demovia de sua resolução,<br />

reagindo sempre serenamente.<br />

Por fim, sua mãe, penalizada<br />

e edificada pela constância e paciência<br />

desse simples menino, persuadiu<br />

o pai que o deixasse seguir a sua vocação<br />

e ordenou aos filhos que o deixassem.<br />

Ingressou então o futuro Santo na<br />

Ordem dominicana, partindo imediatamente<br />

para Paris, indo depois<br />

de lá a Colônia, onde foi discípulo de<br />

Santo Alberto Magno.<br />

“O boi mudo”<br />

Aquino, no Lácio, cidade natal de São Tomás<br />

A sua inteligência admirável logo<br />

o distinguiu. Um dia Santo Alberto<br />

Magno, o maior doutor de seu<br />

tempo, como ouvisse que os companheiros<br />

de Frei Tomás só o chamassem<br />

de boi, por causa de seus grandes<br />

olhos meditativos, disse: “Os<br />

seus mugidos reboarão pelo mundo<br />

inteiro e por muito tempo.” Era um<br />

gênio que descobria e admirava um<br />

grande gênio.<br />

A sua fama de cientista já era<br />

enorme ao começar a sua carreira<br />

de professor. Os Papas o estimavam<br />

e manifestavam abertamente essa estima<br />

oferecendo-lhe honras e dignidades,<br />

mas ele tudo recusava. O Rei<br />

da França, São Luís IX, consultava-o<br />

invariavelmente sobre todos os problemas<br />

graves. Durante todo o tempo<br />

em que esteve em Paris, o Rei o tinha<br />

como seu comensal e entretinha-<br />

-se com as suas constantes distrações.<br />

Uma vez, no meio de uma prosa animada,<br />

Frei Tomás, que se mantinha<br />

calado, exclamou de repente: “Graças<br />

a Deus, encontrei um argumento<br />

decisivo contra os maniqueus.”<br />

Humildade e simplicidade<br />

do grande gênio<br />

Abadia de Monte Cassino<br />

O traço característico do caráter<br />

desse grande gênio era, entre-<br />

21


Hagiografia<br />

Gabriel K.<br />

tanto, uma virtude desconhecida hoje<br />

de nossos menores intelectuais: a<br />

humildade. A alguém que insinuava<br />

que ele nem sequer era talentoso,<br />

respondeu ingenuamente: “Deve ser<br />

isso mesmo, pois sempre me vejo na<br />

necessidade de estudar.”<br />

Ensinando constantemente, não<br />

deixava de estudar e escrever. Uma<br />

das obras mais portentosas do mundo,<br />

a “Suma Teológica”, foi por ele<br />

escrita entre as preocupações pedagógicas.<br />

O seu gênio não era, entretanto,<br />

exclusivamente o filosófico. Hinos<br />

magníficos e poesias de uma inspiração<br />

felicíssima eram as suas obras<br />

de lazer. A sua erudição prodigiosa<br />

não fanou a frescura de seu espírito.<br />

O grande gênio foi, até à sua morte,<br />

como Jesus no Evangelho deseja<br />

que nós sejamos: como as criancinhas.<br />

A sua piedade era simples<br />

e confiante, e quando a sua ciência<br />

não bastava para resolver qualquer<br />

problema, punha-se simplesmente<br />

diante do Santíssimo Sacramento sabendo<br />

já que lá receberia inspiração.<br />

Uma vez em que ele recorria ao<br />

Santíssimo Sacramento, Deus lhe<br />

disse: “Escreveste muito bem de<br />

mim. Tomás, que recompensa queres<br />

ter?”<br />

— A Vós, somente – respondeu o<br />

Santo.<br />

A sua morte, que se deu num<br />

mosteiro de cistercienses, enquanto<br />

explicava o Cântico dos Cânticos,<br />

encheu de dor ao mundo inteiro. As<br />

suas obras, entretanto, esclarecem<br />

até hoje as inteligências afastadas de<br />

todo o pedantismo intelectual.<br />

Proclamado em nossos dias o<br />

Doctor Communis Ecclesiæ e guia<br />

Cena da vida de São Tomás de Aquino - Convento de São Domingos, Lima<br />

Santo Alberto Magno e São Tomás de Aquino - Museu de Belas Artes, Salamanca<br />

dos estudantes, Studiorum ducem,<br />

São Tomás mereceu ter a sua doutrina<br />

recomendada oficialmente pelos<br />

últimos Pontífices.<br />

Angélico pela castidade<br />

Da Encíclica Studiorum ducem 1 ,<br />

temos a seguinte ficha:<br />

Todas as virtudes morais em geral,<br />

Tomás certamente teve em excelentíssimo<br />

grau, e de tal modo as teve unidas<br />

e conexas, que, como ele próprio<br />

ensinou, ajuntaram-se todas na caridade,<br />

a qual dá forma a todos os atos<br />

de virtude.<br />

A caridade não se entende direta<br />

e primordialmente como amor<br />

do próximo, mas amor de Deus. Na<br />

medida em que deriva do amor de<br />

Deus, o amor do próximo é caridade,<br />

como o efeito indica a causa.<br />

Então, as suas virtudes derivavam<br />

do amor de Deus, que era a fonte de<br />

todas elas.<br />

Se procurarmos, entretanto, as características<br />

particulares de sua santidade,<br />

a primeira é uma santa semelhança<br />

com a natureza angélica. Não<br />

me refiro apenas à castidade que ele<br />

guardou intacta sempre, mas sobretudo<br />

à castidade que brilhou em sua al-<br />

Samuel Hollanda<br />

22


ma depois de ser cingido pelos Anjos<br />

por um cíngulo místico, após a dura<br />

prova na prisão de sua família.<br />

Ele queria ser dominicano e o seu<br />

pai se opunha a isto. Então, mandou<br />

trancá-lo numa torre para ver se ali<br />

na prisão, no isolamento, ele desistia<br />

da vocação. O pai, vendo que ele<br />

não desistia, que ficava lá em oração,<br />

estudo, mandou uma mulher de vida<br />

péssima para tentá-lo. Era inverno e<br />

ele tinha um fogareiro aceso. Quando<br />

ela se aproximou, com aquelas<br />

pinças de mexer em brasa ele pegou<br />

uma e saiu correndo atrás da mulher,<br />

que saiu espavorida.<br />

Por causa da resistência corajosa<br />

e admirável que ele moveu contra a<br />

tentação do pecado impuro, um Anjo<br />

apareceu e, como prêmio, cingiu-<br />

-o com uma proteção invisível contra<br />

novas tentações de impureza.<br />

Assim, Santo Tomás de Aquino, o<br />

grande Anjo, ficou livre da tentação<br />

que poderia atrapalhar seu espírito,<br />

prejudicar seus estudos e o magnífico<br />

trabalho que faria para a Igreja<br />

Católica.<br />

isto não é menos tocante para quem lê<br />

os seus escritos, onde se sente um tal<br />

respeito para com os Padres da Igreja,<br />

que parece ter partilhado de alguma<br />

inteligência dos antigos Doutores,<br />

porque ele os venerou soberanamente.<br />

Por ordem dos superiores, havia<br />

um irmão leigo que mandava em<br />

Santo Tomás. Era uma pessoa incomparavelmente<br />

inferior, mas que<br />

exercia a autoridade do voto de obediência<br />

e ao qual ele obedecia cegamente.<br />

É uma beleza ver uma pessoa<br />

da santidade e da cultura de Santo<br />

Tomás curvar-se por esta forma ao<br />

jugo de alguém tão menos culto e,<br />

provavelmente, menos santo do que<br />

ele. A Encíclica se refere ao respeito<br />

de Frei Tomás pelos outros Doutores<br />

da Igreja: cita-os sempre com<br />

veneração. Ele, que foi o maior dos<br />

Doutores, cita os seus antecessores,<br />

menores do que ele, com sumo respeito!<br />

E isto é admiravelmente posto em<br />

evidência pelo fato de que dispensou<br />

as faculdades de seu gênio divino não<br />

para sua própria glória, mas para a difusão<br />

da verdade. Assim, enquanto os<br />

filósofos se fizeram, por assim dizer, os<br />

servidores de sua celebridade, Tomás<br />

procura, transmitindo sua doutrina,<br />

apagar-se completamente, para que a<br />

luz da celeste verdade brilhe com todo<br />

o esplendor.<br />

Isso é algo admirável nos trabalhos<br />

de Santo Tomás! Dir-se-ia que o<br />

homem não está presente. É raciocínio<br />

filosófico e teológico em estado<br />

puro. Ele não diz nada, não faz nada<br />

onde se sinta a vibração do autor,<br />

ele está completamente ausente. É o<br />

Pequod76 (CC3.0)<br />

Habitualmente<br />

submisso e respeitoso<br />

Mas, sobretudo, destaca-se na santidade<br />

de Tomás, aquilo que é chamado<br />

por Paulo sermo sapientiæ 2 :<br />

aquela união de duas sabedorias, como<br />

são chamadas, da adquirida e da<br />

infusa, com as quais nada tão conveniente<br />

quanto a humildade, quanto<br />

diligência da oração, quanto o amor<br />

de Deus.<br />

Ele possuía duas formas de sabedoria:<br />

a doutrinária, que fez dele o<br />

Anjo das escolas; mas também a sabedoria<br />

prática, que o levava a evitar<br />

a impureza.<br />

A humildade foi como que o fundamento<br />

sobre o qual as outras virtudes<br />

de Tomás se apoiavam. Isto é evidente<br />

para quem observa com que<br />

submissão, ao longo da vida comum,<br />

ele obedecia a um irmão converso. E<br />

Fachada da igreja da Abadia de Fossanova, Mosteiro Cisterciense, onde morreu São Tomás<br />

23


Hagiografia<br />

puro amor à verdade, à doutrina católica<br />

que se exprime pela pena dele.<br />

Solução oposta à vaidade<br />

A essa humildade e a essa pureza<br />

de coração, unia-se uma grande assiduidade<br />

à oração. Também o espírito<br />

de Tomás era dócil e sensível às aspirações<br />

e à luz do Espírito Santo. Ele<br />

recebia e seguia essas inspirações que<br />

são os princípios da contemplação.<br />

Quando não conseguia resolver<br />

um problema, ele rezava junto<br />

ao Sacrário; naturalmente pensava<br />

também. Certa ocasião, ele teve<br />

grande dificuldade para resolver um<br />

problema; abriu então a porta do Sacrário<br />

e meteu a cabeça dentro, a fim<br />

de que a atmosfera divina do Santíssimo<br />

Sacramento impregnasse o cérebro<br />

sacratíssimo dele e jorrasse a<br />

solução que, de fato, veio.<br />

Como isso é o contrário do vaidoso!<br />

Porque este se recolhe no quarto:<br />

“Lerei mais autores gregos, pensarei<br />

e hei de conhecer a verdade!” Arranca<br />

asneira. Entretanto, por aquela<br />

forma sai a maravilha.<br />

A essa humildade e pureza de coração,<br />

reuniu grande assiduidade à oração.<br />

Para obtê-las do Céu, ele frequentemente<br />

se abstinha de todo alimento,<br />

passava noites inteiras rezando para<br />

resolver problemas. Num impulso de<br />

sua piedade simples, apoiava sua cabeça<br />

no tabernáculo.<br />

Senão com Deus, de Deus foi dito<br />

que sempre falou. Ele tinha o costume<br />

de contemplar todas as coisas<br />

em Deus como sendo causa primeira<br />

e fim último.<br />

Pode-se elogiar mais um homem?<br />

Ele tinha o costume de contemplar<br />

todas as coisas em Deus como sendo<br />

causa primeira e fim último.<br />

(Extraído de O Legionário n. 338,<br />

5/3/1939 e conferência de 7/3/1969)<br />

Triunfo de São Tomás de Aquino - Museu do Louvre, Paris<br />

Flávio Lourenço<br />

1) Encíclica de Pio XI, de 1923, sobre<br />

São Tomás e sua doutrina.<br />

2) Do latim: Palavra de sabedoria.<br />

24


Revolução Industrial<br />

Flávio Lourenço<br />

A superficialidade<br />

da Revolução<br />

Industrial e<br />

a verdadeira<br />

formação cultural<br />

O ponto detonador de toda a vida intelectual de um indivíduo é<br />

sua apetência metafísica a respeito de um determinado assunto;<br />

sem ela jamais a pessoa se tornará sábia. Entretanto, a Revolução<br />

Industrial promove a superficialidade, impedindo nas almas o amor<br />

a Deus e a consideração da luta como uma realidade da vida.<br />

Vou dar um exemplo concreto<br />

de como a Revolução<br />

Industrial falseia todas<br />

as coisas.<br />

Nowic (CC3.0)<br />

Descobertas do início<br />

do século XX<br />

No tempo de minha infância, a<br />

egiptologia foi muito conceituada.<br />

Dois homens, Lord Carnarvon 1<br />

e Howard Carter 2 resolveram fazer<br />

pesquisas no Vale dos Reis, no Egito,<br />

e acabaram descobrindo o túmulo de<br />

Tutancâmon, trazendo à tona toneladas<br />

de tudo o que ele continha. As<br />

revistas e os jornais fizeram um estouro<br />

publicitário celebérrimo a favor<br />

dos descobrimentos.<br />

Vale dos Reis, Egito<br />

25


Revolução Industrial<br />

Ham (CC3.0)<br />

Naquele período, a influência e o<br />

domínio da Inglaterra sobre o Egito era<br />

ainda muito grande. Por isso aproveitaram<br />

o descobrimento e mandaram levar<br />

para o British Museum 3 quantidades<br />

indefinidas de tesouros egípcios. A seção<br />

egiptóloga desse museu é colossal.<br />

E havia um certo interesse geral – moderado<br />

e superficial, mas havia – pelos<br />

assuntos da egiptologia.<br />

Vejamos o modo como se desenvolveram<br />

as coisas.<br />

Influência artificial da<br />

Revolução Industrial<br />

British Museum, Londres<br />

Em virtude das facilidades da Revolução<br />

Industrial, uma viagem da<br />

Inglaterra para o Egito se tornava<br />

muito mais fácil do que em épocas<br />

anteriores. O estabelecimento<br />

da garra inglesa ali também se tornava<br />

muito mais fácil, porque podiam<br />

transportar armamentos e tropas<br />

a toda hora. Foi o que eles fizeram:<br />

ocuparam o Egito. Após a Primeira<br />

Guerra Mundial também houve<br />

ali uma pressão norte-americana.<br />

Os ingleses, nas pesquisas arqueológicas,<br />

usaram meios técnicos de toda<br />

ordem para detectar onde ficava<br />

a porta do túmulo. Eram técnicas de<br />

arejamento, depois técnicas para tirar<br />

os objetos do interior, o modo de<br />

guardá-los, de transportá-los em caminhões<br />

até o Cairo, onde já havia navios<br />

preparados para levá-los ao British<br />

Museum. Eram tantos objetos que<br />

acabaram estabelecendo um mercado<br />

de egiptologia no Cairo, para vender<br />

essas coisas a outros países.<br />

Ao mesmo tempo, iniciou-se o<br />

afluxo de colecionadores e de negociantes,<br />

para os quais construíram hotéis<br />

e casas de diversão. As agências<br />

de turismo espalhadas por toda a Europa<br />

e pelos Estados Unidos lançaram<br />

o anúncio: “Venha se divertir!<br />

Divertimento moderno é muito agradável!<br />

Mas, por que você não experimenta<br />

um divertimento de dois mil<br />

anos atrás? Venha ver como se divertia<br />

o faraó. Venha conhecer o mundo<br />

fabuloso dos faraós do Egito. Venha<br />

conhecer o mundo fabuloso das pirâmides!”<br />

E aparecia desenhado um<br />

egipciozinho estilizado. Enfim, começou<br />

a afluência de viajantes.<br />

Esses meios de propaganda levaram<br />

para junto das pirâmides um turbilhão<br />

de gente. Tudo isso é um movimento<br />

artificial. E digo artificial porque<br />

torna tão fácil o acesso à pirâmide,<br />

e cria tantos interesses de pessoas<br />

sem entusiasmo por ela, que vão ali<br />

só por causa do turismo ou de um outro<br />

fator qualquer, que o assunto “pirâmide”<br />

fica misturado numa série de<br />

outros… É tudo pretexto.<br />

Esse material foi para a Inglaterra<br />

e lá construíram – vou imaginar – dependências<br />

especiais no British Museum:<br />

“Sala Tutancâmon” ou “Pavilhão<br />

Tutancâmon”, exibindo os pertences<br />

do faraó, ou o “Pavilhão do<br />

deus Ra”, enchendo o museu de objetos<br />

de toda ordem.<br />

Além disso, nos arredores das<br />

pensões ou dos hotéis no Egito, criaram<br />

um novo mercado de pequenas<br />

imitações dos objetos das pirâmides,<br />

para vendê-las como souvernirs.<br />

De repente, o governo inglês resolve:<br />

“É preciso, na maior urgência – e<br />

não se sabe por que ‘na maior urgência’<br />

– decifrar tudo quanto foi encontrado.”<br />

Na Universidade de Oxford<br />

ou de Cambridge, monta-se uma Faculdade<br />

de Egiptologia, convocam-<br />

-se egiptólogos do mundo inteiro para<br />

morarem ali a fim de decifrarem os<br />

enigmas e, dentro do programa, dentro<br />

de trinta anos, quando for o “tantésimo”<br />

aniversário de Champollion 4 ,<br />

poderem exibir as descobertas.<br />

Agindo desse modo, atraem para<br />

tais estudos uma porção de gente que<br />

não tem verdadeiro interesse pela pirâmide,<br />

mas vai estudá-la da mesma forma<br />

como poderia, por exemplo, trabalhar<br />

numa fábrica de cordões de sapatos<br />

do Canadá ou ser um marinheiro.<br />

Como ali se tem um bom ordenado e<br />

boas condições de vida, a pessoa dedica-se<br />

a estudar paleografia. Formam,<br />

então, um conjunto que estuda egiptologia<br />

na pancada. Resultado: o sujeito<br />

não estuda aquele material egiptólogo<br />

na medida do seu interesse, nem<br />

tem uma livre iniciativa para aprofundar<br />

neste ou naquele ponto, mas tem<br />

obrigação de aprontar um relatório sobre<br />

tal tema. Tudo isso para o “trigésimo<br />

aniversário” de Champollion.<br />

Qual o resultado de tudo isso?<br />

Uma produção arqueológica enorme.<br />

Entretanto, o aproveitamento<br />

geral é muito inferior ao que seria se<br />

26


East Oregonian (CC3.0)<br />

não houvesse essa influência da Revolução<br />

Industrial.<br />

Processo contrário à<br />

artificialidade industrial<br />

Esfinge e Pirâmides do Egito<br />

Harry Burton (CC3.0)<br />

Se não houvesse a Revolução Industrial,<br />

o que aconteceria? Iriam<br />

para lá apenas os fanáticos da antiguidade<br />

egípcia. Estes teriam condições<br />

reais para ir. Estudariam lentamente,<br />

porém muito mais a fundo,<br />

sem encomendas com prazos limitados,<br />

mas apenas levados pelo desejo<br />

desinteressado de conhecer e<br />

estudar o Egito. Esses homens teriam<br />

vencido a barreira da preguiça,<br />

da indolência e da timidez, seriam<br />

praticamente os “bandeirantes” da<br />

egiptologia, levados por um desejo<br />

desinteressando de conhecê-la. Seriam<br />

homens que não trabalhariam<br />

nem sequer para ficar célebres, porque<br />

a máquina de propaganda não<br />

estaria montada em torno deles.<br />

Em consequência, teríamos uma<br />

egiptologia dirigida e executada pelos<br />

egiptólogos que andaram mais devagar,<br />

mas que a esse passo teriam estudado<br />

todos os escaninhos do assunto<br />

“Egito” adequadamente. Quando<br />

se desse a publicação de seus estudos,<br />

talvez eles até já tivessem morrido,<br />

mas seriam obras de primeiro valor<br />

e haveria uma escola de egiptólogos<br />

instalada ali, não tão diferente<br />

dos setenta sábios de Alexandria.<br />

Em síntese, tudo isso seria produzido<br />

mais devagar, sem pressa, sem<br />

propaganda, com mais profundidade<br />

e com qualidades muito superiores.<br />

Sem apetência metafísica<br />

não há verdadeira sabedoria<br />

Eu acredito que não existe formação<br />

cultural que não tenha como raiz<br />

uma apetência metafísica. E tal apetência,<br />

que na maior parte dos casos<br />

deve ser não consciente, mas subconsciente,<br />

dá à pessoa a vontade de<br />

conhecer uma coisa na sua profundidade,<br />

porque ele sente e percebe que<br />

sua alma fica mais integrada e mais<br />

completa se souber aquilo.<br />

Esse é o ponto detonador de toda<br />

a vida intelectual de uma pessoa. Se<br />

ela não conhece algo por apetência<br />

metafísica, jamais será um sábio, segundo<br />

o nosso conceito de sábio, e esse<br />

desejo metafísico supõe uma posição<br />

perante o assunto, semelhante à<br />

posição da alma piedosa, séria e direita,<br />

diante da Doutrina Católica.<br />

Tomem um bom católico que quer<br />

conhecer a fundo a doutrina católica.<br />

Tal atitude já supõe o seguinte: não<br />

querer conhecer tudo por igual, mas<br />

conhecer suficientemente o que lhe<br />

diz respeito, o que ele deve saber. O<br />

indivíduo que quer conhecer por igual<br />

tudo não quer conhecer nada, só pretende<br />

se mostrar. Esse não serve.<br />

O bom católico que quer conhecer<br />

alguns pontos, à medida que vai estudando,<br />

vai enriquecendo sua alma<br />

com isso e acaba tomando uma atitude<br />

contemplativa. Sua sofreguidão<br />

pelo assunto vai indo cada vez mais<br />

longe, vai subindo e quase se poderia<br />

dizer que existem nele as três vias da<br />

vida espiritual: a via purgativa, a via<br />

iluminativa e a via unitiva.<br />

Na via purgativa o indivíduo vai se<br />

interessando tanto, que acaba se desinteressando<br />

dos outros assuntos, a<br />

não ser enquanto se ligam ao assunto<br />

principal que lhe interessa. Na via<br />

Lord Carnarvon e Howard Carter na tumba de Tutancâmon<br />

Harry Burton (CC3.0)<br />

27


Revolução Industrial<br />

Léon Cogniet (CC3.0)<br />

Jean-Francois Champollion<br />

iluminativa, ele vai crescendo cada<br />

vez mais em conhecimento; e na<br />

via unitiva, torna-se um sábio, porque,<br />

cogitando em tais reflexões, de<br />

tal maneira está unido a elas, que ele<br />

acaba acrescentando coisas novas.<br />

Eu gostaria de acrescentar o seguinte:<br />

há alguma coisa que poderia<br />

vagamente comparar-se à união mística.<br />

O indivíduo como que se transforma<br />

no assunto e este se transforma<br />

nele. De tal maneira que é impossível<br />

estudar a matéria sem sentir a marca<br />

da personalidade dele. E também<br />

é impossível tratar com ele sem ver a<br />

matéria como que viva nele. É o auge<br />

da via unitiva.<br />

Cursos livres<br />

para despertar<br />

nos jovens<br />

apetências<br />

metafísicas<br />

O ponto de partida<br />

da formação seria<br />

despertar nos alunos<br />

do curso secundário,<br />

e talvez já no primário,<br />

uma apetência.<br />

Não se trata de impor:<br />

“Você vai ser tal<br />

Roland Unger (CC3.0)<br />

coisa…” Não! Trata-se de interrogar o<br />

jovem: “O que a sua alma pede?”, e encaminhá-lo<br />

naquela direção.<br />

Se nós tivéssemos gente para isso,<br />

para o Reino de Maria...! Vou dizer<br />

numa palavra só: se houvesse a possibilidade<br />

de montar um curso secundário,<br />

ensinando a matéria como nós<br />

a entendemos, ou ainda, promover<br />

um curso livre, à nossa maneira, para<br />

despertar nos adolescentes o gosto<br />

metafísico, e o gosto de História, de<br />

algumas matérias que já se estudam<br />

no curso secundário, numa espécie<br />

de ginásio livre, sem fiscalização do<br />

Estado, nem nada. Fazer isso nas horas<br />

livres. Entretanto, com um cuidado<br />

muito grande: não formar maníacos!<br />

Eu não acredito que um egiptólogo<br />

verdadeiro, por exemplo, seja<br />

um maníaco que passa o dia inteiro<br />

dentro da pirâmide. Esse não serve<br />

de nada.<br />

Ao contrário, deve ser um homem<br />

comum, um chefe de família que cuida<br />

de algum negócio, que se interessa<br />

pelos fatos que acontecem, está a par<br />

da vida, da Revolução e da Contra-<br />

-Revolução, e daí tira as interrogações<br />

para seu estudo. As interrogações são<br />

um dos pontos mais importantes da<br />

vida intelectual. As perguntas devem<br />

sair da vida comum e dos problemas<br />

do indivíduo em contato com a vida<br />

de todos os dias. Quem não tem perguntas<br />

é porque não entendeu nada.<br />

Essa história de pensar que aquele<br />

que nunca pergunta entendeu tudo<br />

é falsa. Esse sujeito está no bas-fond 5<br />

da vida intelectual, pois não entendeu<br />

nem sequer o que é entender.<br />

Com isso nós teríamos a possibilidade<br />

de fazer um apostolado grandioso!<br />

E eu acho exatamente que um<br />

dos pontos pelos quais o apostolado<br />

do João Clá é tão fecundo – antes<br />

de tudo deve-se considerar a bênção<br />

que Nossa Senhora dá a ele – é porque<br />

ele, sem se dar conta, mistura metafísica<br />

com a vida: conta um fato, diz<br />

uma coisa, mexe com um, volta ao tema...<br />

Não é daqueles que promovem<br />

um ensino “ploc-ploc” 6 ,dizendo o seguinte:<br />

“Então, eu vou explicar a vocês<br />

o que é a egiptologia, Champollion…<br />

Antes de estudar o Egito é preciso saber<br />

o que é egiptologia, senão não vai,<br />

não vai, não vai!” Acaba sendo um estudo<br />

escolar cacete. É no contato com<br />

a vida que se forma o cientista.<br />

Necessidade imperiosa de um<br />

mundo feito de maravilhas<br />

O indivíduo tem necessidade, do<br />

fundo da alma, de viver, de fugir deste<br />

mundo industrializado de hoje para<br />

uma forma de maravilha que só<br />

se encontraria se ele fosse capaz de<br />

viver debaixo do mar, por exemplo,<br />

Abertura do túmulo de Tutancâmon. Ao lado, máscara mortuária de Tutancâmon<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

28


onde há um universo que refresca<br />

todas as imagens dele e lhe dá toda<br />

uma série de outras ideias. De maneira<br />

tal que ele é capaz de ir ver um<br />

galeão sepultado nas águas. Se esse<br />

galeão for restaurado, levado para<br />

um porto e transformado em um<br />

ponto de visita de museu, ele não<br />

vai, porque não tem interesse por ele<br />

a não ser enquanto submerso. Por<br />

quê? Pela especial poesia que existe<br />

no fundo do mar enquanto mar. Pela<br />

maravilha enquanto maravilha.<br />

Um homem assim, se tivesse fé, poderia<br />

pintar aspectos do Céu como sendo<br />

parecidos com a vida submarina. Isso<br />

refrescaria as noções sobre o Céu,<br />

substituiria o Céu perpetuamente renascentista<br />

e o poria em outra clave.<br />

É provável que o Céu Empíreo tenha<br />

uma porção de coisas dessas, que nós<br />

não somos capazes nem de pensar.<br />

Quantos de nós, sem perceber, padecemos<br />

porque nunca nos embrenhamos<br />

pelas searas ignotas que dariam<br />

respiração às nossas almas! Levanto<br />

uma hipótese: não seria um complemento<br />

interessante de toda cultura se o<br />

indivíduo fosse habilitado a imaginar e<br />

a estudar, a se interessar por dois mundos<br />

mais ou menos reais, mais ou menos<br />

impossíveis, mas que representam<br />

o possível, o maravilhoso para ele?<br />

Amor ao bem e ódio ao mal,<br />

fundamento da luta R-CR<br />

Como inserir nesse quadro o aspecto<br />

da luta entre a Revolução e a<br />

Contra-Revolução?<br />

Uma resposta que agradaria muita<br />

gente, mas, por conter apenas uma parte<br />

da verdade, deformaria os espíritos,<br />

seria a seguinte: “Revolução e Contra-<br />

-Revolução não é senão o conceito católico<br />

do caráter militante da Igreja e<br />

da vida. Estude os Anjos, os demônios<br />

um pouco, pecado original, fraqueza<br />

do homem e ascese, pratique em si<br />

mesmo o discernimento entre Revolução<br />

e Contra-Revolução, reprima seus<br />

defeitos, desenvolva suas virtudes e você<br />

terá o panorama Revolução e Contra-Revolução<br />

presente em si.”<br />

Ora, a resposta verdadeira é diferente,<br />

não é só isso. Seria: “Estamos neste<br />

mundo não só para travar essa luta,<br />

mas para conhecê-la. E, conhecendo-a,<br />

ver a vida – a qual é um objeto de contemplação<br />

– como reflexo de Deus na<br />

sua santidade e luta contra o demônio<br />

na sua ignomínia. Não há identidade<br />

de situação. Não são dois deuses, um<br />

bom e um ruim. O demônio não se reflete<br />

nas coisas como Deus se reflete. E<br />

aprenda a amar a Deus nesta realidade<br />

chamada luta, em que você conhece<br />

o bem e o mal, ama o bem e odeia<br />

o mal, em concreto, como existem, porque<br />

isto é que lhe foi dado, para subir<br />

depois às mais altas cogitações do amor<br />

de Deus, na medida em que sua alma<br />

peça. Para isso você tem que amar a ordem<br />

do universo. Para amá-la, precisa<br />

amar as várias ordens que a constituem<br />

e odiar o contrário.<br />

E não é uma luta em tese. É uma<br />

luta dos meus dias como ela existe<br />

hoje. Esta é que você tem que conhecer.<br />

E seu amor e seu ódio têm<br />

que estar postos ali. Nela, ver Deus<br />

enquanto infinitamente superior<br />

a tudo isso, autor de tudo quanto é<br />

bom e oposto a tudo quanto é mal.”<br />

E, além disso, uma certa graça<br />

que vai por cima de tudo isso, um<br />

discernimento do caráter sobrenatural<br />

e preternatural dessas realidades,<br />

o qual, em certo sentido, é o melhor<br />

sol delas.<br />

v<br />

(Extraído de conferência de<br />

15/10/1986)<br />

1) V Conde de Carnarvon. Financiou a<br />

expedição liderada por Howard Carter,<br />

que descobriu a tumba de Tutancâmon,<br />

em 1922, no Vale dos Reis.<br />

2) Arqueólogo e egiptólogo britânico<br />

(*1874 - †1939).<br />

3) Museu Britânico, localizado em Londres.<br />

4) Jacques-Joseph Champollion (*1778<br />

- †1867). Arqueólogo francês, conservador<br />

de manuscritos na Biblioteca<br />

Real e professor de paleografia.<br />

5) Do francês: submundo.<br />

6) Expressão onomatopeica criada por<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> para designar o defeito de<br />

certas pessoas que, desprovidas de intuição,<br />

minoram a importância dos<br />

símbolos e negam o valor da ação de<br />

presença. Querem tudo explicar por<br />

raciocínios desenvolvidos de modo<br />

lento e pesado, à maneira de um paralelepípedo<br />

que, ao ser girado sobre<br />

o solo, emite o ruído “ploc-ploc”.<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1986<br />

29


Apóstolo do pulchrum<br />

O esplendor<br />

do pequeno<br />

Tamara T.<br />

Há um pulchrum verdadeiro, digno<br />

na ordem do ser, que precisa ser<br />

compreendido: é o que tem a<br />

beleza e as excelências de tudo<br />

quanto é pequeno. Descobrir e<br />

contemplar o pequeno maravilhoso<br />

é um dos melhores meios de<br />

prevenção contrarrevolucionária.<br />

Charles J. Sharp (CC3.0)<br />

Faz parte da excelência divina criar o<br />

maior e o menor. Isto é necessário<br />

na Criação, porque se Deus<br />

criasse um único ser ou seres<br />

iguais, as perfeições d’Ele não<br />

estariam representadas de<br />

modo adequado.<br />

30


Julio Alcantara<br />

Excelências em ponto pequeno<br />

Sendo assim, o Criador Se espelha no menor de um<br />

modo diferente do que no maior. É inegável. Há um enriquecimento<br />

da obra d’Ele na qual se estabelece, com seres<br />

desiguais, uma ponte entre estas duas extremidades:<br />

o máximo e o mínimo. Isso dá uma ideia da excelência,<br />

da santidade, do poder de Deus.<br />

Há vários lados por onde se pode perceber no pequeno<br />

ser ele, a vários títulos, uma clave para a apresentação<br />

do belo. O pequeno representa aos olhos de Deus<br />

uma perfeição própria e insubstituível dentro da ordem<br />

do universo.<br />

Deus fez na natureza determinadas espécies em modelo<br />

grande e em pequeno. Por exemplo, a onça, a jaguatirica<br />

e o gato. Ele teve a intenção de que alguma excelência<br />

da espécie felina aparecesse melhor em modelo<br />

pequeno.<br />

Há o galo e o garnisé. Pode-se imaginar um galo clássico<br />

do gênero do Chanteclair; entretanto, o garnisé possui<br />

tudo dele, mas em ponto pequeno. Seria muito falso<br />

dizer que isto é assim nesta terra de exílio, porque no Paraíso<br />

todos os galos são do mesmo tamanho. Seria um<br />

pesadelo!<br />

Nas flores há também um mundo de edições mignon,<br />

que têm um modo de deixar ver uma excelência da espécie<br />

que o tamanho grande não deixaria ver.<br />

J.P. Braido<br />

Nilson B.<br />

31


Apóstolo do pulchrum<br />

J.P. Braido / Gabriel K. / J.P. Ramos<br />

Auges manifestos nos pequenos<br />

Poderíamos nos perguntar que forma de excelência<br />

aparece melhor no menor. Ao contrário do<br />

que pensa o comum dos mortais, o sumo por vezes<br />

se manifesta mais no pequeno do que no grande.<br />

Sobretudo certas formas de auge, porque nas perfeições<br />

de Deus isso não é assim e elas todas podem se manifestar<br />

em ponto infinito. Os extremos harmônicos, para<br />

refletirem adequadamente as perfeições de Deus, precisariam<br />

espelhar-se, porque eles são tão contrapostos<br />

que não cabem numa criatura ou numa espécie.<br />

De modo que é preciso representar as perfeições divinas<br />

em variedades diferentes da mesma espécie. E certo<br />

tipo de excelências de Deus se exprimem melhor no pequeno<br />

do que no grande, porque, postas fora de Deus,<br />

elas são tão grandes que perturbariam a ordem se não<br />

se exprimissem também no pequeno.<br />

Uma grande borboleta azul,<br />

uma cidade calçada de rubis<br />

Consideremos uma borboleta azul e prata. Aquele colorido<br />

da borboleta é esplêndido; ao menos a mim exerceu<br />

sempre um verdadeiro fascínio. Mas, se virmos<br />

aquela cor sobre uma superfície muito grande, ela<br />

perde a beleza. É porque é uma forma tão magnífica<br />

de grandeza que ela fica meio incompatível com a<br />

condição de criatura e fica meio almanjarra se<br />

ela não é representada no muito pequeno.<br />

Imaginem uma cidade calçada de rubis.<br />

Eu, que sou entusiasta deles, ficaria enjoado<br />

daquela abundância de pedras<br />

maravilhosas, pois<br />

32


não está na ordem do criado levar a maravilha além de<br />

um certo ponto.<br />

A excelência de Deus exposta na pedra preciosa ou na<br />

asa de uma borboleta ou no beija-flor e outras coisas do<br />

gênero, é uma excelência tão excelente que, ligada a qualidade<br />

superquintessenciada à quantidade, temos algo<br />

que vai além da medida da ordem do criado.<br />

O pequeno maravilhoso é uma maravilha tão grande<br />

que não poderia ser senão pequena, dentro de determinadas<br />

ordem e valor de medidas.<br />

Dois modos de viver e de pensar<br />

Esta é a grande conclusão contrarrevolucionária.<br />

Tese revolucionária: só visando o máximo o homem se<br />

realiza; apontando o pequeno ele não se realiza nunca.<br />

Tese contrarrevolucionária é: para o homem chegar<br />

ao extremo limite de si mesmo, não é necessário visar o<br />

máximo, porque ele pode ser uma maravilha sendo pequeno;<br />

e uma grande civilização é grande não porque<br />

tem apenas muitos homens que fazem o máximo, mas é<br />

também porque tem muitos homens que fazem de modo<br />

exímio o pequeno.<br />

O máximo da ordem seria a coexistência do auge do<br />

grande e do esplêndido do pequeno.<br />

Assim se chega à seguinte conclusão: é um erro querer<br />

empurrar todo mundo para ser máximo. Há homens<br />

que são de uma condição pequena e nascem para<br />

serem máximos, isto está muito bem. Mas a grande<br />

torrente de pessoas nasce para ser o máximo no âmbito<br />

de sua ordem.<br />

33


Apóstolo do pulchrum<br />

Jean-Pol GRANDMONT (CC3.0)<br />

Shani Evenstein ינש)‏ ‏(ןייטשנבא (CC3.0)<br />

Um pouco à maneira de Deus<br />

Dou um exemplo discreto. A marcenaria atingiu nos<br />

três últimos “Luíses” de França excelências do outro<br />

mundo não atingidas anteriormente. Isso considerando<br />

também do lado prático, porque é sabido que nos móveis<br />

daquele tempo as gavetas não se empenavam nunca, e isso<br />

é um esplendor do pequeno.<br />

A estabilidade daqueles móveis é tal que não racham,<br />

não se decompõem, não abrem fresta, vão até o fim. Modestas<br />

excelências, que eu não poderia chamar de artísticas,<br />

mas artesanais, uma grandeza da marcenaria daquele<br />

tempo. É uma pequena qualidade, mas que representa<br />

um papel insubstituível, magnífico, na ordem real<br />

da marcenaria.<br />

Entretanto, o homem capaz de fazer a gaveta que não<br />

empena, de acordo com os padrões de hoje, quereria ser<br />

artista e estudar numa escola de marcenaria para trabalhar<br />

em uma fábrica de móveis de luxo. Naquele tempo<br />

não: ele, o avô e o bisavô fazem gavetas que não empenam.<br />

Isso leva a um outro ponto que é o seguinte: às vezes,<br />

a coisa é feita mais para o homem, não perante Deus.<br />

Porque há formas de pequeno a respeito das quais o homem<br />

sorri comprazido, dominador e protetor, e são feitas<br />

para o homem se sentir um pouco à maneira de Deus<br />

em relação àquelas coisas e sentir aí a sua própria dignidade.<br />

Prevenção contrarrevolucionária<br />

Poderíamos fazer – sem o aspecto pejorativo da palavra<br />

– uma “micrologia” que seria exatamente o micro<br />

visto do lado não micro.<br />

Há um pulchrum verdadeiro, digno na ordem do ser,<br />

que precisa ser compreendido. Fazer a propaganda do<br />

pequeno belo, enquanto pequeno para os pequenos, é, a<br />

34


Pierre-Yves Beaudouin (CC3.0)<br />

Jean-Claude Chambellan Duplessis (CC3.0)<br />

Lionel Allorge (CC3.0)<br />

meu ver, um dos melhores meios de prevenção contrarrevolucionária.<br />

De fato, para efeito de luta, acho indispensável. Eu<br />

gostaria que nós tivéssemos algumas pessoas capazes de<br />

estudar e descrever a excelência e a honorificência ligada<br />

ao esplendor do pequeno. Em outros termos, o que<br />

há nisto de grandeza, e espalhar isso por todo o mundo,<br />

parecendo não ter uma intenção de luta, mas quando a<br />

propaganda revolucionária entrasse, a pólvora já estaria<br />

molhada...<br />

v<br />

(Extraído de conferências de 13 e 14/4/1978)<br />

Samuel H. Kress Foundation (CC3.0)<br />

35


Porta de misericórdia<br />

que ninguém fechará<br />

J.P. Ramos<br />

AMaternidade Divina de Maria é a<br />

própria raiz da devoção mariana,<br />

porque é por ser a Mãe de Deus que<br />

Nossa Senhora foi investida de todos os<br />

outros títulos, qualidades e graças pelos<br />

quais os fiéis A louvam.<br />

Sendo Mãe de Deus, por uma série de<br />

consequências e a título especial, a Santíssima<br />

Virgem é também nossa Mãe.<br />

Eu acredito que a mais preciosa<br />

graça a se alcançar em matéria de<br />

devoção a Maria Santíssima é quando<br />

Ela condescende em estabelecer com cada<br />

um de nós, por laços inefáveis, uma<br />

relação verdadeiramente materna. Isso<br />

pode se dar de mil modos, mas em geral<br />

Ela Se revela nossa Mãe ao tirar-nos de algum<br />

apuro ou ao nos perdoar alguma falta,<br />

por uma dessas bondades que só as mães<br />

têm, eliminando aquilo como Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo curava a lepra.<br />

Às vezes, Nossa Senhora concede graças<br />

como estas de tal modo que, para a vida inteira,<br />

fica marcada a fogo na alma, mas com um<br />

fogo do Céu, a convicção de que poderemos recorrer<br />

a Ela mil vezes, em circunstâncias mil vezes<br />

mais indefensáveis, e Ela sempre nos perdoará<br />

de novo, porque abriu para nós uma porta<br />

de misericórdia que ninguém fechará.<br />

(Extraído de conferência de 11/10/1963)<br />

Mãe do Belo Amor<br />

(acervo particular)

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