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OR #18

A Originais Reprovados é uma revista literária com textos da comunidade USP editada desde 2005 pela Com-Arte Jr., empresa júnior do curso de Editoração da ECA. Em 2023, os textos selecionados entre cerca de 200 originais foram reunidos em um exemplar que homenageia o movimento Tropicália, responsável por destacar tanto as manifestações tradicionais da cultura popular brasileira quanto as inovações estéticas radicais. Dessa forma, as cores vivas e elementos surrealistas entram em harmonia no projeto gráfico da revista, que conta com inspirações nos nomes e na musicalidade política e irônica de Tom Zé e Gilberto Gil, por exemplo. Em especial, esta edição presta homenagem à vida de Rita Lee e Gal Costa, cujos legados artístico e crítico permanecem como uma bússola para tantos criadores e editores. Acompanhe a Com-Arte Jr. nas redes sociais, Boa leitura!

A Originais Reprovados é uma revista literária com textos da comunidade USP editada desde 2005 pela Com-Arte Jr., empresa júnior do curso de Editoração da ECA. Em 2023, os textos selecionados entre cerca de 200 originais foram reunidos em um exemplar que homenageia o movimento Tropicália, responsável por destacar tanto as manifestações tradicionais da cultura popular brasileira quanto as inovações estéticas radicais. Dessa forma, as cores vivas e elementos surrealistas entram em harmonia no projeto gráfico da revista, que conta com inspirações nos nomes e na musicalidade política e irônica de Tom Zé e Gilberto Gil, por exemplo. Em especial, esta edição presta homenagem à vida de Rita Lee e Gal Costa, cujos legados artístico e crítico permanecem como uma bússola para tantos criadores e editores.

Acompanhe a Com-Arte Jr. nas redes sociais,
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Coordenação geral

Fernanda Benachio

Maria Paula Lucena

Seleção de originais

Maria Paula Lucena (coordenação)

Gabriella Oliveira

Gianna Emanuela

Graciele Carnevale

Rhany Siqueira

Sofia Rego

Preparação e revisão de texto

Maria Paula Lucena (coordenação)

Ana Luiza Ramos de Luna

Gianna Emanuela

Giovana Vinha

Graciele Carnevale

Julia Akemi Sato

Luana Esaisquelhes S. Carvalho

Maria Clara Moreira

Maria Eduarda

Raquel Miranda

Diagramação

Fernanda Benachio (coordenação)

Ana Beatriz Lima Lisboa

Ana Luiza Ramos de Luna

Giovana Vinha

Graciele Carnevale

Isabelly de Paula

Maria Clara Moreira

Milena López

Raquel Miranda

Sofia Rego

Thiago Cordeiro

Projeto gráfico

Fernanda Benachio

Capa

Noah Ruiz


É com muito orgulho que a 18ª edição da Originais Reprovados é

apresentada ao público! A revista literária responsável pela publicação

de textos de toda a comunidade USP contribui não só para a divulgação

de novos autores e fomento do mercado editorial, mas também

para a formação acadêmica de diversos alunos do curso de Editoração

da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Todo o processo

editorial é feito pelos graduandos, o que coloca em prática conhecimentos

adquiridos nas mais diversas áreas do saber textual e artístico.

Em 2023, os textos selecionados entre cerca de 200 originais foram

reunidos em um exemplar que homenageia o movimento Tropicália,

responsável por destacar tanto as manifestações tradicionais

da cultura popular brasileira quanto as inovações estéticas radicais.

Dessa forma, as cores vivas e elementos surrealistas entram

em harmonia no projeto gráfico da revista, que conta com inspirações

nos nomes e na musicalidade política e irônica de Tom Zé e


Gilberto Gil, por exemplo. Em especial, esta edição presta homenagem

à vida de Rita Lee e Gal Costa, cujos legados artístico e crítico

permanecem como uma bússola para tantos criadores e editores.

Assumindo a liberdade do tropicalismo, a revista traz o bordô dos

estofados da época, o dourado dos figurinos de show e os tons de verde

que marcam as paisagens do Brasil tropical. Convidamos, também, Noah

Ruiz, estudante do 4º ano de Artes Visuais, para criar a capa da Originais

Reprovados 18, mostrando o tropicalismo do país em que vivemos.

Agradecemos aos inscritos e a todos que, direta ou indiretamente,

contribuíram para a realização deste trabalho, que tem

como fundamento o respeito à liberdade criativa de seus autores.

Sendo assim, textos como “Até aqui” e “Tá tudo bem” preservam

a linguagem informal como marcas da oralidade e da vivência das

personagens, em tributo à autodeterminação da língua portuguesa.

Em um ano marcado pelas mais diversas manifestações sociais, seja

por meio da quebra de recordes na Bienal do Livro ou até mesmo dos

movimentos notáveis de greve na comunidade USP, a Originais Reprovados

não poderia deixar de se envolver com os temas que norteiam

o fazer poético de tantos autores. Desse modo, a 18ª edição preza

pela pluralidade de conteúdo, pelo resgate dos valores combativos da

composição tropicalista e pela busca daqueles originais que, outrora,

poderiam ter sido rejeitados. Aqui, o som do berimbau entra em consonância

com os acordes da guitarra e, juntos, embalam a coexistência de

gêneros da prosa e poesia em uma revolução não musical, mas editorial.


Sumário

09

11

13

16

19

20

22

23

27

28

31

33

37

39

De onde verte a poesia

Minimalismo

O império dos sentidos palatáveis

Balcão de padaria

Sina

Celofane cinza sobre o céu

Casa

Poesia em euro

Ataque cardíaco

Olhos e dentes

Onda

Lulu não quer comer

Receita de castelo de areia

Para Carlos


42

44

47

51

53

56

58

60

62

64

66

cacos, afetos, sementes

Tortura

Até aqui

Tá tudo bem

Jonan e o arranha-céu

A você

Nua

Depressão

Náufrago

Sonho de toda a noite

Amor paterno

68

70

Autores e contatos

Agradecimentos


De

onde

verte a

poesia

Diego Roiphe de Castro e Melo

@materia.depoesia

09 Originais Reprovados


Quando a poesia não me encontra

nas viradas de esquina

e de mim se esquiva,

aos tropeços,

o que posso dizer

sobre um fim de tarde de Sol bom

num frio de outono?

O que posso dizer

dos pássaros que choram

a vinda de mais uma manhã?

E sobre os tolos caixotes de metal

que, aos montes, se cortam, entrecortam,

disputam e xingam?

E daquela pessoa que tirou as roupas

e mergulhou num rio gelado?

Posso dizer algo daquele que divide

o nada que mal tem

com outro ser, no abrigo duro

duma ponte?

Posso dizer algo da vida,

se não vem a mim a poesia?

Digo,

só,

o que é —

e a poesia nisso basta.

De Onde Verte a Poesia 10


11 Originais Reprovados


Minimalismo

Eduardo Aleixo Monteiro

Disse-lhe que iria ao cinema

Que não iria encaixotar a infância

A adolescência

Ou o começo da vida adulta

Quando voltou

Não havia sequer as caixas

Nem o filme

Que não lembra mais qual era

Minimalismo 12


O império

dos sentidos

palatáveis

Guilherme Trevisan dos Santos

Nessa manhã, saí de casa sem me alimentar. Algo raro, pois sempre

tratei o desjejum com esmero e respeito. Após o banho, visto-me e saboreio

minha primeira refeição do dia: uma fatia de mamão, três ou quatro

torradas com manteiga, às vezes, um danone, mas indispensavelmente

uma xícara de café preto — puro e sem açúcar. Só que, dessa vez, não

comi. Após o banho, vesti-me e saí. Também nem sequer verifiquei o pote

de ração do Franciscos, um gato siamês de 17 anos. No auge dos meus

19, quando adotei o companheiro, eu não sabia se gostava mais de Chico

Science ou Chico César; apelei então para o plural e resolvi o impasse.

Voltando ao que fiz, seguramente não foi por conta de atraso, porque

acordei, como sempre, três horas antes do horário que devo chegar na

obra. Tampouco foi uma vontade excepcional de comer fora, visto que

não improviso minha rotina matinal. Fato é que acordei um tanto inapetente,

reconheço. Teria isso sido provocado por tristeza? Os meses longe

do escritório, é verdade, nunca me fazem bem. Ficar até tarde da noite

passada lendo as últimas mensagens que troquei com Carolina, há duas

semanas, tampouco pode ter ajudado. Seja lá o motivo que me levou a

ignorar o café da manhã de hoje, fato é que estou agora plantado e faminto

sob o sol do meio-dia no que virá a ser a varanda da casa dos Pistoris.

Deve haver alguma forma de autocompensação, algo que eu possa

fazer a fim de reparar o inconsciente ato rebelde que realizei contra mim

mesmo mais cedo. Daqui a alguns minutos irei almoçar, contudo, não há

possibilidade de avivar o menu de arroz, milho e atum enlatado contido no

13 Originais Reprovados


pote que já esquenta no marmiteiro coletivo. Alternativas para o jantar,

talvez? Será difícil, há pouquíssimos ingredientes em casa e, quando

terminarmos a fundação da garagem, os mercados já estarão fechados.

Que o ressarcimento venha então, justamente, no desjejum de amanhã!

Pois bem, há de ser um café da manhã especial. Conhecendo-

-me, creio que uma extravagância pouco me animaria; evitar um

banquete, portanto, é o primeiro passo. O melhor caminho a seguir,

provavelmente, deve ser resgatar refeições marcantes que fiz em

algumas manhãs da minha vida, escolher uma delas e prepará-la.

A primeira opção é pão na chapa com manteiga e achocolatado:

um clássico da minha infância! Poderia, inclusive, quebrar

o ritmo da semana, por provocar aquela sensação de

que está por vir um dia prazeroso pela frente e que

valeu a pena ter acordado cedo. Sim, é uma boa

opção. Vale assinalar, porém, que a falta da padaria,

da maresia, da companhia dos meus pais e

da uma hora de espera dentro do carro enquanto

descíamos a Rodovia dos Imigrantes rumo à praia,

pode impedir a realização completa dessa refeição.

Vamos à outra, ovos mexidos com salsicha ao molho:

o cardápio matutino responsável pela minha conclusão

da quinta série. Outra forte concorrente, sem

dúvidas. Victor e eu chegávamos a tempo das

primeiras aulas somente para garantirmos

acesso ao


recreio e, consequentemente, à cantina. Comíamos nos velhos pratos azuis

do colégio, mas passaram-se meses até descobrirmos que o “temperinho

azul” especial do ovo era, na verdade, pedaços de plástico. Não conseguirei

para amanhã um desses pratos, nem o som do sinal, que era como uma autorização

para a minha boca salivar. A companhia de Victor, então, acho que

é o item menos provável de ser recuperado. Necessito de algo mais viável.

Penso, então, na brusqueta de tomate com mussarela de búfala e suco

de uva: as boas-vindas dos meus avós a cada visita dominical. Ficar petiscando

essa iguaria a espera do prato principal, o qual só saía por volta

das três da tarde, fez dela algo tão marcante em minha memória quanto

as canções italianas que eram entoadas pela vitrola do meu avô. Consigo

ir até a casa deles no próximo domingo, ficar para o almoço e pôr alguns

discos. Há de funcionar — todos os elementos estão ainda acessíveis.

Minha avó, infelizmente, faleceu, mas sempre foi meu avô o responsável

pelas brusquetas. Enquanto ele as colocava sobre a mesa, dona Giulia

exclamava: “Mangia che te fa bene, caca forte e non tene paura da morte!”,

1

despertando o riso entre os mais novos. Pensando bem, creio que sem

essa mensagem de incentivo será falha a tentativa de me satisfazer.

Quem sabe, só me resta acompanhar Franciscos na imutabilidade

da refeição matinal contemporânea e evitar indiferença

perante a ela. Ele, com petiscos sabor salmão para gatos

adultos de raça, e eu, com uma fatia de mamão, três ou quatro torradas

com manteiga, às vezes, um danone, mas indispensavelmente

uma xícara de café preto — puro e sem açúcar. Afinal, daqui a pouco

tempo, quando Franciscos se for, será mais um café que perderei.

1 Coma, te faz bem, cague forte e não morra de medo!

15 O império dos sentidos palatáveis


Balcão de

Padaria

Luís Antônio Soadas

Gerânios crescem um centímetro todas as manhãs na hora do orvalho;

eu acordo e somente um dos lados da cama está desfeito. Bebo

café sem açúcar. Arrumo a mesa para dois e coloco música para calar

a voz dos meus pensamentos. O sol nem bate à porta, entra, queima

feito fogo meus irmãos do agreste; o gado pasta, o sertanejo tira o leite

do seu sustento e depois solta o bezerro para mamar o que restou;

eu estou aqui, tu, aonde o diabo te carregou. Vejo minha vida exposta,

segredos nossos que tu juraste serem nossos, só nossos; as manhãs

de café e jornal, leite espumante e açúcar mascavo, meu peito agredido

ao som de cada palavra tua. Nem te encontro na rua, ainda que não

saias dela. Uma bolsa, um espelho na bolsa, batom rosa chá, blush, pó

de arroz, sutiã, agenda, marcar clínico geral e odontologista, unha do

pé encravada, anotações, meu nome riscado com pulsação e medo.

Talvez eu te entenda. E não te espero tarde ou cedo. Espero-te. Um

colírio só para tirar a vermelhidão dos olhos, nécessaire. Tua voz e a

minha em uníssono dizendo as coisas do amor. Palavras. Coisas do

tipo: “Só tu sabes entrar dentro de mim, por isso te amo”. Coisas do

tipo: “Ela tem o corpo dos sonhos das mulheres”.

Acabou o encanto. Cansei de nós, dos dias, da casa, das chuvas de

fim de tarde, dos fins de tarde, das tardes. Há tons de cinza no arco-

-íris. O céu chove granizo, uma criança está desabrigada e faminta,

mas não chora em plena rua da amargura, porque acredita no amanhã.

Toda chuva cessa, seja temporal ou garoa. Toda chuva cessa. A

criança protege a cabeça com as mãos e as pedras ferem-na, o sangue

Originais Reprovados 16


escorre, a água o lava e as calçadas ficam vermelhas. Nada é mais justo

do que a nossa própria dor, portanto, se todos sofrem, não é justo

dizer “Eu, porque eu [...]”; mas dizemos. Haverá algum dia justiça,

tendo em vista que ela é feita por homens e todos eles sentem dor?

Escutei esta indagação de uma voz qualquer nesses dias em que meu

peito está aqui, disponível feito balcão de padaria: trânsito de desejos,

fome, saciedade, conversas soltas e paralelas, pagamentos e agradecimentos,

nenhuma fixidez, presenças de meia hora e até mais.

João, eu não sinto tua falta. Mas os pães que tu fazias... são... os

pães que tu fazias. Os melhores. De manhã, quando acordo e preparo

meu café, desejo pão. Bebo leite, coalhada, suco de laranja. O trabalho

não muda uma vírgula há sete anos. À tarde, quando o dia se vai e eu

volto para casa, acompanha-me a solidão dos meus pensamentos. A

vida dos poetas é essa; isso me consola. Deus determinou: uma parte

dos homens, rica; uma parte dos homens, pobre; e os demais, a vida

inteira como exercício de raciocínio sobre ambas as partes. Quem

ama é rico? João, pouca coisa ou quase nada — arrisco dizer que nada

— ficou para ser dito. Mas os pães que tu fazias... são... os pães que tu

fazias. O teu alimento me botava de pé assim que o dia tinha início e,

quando o dia terminava, eu me botava no chão para o teu alimento.

João... A nossa cama tinha lençóis que guardavam teu cheiro, ainda

que tu dissesses que sentia meu perfume ali. Quem não perdoa é pobre?

Um corpo que nunca vi e nem quis e nem quereria e nem quero

sobre aqueles lençóis. E teu corpo, que eu julgava conhecer tão bem,

tão meu, teu corpo que sempre quis, sobre aquele corpo que nunca

vi. O baile das ondas sobre nossos lençóis. Aliás, sobre aqueles panos.

Trapos velhos para os quais tu devias confidenciar e ruminar desejos

de tua pele branca e rosa. Fortuna é amar e ser amado. Tu és digno

de pena ou perdão? Eu não desejo nada. Não desejo teu corpo sobre

aquele corpo até agora, nem desejo corpos separados. Tenho a sensação

de que tu não estás nada bem. Condenado está quem não absolve

teu próximo da culpa. Prefiro não pensar, não julgar, não sentir. Mas


sentir eu sinto. O meu café é bom. Aprendi dia desses uma receita

bem simples: biscoitos de água e sal. Posso preparar 500 biscoitos

em uma única tarde e presentear pessoas que estão de regime ou até

mesmo vender a preço de custo. Como tapioca, bolo de cenoura, pão

francês. Mas, João, os pães que tu fazias... são... os pães que tu fazias!

Balcão de padaria 18


Sina

Beatriz Cherubelli Demarchi

Minha sina é a angústia,

a ânsia de bêbado ciente,

que

anda por beco sem saída

e

tem o andar coxo e circense

de quem não sabe de que carece.

19 Sina


Luís Figueiredo

Celofane cinza sobre o céu

A impessoalidade do concreto puro predominava por todo aquele

monólito. A mesma impessoalidade impregnada nos seguranças e

funcionários era apresentada por monossílabos, quando não por queixos

mal erguidos ou dedos pouco esticados, na tentativa de apontar os

diversos caminhos em um prédio onde a lógica labiríntica era necessária.

O cinza do concreto também afetava a diafaneidade do

ambiente. Da boca dos fumantes, enguias lisas e glaucas serpenteavam

rumo ao céu e lá adensavam ainda mais a paleta de

cores daquilo que se chamava Hospital do Servidor Público.

Da janela do sétimo andar, eu observava a praça em que aqueles

que acompanhavam seus doentes se permitiam brevidades de sossego,

Originais Reprovados 20


desabafos telefônicos, minutos de contemplação ante um copo de

café, ou mesmo o simples conforto que o calor dos raios de sol pode

proporcionar. Eu tentava me sequestrar da conjuntura de uma mãe

doente configurando pontos focais com o olhar para me sublimar ao

focalizar qualquer objeto que me levasse a lugar algum. Como se a aquisição

de uma monomania me blindasse daquilo que me amedrontava.

No exato instante em que lutava para expulsar todo pensamento

que não fosse o observar de um pombo com sua pata

deformada, um zunido sibilante adentrou o hospital. Macabro

zunido, ziguezagueando pelos corredores, assustou a faxineira,

que fez prontamente o sinal da cruz e me trouxe a ideia de

Deus. Apesar do clima de novembro, o nublado do dia dominava o

cubismo dos prédios através da janela daquele quarto de hospital.

Pensei que, talvez, o som fosse fruto do forte vento entre os prédios

altos e lembrei-me de um trivial brinquedo. Bastava um pente marrom,

daqueles antigos, coisa de avô, e um papel celofane. Esses dois objetos

somados produziam um som fraco e flébil, mas, por sua vez, tão assombrosamente

sibilante quanto o som que agora tomava conta do hospital.

O sopro de Deus no celofane cinza com o qual ele havia coberto a cidade.

Conclui, então, que Deus não entende o que é perder a mãe. Primeiro,

porque, ao que consta, não há registro que comprove a existência de

sua mãe. Segundo, porque a mulher que o serviu como mãe emprestada

nesta Terra assistiu à sua crucificação, vendo-o morrer. Terceiro,

porque esse mesmo Deus, não querendo ver sua mãe emprestada

morrer, transportou-a com corpo e alma aos céus no Dia da Assunção.

Se é ficção ou não, registre-se que na Bíblia não há acalanto

para minha dor. Pois a dor de perder a mãe é a única dor que

Deus não conhece. É a tocante dor exclusiva dos seres humanos.

21 Celofane cinza sobre o céu


Casa

Guilherme Freitas

Sempre que sentia medo, raiva ou frustração,

Podia encostar na porta e ela sempre se abria.

Aquela casa me acolhia

Como nenhuma outra jamais acolheu.

Sentia-me seguro, cuidado, protegido,

Como se o mundo não pudesse mais

me ferir,

Como se só existisse eu e a casa;

Nada mais importava.

Mas eu me mudei

E, apesar de sempre tentar ficar longe,

Em um dia ruim, voltei e bati à porta.

Dessa vez ela não se abriu.

Não importava o quanto eu gritasse e a

esmurrasse,

A casa estava trancada e assim ficaria.

Casa 22


Poesia em Euro

Gabriel Schincariol Cavalcante

Lembrei de você era o assunto do e-mail que ele recebeu.

Encontrei esse livro e lembrei de você. O nome é Fibrilações 1 . Este

era o corpo do e-mail, seguido de quatro versos: A memória é / onde os

sonhos adormecem / Despertando / abrem janelas no tempo.

O primeiro contato que ela fazia em mais de um ano.

A primeira reação que ele teve ao pegar o celular, ver a notificação

do e-mail, o assunto Lembrei de você e o nome dela como remetente foi

de ser engolido pela ansiedade súbita de uma notícia inesperada, mas

antecipada. As mãos suaram e o coração acelerou. Quando se falaram

da última vez, mais de um ano antes, as mãos também suaram e o

coração também acelerou. Naquele momento, também houve a ansiedade

súbita de uma notícia inesperada, mas antecipada pelos dois:

a despedida ríspida, incongruente. “Então tá, então. Se é o que você

quer”. “O que eu quero? Então tá, então, é o que eu quero”. “Então tá”.

A ansiedade não discrimina entre alegria e tristeza, ela só prenuncia.

Ao ler os quatro versos, a ansiedade começou a se dissipar em prol da

dúvida. “Lembrou de mim?”.

A memória é / onde os sonhos adormecem.

Lembrou-se dos dois e lembrou-se deles adormecidos naquela

primeira hora da manhã, em que o corpo se ajusta perfeitamente ao

colchão e ao lençol e ao corpo da outra pessoa e não há neste mundo

nada mais confortável e menos duradouro do que a sensação de aconchego

e proteção e descanso. Ao resgatar essas memórias, sentiu a

1 Livro real escrito por Ana Hatherly.

23 Originais Reprovados


turvação púrpura do sonho. A memória é /

onde os sonhos adormecem. Repetiu os versos.

[...] onde os sonhos adormecem. E então:

Despertando / abrem janelas no tempo.

Lembrou-se de como era difícil abrir os

olhos naquela primeira hora da manhã, de

como queria que o tempo se encerrasse ali,

naquele instante, para não ter nunca que deixar

a cama.

Mas o tempo nunca se encerrou e eles sempre

despertavam e sempre deixavam a cama.

Leu e releu e releu e releu. Investigou o poema, procurou pistas de

uma mensagem cifrada. Pensou: “Será que ela também se lembrou

daquelas manhãs?”

Pensou: “Será que ela também tem saudade daquelas manhãs?”

E só quando pensou nisso é que percebeu que sentia saudade daquelas

manhãs. Percebeu a saudade no momento exato em que formulou

o pensamento e em que resgatou a memória.

[...] abrem janelas no tempo.

Clicou em Responder e não sabia o que escrever. Não escreveu nada.

Decidiu por outra coisa: digitou o nome do livro no Google e entrou

no primeiro link disponível. Sem disponibilidade para a sua região.

Sem disponibilidade para a sua região. Sem disponibilidade para a sua

região. Não estava à venda em nenhuma livraria ou editora do Brasil,

a única opção era comprar diretamente da Europa.

R$ 496,16. Quatrocentos e noventa e seis reais e dezesseis centavos

o preço do livro de Portugal para o Brasil. Repensou. Será quê? Talvez

fosse melhor deixar para lá. Talvez fosse melhor não responder. Talvez

fosse melhor não lembrar.

Talvez fosse, mas não foi: comprou. Digitou o número do cartão de

crédito, comprou e sentiu um frio subir pelas suas costas quando a

notificação do banco apareceu na tela confirmando a compra e pensou

Poesia em Euro 24


que no mês seguinte ele teria um problema. Mas isso seria só

no mês seguinte.

Pagamento confirmado.

87 anos antes, em 1929, nascia na cidade do Porto

uma mulher. Suja de sangue e de placenta, de olhos

fechados e de pele enrugada, ela chorou ao nascer,

o que não testemunhamos, mas é possível afirmar

com um bom grau de certeza. E como é

próprio de quem nasce gente e ainda mais de

quem nasce gente e mulher, ela chorou outras

vezes enquanto crescia. Foi enquanto crescia que ela

descobriu que vivia no berço da língua portuguesa e foi a

língua portuguesa, que chamamos de língua materna, que

ela aprendeu. Achou outro jeito de sofrer e de sorrir e de chorar e

de viver, que era usando as palavras, o que reconhecidamente falta

aos recém-nascidos. 75 anos depois de chorar pela primeira vez, um

punhado de suas palavras, organizadas em versos, foi impresso

em 100 edições numeradas sob o título de Fibrilações. Um ano

depois, o livro foi publicado comercialmente, com tradução

para o castelhano. 11 anos depois, em 2016, após o momento

em que ele apertou Confirmar pedido e recebeu a resposta de

Pagamento confirmado, o livro saiu do estoque de uma livraria

em Portugal e foi levado até um furgão e o furgão foi até o

porto e do porto o livro foi para um contêiner e do contêiner

para dentro de um navio e o navio atravessou o oceano e,

ao atracar no porto do Brasil, o contêiner foi descarregado

em terras brasileiras e o livro foi separado e colocado em

um caminhão e do caminhão em uma van e da van para a

mão de um fiscal da Receita Federal para ser carimbado e,

então, em outra van e, enfim, na bolsa de um entregador

dos Correios que, 32 dias depois da compra, bateu em sua

casa dizendo “Entrega!”, e o que começou 87 anos antes e

passou por tantas mãos sem rostos agora estava nas mãos

dele, por R$ 496,16.

25 Originais Reprovados


32 dias de um e-mail sem resposta. Ele abriu o livro. Leu tudo em

menos de meia hora. 44 poemas, quase todos compostos de uma

quadra. R$ 11,00 por poema, ele pensou. Ela seria ótima escrevendo

poesia para o Instagram, ele pensou. Não sabia o que achar do livro.

Não sabia o que responder.

Mais de um ano depois da última vez em que eles se falaram e 32

dias depois de ela ter apertado Enviar com as mãos suadas e o coração

acelerado, a notificação chegou: Re: Lembrei de você.

No corpo do e-mail, apenas a foto da mão dele, que ela reconheceu

de imediato, segurando o livro. Embaixo, escrito: R$ 496,16. Poesia

em euro.

Quando ela, 32 dias antes, apertou o botão Enviar, não sabia o que

esperar como resposta. Se receberia alguma resposta. “Então tá, então.

Se é o que você quer”. Mas, ao receber a resposta que ele enviou, soube

naquele momento que era exatamente a resposta que ela esperava.

Quatro versos, uma estrofe: A memória é / onde os sonhos adormecem

/ Despertando / abrem janelas no tempo.

Quando ele tirou os dois livrinhos da última caixa da mudança, era

essa a página marcada em cada um deles.

Olha só o que eu achei.

Poesia em Euro 26


Ataque

Cardíaco

Matheus Mendes

— Alto lá — disse o poeta ao coração. —

Se passar, que passe com gentileza.

Paire no ar, caia com lentidão.

Ou seja bruto, encerre em frieza.

O coração não responde, curioso.

— Como pode estar sempre contra mim? —

o poeta indaga, em certo gozo.

— Quanto mais tempo será assim?

Sístole, diástole, veias, artérias.

— Diferente de ti, não tenho férias —

respondeu o órgão vital.

vecteezy.com

— Não tenho tempo para amor ou ódio.

Enquanto tens novo episódio,

eu terei a palavra final.

27 Originais Reprovados


Olhos e dentes

Ayelén Medail

Bárbara grudou com o ímã a lista de compras do mês na geladeira.

Como de costume. Avisou a sua colega da cozinha que era para entregar

ao motoboy que passaria às 17h e saiu a caminho de casa. Precisava

descansar antes de ir para a escola. Há dias seu rendimento na

sala de aula não era o mesmo. Estava aérea desde que ouvira aquela

voz na recepção do motel.

Chegou em casa e sua mãe tomava café. O copo de cachaça, o pão

com manteiga e o copo de café frio repousavam sobre a mesa enquanto

a mãe escutava Silvanno Salles tão alto que dava para ouvir desde a

viela de cima. Sofria em silêncio, como sempre. Chegou desligando

o som e reclamando com a mãe, que apenas a olhou e secou o copo

de cachaça 51 com uma golada só. Bateu a porta do banheiro e

tomou um banho de água gelada. Sentiu seu corpo se estremecer

sem entender se a causa era a temperatura da água ou a sensação

de realização. Colocou o pijama, fechou a cortina e tentou

dormir. Não conseguiu. Tirou o pijama. Dormiu por algumas

horas intermitentes, alternando sonhos com goles de água

da garrafa que estava ao lado da cama. Levantou-se e foi

para o supletivo.

Há duas semanas, teve a certeza de que sua oportunidade

chegara. Estava com um prato de frios e um copo de

vitamina de banana quando ouviu aquela voz inesquecível

falando pelo interfone da recepção. Ficou escondida

no batente da porta até o carro avançar e, enfim, chegar

ao quarto standard do motel. Foi só depois que entrou

na recepção e deixou o prato para sua amiga e colega de

trabalho. Aproveitou para indagar sobre o cliente enquanto

sua amiga, agradecida, devorava os frios, alternados com

Originais Reprovados 28


goles longos de vitamina. “Esse cliente vem sempre, né?”, perguntou.

“Quase todos os dias, Bá. Mas por que o interesse, hein?”, ela disse. O

tom brincalhão da amiga a desconcertou e ela tentou desviar o assunto.

“Não é nada, não. Acho que é meu vizinho, reconheci o carro. Ele é

casado”, mentiu.

Saiu da recepção e, ao invés de voltar para a cozinha, como

sempre, foi até o corredor do quarto standard e ficou ouvindo detrás

da porta. Apenas ouvia-se a voz dele, imperativa. Voltou para a

cozinha e ali estava o pedido de sempre: gelatina de morango, café

expresso e Toddynho. Lembrou-se de

seus cinco anos, quando o

marido da mãe a obrigara

a colocar a gelatina em


sua virilha para ele comer, como se ela fosse um pote. Arrepiou-se

e chacoalhou a cabeça. Preparou o pedido e o deixou no elevador de

comidas com o número do quarto.

Apurou sua investigação durante semanas. A cada vez que via pela

câmera de segurança que o Volkswagen Gol prata estava em frente à

porta, aparecia na recepção com algum petisco feito com os restos

da comida que preparava para os clientes. Suas colegas adoravam-

-na por isso. Chamavam-na de mainha Bá. Foi nessas semanas que

descobriu que o homem nunca entrava com a mesma garota, mas

que elas eram todas maiores de idade. Para ingressarem no motel,

precisavam mostrar o RG. Era uma norma da casa desde que, depois

da inspeção que fechara vários dos motéis da Avenida Radial Leste,

o dono ficou alerta.

Depois da prova de matemática, a professora liberou a turma e

Bárbara chegou mais cedo ao serviço. Sua colega, um tanto surpresa,

pediu que ela guardasse as compras que tinham chegado às 21h, mas

as quais não tivera tempo de organizar. Ela obedeceu com a calma de

quem sabe que tudo está ocorrendo como pensado. Estocou a geladeira

com os frios, os sucos e outras bebidas. Pôs a carne no freezer. Guardou

os pacotes e frascos no armário, tomando o cuidado de não

misturar alimentos com produtos de limpeza, e foi se trocar.

Liberou sua colega meia hora antes, com a desculpa de

que já estava pronta para trabalhar. Tomou conta dos pedidos

em andamento: tirou a pizza de muçarela do forno,

apresentou o estrogonofe no prato com arroz para duas

pessoas, serviu os copos de suco de laranja e mandou

subir o elevador. Aproveitou para preparar a gelatina de

morango. Abriu o frasco de chumbinho e o diluiu na água

quente; misturou o pó da gelatina; acrescentou a água fria

e colocou na geladeira. Viu o Gol chegar à porta do motel e

suspirou. Segundos após receber o pedido, com um sorriso

de coringa, apresentou a gelatina, o café expresso e o Toddynho,

e chamou o elevador. Sentou-se na bancada, abriu uma cerveja

gelada e esperou seu sonho se concretizar, seu sonho de criança.

Olhos e dentes 30


OndaThiago Souza da Silva

Eles eram jovens

Quando os céus escureceram, os ventos

sopraram

E o mar retrocedeu.

Eles comemoraram e cantaram

E comeram e beberam e amaram como nunca antes,

Pois sabiam que a onda em breve viria

Varrer o terrível mundo que haviam herdado.

E agora eles são velhos,

Mais plástico e metal que carne, mais silício que mente,

E a onda nunca veio.

Morto todo o júbilo, saciado todo o apetite;

O amor tornado ódio, tornado ressentimento, há muito

esquecido;

Seus próprios horrores, somados aos dos seus pais

E despejados sobre seus filhos.

31 Onda


E eles se esconderam

Nos labirintos de vidro e concreto de

suas cidades,

Mergulhados em ilusão e apatia.

Ou foram para os campos de

batalha,

Agarrados à esperança de que

a vitória sobre algum inimigo,

Arbitrária e breve que fosse,

Desse sentido ao resto de

suas vidas.

E eu contemplo a terra

arrasada

Escuto o trovão ao longe e desejo

correr para avisá-los,

Mas não há tempo. Nunca houve.

A onda está vindo...

Onda 32


Marina

Lulu não quer come r

Macambyra

aviso de gatilho :

violência explícita

Paula recolocou os fones de ouvido, tirados minutos

antes a pedido da mãe, e selecionou uma playlist

com metais barulhentos. Não adiantava conversar

e tentar enfiar um pouco de sensatez naquela cabeça

delirante. Logo começariam as recriminações de sempre e

tudo acabaria em briga. Não deveriam voltar para casa um dia antes

do previsto, culpa de Paula e de seu eterno tédio adolescente. Mas

também não deveriam ter deixado para sair tão tarde da casa da praia

e muito menos deveriam enveredar por uma estrada desconhecida,

culpa da desorganização de Ivone, mãe superprotetora, mas não muito

competente.

A menininha no banco de trás, quieta e suja, era o ponto mais alto

do desastre daquela viagem. Como uma mulher adulta e supostamente

bem-informada, uma professora, tem a audácia de fazer aquilo? Avistaram

a menina sentada num tronco, à beira da estrada, sozinha. Ivone

parou o carro alguns metros à frente e esperou Paula parar de gritar

que poderia ser uma armadilha, que talvez houvesse assaltantes escondidos

no mato. Depois de olhar em volta e avaliar o local, concluiu,

em sua habitual onipotência, que não havia sinal de perigo e saiu do

carro. Paula pulou para o banco do motorista e ligou o motor, alerta,

pronta para escapar dali o mais rápido possível, deixando a mãe, se

33 Originais Reprovados


necessário. Pelo menos era o que ela prometia a si mesma, mas, no fundo,

não tinha certeza de que seria capaz.

Minutos depois, Ivone voltou para o carro, trazendo pela mão a criança,

que a seguia tranquilamente. Pela lógica de Ivone, ela só poderia estar

abandonada, talvez perdida, ou, pior, sequestrada, porque ninguém deixaria

uma menina tão pequena naquele lugar à noite. Tão suja e magrinha,

com o cabelo todo desgrenhado, era impossível que tivesse família. Paula

sugeriu chamarem a polícia, mas Ivone preferia entrar na cidade mais

próxima, embora nem soubesse qual era, porque o gps tinha deixado de

funcionar assim que entraram naquela estrada.

“Quem enfia uma criança desconhecida num carro, no meio da noite,

sem saber de onde veio a criatura e nem para onde estão indo? Minha mãe,

claro”, pensa Paula.

— Lindinha, você está com fome? Quer um sanduichinho?

A menina fez que não com a cabeça.

— Olha só, meu bem, fui eu que fiz. Está uma delícia, você não quer,

mesmo?

Bolachinhas, chocolate, maçãs, uma bananinha e

muitos diminutivos. A pequena só fazia abanar a

cabeça, cada vez mais enfaticamente. A mãe

continuava oferecendo tudo o que havia de

comestível no carro, o que não era pouca

coisa. Ivone era o tipo Maçã (pequenininha),

sanduíche, banana, bolachinhas.

Então, a garota falou, pela primeira vez,

em voz claramente irritada:


— Lulu não quer comer.

— Seu nome é Lulu, meu anjo? Que gracinha, que nome mais bonito!

Então, Lulu, não quer nada, mesmo?

A lista de comidas recomeçou e a menina repetia a mesma negativa.

“Lulu não quer comer”.

— E se a gente tentar achar um restaurante? Quem sabe uma sopinha,

um macarrãozinho, que tal, Lulu?

— Pelo amor de Deus, mãe, ela já disse que não quer! Pare de encher

o saco e dirija, a gente precisa deixar essa criança em algum lugar!

Paula estava quase em lágrimas e Lulu parecia ainda mais pálida,

mas Ivone não desistiu:

— Só metade de uma bolachinha, então. A Paulinha corta pra você.

Pode ser, Paulinha?

Nesse momento, provavelmente exausto, o motor do carro morreu.

Só vários meses depois Paula se lembraria do que aconteceu. Não

de tudo, mas do suficiente. Ela não disse nada para a polícia, nem para

o pai, nem para ninguém, mas viu perfeitamente quando Lulu saltou

sobre Ivone. Quase voou, na verdade, ágil e precisa, diretamente na

garganta da mulher. Paula não conseguia se lembrar com clareza das

imagens, que surgiam um pouco borradas e confusas em sua mente,

mas jamais esqueceria dos sons da carne sendo rasgada por dentes

infantis e afiados, do sangue sendo sugado e lambido com insana sofreguidão,

da voz da menina repetindo “Lulu não quer comer” enquanto

cuspia pedaços de pele e cartilagem sobre o painel do carro.

Paula foi encontrada no início da tarde do dia seguinte, coberta de

sangue, ao lado do cadáver destroçado da mãe, com os olhos vazios,

muda. Só recobrou o uso da voz três dias depois, mas não conseguiu

explicar o ocorrido de forma compreensível. Só dizia que “ela” rasgou

a garganta da mãe e que “ela” não queria comer. Ninguém suspeitou de

Paula, porque as marcas de dentes e os traços de saliva encontrados no

cadáver não eram seus. De quem seriam, então? A polícia, sem muita

35 Originais Reprovados


paciência, acabou prendendo uma infeliz enlouquecida que morava

num barraco nas imediações e já havia sido presa por agressão algumas

vezes. Na última prisão, atacou a mordidas uma colega de cela,

que por pouco não morreu dessangrada.

O viúvo, preocupado demais em cuidar da filha traumatizada para

questionar o trabalho policial, aceitou a solução. Era trágico, mas a

explicação era plausível.

Paula se recuperou e, poucos anos depois do acontecimento, em sua

primeira viagem de carro sozinha, rumou diretamente para a cidade

mais próxima ao local onde ocorreu o encontro com Lulu.

“Vou percorrer essas estradinhas vagabundas todas as noites, até

encontrá-la. Onde está você, Lulu? Continua vagando sozinha por aí?

Eu poderia cuidar de você, se for de seu agrado. Apareça. Eu não guardo

rancor, Lulu, eu entendo. Eu mesma nem sempre quero comer”.

Lulu não quer comer 36


Receita de

castelo de

areia

Ozymandias, o Faraó

37 Originais Reprovados


Em frente ao mar, ajoelhe-se na areia;

Esculpa um lar, use sua imaginação.

Para torná-lo digno de um tritão ou sereia,

Inclua conchas e algas de decoração.

Visando a torres que alcancem o céu, erga o chão;

Expanda-o com as mãos, levante uma aldeia.

Crie muros, prepare-se para a invasão

Trazida pela subida da maré cheia.

Ouse — até mesmo — deixar a construção feia,

Se largar a estética trouxer proteção.

Cave valas e procure algo que bloqueie,

Apesar de que qualquer esforço será em vão.

Enfrente o mar, veja-o varrer cada grão;

Não se culpe pelo fracasso que floreia.

Aconchegue-se na imutável convicção

De que o tempo sempre tritura tudo em areia.

Receita de castelo de areia 38


Filipi

Não me chamo José. Tampouco presto para o papel de coda

de um poema qualquer para me chamar Raimundo. Vasto, sim,

vasto mundo. Existe uma vastidão de nomes dispostos por

entre Davi as engrenagens Amorim secretas de Andrade desta máquina que se chama

— essa sim posso nomear — máquina do mundo. Mas o que

isso importa? Não me chamo Raimundo, quem dirá, então,

José. No fundo, não interessa, chame-me do que bem entender.

Mas, Carlos, quando nasci, não sei se acredita em mim,

anjo nenhum desceu para dizer o que eu seria na vida. E foi

só alguns anos depois que li diferente a profecia que lhe fez

esse anjo que, mau grado meu, só conheço por seus versos.

Mas, por favor, peço que entenda, não foi por mal. Juro que

não. É que não decifro sinais gráficos muito bem; há sempre

cifras e códigos com os quais não atino. Digo tudo, tem uma

pedra no meio da forma com que percebo o mundo. Mas, vá

lá, Carlos, não tive educação formal que valha menção, soma-

-se a isso o fato de que, naquele tempo, o que eu entendia por

língua estrangeira se resumia aos grunhidos dos vaqueiros, que,

foi-me ensinado cedo, tinham razões que nem mesmo minha

avó ousava conhecer. Como poderia, então, entender francês,

Carlos? Não foi por mal. Mas em vão me tento explicar. Ler, para

mim, sempre foi ato ativo de alcançar, por força, significados.

Foi assim, só com o que tinha em mãos naquele tempo, que

desvendei a profecia que o anjo trazia para você em nascimento:

39 Originais Reprovados


“Guache”, assim mesmo como vai escrito, ou em itálico,

para ganhar um tanto mais de força, mas, não importa a forma,

sempre em língua nossa, nativa. Nunca enxerguei ali o “gauche”,

Carlos. Já disse — tenho dificuldades com as letras, sou disléxico,

meu caro. Para mim, sua sina sempre foi ser guache. Ser

guache na vida. Sempre achei uma imagem encantadora, Carlos.

A sina de ser guache me dava tremenda inveja. Queria também

poder ser guache, meu cerne colorido diluído em água e, então,

volátil como ela. Ter fracas fronteiras e, com facilidade, me

fundir com as demais cores, apagar linhas e abrir horizontes,

abrir caminhos. Ser, por fim, simples e belo como um desenho

em guache feito por uma criança de cinco anos. Ser guache na

vida é uma sina e tanto, Carlos! O que dizer, então, de um guache

em itálico! Deitadíssimo. De qualquer forma, percebi, há pouco

tempo, já um homem atrás de seu bigode, o erro e a distorção

que estava infligindo aos seus versos. Percebi que o anjo, e faz

sentido ser assim, na realidade tinha muito de francês. Claro,

francês! Talvez louro, de tez clara e olhos azuis, durante muito

tempo inconcebível para mim. Contudo, não poderia ser diferente.

Um anjo que falasse português seria, este sim, impossível.

E, se paro agora para pensar, talvez seja por isso mesmo que

anjo nenhum veio anunciar minha sina. Eu só sei meu português

torto, herdado de meus ancestrais que foram obrigados a

usá-lo, Carlos. Etimologias que não se contam sem lagoas nos

olhos e fogo no peito (e meu ódio é o melhor de mim — não me

salva, mas dá-me esperanças mínimas). Etimologias que, ainda

assim, nos formam; que me formaram, infelizmente. Por muito

tempo, quis também um anjo, mas, hoje, penso que assim está

Para Carlos 40


tudo bem. Se realmente quero uma sina, posso roubar uma

para mim. E, Carlos, não me leve a mal, hoje sei o que o anjo

lhe disse em francês e entendo o significado de seus versos,

mas ainda prefiro, e humildemente vos peço que me perdoeis,

a versão que criei quando criança. Eu também quero compor

aquela canção capaz de pôr as crianças para dormir e os adultos

de pé, meu caro. E era a Adélia que recitava, quando criança,

poemas de pessoas famosas e dizia-os dela, alegando que, uma

vez cantados, passavam a ser parte dela, não era? Ou talvez não

tenha sido, minha memória não é das melhores. Nem minha

inteligência, mas juro que tento. Não interessa. O que quero dizer

com tudo isto é: sorte ou azar, não fui visitado por anjo algum;

nasci na beirada de uma das margens do mundo e a sua sina,

Carlos, é a que fui roubar — “Vai, filho, ser guache na vida”. A

propósito, Carlos, eu realmente não me chamo José, não sou

também solução e tampouco rimo com o que quer que seja para

me chamar Raimundo. Meu nome, não que valha algo, é filho,

pois foi assim que primeiro minha mãe me chamou, e mãe, na

sua graça, é eternidade, certo? E é só isso que importa. De todo

modo, termino o que queria lhe escrever assim, sem parágrafos

nem versos ou conclusão, porque, Carlos, eu não sou poeta.

41 Originais Reprovados


cacos, afetos,

sementes

Sarah Sprengel

numa madrugada de um verão nova-iorquino, pouco antes

dos anos 70 se iniciarem, o som da vidraça se quebrando da

fachada de um bar irrompeu em meio ao silêncio da noite.

“foi mal, senhor policial. eu não queria acertar esse tijolo na

fachada”, ela disse. “eu queria acertá-lo em você.”

o barulho dos cacos da vidraça passou a ecoar pelo mundo:

cidade após cidade, fronteira após fronteira.

quando atingiu as calçadas das ruas cariocas, o eco se misturou

ao barulho de uma garrafa de cerveja estilhaçando-se ao

chocar-se contra a sarjeta.

“ai, cacete”, uma delas disse, desapontada. “perdi a minha

última cerveja.”

a outra gargalhou mais do que deveria da situação e passou

um dos braços ao redor da cintura da garota chateada.

“deixe de carranca, garota, e dance essa nova da Gal comigo.”

Originais Reprovados 42


elas entrelaçaram os dedos e começaram a se moverem

juntas, num conjunto de passos bêbados que ousaram

chamar de dança, guiadas pela música que ecoava

de algum dos rádios à pilha espalhados pela vizinhança.

“o pensamento, a navalha / a sorte que o vento

espalha”, elas murmuravam juntas; as testas

coladas, os quadris movendo-se de um lado

para o outro. “essa alegria, o perigo / eu quero

tudo contigo / com você perto de mim.”

a cantoria cessou com um beijo demorado, tímido,

permeado pela vontade de eternidade, construído a

partir de cacos de coragem e estilhaços pontiagudos

que se tornaram capazes de serem semeados.

43 cacos, afetos, semente


Tortura

João Ribeiro Neto

Originais Reprovados 44


Encho meus pulmões com o ar quente do cômodo, um ar que não

leva oxigênio às minhas células, apenas carrega o sofrimento disperso

na sala. Não há sequer uma modesta janela ou um humilde ventilador

para nos refrescar. Além do terrível calor e do suor que inunda minhas

roupas, estou preso a uma cadeira, assim como todos os meus colegas

de cela. Todos estão presos às suas respectivas cadeiras, sem permissão

para levantar ou se alongar. Não podemos estabelecer contato

visual uns com os outros, apesar de sabermos exatamente a tortura e

o sofrimento aos quais estamos submetidos.

Tento me ajeitar na cadeira, na tentativa de aliviar as dores que sinto

nos braços, nas pernas, nos joelhos, nas costas; mas sou atravessado

pelo olhar do vigia, que me reprime com sua feição de desconfiança,

temendo que eu tente algo. Tive meus bens tomados quando entrei

no local: meu celular, meu relógio, minha carteira; tudo jogado dentro

de um saco. Não sei há quanto tempo estou aqui, suando, tremendo,

ansioso, cansado. Não vejo a luz do sol desde que entrei no cômodo.

Não consigo parar de pensar que estou passando por tudo isso em vão

e nas possibilidades de como tudo pode acabar.

Minha tortura começou antes mesmo que eu fosse confinado à

cadeira, e eu sempre soube que terminaria aqui, nesse estado desolado.

Quando tomei a decisão de seguir esse caminho, sabia que esse

dia chegaria. O medo dele me dominou desde o início de tudo isso;

espalhou-se sobre cada centímetro do meu ser. Transformou-se em

ansiedade, pânico e melancolia, alimentando-se de cada resquício de

felicidade que existia dentro de mim, deixando espaço apenas para a

insegurança.

Desde o dia da decisão, eu não consigo dormir direito e nem comer,

devido à ansiedade que alimenta minha abstinência. Temia o dia de

hoje, delirando sobre todas as possibilidades de como ele poderia

terminar. Sinto que há tempos não vivo como a vida deveria ser vivida;

temia estar fazendo algo fora do planejado e que isso me prejudicasse,

temia aproveitar a luz do sol, a companhia de meus amigos ou de um

bom livro, temia estar cavando minha própria cova. Mas, quando olho

45 Tortura


ao redor, sinto que fiz exatamente isso ao seguir com essa tortura. Não

ganhei nada ao longo dessa jornada a não ser transtornos psicológicos,

dores no corpo e exaustão mental. Mas não há a quem culpar, senão

eu mesmo; fui eu quem tomou essa decisão, quem sabia dos riscos e

das consequências.

Olho ao redor e vejo que todos os meus colegas encadeirados compartilham

o mesmo sofrimento que eu. Enxergo as mesmas dores, o

mesmo cansaço, as mesmas olheiras, a mesma exaustão. Todos fomos

perseguidos pelo medo do momento que estamos vivendo. Estamos

todos enterrados na cova que cavamos, doloridos, cansados, esgotados.

Não sei mais quanto tempo de tortura ainda nos resta, mas sinto

que quase nenhum de nós resistirá por muito tempo. Não sabemos

quantas horas passaram ou quantas horas ainda restam. Desde que

entrei aqui, nessa sala repressora, perdi a noção do tempo, os minutos

se transformam em longas horas conforme essa tortura ainda continua.

Estamos perdidos em razão da decisão que tomamos. Entretanto,

eu não escolhi esse caminho para passar por isso, para sentir tantas

dores, para ser assombrado pelo medo e pela ansiedade, para não

conseguir dormir ou comer, para não me sentir feliz. Eu tomei essa

decisão porque eu tinha um sonho, um objetivo, vontades e ambições;

porém agora questiono se um sonho a ser vivido vale a vida de quem

o viveria. Se um objetivo a ser alcançado vale a perda da mão daquele

que o agarraria, pois a minha está cheia de calos, cortes e marcas do

esforço que tive que fazer para chegar aqui o mais preparado possível

para aguentar tudo isso.

Originais Reprovados 46


Até

aqui

Barbara Freitas

É impossível assinar um documento com a mão tremendo.

A linha em branco espera para ser preenchida por um nome

que comprove a validade das palavras acima. Uma forma que o ser

humano inventou para impedir que promessas não sejam cumpridas.

Um método que, misteriosamente, funciona bem há anos. Um

rabisco, inventado livremente por cada um, que oficializa um acordo,

abre um negócio ou, nesse caso, encerra uma vida. Ele estava morto.

Não legalmente, mas biologicamente morto. Sem pulso, sem futuro,

sem alma. Presente apenas de corpo. Não havia nada que ela pudesse

fazer para trazer o marido de volta. Se recusar a assinar o termo de

reconhecimento não iria reverter a situação. Não faria a bebida voltar

para o copo e, do copo, para a garrafa. Não impediria a mão dele de

se fechar e encontrar os dentes de outro bêbado. Não comoveria o

dono do bar a ponto de não expulsá-los do estabelecimento. Não

mexeria a guia de lugar. Não evitaria o tombo. Não amorteceria

a queda. Não lhe devolveria a vida. Ainda assim, ela sabia que

assinar qualquer documento era assumir uma responsabilidade.

Era decretar o seu envolvimento por escrito e, de pequena, ela

sabia que não deveria fazer isso sem ler o que estava assinando.

47 Originais Reprovados


Ela sabia ler. Não era isso que segurava a sua mão. Apesar de pouco

estudo, ela saiu da escola lendo, escrevendo e fazendo contas básicas.

O suficiente para não ser enganada na vida de trabalho que a esperava.

Aos treze anos, já estava mais do que na hora de ajudar a mãe dentro

de casa. Era a terceira de sete filhos e, para o seu azar, a mais velha

de três irmãs. Os hábitos que o pai trouxe de Portugal se encaixaram

nas crenças que a mãe cultivou na roça. Educação, para mulher, era

apenas a fundamental.

Entre uma radionovela e outra, recebia notícias do mundo. As

amigas da mãe também apareciam durante o dia para atualizar os

dramas do bairro. Ela podia viver na cozinha, mas tinha uma ideia

do que acontecia lá fora. Soube de guerras longe dali. Soube do

novo presidente. Soube que a rua principal havia sido asfaltada

para os automóveis, que se multiplicavam. E, a dois

quarteirões, soube de uma família que chegou da Itália.

Pai, mãe, quatro meninas e seu futuro marido.

Ela nunca foi a mais bonita. Não era alta o bastante

para ser esbelta, nem baixa o suficiente para ser delicada.

Os cachos, herdados do pai, se embolavam nos

grampos e dificultavam qualquer penteado numa

época de poucos recursos. Para dominar a aparência,

usava um lenço que amansava os fios. Viu na capa de

uma revista e pediu para a vizinha trazer as sobras de tecidos para

ela. Todo dia trocava de faixa, uma mais sonhadora que a outra.

Ela se sentia arrumada mesmo lavando o chão. O corpo, apesar

de jovem, já era desenvolvido. Seios fartos e quadril largo. Não

era magra, mas a cintura fina destacava as curvas. Os irmãos,

treinados para proteger, faziam piadas das suas pernas na

tentativa de que ela, envergonhada, as escondesse na rua.

Funcionava, apesar de quase nunca sair. Mas um dia, numa

ida à padaria, seu destino a encontrou.

Não tinha extrato de tomate. Acabou, segundo o dono,

e só chegaria no dia seguinte. Isso se o pai dela não parasse

no meio do caminho para se hidratar. Sem experiência com

Até aqui 48


ironia, ela ficou desnorteada. Pensava apenas no que levaria para casa

para alimentar tantas bocas no fim do dia com o dinheiro contado para

a macarronada. Devagar para não assustar, alguém se aproximou. O

vizinho, que, passados alguns meses da sua chegada, já não era mais

novidade, se ofereceu para ajudar. Ele veio para o Brasil para trabalhar

no restaurante do tio. Podiam passar por lá e pegar uma lata emprestada.

Depois ele explicava o que aconteceu ao pai, que se ocupava do

caixa. Ele também tinha família grande e sabia o que acontecia quando

a conta não fechava.

Ela cobriu o colo fechando o agasalho e ficou calada, com o olhar

assustado apontado na direção dele, pensando se valeria a pena arriscar

sua integridade para garantir o jantar. Ficou muda por tanto tempo

que ele entendeu a confusão. Sugeriu que ela ficasse ali enquanto ele

buscava o molho sozinho. Ele prometeu que voltava e voltou. Acreditando

um pouco mais na sua boa intenção, ela permitiu que o rapaz

a acompanhasse no caminho de volta, o que ele fez para garantir que

ela chegasse em casa como se nada tivesse acontecido.

Seu nome era Federico, mas no Brasil virou Frederico. Disse que,

ao tirar um novo documento, adicionaram um “R” na escrita, e que

uma letra a mais na identidade era a última coisa que o preocupava

nos últimos tempos. Precisava manter seu emprego, ajudar a família

e recuperar o pouco que tinha antes da imigração. Já falava português

com o sotaque do bairro e, com a ajuda de amigos e familiares, se sentia

em casa. Só não fazia piadas porque a vida era dura.

Quando chegou naquela sala fria e viu o corpo azul do marido sobre

a mesa, demorou a acreditar que o seu fim seria igual ao da mãe. Que

ela também perderia o casamento para a bebida e ficaria sozinha,

desamparada, com uma família para sustentar. A mãe ainda ficou

viúva por mais de uma década antes de sofrer uma parada cardíaca.

Os irmãos se dissiparam pelo país. Na cidade, sobrou apenas um, que

ela raramente via. A casa em que cresceu já havia sido vendida e o

aluguel atrasado aumentava a sua angústia. As reservas foram gastas

no botequim. A comida dava para a semana. Ela só tinha a força do

corpo e a fé a seu favor. Pensando em tudo que precisava fazer a partir

49 Originais Reprovados


daquele momento, secou as lágrimas, parou de tremer e usou, pela

última vez, a antiga assinatura.

Maria de Lourdes Rizzo.

São Paulo, 18 de maio de 1972.

Ela virou as costas e deixou o marido para trás. Pensava tanto na

panela no fogo que não percebeu que deixou cair algo.

— Senhora, o lenço.

Pegou o pano das mãos da enfermeira, agradeceu como pôde e o

amarrou na cabeça.

Precisava voltar correndo à nova vida, que já estava acontecendo

sem ela.

Na pressa, deixou parte do formulário em branco. Faltou dizer que

era dona de casa, viúva e mãe de três filhos.

Até aqui 50


Tá tudo bem

Larissa Camargo

Quando te conheci

Eu não queria namorar

Longe disso

Bem longe

Mas me apaixonar foi tão bom

Tão gostoso

Que eu quero de novo

Acordar abraçados

Depois deitar entrelaçados

Olhar olho no olho

Passar horas

E horas

E horas

Imersa na existência de

outro ser

Foi bom demais

E eu quero mais

51 Originais Reprovados


Mas não vai ser com você

E tá tudo bem

Obrigada por me deixar te amar

Nem que tenha sido só um pouco

Obrigada

Porque agora eu sei o que eu quero ter

Já te falei tantos "tá tudo bem"

Quando não estava nada bem

Mas dessa vez é verdade

Tá tudo bem

Com um outro alguém

Tá tudo bem 52


Wedley Kawafune

Jon an e o arranha-céu

53 Originais Reprovados


Ninguém se interessa pela história de uma pessoa comum, apenas

pelas histórias das pessoas excepcionais. Jonan pensava nisso, e era

por essa razão que ele escalava um arranha-céu. Não porque buscava

uma história excepcional, mas sim porque repudiava a ideia de ter uma

vida comum para si mesmo.

O indivíduo tem infinitas possibilidades diante da realidade, porém

o senso comum o faz ter um comportamento engessado sem que ele

mesmo perceba. O que Jonan fazia era ilegal, mas isso não o demoveu

de forma alguma.

A subida poderia ser vista como algo simples: diferentemente da que

é feita em uma parede de escalada, que requer movimentos e técnicas

variadas, ela era repetitiva devido à construção regular do arranha-

-céu. Mas isso não significava que ela era fácil, visto que o prédio não

fora arquitetado para ser escalado e, portanto, Jonan se agarrava nas

brechas das barras metálicas que fixavam os amplos painéis de vidro.

Era preciso muita concentração para isso, uma vez que sua segurança

dependia apenas de seus braços e pernas; qualquer falha teria um

resultado fatal. Mesmo assim, ele pretendia se perseverar na subida

até chegar ao topo.

O arranha-céu era tão alto que seus andares mais elevados, às vezes,

eram ocultados pelas nuvens, tendo absoluto destaque na cidade. Jonan

pensou como aquele prédio fora parar logo ali, mas não conseguiu

chegar a uma conclusão.

Entorpecido pela fadiga, ele já não tinha mais condições de pensar.

Para se manter concentrado, decidiu, então, focar no seu mantra:

— Não olhe para baixo… Não olhe para baixo — arfava.

Apoiando-se da melhor forma que conseguiu, ele resolveu parar

para descansar por alguns instantes. O sol, que no início da escalada

o banhara com seus raios, se escondia atrás do prédio. Apesar de seus

músculos queimarem de tanto esforço, Jonan sofria com o frio da altitude.

Ele não sentia mais os dedos dos pés, que estavam descalços, pois

assim lhe davam mais aderência ao vidro.

Jonan e o arranha-céu 54


Não querendo esperar muito, voltou à escalada. Seus movimentos

não tinham mais a fluidez que tiveram no início.

— Não olhe para baixo...

Contudo, depois da passagem de um tempo que Jonan não saberia

afirmar se foram horas ou dias, ao olhar para cima, ele avistou o fim

do arranha-céu. Isso lhe proporcionou um grande alívio, ainda que

seguindo sofridamente, ele teve certeza de que iria conseguir.

Chegando ao topo, Jonan usou a força que lhe restou para se erguer

na beirada e, então, desabou ali mesmo para repousar. Depois de alguns

momentos recuperando o fôlego, ele levantou e começou a perceber o

ambiente à sua volta. Uma nuvem logo abaixo de si envolvia o prédio,

e o sol à sua frente o ofuscava, fazendo-o demorar para notar que, na

mesma direção, havia uma figura, um homem vestido completamente

de branco. O homem se aproximou, dizendo:

— Parabéns! Parabéns! — Jonan pôde ver que ele possuía uma

barba da mesma cor de suas roupas, além de muito bem-feita — Que

proeza! Eu cheguei aqui de elevador, não consigo sequer imaginar o

que você passou. Você é um grande homem.

Não sabendo o porquê, Jonan se sentiu desconfortável com aquela

presença.

— Você não se curva diante das regras estabelecidas pela sociedade.

Você tem a mentalidade vencedora — continuou. — Venha! Vamos

transformá-lo num exemplo, um exemplo de vida.

Exemplo? Toda a escalada agora parecia um acontecimento distante

na memória de Jonan.

— Inspirados por você, vários outros tentarão o mesmo e, então,

terão que nos indenizar por invasão de propriedade — elucidou o

homem.

Ainda na beirada, Jonan olhou para baixo.

55 Originais Reprovados


A você

Matheus Cerqueira

ESCREVE!

uma vez disse você,

você estava certa, afinal,

às vezes as palavras faltam,

mesmo gostando de falar,

e eu não sei o porquê.

então resolvi escrever de novo

e de novo.

e de novo

nenhum soneto ficava completo,

os tercetos e os quartetos

que eram para ficar juntos

pareciam não mais

se olhar.

nenhuma estrofe fazia sentido,

não importava a rima

nem o começo e nem o final.

o final, afinal, por final,

era que a poesia já estava aqui,

escrita e inscrita,

ardendo à esquerda:

você, por você mesma.

Originais Reprovados 56


e que, se quisesse eu escrever,

faltaria sua rima, seus versos

e a felicidade que traz todo dia.

e então, pensei eu,

não seria nada mal

que fôssemos um verso só

na poesia da vida

e que você pudesse ficar ao lado,

perto ou longe,

e que (eu) pudesse também.

e que escrevêssemos versos

e dividíssemos o amor,

os invernos, os verões

e também a dor.

poderíamos?

57 A você


Nua

Talita Santiago Mattei

Originais Reprovados 58


59 Nua

E ela começou a retirar a maquiagem. A limpar o rosto. A lavar

a alma. A se despir de algo que já não era mais. A remover o que

não fazia sentido. A eliminar o que não tinha mais razão alguma

para ficar. O rosto manchado entregava a antiga presença de uma

maquiagem, de uma antiga mulher. Os olhos tristes e o olhar vago

revelavam o que ela escondia. O que morava por trás daquelas camadas.

Não chorava, pois não desejava usar a si mesma para se limpar.

Despiu-se daquela roupa. Nem sequer sabia por que a colocara.

Sabia que se sentira bonita. Mas só isso. Nada mais. Apenas bonita.

E vazia. Completamente cheia de ar e somente de ar. Contudo, às

vezes, parecia ser feita de vácuo. Sua mente estava matando-a. E,

por ela, estava tudo bem. Ou, ao menos, ela agia como se estivesse.

O vazio que tinha na alma era do tamanho do excesso que continha

na mente. E como isso era possível? Talvez não fosse. É provável

que essa mulher estivesse delirando. Ou divagando. Ou ambos.

Entretanto, era fato que ela se sentia só, completamente e inteiramente

só. Tão só, que poderia pensar na palavra “só” e somente nela.

Conseguia ouvir sua alma sussurrar “só” em seus ouvidos. Era a

única coisa que ouvia. E que sentia. A palavra poderia ser usada sozinha,

pois, assim como ela, estava só. E agora realmente não tinha

companhia alguma, pois se despira. Não tinha maquiagem no rosto.

Não tinha roupa no corpo. Tinha a si mesma. Possuía seus braços em

torno de suas pernas. Não havia nada mais. Era sua alma gritando o

que seu corpo prendia. Era ela mesma se impedindo de ter companhia.


Depressão

Well

Chifres de bode

Olhos ocos

Capa preta, voz sem som

Sol de tarde

Sala trancada

Gente animada

Ganha forma meu mal

Ganha imagem minha dor

Ganha vida minha sombra

Originais Reprovados 60


Estático o seu tempo

Confusa a sua essência

Tremida a silhueta

Louca a existência

Toda a dor tem forma

Fora de mim

Toda mágoa me olhando

E se tudo isso me enforca

Arrasta-me a própria sombra

O que sobra de mim?

61 Depressão


Náufrago

Guilherme Arenque

Velas de barco afundando. Tempestades. Redemoinhos. Sua voz

mais cedo dizendo algo, mas não consigo me lembrar. Havia algo antes

— sei que havia — mas agora só há o mar. Cabine rachada. Água inundando

todos os cantos. Dizia para parar; dizia para nunca mais tentar

de novo. Mas era preciso. Era preciso, mesmo que não fosse: mergulhar

de cabeça em mais uma tentativa desesperada. Não iria descobrir o

segredo do universo, mas seria, sem dúvidas, algo novo, algo surpreendente

boiando sobre a superfície e pronto para ser descoberto por

aqueles estúpidos ou corajosos demais para tentar. Pânico no convés.

Sua boca dizendo “Pare! Pare! Sem mais tentativas de se afogar. Sem

mais esse ímpeto absurdo de afundar no limite do possível para ver se

descobre algo a mais. Não existe algo a mais. Existe apenas o agora. E é

esse agora que lhe escapa a cada vez que tenta mergulhar mais fundo.

Não! Não!”. Eu sei que há mais do que eles não contam; não é possível

que tudo seja apenas remar, remar e sorrir contente por ter

com o que remar. É preciso que exista mais alguma coisa que

justifique o remar, que nos plenifique de tanto sofrer e morrer.

Mas, no fundo, dói muito, pois sei que sinto razão na sua voz;

por mais que queira, por mais que deseje, já não consigo voltar.

Já é tudo escuro, escuro. E sua voz longe dizendo: “Deixe disso,

não faz mais isso”. E eu dizendo: “Está quase! Já é quase hora!”.

Não vou descobrir o segredo, mas vou saber demais sobre coisas

ocultas, sobre uma nova forma da realidade. Transparente. Uma

ordenação nova para as coisas. E de um jeito que encaixem, que

talvez façam mais sentido. Mas não fazem. Como aquele brinquedo

de tijolos de quando eu era criança, o castelo desmorona

e, não importa a ordem ou o arranjo em que se coloquem os

tijolos, ele sempre desaba e, no fim, sou sempre eu chorando no

Originais Reprovados 62


fundo, sem apreço. E como é fundo... Há realmente uma outra ordenação

de seres aqui. Profundos, silentes. Mesmo de coisas. Formas,

cheiros. É tudo novo, mas também é tudo pesado. Sinto que é

difícil segurar, mas sei que não posso lhe pedir ajuda. Você

não mergulharia comigo, não iria tão fundo para me salvar,

pois sei que precisa se salvar primeiro e a você não é possível

mergulhar assim. Então mergulho sozinho e você fica

do convés a gritar: “Pare! Sem mais isso. De novo, não”.

Mas não ouço. Há agora só a profundeza abissal. Ordenações

novas. Colorações novas. Será outro tipo de vida?

Ou será a mesma vida de sempre? Só que mais funda,

funda,

funda...

63 Náufrago


Sonho de

Davi Amorim de Andrade

Eu vi o inimigo que há em mim

Em meu último sonho

Ele me disse

Com sua voz melodiosa:

Medíocre

Demos as mãos

E navegamos pela minha história

Que agradável pesadelo!

Originais Reprovados 64


toda a noite

65 Sonho de toda noite


Amor Paterno

Yasmin A. Costa

— Hora de acordar — Carlos passou as mãos carinhosamente pelas

costas de Paulo, enquanto seus olhos piscavam, ainda grogues de sono.

— Vamos tomar um banho? Separei uma roupa bem bonita pra hoje.

Puxando os braços de Paulo, Carlos o ajudou a se sentar. Começou

a despi-lo, passando os braços dele pelos buracos da camisa antes de

cuidadosamente puxá-la pela cabeça, para que não prendesse nas

orelhas. Carlos fez a mesma coisa com a calça, cueca e meias de Paulo,

deixando-o apenas de fralda.

— Vamos lá! — ele exclamou alegremente antes de puxar Paulo para

fora da cama, apoiando a maior parte do peso nos quadris e ombro,

enquanto fazia o caminho costumeiro até o banheiro. Suas costas queimaram

um pouco com o esforço, mas Carlos não se importou tanto,

porque isso significava que ele havia conseguido fazer Paulo ganhar

um pouco mais de peso nas últimas semanas.

A rotina do banho já estava estabelecida: descartar a fralda, ligar o

chuveiro, passar o sabão, o shampoo e o creme, enxaguar e secar. Já

no quarto, ele colocou uma nova fralda em Paulo e vestiu as roupas

que havia preparado previamente. Com uma escova macia, penteou

o cabelo fino e claro de Paulo, antes de passar uma colônia para finalizar

o trabalho.

Carlos levou Paulo para a sala e o deixou assistindo à televisão

enquanto preparava o almoço e conversava com Ana, sua filha, ao

telefone.

Originais Reprovados 66


— Você deveria contratar alguém pra te ajudar, pai. Vai ficar mais

difícil conciliar suas tarefas quando você voltar a trabalhar. Se quiser,

eu posso até ajudar o senhor a pagar.

— Eu sei, já tô resolvendo isso. Não precisa me ajudar; o salário da

aposentadoria deve cobrir tudo isso.

— Tudo bem — ele podia identificar a relutância dela na voz —

Minha sogra recomendou algumas pessoas. Vou mandar os contatos

e depois você dá uma olhada, tá? Vou ter que ir agora, mas a gente vai

se falando durante a semana. Tchau, te amo.

Carlos respirou fundo depois da ligação. Ele sabia que Ana estava

certa, mas sentia que era sua responsabilidade dar conta de tudo sozinho.

Com o almoço pronto, ele trouxe Paulo para a mesa. Paulo tinha

dificuldades para mastigar comidas muito sólidas, então Carlos sempre

fazia algo que fosse mais fácil de comer. Após alimentá-lo, Carlos

limpou sua bochecha gordinha com um papel toalha e perguntou se

ele queria suco. Paulo balbuciou uma resposta que parecia afirmativa.

Durante o resto do dia, Carlos aproveitou para arrumar a casa

enquanto revisava seus cuidados com Paulo, já que era domingo. Eles

assistiram a alguns filmes juntos até que ficasse tarde e fosse hora de

dormir. Após vestir o pijama em Paulo, Carlos ajeitou os cobertores

sobre ele e apagou a luz, enquanto dizia:

— Boa noite, pai.

67 Amor Paterno


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Amor paterno

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Ilustração da capa

Noah Ruiz

@noah_ruiz_artes

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A você

Matheus Cerqueira

43 99848-6763

matheus.crqra@gmail.com

Nua

Talita Santiago Mattei

11 97166-9027

talitasm@usp.br


Agradecemos a todos aqueles comprometidos com

a criação desta edição da Originais Reprovados. Aos

autores inscritos e participantes; aos alunos que

editaram, revisaram, diagramaram e divulgaram a

revista; a Noah Ruiz, que criou a ilustração para a

capa com tanta atenção; à Lis Gráfica e Editora, que

possibilitou a nova edição em cores; e aos leitores,

nossas mais sinceras homenagens e agradecimentos!

Rua Felício Antônio Alves, 370

Bonsucesso, Guarulhos SP

Fone: 11 3382.0777

www.lisgrafica.com.br



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