Revista Dr Plinio 306
Agosto de 2023
Agosto de 2023
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Publicação Mensal<br />
Vol. XXVI - Nº <strong>306</strong> Setembro de 2023<br />
Os esplendores da<br />
Santa Cruz
Vincenzo Carducci (CC3.0)<br />
Visão do Papa Vítor III - Museu do Prado<br />
Bem-aventurado Vítor III,<br />
Pontífice contrarrevolucionário<br />
São Gregório VII fez parte de um movimento que hoje se chamaria contrarrevolucionário.<br />
Quando era apenas cardeal, chefiou uma ala na Igreja baseada no movimento dos monges<br />
beneditinos de Cluny.<br />
Indicou vários pontífices e, depois, foi ele próprio eleito Papa. Essa linha de pontífices inspirados<br />
por Cluny fez propriamente a Idade Média.<br />
Seu sucessor, o Papa Vítor III, foi um bem-aventurado. Ele se liga a essa época da História em<br />
que melhor apareceu a luz da Igreja, cuja irradiação hoje se deseja a todo custo abafar; e que<br />
nós, em todos os momentos e de todos os modos, queremos restaurar.<br />
(Extraído de conferência de 16/9/1965)
Sumário<br />
Publicação Mensal<br />
Vol. XXVI - Nº <strong>306</strong> Setembro de 2023<br />
Vol. XXVI - Nº <strong>306</strong> Setembro de 2023<br />
Os esplendores da<br />
Santa Cruz<br />
Na capa,<br />
Nosso Senhor<br />
Crucificado<br />
(acervo particular).<br />
Foto: João C. V. Villa<br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
ISSN - 2595-1599<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
INSC. - 115.227.674.110<br />
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Roberto Kasuo Takayanagi<br />
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Jorge Eduardo G. Koury<br />
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assinatura anual<br />
Comum............... R$ 200,00<br />
Colaborador........... R$ 300,00<br />
Propulsor.............. R$ 500,00<br />
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Exemplar avulso........ R$ 18,00<br />
Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
editoraretornarei@gmail.com<br />
Segunda página<br />
2 Bem-aventurado Vítor III,<br />
Pontífice contrarrevolucionário<br />
Editorial<br />
4 Um novo triunfo da Cruz<br />
Piedade pliniana<br />
5 Pedindo a graça de ser<br />
um perfeito cavaleiro<br />
Dona Lucilia<br />
6 Sofrimentos e incompreensões<br />
no ocaso da vida<br />
De Maria nunquam satis<br />
9 Maria Santíssima,<br />
marco inicial da Redenção<br />
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
12 Quando a inocência e o<br />
sofrimento se osculam<br />
Calendário dos Santos<br />
18 Santos de Setembro<br />
Hagiografia<br />
20 A paz e a alegria<br />
da contrição<br />
Reflexões teológicas<br />
26 Termômetro do<br />
verdadeiro fervor<br />
Apóstolo do pulchrum<br />
33 Vislumbre de realidades<br />
superiores<br />
Última página<br />
36 Longa caminhada de sacrifícios<br />
até o píncaro da glória<br />
3
Editorial<br />
Um novo triunfo da Cruz<br />
As circunstâncias históricas que envolveram a Santa Cruz até o momento de sua descoberta<br />
são muito eloquentes enquanto símbolo de diversos aspectos da História da Igreja.<br />
Terminada a Crucifixão, o sagrado Corpo de Nosso Senhor foi entregue aos desvelos de<br />
Nossa Senhora e das poucas almas fiéis que A acompanhavam. Mais ou menos ao mesmo tempo, os perseguidores<br />
da Divina Vítima abriram um fosso onde jogaram a Cruz, os cravos, a coroa de espinhos e cobriram<br />
tudo com terra e escombros para que disso não perdurasse memória alguma.<br />
Ali, sobre o Calvário, o demônio, em sua infâmia, fez construir templos pagãos dedicados a Vênus e Júpiter,<br />
pois era preciso erguer um templo à impureza para sepultar ainda mais a memória da Cruz de Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo.<br />
O Salvador ressuscita, os Apóstolos se dispersam, os séculos passam e a Cruz continua sepultada nas<br />
trevas daquela terra onde apenas entrariam vermes e umidade estragando o Santo Lenho. Eis, até então,<br />
a história da Cruz sepultada, ignorada, abandonada, esquecida.<br />
Entretanto, em determinado momento, Constantino vence, Santa Helena faz a descoberta do Madeiro<br />
Sagrado atestada por milagres que não deixam dúvida nenhuma de se tratar da verdadeira Cruz que, a<br />
partir de então, tornou-se objeto de honrarias sem igual, respeitada e venerada no mundo inteiro.<br />
A história do Santo Lenho é a história da ortodoxia pisada, ferida, negada, espezinhada, a respeito da<br />
qual se diria que não mais reaparecerá. Mas ela sempre volta para novos triunfos, depois das humilhações;<br />
e triunfos cada vez maiores, seguidos de humilhações também cada vez maiores.<br />
Alguém poderia pensar: “Com a Cruz não se dá, no momento, humilhação nenhuma, pois ela é adorada<br />
pela Terra inteira.”<br />
Dir-se-ia, na aparência, que isso é verdade. Mas se consideramos todas as humilhações sofridas pela<br />
Igreja hoje, quando pensamos na afirmação do grande intelectual católico Marcel de Corte 1 , de que<br />
em nossos dias há uma religião, misto de Cristianismo em decomposição e de ateísmo nascente, chamada<br />
“Progressismo”, e que vive leprosa dentro do seio virginal da Santa Igreja Católica Apostólica Romana,<br />
compreendemos quanto falso culto, quanto ato de irreverência, quanto desprezo da Cruz do Redentor<br />
está nisso tudo.<br />
Tanto mais que a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo é um símbolo, e o seu desprezo é menos o desprezo<br />
do madeiro do que à glória do espírito de sacrifício que o Santo Lenho representa. Em nenhuma época<br />
da História os católicos estiveram tão longe daquilo que São Luís Maria Grignion de Montfort chama de a<br />
“loucura da Cruz”. Por aí compreendemos como ela está novamente calcada aos pés.<br />
Mas Nossa Senhora nos dará a graça de, quando chegar o Reino do Coração d’Ela, em cujo centro estará<br />
a Santa Cruz de seu Divino Filho, assistirmos a um novo triunfo, com a implantação, bem no meio do<br />
mundo do Reino de Maria, da Cruz escura, seca, sem ornatos, representando o sofrimento, a renúncia a si<br />
mesmo, o espírito de mortificação e de austeridade, sério e que aceita completamente o sacrifício. É esse<br />
o espírito da Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. 2<br />
1) Filósofo belga (*1905 - †1994).<br />
2) Cf. Conferência de 3/5/1966.<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
Piedade pliniana<br />
São Miguel e os anjos bons<br />
expulsando para o inferno os<br />
anjos rebeldes - Museu de Belas<br />
Artes de Valência, Espanha<br />
Flávio Lourenço<br />
Pedindo a graça de ser<br />
um perfeito cavaleiro<br />
Ó<br />
São Miguel Arcanjo, que desembainhastes vosso gládio no Céu para vingar<br />
contra os anjos rebeldes a glória do Salvador e de sua Mãe, obtende-me a<br />
graça de ser, neste auge do poder das trevas, um perfeito cavaleiro da Cavalaria<br />
Angélica suscitada em nossos dias para combater o demônio e seus agentes<br />
terrenos e implantar o Reino de Maria.<br />
Para isto, alcançai-me a graça de ter um espírito profundo, sério, abnegado, inebriado<br />
de fervor para com a Contra-Revolução, bem como transbordante de ódio e<br />
desprezo para com a Revolução satânica, igualitária e gnóstica. *<br />
* Não há registro da data em que foi composta esta oração.<br />
5
Dona Lucilia<br />
Dona Lucilia sorveu com serena docilidade os sofrimentos<br />
inerentes aos últimos anos de sua peregrinação terrena. Em seu<br />
crescente afeto por sua mãe, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> procurou aliviar-lhe<br />
tanto quanto possível o peso da cruz, sobretudo quando as<br />
vicissitudes da idade a relegaram a um forçoso isolamento.<br />
As situações aflitivas e irremediáveis<br />
que por vezes a vida<br />
apresenta, à maneira de becos<br />
sem saída, Dona Lucilia as entendia<br />
na seguinte perspectiva: estamos<br />
num exílio e nele a vida é dura.<br />
Portanto, deve-se sofrer, alguns<br />
mais que os outros.<br />
Ela sabia estar chamada a<br />
sofrer mais. Percebi que ela<br />
relacionava isso com o Sagrado<br />
Coração de Jesus, na ideia<br />
de que unida a Ele por uma<br />
devoção especial, estar também<br />
especialmente unida às<br />
dores d’Ele, o que era razoável,<br />
vere dignum et iustum est,<br />
æquum et salutare 1 . Da parte<br />
dela, convinha aceitar o quinhão<br />
de dores e carregá-lo até<br />
o fim da vida. Era nessa perspectiva<br />
que ela tomava tudo o<br />
que lhe acontecia.<br />
Fotos: Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Ocaso irremediável,<br />
conaturalidade com a dor<br />
Mamãe passou por circunstâncias<br />
de que só se podia ter ideia estando<br />
dentro delas.<br />
Dona Lucilia em sua residência<br />
Por exemplo, era comum as pessoas<br />
da família dela começarem a perder<br />
a audição muito cedo e com isso<br />
ficarem segregadas do convívio. Alguns<br />
até conseguiam, pelo movimento<br />
dos lábios, captar alguma<br />
coisa e entrar um pouquinho na<br />
conversa, mas nunca com a vitalidade<br />
de quem ouve bem.<br />
E aconteceu que, a partir<br />
de uma certa idade, talvez<br />
uns setenta anos ou mais, eu<br />
não me lembro bem, ela começou<br />
a perder a audição,<br />
não aos poucos, mas de repente,<br />
quase perpendicularmente,<br />
passando a ter uma<br />
dificuldade enorme em tratar<br />
com as pessoas. Embora<br />
muito comunicativa, para não<br />
estragar a conversa, ela mantinha-se<br />
quieta enquanto todos<br />
conversavam ao seu redor.<br />
Ela ficava sem ter com quem<br />
conversar, a não ser comigo, pois<br />
eu conviveria com ela em qualquer<br />
caso. Entretanto, ela percebia<br />
que, apesar de eu ter voz forte, eu fazia<br />
um esforço enorme para manter<br />
uma conversa e isto ela não queria.<br />
6
Ademais, a vista dela foi<br />
enfraquecendo, o que a fez<br />
perder a possibilidade de ler.<br />
Ela estava com uma catarata<br />
muito avançada, foi ao oculista,<br />
mas eu mesmo tive receio<br />
de que ela fizesse uma<br />
cirurgia, devido a algum efeito<br />
cardíaco ou algo do gênero.<br />
A operação de catarata<br />
naquele tempo era muito demorada,<br />
não era como hoje,<br />
quase um curativo.<br />
Nessa posição, eu via a<br />
tristeza encobrindo-a como<br />
um manto fúnebre e tendente<br />
a fazê-la uma espécie<br />
de morta-viva. No entanto,<br />
tudo ela tomava com<br />
normalidade, com tristeza é<br />
verdade, mas na tranquilidade<br />
e doçura que lhe eram<br />
características, o que representava<br />
sua conaturalidade<br />
com a dor.<br />
Era um quadro que significou<br />
para ela um ocaso<br />
medonho e sem remédio,<br />
durando talvez uns dois<br />
anos até o sol renascer.<br />
Inesperada solução<br />
por um filial sacrifício<br />
Sabendo de uns aparelhos de audição<br />
norte-americanos muito bons,<br />
os quais poderiam solucionar o caso<br />
dela, resolvi telefonar para a firma a<br />
fim de mandarem um perito.<br />
Lembro-me que estávamos no<br />
fim do almoço quando o especialista<br />
chegou. Eu o fiz entrar, ele pôs a<br />
caixa com o material e fez uma exposição.<br />
Explicava alto para ela acompanhar<br />
e ali mesmo fez a aplicação,<br />
introduzindo um aparelho em cada<br />
ouvido. Imediatamente ela começou<br />
a escutar muito bem, entrando logo<br />
na conversa.<br />
Eu vi aquilo e pensei: “Eu farei<br />
qualquer sacrifício, mas comprarei<br />
isso para ela.” Perguntei o valor e o<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> com sua irmã, em 13/12/1988<br />
homem deu-me um preço louco para<br />
aquele tempo, há uns cinquenta ou<br />
sessenta anos: 400 contos!<br />
As minhas condições não me permitiam<br />
dar-lhe essa quantia. Mas,<br />
confiando, fechei o negócio com o<br />
funcionário e ali mesmo passei o<br />
cheque.<br />
À noite, no jantar, ela estava conversando<br />
com toda normalidade.<br />
No início, a atitude dela foi até<br />
de desconfiança. Porque quando eu<br />
era pequeno ela esteve na Europa<br />
e comprou um como quê aparelho,<br />
provavelmente de alto custo, o qual<br />
era como um leque de senhora, todo<br />
de tartaruga; colocando a ponta<br />
dele entre os dentes, parece que se<br />
ouvia um pouco de vibração a mais.<br />
Diziam que a casca da tartaruga possuía<br />
como condutores de<br />
som, uma propriedade especial<br />
ou algo assim.<br />
O fato é que ela trouxe<br />
esse objeto para o Brasil.<br />
Mas, naquelas circunstâncias,<br />
com o problema auditivo<br />
avançado, já não lhe<br />
adiantava. Ele ficou na gaveta<br />
um tempo indefinido e<br />
depois nunca o utilizou.<br />
Docilidade nas<br />
mínimas coisas<br />
Ela usou o aparelho de<br />
audição até o fim da vida.<br />
No entanto, a partir de um<br />
certo momento, ela começou<br />
a tirá-lo para tentar ouvir<br />
sem ele, o que era uma<br />
contradição. Talvez ela apresentasse<br />
uma esperança de,<br />
tendo ouvido tão bem com<br />
o aparelho, tirando-o era como<br />
se ligasse o “motor” e<br />
ela passasse a ouvir.<br />
Eu fui irredutível e muito<br />
afetuosamente disse a ela:<br />
— Meu bem, não tem<br />
propósito. A senhora tem o<br />
aparelho, coloque-o, use-o.<br />
Ela dizia:<br />
— Você acha preciso?<br />
— Como não é preciso?<br />
Então, com muita docilidade,<br />
com a doçura que ela possuía nas<br />
mínimas coisas, ela punha o aparelho<br />
e continuava a conversar.<br />
Velando e revelando, na<br />
medida do necessário<br />
No que diz respeito à minha luta,<br />
como ela a tomava e no que isso consistia<br />
um sofrimento para ela?<br />
Mamãe sempre tinha muito cuidado<br />
– quer comigo, quer com minha<br />
irmã –, em não dizer uma palavra<br />
que favorecesse a vaidade e a<br />
autocontemplação. De maneira que<br />
ela, a meu respeito, não falava na-<br />
7
Dona Lucilia<br />
da. Eu percebia que alguma<br />
coisa de minha missão<br />
ela vislumbrava, mas não<br />
sei bem o quê e não sei até<br />
que ponto ela a compreendia<br />
ou não.<br />
A realidade do tempo<br />
dela era bem diversa<br />
daquilo que constituiu o<br />
palco de toda a minha luta<br />
dentro da Igreja. Tudo<br />
mudou em torno dela sem<br />
que ela mudasse em nada.<br />
Entrava também a mão da<br />
Providência velando-lhe<br />
algo e eu mesmo velei o<br />
quanto pude, a fim de não<br />
a preocupar.<br />
Alguns personagens,<br />
por exemplo, ela os tinha<br />
em verdadeira conta<br />
de santos. Ela saía pouco<br />
de casa, não tinha muito<br />
contato com as pessoas.<br />
Eu, em muito, lhe abri<br />
os olhos, mostrando-lhe as<br />
coisas como eram, dando-<br />
-lhe uma visão mais objetiva<br />
da realidade e assim<br />
oferecendo mais meios de<br />
ela amar a Deus.<br />
Às vezes meu pai sussurrava-me dizendo:<br />
“É, só mesmo você dizendo...<br />
se fosse outra pessoa – a outra pessoa<br />
era ele –, saía um esparrame...”<br />
Mas eu dizia irredutivelmente algumas<br />
verdades a ela. Quando a pessoa<br />
atinge certa idade e forma uma<br />
visão definitiva das coisas, é mais<br />
prudente procurar não mexer. Porque,<br />
à força de tentar reformar os<br />
princípios, de repente uma martelada<br />
cai em cima de um brilhante, e é<br />
preciso tomar cuidado. Mas não era<br />
o caso de mamãe.<br />
Incompreensões que<br />
mitigaram sofrimentos<br />
Ela não chegava bem a relacionar<br />
toda a luta travada por mim com a<br />
repercussão negativa que esta teve<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, visitando a sepultura de Dona Lucilia em maio de 1993<br />
sobre minha situação. Para ela, um<br />
filho de uma paulista de quatrocentos<br />
anos não ficava dependente de<br />
cotação de clero e de meios católicos.<br />
Era um paulista de quatrocentos<br />
anos, está acabado.<br />
O que poderia representar aos<br />
olhos dela o declínio de minha influência<br />
como líder católico e que papel<br />
isso tinha em minha vida? Eu<br />
não sei.<br />
Ela era do tempo em que São<br />
Paulo quase não tinha bons professores<br />
e por causa disso os que escolhiam<br />
tal profissão eram bem pagos.<br />
E ela, por fraqueza de mãe, imaginava<br />
que eu era muito bom professor,<br />
e pensava, portanto, que eu ganhava<br />
bem.<br />
O pai dela recebia muito na advocacia<br />
e ela imaginava que eu ganhava<br />
também. Ela via que,<br />
aos poucos, eu ia progredindo<br />
economicamente e<br />
ficava com a ideia de que<br />
eu guardava dinheiro como<br />
fazia o pai dela e não<br />
me perguntava nada. Ela<br />
julgava que eu levava uma<br />
vida muito mais sossegada<br />
do que podia parecer à<br />
primeira vista.<br />
Minha irmã era uma<br />
pessoa quase de minha<br />
idade e, portanto, atualizada,<br />
e percebia as coisas<br />
muito melhor. E eu vi como<br />
as duas tomavam o que<br />
me acontecia de modo diferente.<br />
Por ocasião do “Em Defesa”,<br />
se deu a ruptura de<br />
boa parte do clero comigo.<br />
Nestas circunstâncias,<br />
eu tive de explicar a Dona<br />
Lucilia o que estava se<br />
passando. Ela depois não<br />
tocou mais no assunto, a<br />
não ser numa ocasião, para<br />
contar que, enquanto<br />
eu estava no escritório trabalhando,<br />
minha irmã havia<br />
aparecido em casa para vê-la e,<br />
em conversa, ela narrou para minha<br />
irmã os mesmos fatos que eu lhe tinha<br />
contado. Naturalmente ela espumou<br />
de indignação: “O <strong>Plinio</strong>, por<br />
idealismo, fica com quem ele pensa<br />
ter razão e assim não progride.”<br />
Mamãe contou-me isso tranquila,<br />
porque julgava que minha irmã<br />
era inteligente e podia dizer-me algo<br />
útil. Mas, enfim, ela não percebia o<br />
teor da luta, o que em parte lhe mitigava<br />
aquilo que poderia ser causa de<br />
novos sofrimentos e dores… v<br />
(Extraído de conferência de<br />
27/5/1993)<br />
1) Do latim: é justo e necessário, nosso<br />
dever e salvação.<br />
8
De Maria nunquam satis<br />
Maria Santíssima,<br />
Flávio Lourenço<br />
marco inicial da Redenção<br />
Nascimento da Santíssima<br />
Virgem - Museu Nacional<br />
de Arte da Catalunha<br />
Tudo quanto o Redentor trouxe para a humanidade<br />
teve seu início com o nascimento de Nossa Senhora.<br />
Quando se está unido a Ela, tudo se arranja, tudo se<br />
obtém, nada é insolúvel, irremediável ou sem esperança.<br />
Sendo Nossa Senhora a Mãe<br />
de Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />
tudo quanto se diz do<br />
Natal, pode-se dizer da sua Natividade,<br />
guardadas as devidas proporções.<br />
E todas as alegrias, as impressões<br />
e as graças de que a noite de<br />
Natal é ocasião para nós, também o<br />
é a festa do nascimento da Mãe de<br />
Deus.<br />
Com Maria veio ao<br />
mundo a salvação<br />
Ao falarmos sobre o nascimento<br />
do Menino Jesus, podemos dizer<br />
9
De Maria nunquam satis<br />
Gabriel K.<br />
que com Ele veio ao mundo a salvação.<br />
Ora, de algum modo, esta afirmação<br />
é também verdadeira quando<br />
se trata da Natividade de Maria<br />
Santíssima. Porque, se é verdade que<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo é o Salvador,<br />
também o é que Nossa Senhora,<br />
com sua oração onipotente, pediu e<br />
apressou a vinda do Messias prometida<br />
há séculos.<br />
Sob este aspecto se pode dizer<br />
que, vindo ao mundo Aquela cuja<br />
oração foi tão poderosa que determinou<br />
a antecipação da vinda de<br />
Nosso Senhor, de algum modo com<br />
Ela também veio a salvação.<br />
Por outro lado, o Natal representou<br />
uma honra incomparável para a<br />
humanidade, pois Aquele que ligava<br />
a natureza humana à divina, o Verbo<br />
Encarnado, entrou no mundo. Do<br />
mesmo modo, guardadas as proporções,<br />
também foi conferida uma honra<br />
enorme para a humanidade com o<br />
nascimento de Nossa Senhora.<br />
Tomem em consideração que, presumivelmente,<br />
segundo os cálculos<br />
tradicionais, mediaram quatro ou cinco<br />
mil anos entre o pecado de Adão e<br />
o nascimento de Nosso Senhor, embora<br />
ainda se possa conjeturar ter havido<br />
um espaço de tempo maior do que<br />
este; se consideramos que estamos em<br />
1965 e, portanto, há mil anos estávamos<br />
na alta Idade Média, temos uma<br />
noção do que foram os cinco mil anos<br />
de pecados, de afastamento crescente<br />
de Deus e de uma ordem de coisas onde<br />
os Céus estavam trancados para os<br />
homens, onde a verdadeira Igreja não<br />
Destruição de Sodoma e Gomorra - Museu de Arte de Montreal<br />
Arca da Aliança sendo carregada pelo povo eleito - Museu Hermitage, São Petersburgo<br />
existia, havia apenas um pequeno rudimento<br />
dela com voz circunscrita a<br />
um mero povo, pouco numeroso como<br />
eram os hebreus.<br />
A degradação da humanidade ao<br />
longo de todo esse tempo tinha dois<br />
sentidos: de um lado, os povos que caíram<br />
na barbárie e dos quais temos vestígios<br />
nos povos selvagens ainda existentes.<br />
De outro, as nações que se civilizaram<br />
e que, no auge de sua civilização,<br />
tornaram-se quase piores que os bárbaros.<br />
Com efeito, a humanidade estava<br />
tão decadente nesse tempo que o povo<br />
eleito não valia mais nada, o romano e<br />
o mundo grego estavam exaustos e havia<br />
um pressentimento geral de que algo<br />
devia acontecer porque, do contrário,<br />
a humanidade estaria perdida.<br />
Dentro desse quadro, a ação criadora<br />
de Deus constituiu a criatura<br />
mais perfeita nascida em todos os séculos,<br />
concebida sem pecado original<br />
e à qual foi dado, desde o primeiro<br />
instante de seu ser, um cúmulo<br />
de graças que representavam dons e<br />
Vicente Torres<br />
10
virtudes muito maiores, sem comparação,<br />
que todos os pecados cometidos<br />
e erros acumulados durante esses<br />
milhares de anos.<br />
Compreendemos, assim, como a<br />
irrupção dessa criatura no mundo se<br />
parece com a noite de Natal, observadas<br />
as proporções, e quanta honra<br />
representa para a humanidade completamente<br />
desonrada o fato de que,<br />
desta espécie amaldiçoada e prevaricadora,<br />
de repente brotasse um lírio<br />
do qual deveria nascer Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo. A Raiz de Jessé, da qual<br />
viria este lírio. Além de honra, esperança<br />
e, com esta, a alegria.<br />
Marco propulsor da manifestação<br />
da misericórdia divina<br />
O nascimento de Maria Santíssima<br />
foi o pretexto divino para o nascimento<br />
de Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
Por esta forma, todas as graças vindas<br />
com o Homem-Deus tiveram, por assim<br />
dizer, uma espécie de começo de<br />
realização neste mundo, e o seu pórtico<br />
construído com o nascimento de<br />
Nossa Senhora. Ou seja, tudo quanto<br />
o Redentor trouxe para a humanidade<br />
começou a se derramar com a chegada<br />
d’Aquela que nos deveria trazer<br />
todas as esperanças, o perdão, a reconciliação,<br />
a Redenção.<br />
Isso nos faz compreender a manifestação<br />
da misericórdia de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo que se abre, afinal<br />
de contas, para o mundo inteiro, e como<br />
tudo isso tem no nascimento de<br />
Nossa Senhora uma espécie de marco<br />
propulsor, marco inicial de uma vida<br />
insondavelmente perfeita, pura e fiel,<br />
em suma, a maior glória que a humanidade<br />
teria em todos os tempos, abaixo<br />
da glória da Encarnação do Verbo.<br />
Entende-se, então, por que os<br />
Doutores da Igreja comparam Nossa<br />
Senhora com a Lua em relação ao<br />
Sol. Ela representa a claridade suave<br />
da Lua, enquanto o Salvador representa<br />
a claridade avassaladora e onipotente<br />
do Sol.<br />
Assim como há uma beleza enorme<br />
no nascer do Sol, em certas ocasiões o<br />
nascer da Lua tem também sua poesia,<br />
sua beleza, sua grandeza e seu encanto.<br />
Da mesma forma, o nascimento de<br />
Maria Santíssima é um nascer da Lua<br />
para os homens, diferente do nascer<br />
do Sol, mas é uma imagem belíssima,<br />
dulcíssima e de particular suavidade.<br />
É assim que nós devemos considerar o<br />
nascimento desta criatura incomparável,<br />
a Mãe de Deus e Nossa Senhora.<br />
Pedir o contínuo crescimento<br />
na devoção a Ela<br />
O que devemos implorar, afinal, na<br />
festa da Natividade de Maria Santíssima?<br />
Cada um deve perguntar-se qual<br />
seria a grande graça para pedir a Ela.<br />
Se alguém disser que não tem em vista<br />
uma graça especial ou inclusive se a<br />
tiver, eu recomendo associar a seguinte<br />
intenção: suplicar-Lhe que nos dê<br />
um profundo crescimento na devoção a<br />
Ela, efetivo, vibrante, rápido, dinâmico<br />
e sólido. E que nos seja dado tudo aquilo<br />
que o Espírito Santo e Ela desejam<br />
pôr em nossas almas para melhor compreender<br />
e mais amar Nossa Senhora.<br />
Eu tenho certeza de que recebendo<br />
isso, aqueles que estão bem na vida<br />
espiritual progredirão ainda mais. Os<br />
que estiverem afetados por alguma tibieza<br />
dela se livrarão muito mais rápido.<br />
Ou caso exista algum que esteja na<br />
inimizade com Deus e não esteja nem<br />
sequer no caminho da tibieza, mas<br />
abaixo disto, com um aumento de devoção<br />
a Nossa Senhora pode, por um<br />
favor d’Ela, vencer todas as suas dificuldades<br />
e caminhar nas mais altas esferas<br />
da vida espiritual. Quando se está<br />
unido a Ela tudo se arranja, tudo se<br />
obtém; absolutamente nada é insolúvel,<br />
irremediável ou sem esperança.<br />
Eu confio mais na salvação do pior<br />
pecador se ele tiver devoção a Nossa<br />
Senhora do que na salvação de um<br />
homem que não esteja em estado de<br />
pecado mortal, mas não tenha devoção<br />
a Ela ou lhe tenha antipatia. O<br />
primeiro tem todo o caminho da regeneração<br />
aberto diante de si.<br />
Peçamos a graça de compreender isso<br />
de um modo vivo, eficaz e verdadeiro,<br />
na plenitude desejada por Ela. v<br />
(Extraído de conferência de<br />
7/9/1965)<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> discursando durante um jantar, em 16/8/1965, na cidade de Belo Horizonte<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
11
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Quando a inocência e o<br />
sofrimento se osculam<br />
A inocência é o estado de alma por onde a<br />
pessoa, com retidão de espírito, procura com<br />
enlevo todas as arquetipias e por causa disso<br />
não peca. O sofrimento é um complemento<br />
necessário da inocência, que a faz passar,<br />
muitas vezes, pelo incompreensível.<br />
Essa é a hora do puro ato de amor.<br />
O<br />
homem, mesmo se fosse<br />
concebido sem pecado original,<br />
vivendo nesta Terra<br />
– não digo no Paraíso –, passa por<br />
uma incompatibilidade entre as condições<br />
desta vida e sua dupla natureza<br />
espiritual e material.<br />
Limpidez das arquetipias<br />
e sanidade criteriológica<br />
J. P. Braido<br />
O exemplo característico é<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo em<br />
sua Paixão, o qual passou por<br />
um sofrimento medonho. O<br />
Redentor tinha uma natureza<br />
ordenada, mas houve<br />
uma incompatibilidade entre<br />
essa natureza e a perspectiva<br />
posta diante d’Ele.<br />
Esse choque obrigou-<br />
-O a exercer uma disciplina<br />
que já possuía.<br />
Então, parece que tudo<br />
aquilo que estava<br />
em ordem, chocando-<br />
12<br />
Encontro com as Santas Mulheres<br />
Basílica Nossa Senhora do<br />
Rosário, Guatemala
-se com um obstáculo tremendo, se<br />
tornou ainda mais denso para a manutenção<br />
dessa ordem.<br />
Transpostas para Nossa Senhora,<br />
essas considerações também se<br />
aplicam. Concebida sem pecado original,<br />
n’Ela havia uma santificação<br />
contínua.<br />
É fora de dúvida que havia na<br />
Santíssima Virgem uma ordenação<br />
perfeita. Por exemplo, seu instinto<br />
materno deveria ter uma perfeição<br />
insondável. Mas, colocado diante da<br />
ideia da imolação daquele Filho, seria<br />
uma imperfeição se não tivesse<br />
uma espécie de choque enorme. E,<br />
ao aceitá-la, a graça n’Ela cresceu.<br />
Fica-me no espírito a ideia de que<br />
se a Mãe de Deus tivesse vivido sem<br />
passar por esse sofrimento não teria<br />
crescido na inocência.<br />
O conceito de inocência precisa<br />
ser requintado. Ele, de fato, progrediu<br />
um pouco no nosso vocabulário.<br />
Hoje compreendemos ser a inocência<br />
o estado de alma por onde a pessoa,<br />
com toda a retidão de espírito<br />
natural e a de batizado – uma criteriologia<br />
sadia –, procura com enlevo<br />
todas as arquetipias e por causa disso<br />
não peca.<br />
Nossa Senhora era inocente em<br />
todos os sentidos, mas eminentemente<br />
nesse. Limpidez de todas as<br />
arquetipias, sanidade criteriológica<br />
fabulosa, sem nenhuma tendência<br />
para o mal causada pelo pecado original.<br />
Por exemplo, quando Ela perdeu<br />
o Menino Jesus, ou no momento<br />
da Paixão de Nosso Senhor, todos os<br />
instintos da natureza humana n’Ela<br />
se moveram com ordenação. Seria<br />
uma desordem se assim não fosse.<br />
Ela teve que comprimir seus sentimentos<br />
para manter essa ordem.<br />
O sofrimento acrisola<br />
a inocência<br />
Qual a necessidade do sofrimento<br />
para a inocência e, portanto, para<br />
outras virtudes?<br />
Jesus com a Cruz às costas - Igreja do Santíssimo Nome de Jesus, Guatemala<br />
As cogitações ascéticas comuns<br />
são esplêndidas, mas não põem em<br />
evidência o elemento mais recôndito<br />
que estou procurando expor.<br />
Se Nossa Senhora tivesse transposto<br />
a vida sem sofrimentos, sobretudo<br />
o da Paixão, o sofrimento auge, poder-se-ia<br />
sustentar que ao menos uma<br />
pessoa adulta passou sua existência,<br />
por assim dizer, em brancas nuvens.<br />
Se isso tivesse acontecido, por falta de<br />
acrisolamento sua inocência não se estenderia<br />
até onde é natural dentro da<br />
alma humana e Ela acabaria não sendo<br />
inteiramente inocente.<br />
Sem sofrimento a inocência não<br />
se acrisola. Não se acrisolando, a<br />
pessoa deixa de adquirir uma perfeição.<br />
O que significa isso na vida comum<br />
de um adulto?<br />
Imaginemos Roland acabando de<br />
ser armado cavaleiro. Logo depois<br />
disso os sarracenos se retiram, uma<br />
grande paz invade o Império de Carlos<br />
Magno e ele vai cuidar de agricultura.<br />
É preciso reconhecer que Roland<br />
não morreria tão grande guerreiro<br />
se não tivesse havido a guerra.<br />
Poderia até ser mais heroico<br />
aceitar a profissão de agricultor,<br />
mas o Roland da Cavalaria ele não<br />
seria.<br />
Imaginemos a morte do Roland<br />
agricultor. Ele recebe a notícia de<br />
que o inimigo avança, então se levanta<br />
do leito, diz: “Afinal eu vou!”,<br />
mas morre supondo estar furando o<br />
abdome de um sarraceno e os Anjos<br />
o assistem. Isso é muito bonito, entretanto<br />
não é o guerreiro.<br />
Assim também é a inocência. Se<br />
não chega a efetivar-se, fica como o<br />
guerreiro que se tornou agricultor. E<br />
em Nossa Senhora sou propenso a<br />
achar que era necessária a dor para<br />
completar a inocência, não a fim de<br />
tirar-Lhe algo de nocivo, mas para<br />
acrescentar-Lhe algo que se poderia<br />
comparar ao veleitário se não fosse o<br />
sofrimento.<br />
Tenho a impressão de que isso<br />
instala muito bem o sofrimento dentro<br />
da perspectiva humana, porque<br />
visto assim ele fica mais aceitável do<br />
que não se pondo esse matiz.<br />
J. P. Braido<br />
13
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Flávio Lourenço<br />
Por exemplo, se alguém me faz<br />
uma grande gentileza eu procuro dar-<br />
-lhe depois um presente, o qual não<br />
é um suborno. Ainda que o benfeitor<br />
seja um inútil, um inválido que nunca<br />
mais me daria nada, se tenho a alma<br />
bem formada devo querer tirar algo<br />
daquilo que é meu e lhe conceder,<br />
porque ele tirou algo de si para dar a<br />
mim.<br />
Eu seria levado a dizer ser esse sofrimento<br />
ontológica e moralmente necessário,<br />
pois sem ele não se realiza em<br />
plenitude a perfeição do ser racional, o<br />
qual fica meio ladrão se não restituir.<br />
Essa consideração confere uma<br />
lógica ao sofrimento e nos faz sentir<br />
melhor como ele é necessário. Assim,<br />
ele vai tomando outro aspecto:<br />
ele é aceito de modo voluntário e desejado<br />
como elemento da vida.<br />
Quanto maior a inocência,<br />
maior o sofrimento<br />
Menino Jesus entre os doutores - Museu da Colegiata de Santa Maria, Borja, Espanha<br />
Caráter restituidor<br />
do sofrimento<br />
Uma consideração, até prévia ao<br />
acima afirmado, diz respeito ao caráter<br />
restituidor do sofrimento, segundo<br />
o qual quem recebeu tanto,<br />
absolutamente falando, deve querer<br />
fazer um holocausto.<br />
Se alguém dissesse a respeito de<br />
um indivíduo: “Foi exigido dele um<br />
sacrifício que ele não quis fazer e<br />
acabou fugindo, mas Deus o agarrou<br />
por ter chegado a hora de seu holocausto.”<br />
Isso não estaria bem. A justiça,<br />
amada pelo beneficiado, cria<br />
nele uma sede de imolação.<br />
Para compreendermos bem a questão<br />
da inocência, é indispensável considerar<br />
que há uma proporção entre<br />
ela e o sofrimento. De maneira<br />
que quanto maior é a inocência tanto<br />
maior deve ser o sofrimento.<br />
A alma inocente é mais sensível do<br />
que a não inocente, porém ela adquire,<br />
para além da sensibilidade, uma resistência<br />
que não é uma insensibilidade,<br />
mas uma couraça. Ela se arma de<br />
uma resistência na zona nobremente<br />
pura da alma, formando um complemento<br />
lindo com a delicadeza muito<br />
suave existente por trás daquela parte<br />
dura. É o contrário, por exemplo,<br />
do botequineiro cantando tangos sentimentais,<br />
mas que na hora de cobrar<br />
uma dívida se torna um brucutu de<br />
uma dureza medonha, fazendo horrores<br />
ao revés disso que falamos.<br />
O inocente tem delicadezas, porém<br />
com firmezas insuspeitáveis diante de<br />
determinadas situações. Dessa forma,<br />
aquilo que está em potência na inocência<br />
se transforma em ato. A inocência<br />
não poderia adquirir esse complemento,<br />
que é uma espécie de dureza<br />
heroica, se não fosse de encontro à<br />
prova. De onde se vê que o sofrimento<br />
é um complemento necessário da inocência<br />
e precisa ser proporcional ao<br />
grau da inocência.<br />
O apostolado da inocência deve ser<br />
também o apostolado do sofrimento.<br />
Precisamos entender o que ele é.<br />
Seriedade é a inocência<br />
quando ama a Cruz<br />
Para Nossa Senhora dar toda a<br />
medida de Si mesma, de certa forma<br />
conveio que perdesse o Filho. Ela,<br />
por ser de uma inocência insondá-<br />
14
vel, deu tudo, passando por esse sofrimento<br />
insondável.<br />
Donde o discípulo, o escravo de<br />
Nossa Senhora, ser amigo da Cruz,<br />
quer dizer, é uma reversão da qual<br />
não adianta escapar. E digo mais, se<br />
quisermos tomar a sério o conceito<br />
de seriedade, devemos afirmar: seriedade<br />
é a inocência quando ama a<br />
Cruz. Fora disso não existe seriedade.<br />
Sustento isso de pés juntos.<br />
Tenho a impressão de que nada é<br />
mais duro do que não ser assim, e se<br />
a Santíssima não tivesse passado por<br />
todas as dores, teria um sofrimento<br />
de virtualidades sobrando, fervendo<br />
n’Ela e quiçá apodrecendo dentro<br />
d’Ela, pior do que aquilo que Ela sofreu.<br />
Ou seja, posta a inocência, era<br />
preciso sair do outro lado.<br />
Há algo que atrai na linha da inocência<br />
e faz com que, independentemente<br />
do aspecto punitivo do sofrimento,<br />
ele seja amado. Por exemplo,<br />
é muito bonito alguém ir para a<br />
Cruzada para ser penitente,<br />
mas é mais belo que vá<br />
por inocência. Eu gostaria<br />
de repisar neste ponto:<br />
a inocência sem sofrimento<br />
é uma inocência à qual<br />
falta seriedade. A seriedade<br />
é o nobremente córneo<br />
que a inocência adquire<br />
quando se choca com o<br />
sofrimento. Seria mais ou<br />
menos como um vapor de<br />
água indo de encontro a<br />
uma parede e se condensando,<br />
tomando consistência<br />
e nobreza. Do contrário,<br />
fica meio residual,<br />
germinativo e acaba não<br />
sendo nada.<br />
O sofrimento<br />
ordenador<br />
Reporto-me a uma<br />
conversa que tive com um<br />
membro de nosso Movimento,<br />
o qual estava muito<br />
provado e em quem eu queria incutir<br />
uma certa resignação.<br />
Embora não fosse uma pessoa muito<br />
inteligente, ele me disse algo que<br />
me deixou pasmo: “O senhor está falando<br />
de sofrimento. Mas ele tem dois<br />
sentidos diferentes, porque um é como<br />
o senhor o entende, outro é aquele<br />
que eu padeço. O meu é de quem<br />
sofre no mundo. O senhor faz um elogio<br />
do sofrimento que não cabe àquele<br />
que estou padecendo. O senhor afirmou<br />
que o sofrimento habitável, o<br />
meu é inabitável; o sofrimento forma,<br />
o meu deforma; o sofrimento articula,<br />
o meu desarticula. São dois sofrimentos<br />
diferentes. O senhor deveria falar<br />
do sofrimento que eu tenho.”<br />
Intelectus apertatus discurrit 1 . Ele<br />
estava apertado e, para se desapertar,<br />
soube encontrar a fórmula conveniente.<br />
Então deveríamos descrever<br />
essas diferenças para não parecer<br />
que estamos fazendo a apologia<br />
do sofrimento do precito.<br />
Mãe com seus filhos (coleção particular)<br />
Creio ser necessário fazer uma<br />
descrição psicológica, porque sem<br />
ela o assunto não fica esclarecido.<br />
Sendo o sofrimento restituidor e<br />
ordenador, o indivíduo que não sofresse<br />
nada padeceria mais do que<br />
aquele que sofre.<br />
Imaginemos uma senhora que tenha<br />
de fato uma verdadeira vocação<br />
para o casamento; ela se casa<br />
e quer ter filhos. Para uma senhora<br />
o ter filhos é um sofrimento. Porém,<br />
o marido morre logo e ela passa<br />
a ter uma vida de viúva solitária,<br />
muito mais tranquila e despreocupada<br />
do que se tivesse filhos, netos<br />
e bisnetos. Num canto da sua alma<br />
ela sofre mais do que se tivesse tido<br />
todos os padecimentos da maternidade,<br />
dos netos e bisnetos. Ela teria<br />
a inutilidade da vida bem arranjadinha,<br />
com tudo direitinho, mas corroída<br />
por dentro porque não sofreu<br />
aquilo que deveria ter sofrido.<br />
O sofrimento insuportável do homem<br />
que não padeceu<br />
aquilo que deveria é podridão,<br />
remorso, inutilidade.<br />
Isso nos faz compreender<br />
que, absolutamente falando,<br />
na vida sofre menos<br />
quem padece o que precisa<br />
sofrer. Do sofrimento não<br />
se escapa. Quem escapa<br />
do sofrimento legítimo cai<br />
nas garras de um maior e<br />
ilegítimo, não aparente.<br />
Charlemagne Oscar Guet(CC3.0)<br />
Fonte da<br />
verdadeira paz<br />
Duas conclusões devem<br />
ser tiradas. Primeira: a vida<br />
sem sofrimento não é<br />
possível. Segunda: fugir do<br />
sofrimento é multiplicá-<br />
-lo, pois a pessoa fermenta<br />
dentro de si energias que<br />
precisariam ter sido consumidas<br />
e não o foram.<br />
Se queremos formar<br />
bem as pessoas para o so-<br />
15
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Gabriel K.<br />
frimento, devemos saber descrever,<br />
sem efervescência, a sensação de podridão<br />
e de remorso, portanto o tédio<br />
do sujeito que não padeceu aquilo<br />
que deveria ter sofrido.<br />
Contudo, precisamos evitar a seguinte<br />
ideia que não tem a sabedoria<br />
da Igreja: quanto mais desgraçado,<br />
mais feliz. Conforme o espírito da Igreja,<br />
posto um princípio que poderia dar<br />
numa voragem, entra depois uma verdade<br />
segunda que proporciona àquele<br />
princípio um equilíbrio fantástico.<br />
O indivíduo chamado a sofrer menos<br />
deve ter um verdadeiro entusiasmo<br />
por quem foi levado a sofrer<br />
mais. Não pode ter horror de sua<br />
presença, mas precisa se aproximar<br />
dele como de uma vítima sagrada.<br />
Considero a fuga do sofredor, que<br />
caracteriza a civilização hollywoodiana,<br />
como uma covardia pavorosa. O<br />
inocente deve procurar discernir nos<br />
fatos os sofrimentos, reconhecer qual<br />
é o seu, de acordo e proporcionado à<br />
Profeta Isaías - Basílica<br />
Notre-Dame de Montreal<br />
sua vocação, e aceitá-lo. Às vezes ele<br />
é enorme.<br />
Quando sofre nessa pista, a pessoa<br />
tem na fina ponta da alma a noção de<br />
que está restituindo e se ordenando;<br />
a sua inocência vai tomando aquele<br />
lado por onde se completa e produz<br />
uma tranquilidade que é a paz.<br />
A nota característica desse sofrimento<br />
é ser ordenado. A pessoa sabe<br />
porque está sofrendo e compreende<br />
que ele tem uma finalidade,<br />
uma razão de ser, e sente um alívio<br />
interno de tudo quanto ela padeceria<br />
se não sofresse. Quer dizer, ele<br />
acaba sendo uma fonte de felicidade,<br />
por mais terrível que seja. Donde<br />
se compreende aquela frase de Isaías,<br />
estupenda: “Eis na paz a minha<br />
amargura amaríssima” (Is 38, 17).<br />
“Se isso tinha que acontecer, apesar<br />
de ser terrível, carrego o peso,<br />
mas sei que está dando em tais bens<br />
de espírito. E, na ordem absoluta das<br />
coisas, produzindo tais efeitos estou<br />
em paz dentro daquilo que sucedeu,<br />
e encontro uma espécie de bem-estar<br />
de alma no próprio mal-estar.”<br />
Não se deve imaginar a pessoa com<br />
sofrimentos externos e com a alma<br />
inundada de consolações, porque não<br />
se trata disso. É a alma devastada por<br />
eles, mas na qual entra uma espécie de<br />
bem-estar, uma sensação cor de ametista<br />
na qual ela diz: “Nesse meu luto<br />
há luz e eu moro dentro dele estavelmente;<br />
deve ser assim e ando para a<br />
frente.” Isto é resignação.<br />
Passar pelo incompreensível<br />
e insuportável<br />
Há um nível fácil de sofrimento no<br />
qual o sujeito sofre, mas inundado de<br />
consolações interiores, onde quase não<br />
há padecimento. Existe um grau mais<br />
elevado em que ele sofre na aridez, mas<br />
com resignação. E há o sofrimento estapafúrdio,<br />
no qual se passa algo que<br />
pareceria não dever acontecer ou não<br />
do modo como se dá. Esse último é o<br />
sofrimento inteiramente restituidor e<br />
Madre Francisca de Jesus<br />
ordenador. O indivíduo compreende<br />
que, para restituir e ordenar a inocência<br />
até o fim, é preciso passar pelo incompreensível<br />
e insuportável.<br />
Essa é a hora do puro ato de amor.<br />
Sem um socorro, visível ou invisível, a<br />
pessoa não aguenta. Quando é invisível,<br />
o socorro é mais elevado.<br />
Impressiona-me o que sucedeu<br />
com a Chiquinha do Rio Negro 2 , filha<br />
do Barão do Rio Negro, dono<br />
do lindo Palácio, em Petrópolis, onde<br />
os presidentes da República passavam<br />
férias. Pelas fotografias dela<br />
nota-se que era bonita, de um tipo<br />
de beleza escultural. Ela deixou tudo,<br />
viajou para Roma e fundou uma<br />
Ordem religiosa. Foi atingida por<br />
uma doença chamada mal de Basedow<br />
que hoje se cura, mas no tempo<br />
dela era incurável; isso lhe causava<br />
muita angústia.<br />
Houve problemas internos nessa<br />
Ordem religiosa. Reunindo um Capítulo,<br />
as freiras a expulsaram da Ordem.<br />
Em seguida, ela se dirigiu à sua<br />
cela e ficou sentada na cama diante<br />
da qual havia uma parede pintada de<br />
branco. Olhou-a e viu ali a Sagrada<br />
Face; ela apanhou um lápis e desenhou-a<br />
naquele local da parede.<br />
Quando as coisas se concertaram,<br />
ela voltou para a Ordem. Regressou a<br />
Divulgação<br />
16
Petrópolis e ali fundou uma Casa de<br />
adoração perpétua do Santíssimo Sacramento.<br />
Pelo que me consta, retiraram<br />
o desenho da Sagrada Face de sua<br />
cela em Roma e o levaram para lá.<br />
No momento em que lhe apareceu<br />
a Sagrada Face estava terminado o pior<br />
da prova, como acontecera com Nossa<br />
Senhora ao encontrar o Menino Jesus<br />
no Templo. Esse é um fato que conhecemos.<br />
Que outros terá havido?<br />
Resignação passiva e ativa<br />
A prece de Nosso Senhor “Se possível<br />
afaste-se de Mim este cálice,<br />
mas faça-se a vossa vontade e não a<br />
minha” (cf. Lc 22, 42) indica haver limites<br />
os quais parecem ter sido excedidos.<br />
“Estou moído e não dou mais<br />
nada; entretanto, se essa é a vossa<br />
vontade, minha inocência quer chegar<br />
ao limite de si mesma.” O ósculo<br />
do auge da inocência com o auge da<br />
cruz se deu. Então aí estão realizadas<br />
a restituição e a ordenação perfeitas.<br />
O tema é tão austero e pungente<br />
que se fica em dúvida de tratar dele.<br />
Mas há uma certa hora tremenda na<br />
qual isso nos acontece. Ordenar e conduzir<br />
nossa existência em função desse<br />
momento à espera do Céu é viver.<br />
Compreende-se, assim, a necessidade<br />
de rezar, porque sem o auxílio<br />
da graça ninguém aguenta uma coisa<br />
dessas.<br />
Se a pessoa vir em Nosso Senhor<br />
o Inocente por excelência que sofreu<br />
mais do que ela, o Arquétipo que<br />
abriu passo à sua frente, encontrará<br />
forças para fazer sua via sacra. E, vivendo<br />
de resignação em resignação,<br />
sua alma chega a essa posição diante<br />
do estapafúrdio.<br />
Chamo “resignação” algo que começa<br />
desde pequeno em dois movimentos<br />
de alma: a resignação passiva<br />
e a ativa. A resignação passiva é a da<br />
criança dócil a quem se impõe qualquer<br />
coisa e ela aceita de bom grado.<br />
A resignação ativa, muito mais difícil,<br />
é a da criança que entra na luta sem<br />
vontade, mas aguenta a batalha e a toca<br />
para frente, estavelmente. “Eu resolvi<br />
e esta minha deliberação é duríssima,<br />
mas habitável, não vou me desarticular.<br />
Aqui dentro estou bem.”<br />
Em certo momento da vida, chega o<br />
sofrimento que a pessoa julga inabitável,<br />
porém entra nele e sai do outro<br />
lado. Por exemplo, a Madre Francisca<br />
do Rio Negro e outros casos desse gênero.<br />
Entretanto, é preciso ser assim e<br />
sem pena de si. Porque se houver pena<br />
de si, começam todas as misérias.<br />
Quando a pessoa recusa os sofrimentos<br />
da primeira etapa, os acompanhados<br />
de consolações, o processo<br />
se deteriora e a Providência pode,<br />
por punição, não mandar grandes<br />
padecimentos; a pessoa passa a vida<br />
inteira se balançando nas angústias<br />
de uma superficialidade com gozo,<br />
que está cheia de tormentos.<br />
Outra coisa muito bonita é a seguinte:<br />
confiamos que um determinado<br />
tipo de sofrimento não virá para<br />
nós, e, muitas vezes, é esse que nos<br />
colhe. A pessoa tem a sensação de que<br />
algo de insuportável salta sobre ela,<br />
mas pensa que se confiar não virá. Isso<br />
exige um prodígio de equilíbrio porque<br />
há um certo momento no qual ela<br />
prefere jogar-se dentro do sofrimento<br />
a confiar que ele não virá. Exemplo, a<br />
confiança de São João Evangelista entrando<br />
no tanque de óleo fervente.<br />
Podemos imaginar – não há nenhum<br />
fundamento na Revelação para<br />
afirmar ou negar que se tenha dado<br />
como vou dizer – que São João<br />
estivesse com pânico daquele caldeirão<br />
de azeite como de uma pantera,<br />
e que fosse inumano entrar ali. Mesmo<br />
achando isso, ele entrou, não se<br />
queimou e saiu ileso do outro lado.<br />
Considero que nisto houve, na fina<br />
ponta de sua alma, algo que é mais<br />
do que ter passado pelo azeite. A<br />
confiança é um martírio próprio.v<br />
(Extraído de conferência de<br />
30/10/1974)<br />
1) Adaptação do latim: O intelecto apertado<br />
discorre.<br />
2) Madre Francisca de Jesus (*1877 -<br />
†1932), Fundadora da Companhia da<br />
Virgem.<br />
Martírio de São João Evangelista - São Lourenço de Morunys, Espanha<br />
Flávio Lourenço<br />
17
Fotos: Flávio Lourenço<br />
C<br />
alendário<br />
Santa Verena<br />
1. Santa Verena, virgem (†séc. IV).<br />
Natural do Egito, deslocou-se depois<br />
para a Europa. É venerada no território<br />
de Zurzach, atual Suíça. É unida, pela<br />
tradição, à Legião Tebana. Desde o século<br />
X o mosteiro construído sobre sua<br />
sepultura foi objeto de peregrinações e<br />
outras mostras de piedade popular.<br />
2. Beata Ingrid Elofsdotter, viúva<br />
(†1282). Ao perder o esposo, ofereceu<br />
todos os seus bens para o serviço<br />
de Deus e, depois de uma peregrinação<br />
à Terra Santa, tomou o hábito<br />
monástico da Ordem Dominicana.<br />
3. XXII Domingo do Tempo Comum.<br />
São Gregório Magno, Papa e Doutor<br />
da Igreja (†604).<br />
dos Santos – ––––––<br />
4. São Calétrico, bispo (†a. 573).<br />
Governou a diocese de Chartres,<br />
França. Participou dos concílios de<br />
Tours e de Paris.<br />
Santa Irmengarda (ou Irmgarda),<br />
condessa (†c. 1089). Condessa<br />
de Süchteln, aparentada com o imperador<br />
Santo Henrique II. Recebeu em<br />
Aspel a visita do Pontífice Romano,<br />
São Leão IX, e realizou diversas peregrinações<br />
a Roma. Tendo-se estabelecido<br />
em Colônia, viveu dedicada às<br />
obras religiosas e de caridade, sobretudo<br />
à construção de igrejas.<br />
5. Santo Alperto, abade (†c. 1073).<br />
Considerado como fundador e primeiro<br />
abade do mosteiro de Bútrio,<br />
perto de Pavia, na Itália.<br />
6. Santa Bega, virgem (†c. 660). Segundo<br />
a tradição, foi uma princesa irlandesa<br />
que fugiu para a Escócia, pois desejava<br />
consagrar-se a Cristo. Recebeu o sagrado<br />
véu das mãos de Santo Edano de<br />
Lindisfarne. Seguiu primeiro a vida eremítica<br />
e depois fundou um mosteiro em<br />
Cumberland, na Inglaterra, do qual foi<br />
abadessa até o fim de sua vida.<br />
7. São João de Lódi, bispo (†c. 1106).<br />
Companheiro de São Pedro Damião<br />
em suas missões pontifícias.<br />
São Marcos Crisino, presbítero e<br />
mártir (†1619). Em seu trabalho pastoral<br />
demonstrou-se zeloso em manter<br />
os católicos na Fé e atrair os protestantes<br />
à Igreja. Estando na cidade de Kosice,<br />
na Eslováquia, junto com os padres<br />
jesuítas Estêvão Pongracz e Melchior<br />
Grodziecki, foram presos pelos<br />
protestantes, os quais lhes ofereceram<br />
a liberdade em troca de sua apostasia.<br />
Enfrentando a fome, a tortura da roda<br />
e diversos suplícios, entregaram suas<br />
vidas mantendo-se fiéis à Fé católica.<br />
8. Natividade de Nossa Senhora.<br />
Santo Isaac, bispo (†438). Traduziu<br />
a Sagrada Escritura e a Liturgia<br />
para a língua armênia; aderiu à Fé<br />
professada no Concílio de Éfeso, sendo,<br />
em seguida, afastado de sua sede<br />
episcopal, vindo a falecer no exílio.<br />
9. São Pedro Claver, presbítero<br />
(†1654).<br />
10. XXIII Domingo do Tempo Comum.<br />
11. São Sacerdote, bispo (†552).<br />
Regeu a diocese de Lião e foi conselheiro<br />
do rei Childeberto.<br />
Santo Elias Espeleota, monge<br />
(†960). Abandonando as leviandades<br />
da juventude, dedicou-se à vida eremítica;<br />
mais tarde, entrou para o mosteiro<br />
de Aulinas, na Calábria, Itália.<br />
12. Santíssimo Nome de Maria.<br />
Santo Albeu, bispo (†c. 528). Primeiro<br />
bispo de Imlech, na Irlanda;<br />
pregou o Evangelho em muitos lugares<br />
desta ilha.<br />
13. São João Crisóstomo, bispo e<br />
Doutor da Igreja (†407).<br />
São Litório, bispo (†371). Nasceu<br />
em Tours. Exerceu ali uma apreciável<br />
evangelização e edificou a primeira<br />
igreja desta cidade. Foi sucedido na<br />
sede episcopal por São Martinho.<br />
14. Exaltação da Santa Cruz.<br />
Beatos Sabino Ayastuy Errasti, Joaquim<br />
Ochoa Salazar e Florêncio Arnaiz<br />
Cejudo, mártires (†1936). Religiosos<br />
da Companhia de Maria, martirizados<br />
durante a perseguição contra<br />
a Fé, na Guerra Civil Espanhola.<br />
15. Nossa Senhora das Dores.<br />
Santo Aicardo, abade (†séc. VII).<br />
Discípulo de São Filiberto, o qual o<br />
São Cosme e São Damião<br />
18
––––––––––––––– * Setembro * ––––<br />
nomeou prelado do mosteiro de<br />
Jumièges, na França.<br />
16. São Cornélio, Papa (†253),<br />
e São Cipriano, bispo (†258), mártires.<br />
17. XXIV Domingo do Tempo<br />
Comum.<br />
18. Santo Eustórgio, bispo<br />
(†a. 355). Santo Atanásio teceu-<br />
-lhe louvores por confessar a verdadeira<br />
Fé contra os erros arianos.<br />
Santa Ariadna, mártir (†séc. II).<br />
Jovem escrava do príncipe da Frígia,<br />
ao se negar participar nos ritos<br />
pagãos foi arrestada pelas autoridades,<br />
recebendo a palma do martírio<br />
em Prymnesso, na Frígia.<br />
19. São Januário de Benevento,<br />
bispo e mártir (†séc. IV). Durante<br />
a perseguição contra a Fé cristã,<br />
padeceu o martírio em Pozzuoli. Suas<br />
relíquias são veneradas com grande<br />
devoção popular em Nápoles, onde<br />
há uma ampola contendo seu sangue<br />
solidificado e que, em algumas<br />
datas do ano, de modo milagroso, se<br />
liquefaz.<br />
20. Santo André Kim Tae-gon, presbítero,<br />
Paulo Chong Ha-sang e companheiros,<br />
mártires (†1839-1867).<br />
21. São Mateus, Apóstolo e Evangelista<br />
(†séc. I).<br />
São Quadrato (†séc. II). Discípulo<br />
dos Apóstolos; segundo a tradição,<br />
durante a perseguição do Imperador<br />
Adriano, congregou com a sua fé e zelo<br />
pastoral a Igreja dispersa pelo terror e<br />
apresentou ao próprio imperador um livro<br />
em defesa da religião cristã, em conformidade<br />
com a doutrina apostólica.<br />
22. Santa Emérita, mártir (†data<br />
inc.). Mártir romana, sepultada no cemitério<br />
de Comodila na Via Ostiense,<br />
onde os fiéis prestavam-lhe veneração.<br />
23. São Pio de Pietrelcina, presbítero<br />
(†1968). Pertencia à Ordem dos Frades<br />
São Lourenço Ruiz (de Manila) e companheiros<br />
Menores Capuchinhos. Consagrou-se<br />
assiduamente à direção espiritual dos fiéis<br />
e à reconciliação dos penitentes.<br />
24. XXV Domingo do Tempo Comum.<br />
25. Santo Anacário (ou Aunacário),<br />
bispo (†605). Originário de Orléans.<br />
Após exercer serviços na corte,<br />
ingressou nas fileiras clericais em Autun.<br />
Durante seu episcopado em Auxerre,<br />
concluiu-se o chamado Martirológio<br />
Jeronimiano. Participou de vários concílios,<br />
regulou a vida diocesana em relação<br />
às festas, disciplina eclesiástica e santos<br />
costumes, e fomentou a vida monacal<br />
empreendendo diversas fundações.<br />
26. São Cosme e São Damião mártires<br />
(†c. séc. III). Segunda narra a tradição,<br />
exerceram a medicina em Ciro,<br />
na Eufratésia, território da Síria, sem<br />
nunca pedir remuneração, e curaram<br />
muitos com os seus cuidados.<br />
27. São Vicente de Paulo, presbítero<br />
(†1660).<br />
Beata Hermínia Martínez Amigó,<br />
mãe de família e mártir (†1936). Nascida<br />
em meio a uma abastada família<br />
cristã, contraiu matrimônio<br />
com Vicente Martínez Ferrer. Católica<br />
fervorosa, participou de diversas<br />
atividades de apostolado<br />
e de caridade, destacando-se pela<br />
generosidade de suas esmolas e<br />
por sua militância na Ação Católica.<br />
Devido a sua intensa religiosidade,<br />
foi fuzilada juntamente com<br />
seu marido durante a perseguição<br />
religiosa ocorrida na Guerra Civil<br />
Espanhola.<br />
28. São Venceslau, mártir (†929-<br />
935).<br />
São Lourenço Ruiz (de Manila)<br />
e quinze companheiros, mártires<br />
(†1633-1637).<br />
29. Arcanjos São Miguel, São<br />
Gabriel e São Rafael.<br />
Santas Rípsimes, Gaiana e<br />
companheiras, mártires (†séc. IV in.).<br />
De origem romana, durante uma perseguição<br />
fugiram para Valeroctista<br />
(atual Etchmiadzin), capital religiosa<br />
da Armênia. Entretanto, lá receberam<br />
a palma do martírio na época<br />
da pregação de São Gregório, o Iluminador.<br />
30. São Jerônimo, presbítero e Doutor<br />
da Igreja (†420).<br />
São Gregório, bispo (†c. 326). Cognominado<br />
o Iluminador, é considerado<br />
o apóstolo dos armênios.<br />
Beata Felícia Meda, abadessa<br />
(†1444). Nasceu em Milão no seio de<br />
uma família aristocrática e ficou órfã<br />
ainda criança. Na juventude, decidiu<br />
abandonar as comodidades do mundo<br />
e ingressar nas Clarissas de Santa<br />
Úrsula, onde se tornou uma religiosa<br />
observante e exemplar. Eleita abadessa,<br />
exerceu seu cargo com sabedoria e<br />
eficácia. Atendendo ao pedido do Papa<br />
Eugênio IV, presidiu à fundação do<br />
mosteiro de Pêsaro, onde deu mostras<br />
de notável virtude e ali encerrou seus<br />
dias em odor de santidade.<br />
19
Hagiografia<br />
A paz e a alegria<br />
da contrição<br />
Santa Catarina de Gênova teve uma experiência mística<br />
do estado de uma alma no Purgatório e compreendeu o<br />
quanto a verdadeira contrição proporciona paz e alegria.<br />
Se carregarmos nossa cruz com resignação, teremos na<br />
alma torrentes de paz, tranquilidade, estabilidade, ordem,<br />
cuja fruição ninguém nesse mundo poderá nos tirar.<br />
Samuel Holanda<br />
T<br />
emos<br />
para comentar um<br />
texto sobre Santa Catarina<br />
de Gênova 1 .<br />
Num êxtase, vê a enormidade<br />
de seus pecados e se converte<br />
Catarina de Gênova, oriunda de nobre<br />
linhagem dos Fieschi, nasceu na citada<br />
cidade mediterrânea, em fins do<br />
ano 1447.<br />
Seus desejos de ingressar num convento<br />
foram contrariados por seus<br />
pais, que a desposaram com um patrício<br />
genovês, Giuliano Adorno, atendendo<br />
às conveniências políticas.<br />
Seu esposo era-lhe infiel, violento<br />
e debochado. Durante os cinco primeiros<br />
anos de seu casamento, a jovem<br />
sofreu em silêncio. Mais tarde,<br />
quando seu marido tratou de arrastá-<br />
-la a uma vida mundana, onde pensaria<br />
em desenvolver seus extraordinários<br />
dotes de beleza e invulgar espírito,<br />
viu aumentar sua desventura, chegando<br />
inclusive a perder o consolo da Religião<br />
que até então a sustentara.<br />
20<br />
Santa Catarina de Gênova<br />
Paróquia dos Italianos, Lisboa
João C. V. Villa<br />
Almas do Purgatório - Catedral de Loja, Equador<br />
Dez anos depois de seu casamento,<br />
Catarina visitou sua irmã, que vestia o<br />
hábito monacal, contando-lhe as dificuldades.<br />
O conselho da jovem religiosa<br />
foi que se confessasse e se entregasse<br />
à penitência. Quando se decidiu a seguir<br />
esse maravilhoso caminho, caiu<br />
em êxtase, sendo-lhe descoberta a grandeza<br />
de seus pecados, enquanto nela se<br />
despertou um tão grande amor a Deus<br />
que dessa experiência se converteu.<br />
Assim, voltou a acariciar o desejo<br />
de sua infância. Durante muitos anos,<br />
na Quaresma e no Advento, viveu quase<br />
que exclusivamente da Sagrada Comunhão.<br />
Seu marido, que se arruinara, ainda<br />
a fez sofrer muito, confessando-se apenas<br />
no seu leito de morte.<br />
Catarina dedicou-se a cuidar dos<br />
doentes num hospital de Gênova, onde<br />
sua conduta foi particularmente<br />
heroica durante a epidemia de 1493.<br />
Faleceu a 15 de setembro de 1510.<br />
O fogo abrasador<br />
do Purgatório<br />
Nunca se escreveram palavras tão<br />
profundas sobre o Purgatório como as<br />
desta Santa. No abrasado fogo de seu<br />
amor a Deus, reconhecia o que padecem<br />
as almas que passam por aquele<br />
lugar de purificação, onde o amor depurador<br />
do fogo limpa os espíritos de<br />
todos os resquícios de pecado.<br />
Ao separar-se do corpo, disse ela, a<br />
alma impura se sente destroçada, reconhecendo<br />
o peso que a oprime e,<br />
com a convicção de que só se verá livre<br />
de tal peso através do Purgatório,<br />
deseja caminhar imediata e voluntariamente<br />
para ele.<br />
A essência divina encerra tanta pureza<br />
e claridade, que aquelas almas que<br />
possuem um só resquício de imperfeição<br />
em si preferem lançar-se em mil<br />
purgatórios a colocar-se em presença<br />
de Deus com a mancha do pecado. É<br />
verdade que o amor a Deus lhes proporciona<br />
um indizível bem-estar, mas<br />
isto não diminui a mínima parcela do<br />
sofrimento que devem padecer no Purgatório.<br />
Ao contrário, seu padecimento<br />
consiste precisamente em sentir-se refreadas<br />
no amor, e tal tormento cresce<br />
à medida que seu amor se torna mais<br />
perfeito. Deste modo, as almas do Purgatório<br />
gozam as maiores delícias, ao<br />
passo que sofrem as maiores dores,<br />
sem que uma coisa impeça a outra.<br />
Uma alma muito chamada<br />
Nesta ficha há duas considerações<br />
a tirar.<br />
Uma delas é propriamente a biográfica,<br />
sobre a vida de Santa Catarina.<br />
E a outra é a respeito do trecho<br />
referente ao Purgatório.<br />
Na parte biográfica, poderíamos<br />
fazer várias observações. Trata-se de<br />
uma alma muito chamada que, entretanto,<br />
não correspondeu ao convite de<br />
21
Hagiografia<br />
Flávio Lourenço<br />
tinuou a levar uma má vida e só se<br />
converteu no leito de morte.<br />
E de outro lado – não está dito de<br />
modo expresso na ficha, mas se compreende<br />
– o enorme vazio dos prazeres<br />
nos quais ela procurava uma compensação<br />
daquilo que sofria. A irmã, então,<br />
lhe recomenda que volte a Deus, à prática<br />
dos Sacramentos que ela abandonara.<br />
Catarina atende o conselho e é ferida<br />
por um êxtase, no qual vê todo o<br />
horror dos pecados que cometeu.<br />
Passou, então, a levar uma vida de<br />
penitência. Ela, que fora uma dama<br />
de grande honra – ocupara um lugar<br />
de destaque pela sua beleza, situação<br />
social, riqueza, numa das cidades<br />
mais celebres do mundo de então,<br />
Gênova, república aristocrática,<br />
que dominava partes do Mar Mediterrâneo<br />
– vai cuidar despretensiosamente<br />
dos doentes num hospital, para<br />
fazer penitência.<br />
A ideia da expiação do pecado por<br />
meio do sofrimento domina toda sua<br />
vida, e ela se entrega a um verdadeiro<br />
Purgatório na Terra. Vai ajudar os outros<br />
no sofrimento e sofre<br />
com eles para expiar o pecado<br />
que cometeu. Assim<br />
vemos quanto é lógico que<br />
ela tenha uns pensamentos<br />
profundos – êxtases, visões<br />
e revelações – a respeito<br />
do Purgatório.<br />
Antes, porém, de passar<br />
a esse tema, vamos considerar<br />
o conjunto desta biografia.<br />
Procurou escapar<br />
do bom caminho<br />
e recebeu grandes<br />
sofrimentos<br />
Conversão de São Paulo - Catedral da Santa Cruz, Cádiz, Espanha<br />
Deus. Ela se casou com Giuliano Adorno<br />
quando quisera ter sido religiosa, e<br />
se deixou arrastar ao mesmo tempo por<br />
um oceano de sofrimentos, de padecimentos<br />
que seus pais lhe infligiram, de<br />
um lado e, de outro lado, pelo mundanismo<br />
e pela vaidade, que fizeram dela<br />
uma pessoa preocupada, durante grande<br />
período, apenas com prazeres e sem<br />
cogitar das coisas de Deus.<br />
Vemos, depois, uma conversão maravilhosa.<br />
Naquele tempo, eram muito<br />
numerosas as pessoas que entravam<br />
para o estado religioso. Mesmo nas famílias<br />
das mais altas categorias, havia<br />
sempre dois, três, quatro filhos, que se<br />
faziam frades, freiras, padres, bispos,<br />
ou então iam para as Ordens de Cavalaria.<br />
A coisa mais corrente, mais comum,<br />
era alguém ser religioso.<br />
Certo dia, ela foi visitar sua irmã,<br />
que era religiosa, e se expandiu<br />
a respeito de tudo quanto sofria no<br />
mundo. Eram padecimentos que se<br />
contradiziam, se chocavam. De um<br />
lado eram por causa do péssimo marido,<br />
o qual pôs fora a fortuna, con-<br />
Há certas almas que<br />
Deus persegue com obstinação;<br />
porém, elas fogem<br />
e, às vezes, se debatem<br />
contra o Criador. Mas<br />
Ele, na sua misericórdia,<br />
em determinado momento as atinge<br />
de tal maneira que elas se entregam<br />
a Ele por completo. Essas almas, na<br />
História da Igreja, são incontáveis.<br />
Temos um exemplo em São Paulo, a<br />
quem Nosso Senhor disse, na hora da<br />
conversão: “Saulo, Saulo, por que Me<br />
persegues?” (At 9, 4). E acrescentou<br />
que era duro para ele relutar contra o<br />
vento da graça de Deus, que o chamava<br />
para uma determinada finalidade.<br />
Santa Catarina procura escapar do<br />
bom caminho. Deus não lhe corta o<br />
mau caminho, mas nele coloca um sofrimento.<br />
O mau marido, a frustração<br />
do mundo, predispõem sua alma para<br />
aquele momento abençoado em que<br />
a irmã lhe dá um bom conselho.<br />
Sua alma provavelmente estava<br />
preparada por mil sofrimentos. Catarina<br />
era naquela ocasião mais ou<br />
menos como um filho pródigo que<br />
volta à casa paterna. Ela é vencida<br />
por Deus, que arranca essa vitória<br />
de um modo magnífico. Em vez de<br />
inspirar considerações piedosas sobre<br />
o pecado para fazer tão somen-<br />
22
te um ato de contrição, Deus lhe dá<br />
muito mais. Concede-lhe uma visão<br />
na qual ela tem uma noção clara do<br />
pecado que cometeu.<br />
Davi, depois de ter pecado, disse<br />
aquela frase estupenda que está<br />
nos Salmos e sempre me impressionou:<br />
“Eu pequei só contra Ti, ó meu<br />
Deus, e o meu pecado está o tempo<br />
inteiro diante de mim” (cf. Sl 50,<br />
5-6), como se fosse um acusador que<br />
se levanta dizendo aquilo que ele<br />
fez. Catarina poderia dizer isso, porque<br />
teve uma visão na qual viu o seu<br />
próprio pecado.<br />
A verdadeira contrição é<br />
alentadora e proporciona<br />
muita alegria<br />
Poderíamos nos perguntar se Deus<br />
foi para com ela misericordioso ou<br />
duro, um pai cheio de bondade ou,<br />
pelo contrário, de severidade. Compreendo<br />
que alguns possam achar ser<br />
em extremo duro ver de frente o seu<br />
próprio pecado, pois deve<br />
produzir uma impressão<br />
de desalento, tristeza,<br />
desânimo e até o desmaio.<br />
A pessoa que pensa assim<br />
não tem uma noção<br />
clara do que seja uma contrição.<br />
No meio de seus<br />
crepes, de suas lágrimas,<br />
a verdadeira contrição é<br />
alentadora e proporciona<br />
belas, talvez lúgubres, mas<br />
magníficas alegrias. Para<br />
mostrar isso ela descreve<br />
o Purgatório, que é por<br />
excelência o lugar de contrição.<br />
Para lá vão as almas<br />
que têm de se purificar<br />
de alguma coisa antes<br />
de ver a essência de Deus.<br />
Santa Catarina, no trecho<br />
transcrito, fala de um<br />
modo conciso, mas muito<br />
elevado, sobre o Purgatório.<br />
Mostra que a alma de<br />
uma pessoa boa, fiel, que<br />
morre, tem uma primeira noção da<br />
pureza infinita de Deus e sabe que vai<br />
possuí-Lo por toda a eternidade, a felicidade<br />
insondável que não se compara<br />
com as alegrias da Terra. Mas,<br />
ao mesmo tempo em que é atraída<br />
para o Criador, ela se sente fora de<br />
condições de se apresentar a Ele.<br />
Então, a alma passa por dois movimentos:<br />
um cheio de alegria e outro<br />
pleno de pesar. O movimento<br />
cheio de alegria a conduz para unir-<br />
-se a Deus. O de pesar vem do contraste<br />
entre aquela mancha que ela<br />
nota em si e a pureza infinita do<br />
Criador. Então, por um desejo de<br />
união, de purificação, diz Santa Catarina,<br />
a alma suportaria mil Purgatórios<br />
para poder unir-se a Deus.<br />
Ali, no Purgatório, ela sofre o tormento<br />
delicioso ou a tormentosa delícia<br />
de ir sentindo que aquilo que a<br />
separa de Deus vai se tornando mais<br />
adelgaçado ao longo das purificações<br />
e, ao mesmo tempo, querendo<br />
chegar mais próxima do Criador.<br />
A tristeza depurativa<br />
e a paz da contrição<br />
Rei Davi - Museu de Belas Artes de Marselha, França<br />
De maneira que ela tem uma fundamental<br />
alegria junto a uma tristeza<br />
que a vai depurando e aproximando<br />
de Deus. Algo disso existe também<br />
na paz de alma causada pela<br />
contrição. Nos Salmos, Davi, inspirado<br />
pelo Espírito Santo, canta o pesar<br />
por ter pecado, de maneira que<br />
cada uma daquelas palavras é uma<br />
gota de fogo caída do Céu para a alma<br />
humana. Faz certas comparações<br />
magníficas. Ele diz, por exemplo,<br />
que por causa do pecado ficara isolado,<br />
rejeitado e se sentia como um<br />
pardal solitário no telhado de uma<br />
casa.<br />
A similitude não podia ser mais<br />
pitoresca. As pessoas se reúnem em<br />
família debaixo do telhado da residência,<br />
onde talvez esteja acesa uma<br />
lareira e haja o calor do convívio entre<br />
todos. Do lado de fora sobre o<br />
telhado, sozinho, exposto à chuva,<br />
Flávio Lourenço<br />
23
Hagiografia<br />
à intempérie, não tendo ninguém<br />
com quem “conversar”,<br />
está o pardal solitário.<br />
Assim, longe do convívio dos<br />
bons que se entreamam, está<br />
o pecador solitário. A imagem<br />
não podia ser mais poética,<br />
mais bonita para exprimir a solidão<br />
do pecador. Davi descreve<br />
de mil modos lindos a própria<br />
dor.<br />
Ao mesmo tempo em que<br />
vai falando de sua dor, nota-<br />
-se que ele está em paz. É a<br />
paz de alma do pecador que<br />
reconhece ter errado, não está<br />
mentindo para si nem para<br />
Deus, e tem coragem de<br />
olhar de frente o seu próprio<br />
pecado. Em geral, os Salmos<br />
terminam com um cântico de<br />
esperança: “Mas Tu és Deus<br />
meu Salvador e terás compaixão<br />
de mim.” Todas aquelas<br />
palavras magníficas indicam<br />
a esperança da alma de ser<br />
atendida, ser remida e salva.<br />
Compreende-se a torrente de paz,<br />
de esperança e o júbilo triunfal que<br />
existe por detrás da penitência. Assim<br />
nós devemos considerar Santa<br />
Catarina de Gênova.<br />
Um hospital em Gênova,<br />
naquele tempo<br />
Nheyob(CC3.0)<br />
Imaginemos um hospital em Gênova,<br />
naquele tempo: edifício bonito,<br />
como geralmente eram as construções<br />
italianas. Às cinco horas da<br />
manhã, toca uma sinetazinha, a Missa<br />
vai começar, as primeiras mulheres<br />
fiéis usando véu entram na capela.<br />
Entre elas se encontra Santa Catarina<br />
de Gênova, lembrando-se talvez<br />
de outras madrugadas em que não<br />
estava saindo de casa, mas entrando<br />
nela. Em que ela não tinha diante de<br />
si a perspectiva de um dia de sacrifício,<br />
mas a recordação amarga de uma<br />
noite inteira de prazer, seguida de inconsolável<br />
frustração.<br />
Santa Catarina de Gênova - Igreja de Santa Ana, Detroit<br />
Ela caminha com passo ligeiro,<br />
mais uma vez pede perdão pelo seu<br />
pecado, ajoelha-se e começa a rezar<br />
no recolhimento do prédio. Inicia-se<br />
a Missa, os fiéis oram com o padre,<br />
aos poucos a claridade entra na igreja,<br />
as luzes das velas tornam-se inúteis,<br />
a natureza vai acordando,<br />
é a normalidade da vida.<br />
Santa Catarina se prepara<br />
para começar a sua penitência<br />
enorme, infinda, junto<br />
aos doentes, ouvir gemidos,<br />
assistir agonias, consolar dores.<br />
Mas, para além de tudo<br />
isto, há uma luz que se levanta<br />
e vai ficando cada vez mais<br />
nítida: o perdão está vindo, o<br />
Céu nascendo, a paz de alma<br />
entrando. E com ela se dá o<br />
que ocorre no interior daquela<br />
capela.<br />
Ao mesmo tempo nela<br />
também as luzes vão entrando<br />
e brilhando, como uma capela<br />
na qual a madrugada vai se fazendo<br />
luz e as imagens tomam<br />
colorido. Em certo momento,<br />
ela morre e é o Céu. Esta é a<br />
paz, a tranquilidade da alma<br />
na contrição, um perfume que<br />
existe na tristeza, na resignação<br />
católica e que os espíritos<br />
pagãos não conhecem.<br />
Tratando da vida espiritual, quando<br />
se fala de mortificação, tristeza,<br />
etc., as almas em geral ficam arrepiadas.<br />
Não compreendem toda a alegria<br />
e felicidade que não estou conseguindo<br />
expor adequadamente, mas<br />
espero fazer pressentir nesta exposi-<br />
Restos mortais de Santa Catarina de Gênova - Basílica della<br />
Santissima Annunziata del Vastato, Itália<br />
Sailko(CC3.0)<br />
24
ção, porque há qualquer coisa que<br />
a palavra humana não descreve por<br />
completo. É este misto de amargura<br />
e de esperança, de tristeza<br />
e de paz, em que a esperança<br />
vale muito mais que a amargura,<br />
e a paz muito mais<br />
que a tristeza. Lembro-me<br />
das palavras que creio serem<br />
de São Paulo: “Eu tenho<br />
uma superabundância<br />
de alegria em meio a<br />
minhas tribulações” (cf.<br />
I Ts 1, 6). Isso o mundo<br />
não conhece.<br />
Oceano de paz<br />
que só a pessoa<br />
verdadeiramente<br />
católica possui<br />
O membro verdadeiro da Igreja<br />
vive uma espécie de Purgatório<br />
na Terra, que é um vale de lágrimas<br />
onde expiamos os nossos pecados. Se<br />
carregarmos nossa cruz com resignação,<br />
teremos na alma torrentes de<br />
paz, tranquilidade, estabilidade, ordem,<br />
de cuja fruição ninguém, dentro<br />
desse mundo transviado, pode ter<br />
a verdadeira noção.<br />
Esses bens coexistem com uma verdadeira<br />
dor, uma autêntica contrição.<br />
Se eu conseguisse dizer as palavras para<br />
fazer sentir como a verdadeira paz<br />
torna a dor suportável e quanto é digno<br />
de entusiasmo, nessas condições,<br />
carregar a Cruz de Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo, teria feito bem para várias<br />
almas que aqui se encontram. É meio<br />
inexprimível. Entretanto, encontramos<br />
um exemplo disso na vida de Santa<br />
Catarina de Gênova.<br />
Que ela do alto Céu interceda por<br />
nós e torne luminoso, pela obtenção<br />
da graça no interior de nossas almas,<br />
aquilo que não consigo senão vagamente<br />
indicar, fazer sentir. E que<br />
Nossa Senhora nos dê a paz e a alegria<br />
da verdadeira contrição, próprias<br />
a quem Ela concede a força de<br />
Sede da Sabedoria (acervo particular)<br />
ver seus defeitos de frente. É o oposto<br />
do olhar oblíquo sobre a própria<br />
consciência, de uma tirada de corpo,<br />
um não querer ver bem e não se corrigir<br />
nunca, uma perpétua maromba<br />
diante dos próprios defeitos. Daí<br />
também, um mal-estar, uma agitação,<br />
um nervosismo contínuos.<br />
Se, pelo contrário, com toda a paz<br />
olhássemos para o nosso próprio<br />
defeito e disséssemos: “Meu defeito<br />
é este. Eu o vejo por inteiro e noto<br />
que chega a tal ponto, mas o observo<br />
com paz, olhando para Nossa<br />
Senhora. Não faço a fraude de não<br />
olhar e fico observando-o com uma<br />
tristeza que talvez ainda não seja eficiente<br />
na ordem da correção, até o<br />
momento em que a Santíssima Virgem<br />
tenha pena de mim.”<br />
Esse é o primeiro passo para se<br />
corrigir. Mas é preciso ter essa lealdade<br />
interior por onde se veja o próprio<br />
defeito de frente, não se feche<br />
os olhos para ele. Eliminar de dentro<br />
da alma o caos, a confusão, o mal-<br />
-estar desse defeito que de vez em<br />
quando surge e nós entravamos;<br />
com o qual temos a cumplicidade<br />
que nos causa horror e<br />
depois some de novo; e não<br />
sabemos como pegar, não<br />
queremos extirpar, mas<br />
que nos agarra. Ter a alma<br />
limpa dessas misérias<br />
e ver as coisas de frente<br />
Vicente T.<br />
é um oceano de paz que<br />
só a pessoa verdadeiramente<br />
católica possui. E<br />
isto já nos dá um pouco a<br />
ideia das amargas delícias<br />
do Purgatório, que são o<br />
prenúncio do Céu.<br />
Que Nossa Senhora nos<br />
faça entender isso, pelos rogos<br />
de Santa Catarina de Gênova.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de<br />
27/3/1971)<br />
1) Não possuímos referências bibliográficas.<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1971<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
25
Reflexões teológicas<br />
Termômetro do<br />
verdadeiro fervor<br />
A alma que tem a resolução de cumprir o seu dever sem vacilação,<br />
mesmo quando para realizá-lo precise passar por todas as dificuldades<br />
e sofrimentos, essa é fervorosa. Aquelas, entretanto, que preferem<br />
uma vida macia, sendo estimadas por todos, tendo pavor da dor,<br />
essa é uma alma medíocre. A prova do fervor é a coragem na dor.<br />
Gabriel K.<br />
Fervor! O que dizer dele?<br />
Antes de tudo, como descrevê-lo?<br />
No que consiste?<br />
Muitas vezes o melhor modo de descrever<br />
algo é começar desvendando<br />
o contrário do que é. Isso dá uma<br />
ideia mais nítida da realidade.<br />
Desejos de uma<br />
alma sem fervor<br />
Moisés recebendo as Tábuas da Lei - Batistério de Florença<br />
Quando uma pessoa toma conhecimento<br />
dos Mandamentos da Lei de<br />
Deus e da Igreja e se convence com<br />
seriedade de que devem ser seguidos,<br />
mas forma uma resolução tranquila,<br />
sem entusiasmo, essa pessoa não chega<br />
a se lamentar que sejam muitos os<br />
preceitos a cumprir, mas também não<br />
chega a se alegrar em nada.<br />
Pensa: “Eu vou guardar esta tabela,<br />
porque vou observá-la. A razão<br />
desses Mandamentos é para me levar<br />
ao Céu, não é? Parece que lá é<br />
muito agradável, vê-se a Deus. Além<br />
disso, evita-se o Inferno, pois ele é<br />
desagradável e tem suas consequências.<br />
Deus parece um Ser muito extremista<br />
e radical!<br />
26
“Por exemplo, eu estou aqui tomando<br />
estas deliberações. Não<br />
há remédio: Ele manda, então<br />
eu sou obrigado a obedecer.<br />
Devo cumprir os Mandamentos,<br />
mas não tenho<br />
entusiasmo. Se eu morrer<br />
agora tendo essa<br />
boa disposição de cumpri-los,<br />
o que Ele fará?<br />
Com certeza me receberá<br />
com um afeto<br />
muito superior ao meu<br />
afeto por Ele. Eu nem<br />
compreendo qual é essa<br />
eternidade de felicidade<br />
com que Ele me inundará,<br />
porque apenas Lhe dou uma<br />
parte de mim mesmo. Mas, não<br />
custa tanto assim. Eu dou, como<br />
poderia também não dar.<br />
“Deus me cumulará de dons que<br />
vão muito além de minha expectativa.<br />
Aliás, Ele declarou haver um certo<br />
exagero na sua retribuição quando<br />
disse: ‘Ego protector tuus sum et<br />
merces tua magna nimis’ – ‘Serei Eu<br />
mesmo a vossa recompensa demasiadamente<br />
grande’ (Cf. Gn 15, 1) –<br />
Demasiado é excessivo. Portanto, há<br />
um excesso dentro disso.<br />
“Como Deus é perfeito, deve estar<br />
certo; mas eu não compreendo esse<br />
excesso, porque em mim não há esse<br />
desejo nem esse entusiasmo nem essa<br />
admiração por Ele. Há o de coexistência<br />
pacífica, sem entrar em guerra<br />
contra Ele. Mas eis que, dessa simples<br />
resolução calma que eu tomo,<br />
Deus vem ao meu encontro e celebra<br />
isso como se eu estivesse dando uma<br />
maravilha. E, se eu morrer, quer dizer,<br />
se Deus me chamar – oxalá não<br />
seja logo! – Ele me cumulará de bens<br />
que me deixam aturdido.<br />
“E, ao mesmo tempo, o reverso<br />
da medalha me deixa surpreso também.<br />
Afinal de contas, se alguém<br />
deixa de ir à Missa um domingo porque<br />
está chovendo, comete pecado.<br />
Por exemplo, se uma senhora quer<br />
ficar em casa tocando piano porque<br />
a manhã está muito agradável<br />
e a casa está aconchegada, mas está<br />
chovendo fora, coitada! Ela tem essa<br />
fraqueza: não vai à Missa. Em todos<br />
os outros domingos da vida, menos<br />
nesse, ela foi... É pecado mortal!<br />
Deus é muito de excessos e toma isso<br />
como uma coisa terrível. Se essa<br />
senhora morrer logo depois, vai para<br />
o fundo do Inferno. Por um motivo<br />
que não foi tão horrível assim.<br />
“Além do mais, isso que <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
está dizendo passa-se na<br />
minha alma, mas eu não<br />
tenho coragem de formulá-lo<br />
para mim mesmo<br />
porque, se o fizer, significa<br />
que explicitei e, sendo<br />
assim, consenti e já pequei.<br />
O que resta na minha<br />
alma é aquilo que não<br />
formulei, não o disse de<br />
modo explícito por medo<br />
dos excessos de Deus. Na<br />
borda dos meus lábios, a<br />
palavra morreu. E na orla<br />
da minha explicitação,<br />
o pensamento não aflorou.<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> está como<br />
que fazendo uma cócega<br />
dentro de minha alma e, na medida<br />
em que ele fala, estou sentindo algo<br />
que concorda com ele.<br />
“Eu gostaria de um Deus<br />
mais calmo… menos radical,<br />
que me premiasse e<br />
me punisse menos, e se<br />
incomodasse menos comigo<br />
como eu também<br />
não me incomodo muito<br />
com Ele, que me<br />
deixasse viver à vontade.<br />
Em certo momento,<br />
o meu caminho haveria<br />
de encontrar o seu<br />
e Ele haveria de encontrar<br />
a minha alma limpa e intencionada<br />
de viver em paz com<br />
Ele. Não se precipitaria para me<br />
abençoar nem nada. Apenas me diria:<br />
‘Ah, é você? Seu lugar é lá…’ Eu<br />
encontraria um maço de nuvens destinado<br />
para mim, no qual me sentaria<br />
e tocaria harpa por toda a eternidade.<br />
As nossas contas estariam justas.”<br />
Vicente Torres<br />
As almas “corretas” no<br />
fundo são medíocres<br />
Alguém dirá: “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, esse estado<br />
de alma não existe. Uma pessoa<br />
assim cai diretamente no pecado<br />
mortal, porque são tantas as tentações<br />
da vida, que não aguenta.”<br />
Flávio Lourenço<br />
27
Reflexões teológicas<br />
Inspetoria Salesiana de São Paulo<br />
Santuário do Sagrado Coração de Jesus, em São Paulo, nos tempos de infância de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Em nossa época, isso é verdade. No<br />
Reino de Maria não o será, porque na<br />
vida comum desse bendito reino vindouro,<br />
as condições serão muito menos<br />
tentadoras e a pessoa, podendo<br />
levar uma vida agradável, será muito<br />
menos solicitada para o pecado.<br />
E nem é preciso subir tão alto. Basta<br />
pensar na época em que eu era mocinho,<br />
na qual a opinião pública era<br />
muito severa quanto à pureza das mulheres.<br />
Se uma senhora fizesse a menor<br />
concessão a esse respeito, cometesse<br />
a menor falta contra a pureza, fazendo<br />
ou recebendo um telefonema<br />
leviano, por exemplo, isso circulava no<br />
meio social e ela ficava mal vista, coisa<br />
que contrariava seus interesses.<br />
Por precaução e por egoísmo, ela<br />
era obrigada a ser pura. Como resultado,<br />
a mulher se habituava à pureza.<br />
Casava-se já sabendo que o marido<br />
ia ser adúltero. Mas também sabia<br />
que este não se separaria dela, porque<br />
naquele tempo o divórcio era incomum.<br />
Havia desquite, mas era raríssimo,<br />
porque este ficava muito mal<br />
para o marido. Então a mulher aturava<br />
o esposo, pois sabia que ele nunca<br />
lhe tiraria a condição de esposa nem<br />
o dinheiro necessário para viver. O<br />
marido, por sua parte, também aturava<br />
a mulher e sabia que ela nunca<br />
ia envergonhá-lo arranjando uma outra<br />
união. Os dois tocavam a vida sem<br />
entusiasmo e sem ódio, até que morresse<br />
o primeiro. Essa era a história<br />
de um casamento.<br />
Eram pessoas medíocres, tidas por<br />
corretas. Quem olhasse para uma senhora<br />
dessas e dissesse: “Aqui está<br />
uma mulher leviana, impura, que falta<br />
à Missa aos domingos, uma mulher cética,<br />
que não tem fé”, faria uma calúnia<br />
evidente. Porém, quem afirmasse:<br />
“Aqui está um espírito fervoroso”, diria<br />
uma mentira ainda mais evidente.<br />
Repulsa de Deus pelas<br />
almas mornas<br />
O que diz Deus desse gênero de<br />
almas? Segundo a ótica errada a respeito<br />
dos Mandamentos, essas pessoas<br />
não violavam nenhum. Na realidade,<br />
eu não saberia como julgar<br />
a situação delas, porque nunca lhes<br />
ensinaram; mas, de fato, elas violam<br />
o Primeiro Mandamento, o qual<br />
manda: “Amarás o Senhor teu Deus<br />
de todo o teu coração, com todo o<br />
teu entendimento, com toda a tua alma...”<br />
Não é apenas aquela frase seca<br />
“Amar a Deus sobre todas as coisas.”<br />
O texto é mais explícito.<br />
Em síntese, essas pessoas cumpriam<br />
de fato todos os Mandamentos,<br />
menos um, o Primeiro. E, por causa<br />
disso, a queixa e o julgamento de Nosso<br />
Senhor se externava assim: “Se tu<br />
fosses frio ou quente, eu te aceitaria,<br />
mas como és morno, começo a vomitar-te<br />
de minha boca” (Ap 3, 15-16).<br />
No tempo dos meus avós, a medicina<br />
era muito atrasada, no Brasil<br />
ainda mais do que nas nações europeias<br />
daquela época. Entretanto, ela<br />
tinha certos recursos singulares dos<br />
quais eu peguei alguns ecos. Quando<br />
uma pessoa comia algo estragado,<br />
por exemplo, a solução era fazê-<br />
28
-la expelir a comida bebendo água<br />
morna em quantidade, porque justamente<br />
esta tem um poder repulsivo,<br />
que faz com que o organismo rejeite<br />
aquilo que tomou. Com isso, a matéria<br />
infeccionada saía também.<br />
Isso comprova como o termo<br />
“morno” foi usado desde a mais alta<br />
antiguidade, sempre. E aí está o<br />
princípio: “... como és morno, começo<br />
a expelir-te de minha boca.” No<br />
próprio organizar da ordem física,<br />
Deus colocou um símbolo para esse<br />
tipo de almas. Elas são “vomitivas”,<br />
“expulsivas”, são repulsivas.<br />
Os culposamente fracos<br />
No caminho de nossa vocação,<br />
haverá possibilidade de alguém ser<br />
morno? Vou ser franco. A pessoa<br />
entra para a nossa vocação, em geral,<br />
com uma enorme ruptura com o<br />
mundo. Porque não há um<br />
de nós, apesar da enorme<br />
diferença de idades, que<br />
não pertença a um meio<br />
social – alto, médio ou baixo,<br />
pouco importa – corroído<br />
ou carcomido a fundo<br />
pela Revolução. Para entrar<br />
pela pradaria bendita<br />
da Contra-Revolução<br />
foi necessária uma ruptura<br />
profunda e, às vezes, trágica.<br />
A ruptura profunda e<br />
trágica, se é completa, traz<br />
a paz. Se não o é, deixa<br />
uma inquietação constante.<br />
Porque, se alguém fica<br />
entre os limites do bem<br />
e do mal, com um pé no<br />
bem e outro no mal, de<br />
vez em quando tem de fazer<br />
um esforço enorme para<br />
não cair no mal. E quando<br />
o faz, uma vez ou outra<br />
cai. Se não teve coragem<br />
de romper por inteiro<br />
com aquilo ao qual estava<br />
ligada, não terá coragem<br />
de fazer sempre o esforço<br />
heroico contra a tentação renascente<br />
que ela mesma alimentou. A pessoa<br />
é culposamente fraca e, por esse<br />
mesmo motivo, ela cria a tentação<br />
a qual, porque é fraca, não terá coragem<br />
de vencer. Em suma, alguém<br />
nessa situação oscila.<br />
Se, pelo contrário, dá um passo<br />
de leão, dá um salto colossal e rompe<br />
com tudo, quando volta para o<br />
seu passado, uiva de ódio, de rejeição!<br />
No íntimo de sua alma ela ainda<br />
execra aquilo que deixou, pois vê<br />
com ódio todo o mal que aquilo lhe<br />
podia ter feito ou talvez lhe fez. E<br />
ela segue o aceno de Deus! Que coisa<br />
magnífica!<br />
Entretanto, não devemos ter ilusão<br />
a esse respeito. As pessoas não<br />
entendem o que é a vida do verdadeiro<br />
católico, menos ainda a vida<br />
do verdadeiro religioso.<br />
Juízo Universal - Museu Catedralício Diocesano de León<br />
O fervor da Santa<br />
da Pequena Via<br />
Em uma de nossas sedes há uma<br />
fotografia muito bonita de uma alameda<br />
de árvores. Não é exuberante<br />
como a floresta de Fontainebleau,<br />
absolutamente, mas é um arvoredo<br />
bonito, digno, bem arranjado e bem<br />
agradável de ver. Há nele uns bancos<br />
de pedra, sem encosto, dispostos de<br />
um lado e de outro do caminho, convidativos<br />
para se sentar debaixo daquela<br />
sombra visitada por pingos de<br />
sol. É uma via reta e comprida, da<br />
qual não se vê o fim. Tenho a impressão<br />
de ser uma alameda do convento<br />
de Lisieux, onde Santa Teresinha do<br />
Menino Jesus escreveu parte da História<br />
de uma alma.<br />
Que beleza pensar em Santa Teresinha<br />
escrevendo a própria história<br />
com sua letrinha pequenina,<br />
vestida com aquele<br />
hábito carmelita, sentada<br />
sob os pingos de sol daquele<br />
arvoredo e, em certo<br />
momento ela exclamar:<br />
“Como é doce a vida religiosa!”<br />
O mais curioso é<br />
que, de fato, ela é doce, só<br />
ela tem doçuras. E doçuras<br />
que a vida aí fora não tem.<br />
Mas, se lembrássemos o<br />
quanto Nossa Senhora pediu<br />
a Santa Teresinha e o<br />
quanto ela deu, aí compreenderíamos<br />
a batalha dentro<br />
da vida religiosa.<br />
Santa Teresinha recebeu<br />
um convite da graça<br />
para aceitar de ser vítima<br />
expiatória do amor misericordioso<br />
de Deus. Tomando<br />
em consideração<br />
que o amor misericordioso<br />
de Deus era tão pouco<br />
compreendido e tão pouco<br />
amado pelos homens,<br />
ela quis oferecer uma reparação<br />
que consolasse a<br />
Deus antes de tudo, mas<br />
Flávio Lourenço<br />
29
Reflexões teológicas<br />
também tivesse como mérito expiar<br />
pelas pessoas que não correspondem<br />
com fervor às vocações que receberam<br />
e aos passos do amor de Deus<br />
em direção a elas.<br />
Para obter que Deus não castigasse<br />
essa rejeição do seu amor – porque<br />
tal atitude é um insulto a Deus –<br />
a Providência Divina escolheu uma,<br />
ou uma coorte de almas vítimas, que<br />
haveriam de se oferecer na Terra e,<br />
em atenção a elas, deu ainda mais<br />
dádivas para chamar outras almas.<br />
A fórmula desse sacrifício era:<br />
nunca pedir nada e nunca recusar<br />
nada a Deus, aceitar o que acontecer.<br />
O que Deus permitisse que sucedesse<br />
a Santa Teresinha, ela consentia<br />
e não alterava. E com isso<br />
ela oferecia um, dois e até vinte<br />
sacrifícios, aos quais chamava de<br />
“pequenos”, pois não eram heroicos<br />
como os de Santa Maria Egipcíaca,<br />
uma Santa que viveu no Egito<br />
e praticou tantos sacrifícios,<br />
tão heroicos, que no século<br />
passado cessaram de imprimir<br />
sua biografia porque<br />
horripilava as almas...<br />
A Santa da “Pequena Via”<br />
aceitava todos os sacrifícios<br />
permitidos pela Providência.<br />
Certo dia, por exemplo, uma<br />
freira que a ajudava a fixar uma<br />
parte do hábito foi inábil e meteu<br />
um alfinete em sua carne.<br />
Santa Teresinha passou o dia<br />
inteiro com aquele alfinete cravado<br />
em si porque, tendo Deus<br />
permitido, ela não ia tirar. Assim<br />
era a vítima pelo amor misericordioso<br />
de Deus.<br />
Outro dia, imagino eu, ela<br />
estava escrevendo sua autobiografia<br />
e, no momento em que<br />
tinha o espírito mais concentrado,<br />
de repente se apresenta<br />
uma outra religiosa e lhe diz:<br />
— Oh, irmã Teresa, como a<br />
senhora está escrevendo tão<br />
bem, vou lhe roubar um pouquinho<br />
de tempo. Podemos<br />
Flávio Lourenço<br />
conversar? Estou muito desolada e<br />
preciso me consolar um pouco...<br />
— Oh, pois não! – respondia Santa<br />
Teresinha.<br />
A conversa durava uma hora...<br />
Em certo momento tocava a hora da<br />
refeição – um magro almoço carmelita<br />
– e todas se dirigiam para o refeitório.<br />
O resto do dia se desenrolava<br />
segundo a regra. A História de uma<br />
alma ficava para o dia seguinte. Em<br />
tudo fazia o contrário do que quereria,<br />
porque era o modo de oferecer<br />
um sacrifício ao amor misericordioso<br />
de Deus.<br />
E se fosse apenas isso! Ela tinha<br />
tanta vontade de morrer que, uma<br />
noite ela teve uma golfada e fez uso<br />
de um lenço. Desejava muito saber<br />
se tinha expelido sangue – precursor<br />
de uma hemoptise e prenúncio da<br />
morte – mas, para oferecer seu sacrifício<br />
e se mortificar, não acendeu a<br />
luz. No dia seguinte, quando raiou a<br />
Santa Maria Egipcíaca - Museu Episcopal, Vic, Espanha<br />
aurora, Santa Teresinha deu-se conta<br />
de que a morte estava próxima e,<br />
afinal, iria libertá-la. Era a tuberculose<br />
que batia às portas dela, e não<br />
havia os mil recursos de cura existentes<br />
hoje.<br />
Pouco depois começa a prova<br />
contra a fé, a tentação terrível dos<br />
Santos. Ela morre numa aridez tremenda,<br />
mas com esta frase muito característica<br />
do seu estado de espírito:<br />
“Eu creio, única e exclusivamente<br />
porque quero crer!” Cria porque<br />
amava! No momento de morrer, depois<br />
de uma agonia tremenda, ela teve<br />
um êxtase e caiu morta. Um perfume<br />
de violeta, inexplicável, começou<br />
a se irradiar de seu corpo para o<br />
convento inteiro. Era a glorificação<br />
daquela que tinha aberto a Pequena<br />
Via para as pequenas almas. Que<br />
martírio! Que coisa tremenda!<br />
A vida é cheia de grandes sofrimentos!<br />
Como enfrentá-los e estar à<br />
altura deles quando vêm? São<br />
vagalhões colossais que se abatem<br />
sobre todo mundo. Não há<br />
ninguém que não padeça sofrimentos<br />
muito grandes dentro<br />
da vida religiosa e fora dela.<br />
Por vezes, mais dentro do que<br />
fora; por outras, mais fora do<br />
que dentro.<br />
A prova do fervor é<br />
a coragem na dor!<br />
Como, então, considerar o papel<br />
do sofrimento? A alma que<br />
tem a resolução de sofrer e está<br />
disposta a enfrentar qualquer<br />
coisa, seja como for, na pior dificuldade<br />
e no escuro, resolvida<br />
a chegar até o fim da dor se for<br />
preciso, mas cumprir o seu dever<br />
sem vacilação, achando que sua<br />
vida está bem empregada, pois<br />
assim deve ser e assim o quer, essa<br />
é uma alma fervorosa!<br />
Se a alma tem pavor da dor,<br />
prefere a brincadeira, quer ser<br />
engraçada, divertida, estimada<br />
30
por todo mundo, levar uma vida macia,<br />
assusta-se perante qualquer sofrimento,<br />
ela pode ter um êxtase – seria<br />
um falso êxtase – diante de um crucifixo<br />
ou de uma imagem de Nossa Senhora<br />
a ponto de se retorcer, mas eu<br />
não tomo a sério, porque a prova do<br />
fervor é a coragem na dor. E qualquer<br />
piedade que não venha acompanhada<br />
de coragem na dor é patifaria.<br />
Nós temos que olhar bem de frente<br />
e compreender o seguinte: para isso,<br />
muitas vezes não nos bastarão as<br />
resoluções muito boas tomadas na<br />
vida comum, por exemplo: “Eu quero,<br />
ó Senhora, Rainha do Céu e da<br />
Terra, na hipótese das grandes dores,<br />
sofrer tudo. E desde já eu me dou inteiro!”<br />
Isso é ótimo! Mas virão momentos<br />
em que a dor é tal que somos<br />
capazes de dizer: “Minha Mãe,<br />
eu não pensei que o sofrimento fosse<br />
tão grande e creio que vou arrebentar,<br />
eu não vou aguentar!”<br />
O verdadeiro católico não arrebenta!<br />
Aguenta tudo! Por uma razão<br />
muito simples: quando pede, ele tem<br />
sempre a graça de Deus consigo. É<br />
compreensível que as forças naturais<br />
de um homem não ofereçam recursos<br />
para enfrentar isso. Mas, onde a<br />
natureza é fraca, a graça é forte. Se a<br />
pessoa reza, Nossa Senhora lhe dará<br />
uma força que não tem, e na hora da<br />
luta ela enfrentará a tentação.<br />
A pessoa deve confiar em que a sua<br />
capacidade de sofrer vá muito mais<br />
longe do que o tamanho de sua personalidade.<br />
É mais ou menos como um<br />
homem que, para glorificar a Nossa<br />
Senhora, tem que encontrar um leão<br />
no caminho e estrangulá-lo. Ele olha<br />
para suas mãos e diz: “O leão vai devorá-las<br />
e a mim também! Eu não sou<br />
capaz de dar-lhe um beliscão e nem<br />
sequer um safanão na juba, e ainda<br />
devo estrangulá-lo?! Eu?! Nunca!”<br />
Esse é um apóstata fracassado.<br />
Para a alma fervorosa, a coisa se<br />
põe de outra forma: “Se for esse meu<br />
dever e a dedicação à Santa Igreja<br />
Católica me levar até lá, eu direi<br />
Santa Teresinha do Menino Jesus, pouco tempo antes de sua morte<br />
a Nossa Senhora: Dai-me graças para<br />
suportar e caminharei até lá! ‘Omnia<br />
possum in eo qui me confortat’, diz<br />
São Paulo. ‘Tudo posso naquele que<br />
me dá forças’ (Ef 4, 13). A força de<br />
Nosso Senhor, obtida pelas preces de<br />
Nossa Senhora – as quais Ele nunca<br />
recusa –, me dará força. Na hora ‘H’<br />
eu serei forte!” Este é o fervor!<br />
Sacrificar muitas coisas<br />
pequenas é coisa imensa<br />
aos olhos de Deus<br />
Entretanto, o fervor não é só para<br />
as grandes ocasiões. Não está preparado<br />
para receber a graça do fervor<br />
nas grandes ocasiões quem não o tiver<br />
nas pequenas. E para isso, é preciso<br />
estar habituado a fazer os sacrifícios<br />
da vida diária com esse fervor.<br />
Se, por exemplo, devo realizar<br />
uma coisa desagradável, cacete, e<br />
não estou com vontade de fazer, se<br />
é meu dever, eu o faço e com élan, aí<br />
eu tenho fervor. Ou posso deixar um<br />
dever desagradável para cumprir daqui<br />
a meia hora, mas vou cumpri-lo<br />
já! Devo ter a “gula” do sacrifício!<br />
E não ficar me espreguiçando vagabundamente<br />
aos pés de um sacrifício<br />
que eu não tenho coragem de fazer,<br />
grande ou pequeno, pouco importa.<br />
Hoje, em qualquer horário, devo<br />
dar um telefonema cacete; acabei<br />
de acordar, então vou fazê-lo agora!<br />
Vou pular em cima desse pequeno<br />
dever como diante de uma fera e direi:<br />
“Venha cá, telefone, símbolo do<br />
progresso e meu servo. O meu primeiro<br />
combate será através de ti!”<br />
Os sacrifícios devo fazê-los logo.<br />
Mas, se tenho alguma coisa agradável<br />
a realizar, nunca a preferir: deixo passar<br />
o primeiro ímpeto e faço depois.<br />
Do mesmo modo, se estou muito<br />
desejoso de ouvir as repercussões de<br />
apostolado de um militante do nosso<br />
movimento que acabou de chegar de<br />
viagem – a qual durou meses –, penso<br />
em descer logo as escadas para falar<br />
com ele. De repente paro e me<br />
lembro de oferecer a Nossa Senhora<br />
um sacrifício. Desço devagar os degraus<br />
e a cada passo rezo uma jaculatória.<br />
Para quê? Para me atormentar?<br />
Não! Para conquistar um pouco mais<br />
do terreno da Revolução maldita,<br />
gnóstica e igualitária. Quando chegar<br />
embaixo, terei perdido um pouco<br />
das notícias, é verdade, mas terei ganho<br />
muito terreno para Nossa Senho-<br />
Divulgação<br />
31
Reflexões teológicas<br />
Vicente Torres<br />
Martírio de São Paulo - Pinacoteca Vaticana<br />
ra, que saberá o que fazer desse meu<br />
oferecimento ao descer devagar a escada.<br />
Eu sei que em cada degrau meu<br />
Anjo me acompanha sorrindo!<br />
Eu pergunto: haverá no mundo<br />
escada mais doce de descer? Isso<br />
é fervor! Alguém dirá: “Mas, <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong>, isso é uma coisa tão pequena!”<br />
Eu respondo: “Fazer muitas<br />
coisas pequenas assim é imensíssimo!<br />
E nós as devemos fazer!”<br />
Há, contudo, um ponto sobre o<br />
qual desejo insistir e é o seguinte: se<br />
há uma coisa que o homem gosta de<br />
fazer é sua própria vontade. Porém,<br />
na vida que se leva dentro de alguma<br />
Ordem religiosa há algo particularmente<br />
bonito. O dever tantas vezes<br />
nos aponta algo a fazer, mas nossas<br />
apetências vão para outro lado. E<br />
o dia inteiro nos movemos, não por<br />
nosso capricho, mas pela regra.<br />
Que há de bonito nisso? Imaginem<br />
se uma pessoa recebesse de Deus o seguinte<br />
privilégio: sempre que Deus quisesse<br />
que ela fizesse alguma coisa, aparecesse<br />
um Anjo e lhe revelasse: “Deus<br />
quer isto de ti.” Seria algo admirável!<br />
Ora, o próprio do religioso é fazer<br />
sempre, nas grandes e nas pequenas<br />
coisas, a vontade do superior. E cada<br />
vez que este manda fazer um serviço,<br />
tem-se a certeza de ser dos privilegiados<br />
a quem Deus Se dirigiu<br />
pela voz do superior. O comum dos<br />
homens quantas vezes<br />
tem de quebrar a cabeça<br />
para saber onde está<br />
o desígnio de Deus. Na<br />
obediência religiosa a<br />
pessoa o encontra com<br />
paz e despreocupação.<br />
Então, há mil ocasiões<br />
para fazer sacrifícios,<br />
ora pequenos, ora<br />
grandes, que aumentam<br />
o fervor. O auge<br />
do fervor é daquele<br />
que, no auge do tormento<br />
e do sofrimento,<br />
em certo momento<br />
diz: “Está tudo pronto,<br />
consummatum est!”<br />
São Paulo, uma<br />
alma fervorosa<br />
Vejam o lindo simbolismo<br />
do martírio<br />
de São Paulo. Ele foi o<br />
Apóstolo que mais trabalhou<br />
pela difusão do<br />
Evangelho. Antes de morrer<br />
decapitado, declarou:<br />
“Combati o bom combate,<br />
percorri todo o caminho<br />
que eu deveria percorrer.<br />
Dai-me, Senhor, agora,<br />
o prêmio de vossa glória”<br />
(Cf. 2 Tm 4, 7-8). Quando<br />
o carrasco romano arremessou<br />
a espada contra ele<br />
cortando-lhe a cabeça, esta<br />
picou três vezes sobre o<br />
chão, tal foi a violência do<br />
golpe. Em cada ponto onde<br />
ela rolou, abriu-se uma<br />
fonte. Esse é o sacrifício do<br />
homem fervoroso!<br />
Nos grandes sacrifícios<br />
de nossa vida, temos a impressão<br />
de que algo nos foi<br />
decepado, mas abrem-se<br />
fontes através deles! v<br />
(Extraído de conferência de<br />
16/2/1985)<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1985<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
32
Apóstolo do pulchrum<br />
Vislumbre de<br />
Deniz Şiva Oflaz (CC3.0)<br />
realidades superiores<br />
Está na natureza do homem o valer-se dos sentidos externos para<br />
adquirir conhecimento. Neste processo se explica o papel dos<br />
símbolos, os quais tornam possível o conhecimento de Deus através<br />
das criaturas. É por isso que as almas santas despertam entusiasmo<br />
nos bons e instigam o mesmo ódio que Deus provoca nos maus.<br />
NASA / Neil A. Armstrong (CC3.0)<br />
Deus ornou a Criação com símbolos para dar<br />
aos homens a possibilidade de O amarem. E<br />
se é verdade que as criaturas existem para<br />
servi-Lo, o principal serviço que prestam é tornar presente<br />
aos homens a ideia d’Ele, Deus.<br />
Se a Providência Divina criou tantos símbolos é porque<br />
eles têm uma importância enorme. Qual?<br />
Finalidade dos símbolos: visão de Deus<br />
Há fotografias da ida dos homens à Lua. Ao vê-las, espantei-me<br />
com a cegueira das pessoas que procuram vê-<br />
-la em si e não naquilo que ela representa; não refletem,<br />
não deduzem, como seria devido. Ora, ela é um símbolo<br />
de Deus como todas as criaturas, a seu modo, o são.<br />
O homem é um ser composto de corpo e alma e adquire<br />
conhecimento através dos cinco sentidos. Isso a tal<br />
ponto que, se alguém passar a vida sem nenhum dos sentidos<br />
não poderá diferenciar as impressões e formar as<br />
ideias; não terá, portanto, elementos para amar a Deus.<br />
É pelos sentidos que adquirimos os conhecimentos, e<br />
os símbolos têm por função nos proporcionar uma como<br />
que visão de Deus.<br />
Pelo raciocínio podemos compor uma ideia a respeito<br />
de Deus, o que é enormemente precioso. No entanto, é<br />
diferente daquilo que nos diz um símbolo.<br />
Por exemplo, sabemos pela Fé e pela razão o que é a<br />
virgindade e qual é o seu valor. Podemos construir uma<br />
ideia intelectiva a respeito de Nossa Senhora, Virgem<br />
das virgens. Mas, para amar aquilo que o espírito concebeu,<br />
quanto ajuda ao homem ver um bonito lírio! Ele exprime<br />
aquilo que a razão concebeu.<br />
Está na natureza do homem a necessidade de ver, de<br />
tal maneira que no Céu veremos a Deus face a face. Não<br />
há um de nós que não deseje contemplar Nossa Senhora,<br />
os Anjos, os Santos no Céu. Queremos vê-los, porque<br />
33
Apóstolo do pulchrum<br />
Samuel Holanda GCI (CC3.0)<br />
A entrada para o Grande Canal de Veneza,<br />
pintura de Canaletto - Museu de Belas Artes de Boston<br />
o ver é essencial para nós. E o símbolo nos faz ver realidades<br />
superiores.<br />
Símbolo, simbolismos e simbolizados...<br />
O gládio, por exemplo, o que me diz? Ele traz em si todas<br />
as ideias a respeito de heroísmo. O que é uma guerra<br />
santa, graças a Deus, eu o sei. O que foram as Cruzadas,<br />
eu sei. Mas, por que a visão do gládio me dá tanta<br />
alegria? Porque ele é um símbolo da guerra santa, da coragem,<br />
que me faz como que ver aquilo que eu já conhecia.<br />
Para entendermos a importância desse ver, imaginemos<br />
que fôssemos de um país muito pobre, no qual cada grupo<br />
de indigentes fosse entregue à generosidade de um grande<br />
benfeitor de um outro país. Ora, um determinado doador se<br />
revela magnífico em sua obra: ele não só dá todo o necessário,<br />
mas manda com carinho e várias vezes até o supérfluo.<br />
E, para manter a minha vida, vamos imaginar que o doador<br />
tivesse dado até seu sangue para fazer uma transfusão em<br />
mim. É um benefício insigne, depois do qual eu ficaria muito<br />
grato a ele; e o normal é que eu quisesse conhecê-lo e assim<br />
ter uma ideia mais completa da bondade que percebi.<br />
Imaginem, no entanto, que eu não conseguisse vê-lo,<br />
mas soubesse da existência de uma música na qual ele se<br />
visse muito bem simbolizado e expresso. Eu teria vonta-<br />
34<br />
El Cid - Burgos, Espanha
João C. V. Villa<br />
de de conhecer a simbologia dessa música para conhecer<br />
o benfeitor. Seria um modo de vê-lo e ouvi-lo.<br />
Pois bem, esse é o papel dos símbolos no que diz<br />
respeito a Deus.<br />
A alma humana, a mais<br />
perfeita imagem de Deus<br />
Se um Anjo é símbolo de Deus, o homem também<br />
o é. Como? Ele não é puro espírito, mas tem<br />
espírito e alma espiritual.<br />
Se através do corpo eu consigo perceber a alma,<br />
através dela eu conseguirei perceber algo que é, no<br />
universo visível, o que há de mais parecido com<br />
Deus. Uma alma é o mais alto símbolo de Deus na<br />
Criação e o que uma pessoa tem de mais simbólico<br />
é o olhar.<br />
Nós todos conhecemos a magnificência do Sol.<br />
Mas ele próprio não simboliza tão bem a Deus<br />
quanto uma alma virtuosa, em estado de graça.<br />
Qual foi a alma que melhor simbolizou a Deus?<br />
Antes de tudo a de Nosso Senhor Jesus Cristo, porque<br />
era Homem-Deus. Alguns hereges antigos queriam<br />
supor que Ele fosse unicamente Deus, sem alma<br />
humana 1 . Com efeito, o Verbo está unido substancialmente<br />
à natureza humana e a alma d’Ele<br />
é, na ordem do espírito, o que de mais perfeito foi<br />
criado.<br />
Portanto, se conhecêssemos pessoalmente Nosso<br />
Senhor, teríamos um conhecimento de Deus extraordinário,<br />
exímio. Se nós conhecêssemos Nossa Senhora,<br />
conheceríamos de modo excelente Nosso Senhor<br />
e Deus.<br />
No que a alma humana reflete a Deus? Quase<br />
não há palavras para responder. Seria como perguntar:<br />
no que um quadro bem pintado se parece<br />
com o personagem vivo? É indefinível. Se a pintura<br />
é bem-feita, em tudo se assemelha.<br />
Assim se passa conosco: somos como que quadros<br />
bem pintados de Deus. Ou, com mais exatidão,<br />
somos símbolos adequados d’Ele, se queremos<br />
ser bons; a questão é querer ser bom. É por isso<br />
que as almas santas despertam o entusiasmo que<br />
as coisas divinas despertam nos bons, ou todo ódio<br />
que Deus provoca nos maus.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de 25/5/1983)<br />
1) Referência feita à heresia monofisista, do século V,<br />
a qual afirmava a existência de uma só natureza em<br />
Cristo, a divina.<br />
A Virgem - Basílica de Nossa Senhora de<br />
Ocotlan, Estado de Tlaxcala, México<br />
35
Longa caminhada de sacrifícios<br />
até o píncaro da glória<br />
Sebastião C.<br />
Quando Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo estava crucificado,<br />
sua Mãe Santíssima chorava,<br />
mas estava de pé junto à Cruz, sem dar<br />
nenhuma prova de fraqueza. Ela mediu cada<br />
uma das dores padecidas pelo Redentor. O que<br />
isso pode ter custado a Ela não há palavras para<br />
descrever! Uma pessoa não consegue sofrer tudo<br />
quanto Ela sofreu.<br />
Quando Jesus deu aquele brado “Meu<br />
Deus, meu Deus, por que me abandonastes?”<br />
(Mt 27, 46), Ela deve ter Se sentido dilaceradíssima,<br />
pois era o extremo da dor.<br />
É inimaginável o que Nossa Senhora sentiu<br />
ao ver aproximar-se o fim da agonia, no momento<br />
em que Ele disse: “Consummatum est” (Jo<br />
19, 30) e “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”<br />
(Lc 23, 46). Qual a mãe que não vê com<br />
horror a violenta morte de seu filho?<br />
Ela presenciou tudo isso e quis tudo até<br />
o fim, porque via, profeticamente, todos os homens<br />
bons que por esta forma se salvariam.<br />
Quanto desejo teria Ela de acompanhar o<br />
seu Divino Filho e d’Ele não mais Se separar até<br />
o momento bem-aventurado da Ascensão e, depois,<br />
de subir com Ele aos Céus! Mas sabia que<br />
para Ela restava ainda um longo itinerário a<br />
percorrer nesta Terra. Nosso Senhor cumpriu o<br />
dever d’Ele, concluiu sua tarefa. Ele quase poderia<br />
afirmar “Ite, sacrificium est”, como o sacerdote<br />
ao terminar a Missa diz “Ite, Missa est”.<br />
Para Nossa Senhora, o grande sacrifício de sua<br />
vida foi assistir ao holocausto da Cruz e participar<br />
dele. Mas, terminado este, uma longa caminhada<br />
de sacrifícios iria levá-La até o ápice da<br />
virtude, ao píncaro da glória!<br />
(Extraído de conferências de<br />
29/11/1989 e 13/4/1990)<br />
Virgem Dolorosa junto<br />
ao seu Divino Filho<br />
(acervo particular)