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PENSA(r)MATO, ocupar as brechas

Dissertação de mestrado em Arte e Cultura Contemporânea

Dissertação de mestrado em Arte e Cultura Contemporânea

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PENSA(r)MATO

ocupar as brechas


20


Antonio Manuel da Silva Neves (Manu Neves)

PENSA(r)MATO, OCUPAR AS BRECHAS

Dissertação apresentada como

requisito parcial para a obtenção do

título de Mestre ao Programa de Pós-

Graduação em Artes, da Universidade

do Estado do Rio de Janeiro. Área de

concentração: Arte e Cultura

ORIENTADORA: Prof. Dra. Inês de Araújo

RIO DE JANEIRO – RJ

2023


20


Antonio Manuel da Silva Neves (Manu Neves)

PENSA(r)MATO, OCUPAR AS BRECHAS

Dissertação apresentada como

requisito parcial para a obtenção do

título de Mestre ao Programa de Pós-

Graduação em Artes, da Universidade

do Estado do Rio de Janeiro. Área de

concentração: Arte e Cultura

Aprovada em 28 de fevereiro de 2023

Banca Examinadora:

____________________________________________

Profa. Dra. Inês de Araújo (Orientadora)

Programa de Pós-Graduação em Artes – UERJ

____________________________________________

Profa. Dra. Malu Fattoreli

Programa de Pós-Graduação em Artes - UERJ

_____________________________________________

Prof. Dr. Marcelo Campos

Programa de Pós-Graduação em História da Arte - UERJ

RIO DE JANEIRO – RJ

2023


20


Para Marina,

filha querida e amor da minha vida


20


AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha filha, aos meus pais e irmãos e a Zaba Azevedo pelo afeto e apoio em

todas as horas;

Agradeço à professora Inês de Araújo pela orientação inspiradora, por tão valiosas sugestões

e estímulo e pela paciência e compreensão durante esse processo de pesquisa e escrita;

Agradeço a Ana Alves, amiga querida e artista companheira no coletivo A2 pelos apoios e

incentivos infindáveis até o último momento desta jornada;

Agradeço às professoras Malu Fatorelli e Livia Flores que tanto contribuíram para esta escrita

com seus comentários e sugestões durante o processo de qualificação; ao professor Marcelo

Campos por seu incentivo ao longo deste processo e sua participação na banca de defesa; a

todas as professoras e professores do Instituto de artes, responsáveis pela formação que

trouxe até aqui; a todas as professoras e professores do Programa de Pós-graduação em

Artes da UERJ (PPGArtes) com quem tive o prazer de realizar trocas valiosas, mas

especialmente àqueles da linha de pesquisa Arte Experiência e Linguagem que estiveram

mais intensamente ao meu lado durante este processo; a todes os envolvides nas exposições

“a seco” e “campo-contracampo” realizadas respectivamente no Espaço Tipografia e na

Galeria Aymoré” durante o período do mestrado; a Hernani Guimarães e Piti Tomé pelas

fotografias da exposição “a seco”; a Suzana Markus, Bernardo Biagioni, Raul Sampaio,

Fernando Biagioni, Cidinha (Maria Aparecida de Oliveira) e Andréia Costa, por todo o apoio e

carinho durante a Residência Sarandira Criativa; a tantos colegues de turma(s) com quem

convivi e compartilhei momentos inspiradores;

Agradeço aos amigos, amigas e amigues pelo carinho e pelos papos retos, curvos ou furados

que me alimentaram a alma, mas especialmente a Erika Magalhães, Larissa Siqueira (Lara)

e Fernanda Mantovani (Nanda);

Agradeço à CAPES e à UERJ pelas bolsas de estudo que possibilitaram dedicar meu tempo

a esta formação;

Agradeço finalmente a todos, todas e todes que não foram nominados aqui, mas que

atravessando o meu caminho, de alguma forma me fizeram cada vez mais pensa(r)mato.


20


A PUREZA É UM MITO

A ORDEM É UM RITO

O MATO É UM GRITO


20


RESUMO

NEVES, A.M.S. Pensa(r)mato, ocupar as brechas. 2023 151 f. Dissertação (Mestrado em

Arte e Cultura Contemporânea) Instituto de Artes, Universidade do Estado do Rio de

Janeiro, 2023.

“Pensa(r)mato, ocupar as brechas” propõe uma visita aos meus processos de trabalho e à

minha produção artística dos últimos anos. Por um percurso enviesado e aparentemente

cronológico se estabelece um fluxo de trocas entre os três eixos principais que provocam e

ao mesmo tempo se desdobram nessa produção, o Mato, a Instalação e a Paisagem. Na

errância dessa jornada, antigas referências são resgatadas e a elas se juntam novas vivências

e outros interlocutores para juntos tecerem um corpus. O mato como a memória de uma

origem, que brota nas brechas e instaura um lugar; a Instalação como plataforma de trabalho,

estratégia que materializa a minha poética e a paisagem como miragem que se perde no

horizonte, mas que está à flor da pele.

Palavras-chave: Mato. Cidade. Instalação. Paisagem


20


ABSTRACT

NEVES, A.M.S. Pensa(r)mato, occupy the gaps. 2023 151 f. Dissertação (Mestrado em Arte

e Cultura Contemporânea) Instituto de Artes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro,

2023.

“Pensa(r)mato, occupy the gaps” proposes a visit to my work processes and my artistic

production in recent years. Through a skewed and apparently chronological path, a flow of

exchanges is established between the three main axes that provoke and at the same time

unfold in this production, the Weeds, the Installation and the Landscape. In the wanderings of

this journey, old references are rescued and they are joined by new experiences and other

interlocutors to weave together a corpus. The Weeds as the memory of an origin, which sprouts

in the gaps and establishes a place; the Installation as a work platform, a strategy that

materializes my poetics and the Landscape as a mirage that is lost on the horizon, but that is

upon the skin.

Keywords: Weeds. City. Installation. Landscape.


20


SUMÁRIO

[0] PREFÁCIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19

[1] MATO CIDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25

Mato . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27

Pensa(r)mato . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29

MICROesquizoBIOGRAFIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33

Arte Daninha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37

O mato na high Society . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43

A Cidade Pulsa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45

Baldio Volante . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49

Ruína Radical, Espaço Coringa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53

[2] INSTALAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57

Instalação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59

Mito-Rito-Grito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63

A Instalação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69

Construir(des)Construir . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75

Processo de_composição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79

Instalar Paisagens . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87

[3] PAISAGEM . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91

Paisagem (verbetes) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93

A Paisagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95

Alone . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105

Movimentos do mato . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109

O Sítio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111

Refazenda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115

Entre o Céu e a Terra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117

Mirantes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121

Pele-paisagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125 .

[0] POSFÁCIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131

Referências Bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137


20


19

[0]

PREFÁCIO


20


21

Penso esta dissertação como uma proposição instalativa, como uma escritainstalação,

como uma instalação de formas e conteúdos que tecem relações entre si e com

este lugar ‘página’ de qualidades específicas. Esta é a forma como é possível para mim expor

o sentido e manifestar a presença de algumas das minhas reflexões, vivências e sensações.

Gostaria então que as páginas que se seguem fossem recebidas não como um corpo único,

mas como uma multidão de ideias, uma multidão de palavras, uma multidão de coisas. Tudo

nessas páginas é texto, textus melhor dizendo, a trama e a coisa tecida, mas também o próprio

ato e a maneira de tecer.

Os temas que vão se instalar nas próximas páginas – mato e cidade, instalação e

paisagem –, são a trama e a urdidura da minha jornada, são aqueles que têm povoado o meu

fazer artístico e que se manifestam às vezes como provocadores das minhas realizações e

outras vezes como desdobramentos provocados por elas, operando no fluxo de um processo

contínuo de troca entre Coisas 1 . Eles não estabelecem entre si relações de causa e efeito

nem se afirmam como sujeitos ou objetos. Uma Coisa se reflete, deriva e flui para a outra.

Uma Coisa leva à outra. Uma Coisa me leva à outra.

Por serem assuntos vastos e bastante debatidos, escolho explorá-los em errâncias

pelo território das minhas próprias vivências e experimentações. Inicio esta aventura contando

com a bússola das minhas lembranças para me guiar, mas ao longo do percurso vou me

reencontrando com alguns escritos mais antigos e leituras esquecidas que resgato e trago

novamente para minha companhia. Quando cai a névoa do tempo ou nos trechos

esburacados em que me falta o chão, novas leituras se aproximam. Vozes que contam

histórias que eu ainda não conhecia são pontes para o agora e o para o depois.

1

Coisa no sentido da conceituação que Heidegger faz no ensaio intitulado A coisa (HEIDEGGER, 1971) e

que Tim Ingold retoma no ensaio Trazendo as coisas de volta à vida (INGOLD, 2012).


22

Dou então os primeiros passos dessa caminhada evocando as ervas daninhas, essas

presenças que me acompanham desde longa data e que são a memória de uma origem. O

mato é um Curupira menino que se atravessou em mim e que me carrega sempre para onde

eu não espero e para onde não apontei os meus pés. É o meu companheiro nos caminhos

por onde me perco e me reencontro nas errâncias de um pensamento-mato, de um

pensa(r)mato. Quando surge pela primeira vez na minha poética, o mato se apresenta com

um certo lirismo, quase como um elemento lúdico, mas logo brota pelas frestas para se afirmar

em outras práticas a partir das quais meu olhar se desvia e se lança em outras reflexões. Do

mato à cidade, seu ordenamento e seu processo de ruína. Passo a colecionar pedaços da

cidade e a reinventar baldios, lugares em suspensão, lacunas no tempo em trânsito entre o

passado consumado e o futuro incerto, espaços coringa e campo fértil para germinar qualquer

possibilidade.

Encontro na Instalação o caminho para materializar minhas inquietações artísticas e

começo a explorar as suas possibilidades. Mais do que uma plataforma de trabalho, ela se

mostra para mim como uma estratégia de ação. Pode se manifestar pelos mais variados

meios de expressão e permite o uso livre de diferentes técnicas do fazer-acontecer. A sua

flexibilidade é o meio agregador através do qual sou capaz de promover a convergência da

bagagem que trago comigo, da minha curiosidade renovada a cada instante e de um certo

despreparo técnico que descobri ser essencial para errar nos descaminhos e me surpreender

diante dos imprevistos.

Na solidão, em meio a uma pandemia, redescubro o jardim e através dele a paisagem

vai aos poucos me tomando em reflexões. O sol, o vento e a chuva. No vaso ao fundo, um

antigo pé de graviola que nunca frutificou. Venho guardando as sementes das frutas que eu

como. Um dia percebo que gravioleira floresceu. Aprendo a ser inseto para transportar o pólen


23

ao mesmo tempo em que começo a germinar as sementes guardadas. As primeiras frutas

surgem quase ao mesmo tempo em que as sementes começam a brotar. A terra parece se

projetar verde para o céu e um sítio imaginário me expande no mundo. O tempo passa e

agora, além do muro da casa já não estou só. A2

2 desejamos juntos os Mirantes.

Atravessando cercas, estranhamos o horizonte. Estar na paisagem, sentir a paisagem, nos

sentir paisagem. Tudo fica à flor da pele. O mato, a folha e a flor são a pele da paisagem.

Uma pele que se movimenta, uma pele-vestimenta.

2

A2, coletivo de artistas formado por Ana Alves e Manu Neves em 2021 a partir da proposição da

intervenção Mirantes realizada durante a residência artística Sarandira Criativa, Artes na terra (MG)


24


25

[1]

M A T O

CIDADE


26


27

MATO

substantivo masculino

Etimologia: mata com alt. Da vogal temática -a > -o

I. Dicio – Dicionário Online de Português

1. Conjunto de pequenas plantas agrestes.

2. Terreno onde crescem essas plantas.

3. [Brasil] O campo, o interior, a roça (por oposição à cidade).

4. Cair no mato ou ganhar o mato, fugir, desaparecer.

5. Estar ou ficar no mato sem cachorro, estar ou ficar em apuros.

6. Ir ao mato, ir defecar.

7. [Brasil] Pop. Ser mato, existir em grande quantidade: mulher aqui é mato.

II. Dicionário de português Google-Oxford Languages.

1. vegetação constituída de plantas não cultivadas, de porte médio, e ger. Sem qualquer

serventia.

2. área coberta com esse tipo de vegetação.

3. qualquer planta tida como sem serventia.

“o jardim abandonado só tinha m.”

4. floresta, bosque.

5. qualquer lugar afastado das cidades; interior, roça, campo.

“abandonou a cidade e foi viver no m.”

6. m.q. MACONHA.

7. [Pernambuco] para os habitantes de Recife, qualquer subúrbio dessa cidade.

III. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021

(alteração de mata)

1. Terreno inculto em que crescem plantas agrestes.

2. Plantas agrestes, abundantes em terrenos baldios.

3. Bater (o) mato: Andar pelo mato à procura de alguém ou de alguma coisa.

4. Cair no mato [Brasil, Informal] Fugir, escondendo-se. = DESAPARECER, SUMIR


28

5. No mato sem cachorro [Brasil, Informal] Em situação difícil ou embaraçosa e sem

poder contar com qualquer tipo de ajuda (ex.: a falta de resposta do executivo deixa a

todos no mato sem cachorro). = NA VÁRZEA SEM CACHORRO

6. Ser mato [Informal] Ser muito abundante; existir em grandes quantidades (ex.: ui,

eventos desses são mato).


29

Pensa(r)mato é uma ação estética em

processo contínuo de contaminação da

cidade pela aplicação disseminada de

adesivos que teve início em 2016 e que

propõe pensar sobre o mato, pensar

como o mato e pensar com o mato.

Por mais que se tente cobrir o mundo com concreto e asfalto, todos os bloqueios não

são suficientes para conter a vida que se recusa a ser contida. Mesmo os materiais mais

resistentes se degradam com o tempo, racham em algum momento e a terra se abre para o

mundo deixando germinar as sementes adormecidas no solo, trazidas pelo vento ou pelos

insetos e pássaros formando manchas verdes, de tamanhos e formas variadas, na paisagem

cinzenta da cidade.

O mato é oportunista e opera em uma lógica de guerrilha, percebe as brechas e se

instala de surpresa. Sem pedir licença, ocupa qualquer espaço disponível esgueirando-se

furtivamente para abrir o caminho da sua existência. Crescendo pelas bordas, invadindo e se

espalhando da periferia para o centro, transbordando e ocupando a terra nua, infiltrando-se

por baixo de pedras, surgindo nas rachaduras, crescendo em telhados e abrindo frestas até

nas construções mais sólidas, ele evoca uma memória ancestral e profana os paisagismos.


30

Contrariando os ideais de pureza e a ordenação sagrada dos projetos arquitetônicos

e urbanísticos, o mato desafia a ordem e desestabiliza o sistema. O mato arruína construções

e polui de selva a paisagem urbana. O mato é um índice de incivilidade, a voz surda e a

imagem embaçada de um tempo esquecido que julgamos ultrapassado. O mato vindo, não é

bem-vindo.

O mato na cidade é um verde antigo que se desbota transparente quando cobre as

feridas do concreto e do asfalto. É mais um invisível, mais um anônimo, mais um sem teto

tentando sobreviver. Mais um na cidade frenética que não para, que não percebe e que não

se importa.

O mato é o capim, são as ervas daninhas. São muitas estratégias e estranhas táticas

de resistência. Explode sementes, espalha-se ao vento, vai longe no voo dos pássaros.

Quando pode, germina. Multiplica-se. Espalha-se em todas as direções para enfrentar as

hostilidades. Adapta-se para sobreviver às condições severas. Suporta o insuportável. Vive

da adversidade.

Apesar de cumprirem funções importantes no ciclo ecológico urbano, essas plantas

não são consideradas nem como responsabilidade pública nem como propriedade privada.

Possuem o estigma de “ervas daninhas” e quando não são invisíveis aos olhos dos passantes,

são percebidas como indesejáveis, lhes é negado o direito de existir e são extirpadas na

primeira oportunidade.

O mato ocupa as rachaduras, se esgueira e amplia as fissuras abertas na pele da

cidade, contrariando os desejos de ordem e ameaçando os planejamentos. Singelas ou

exuberantes, delicadas ou agressivas, verdejantes ou floridas, essas plantas desconhecidas

nascem espontaneamente e são quase sempre negligenciadas na sua existência. Formando


31

jardins indesejados, elas assustam pela presença inesperada de uma natureza

desnaturalizada que revela uma paisagem desurbanizada.

O mato é uma imanência, um conjunto de singularidades que se organiza

momentaneamente para lidar com as circunstâncias. É o sujeito e o objeto de uma prática

coletiva. É coisa em multidão (NEGRI, 2003, p. 170). Uma multiplicidade operando sem

modelo e em oposição ao sistema árvore-raiz que provoca o pensamento que remete a

lugares mais instáveis e excêntricos, que atravessa a lógica comparativa, simples e binária,

para a qual estamos formatados (DELEUZE; GUATTARI, 2004).

Em imensos matagais sem início e sem fim ou em singelos arranjos selvagens que

florescem imperceptíveis, o mato se constitui em comunidades autônomas, territórios

nômades onde o caos e a ordem se confundem e se alternam em um equilíbrio dinâmico que

provoca estranhas harmonias transitórias.


32

Pensa(r)mato é se inspirar nas ervas daninhas,

ocupar as brechas e garantir a existência em

espaços hostis.

Pensa(r)mato é reagir à normatização do mundo,

à exclusão, aos padrões, aos limites e aos

mecanismos de controle.

Pensa(r)mato é resistir como imanência, encarar

as estruturas, enfrentar a opressão e se afirmar

singularidade.

Pensa(r)mato é se perder para se encontrar, se

confundir com o mundo, respirar o mundo e

expirar para o mundo.

Pensa(r)mato é se propor um devir-vegetal,

quebra-pedra, urtiga, carrapicho, tiririca, dentede-leão,

capim estrela, ...


33

MICROesquizoBIOGRAFIA 3

Sempre tive a impressão de que o mato havia surgido repentinamente no percurso da

minha jornada, uma aparição que de uma hora para a outra tivesse se feito ideia. Aos poucos,

no entanto, fui me dando conta que ele sempre esteve por aqui, à beira do meu caminho,

presente na maneira como percebo o mundo e nas formas que escolhi para me relacionar

com ele.

Nasci e vivi a primeira infância no mato e atravessei um oceano para crescer na cidade.

Essa dualidade é uma divergência que converge e se embaralha nas minhas memórias e no

meu corpo. Uma coisa sempre esteve na outra. Uma coisa sempre esteve com a outra e eu

nunca consegui me apartar inteiramente de nenhuma delas. A nostalgia do mato lá, ronda a

minha existência urbana aqui mediando de alguma forma minhas relações com a cidade e o

meu olhar sobre ela. O mato que nasce aqui, é como a mato que nascia lá.

Do quintal de terra batida da casa no interior de Moçambique ao pequeno jardim da

casa no subúrbio do Rio de Janeiro e às brincadeiras de menino na rua que se tornou meu

quintal, tudo o que brotava era sempre o que mais me chamava a atenção. Mais tarde,

conforme eu crescia, o quintal foi se expandindo, foi ganhando outras ruas, tomando as

3

Em referência à tese da Esquizoanálise proposta por Deleuze & Guattari (1976, p. 390):

I. “A tese da esquizoanálise é simples: o desejo é máquina, síntese de máquinas, agenciamento

maquínico — máquinas desejantes. O desejo é da ordem da produção; toda produção é ao mesmo

tempo desejante e social.”

II. A esquizoanálise se regula por três tarefas: 1. Destruição do “Eu normal”; esta tarefa consiste em

desorganizar as máquinas desejantes que foram organizadas pelo socius [...] 2. Descobrir suas

máquinas desejantes; esta tarefa consiste em fazer o desejo retomar o que é dele [...] 3. Reorganizar

o campo social pelas máquinas desejantes. Esta tarefa consiste em inserir o corpo individual

reorganizado como peça da máquina social [...]


34

avenidas e se desdobrando por esquinas que revelavam, aos poucos, as curvas e as

quebradas desse corpo-cidade de concreto e asfalto.

Desde sempre esse mato da infância me acompanha e é com ele que manejo as voltas

que dou no mundo e as voltas que o mundo me dá. Sua presença estava na curiosidade

científica do engenheiro químico que nunca me tornei, nas vivências do ator que nunca

estreei, no olhar do fotógrafo e também na formação autodidata do roteirista e do cineasta

que já fui um dia. Certamente não furtaria a presença no pensamento do artista que estou

agora. O Mato habita à beira do caminho e surge pelas minhas frestas.


35

o mato que nasce aqui é como a mato que nasce lá 4

4

Frase cunhada para a intervenção/instalação Arte Daninha (Festival EBA Urbe, 2015) e que

posteriormente volta a surgir na instalação Mito, Rito Grito (exposição FormAção, 2017).


36


37

ARTE DANINHA

Ano: 2015

Técnica: instalação

Material: plantas silvestres, terra, placas de identificação, fotografias e textos.

Dimensões: variáveis

A primeira vez o mato brotou de forma explicita em minhas proposições artísticas foi

na instalação Arte Daninha, que propus e que foi apresentada em 2015 no festival de arte

efêmera ‘EBA Urbe – Impermanências’. A partir daí, ele se afirmaria em mim como uma

reflexão inspiradora, reivindicando para si um lugar privilegiado no meu fazer artístico e na

constituição de uma poética que aos poucos foi se consolidando em um equilíbrio dinâmico

de constante movimento e mutação.

A proposta apresentada ao festival consistia a princípio de uma operação bastante

singela: colher ervas daninhas nos baldios do campus da Universidade do Estado do Rio de

Janeiro (UERJ) e depois deslocar essas plantas até a reitoria do campus da Universidade

Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) na Ilha do Fundão para plantá-las nos jardins projetados

por Roberto Burle Marx, no prédio que abriga a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e a

Escola de Belas Artes 5 . Uma transposição que de maneira subliminar tentaria estabelecer um

fluxo vital entre esses dois lugares icônicos para mim naquele momento.

Para marcar a presença clandestina das ervas daninhas em meio às espécies originais

daqueles jardins projetados e como forma de expandir o alcance da proposição, cada uma

5

O projeto paisagístico de Burle Marx define e compõem a quadra do campus da UFRJ na Ilha do Fundão

que abriga o edifício projetado em 1957 pelo arquiteto Jorge Machado Moreira para sediar a Reitoria da

universidade, a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e a Escola de Belas Artes. Magníficos jardins

também projetados por ele ocupam os pátios internos do prédio, se esparramam ao longo dos seus pilotis

e planos de vidro consolidando o caráter nobre e generoso da arquitetura.


38

daquelas plantas invasoras seria identificada com uma placa que ao invés da sua imagem,

nome e classificação botânica, conteria a imagem, o título e a ficha técnica de proposições

artísticas produzidas por artistas da universidade de onde haviam sido coletadas.

Para garantir que as plantas fossem nomeadas de uma forma que pudesse expressar

a sua vivacidade e ao mesmo tempo representar a variedade de espécies que estavam

presentes, foi aberto um chamado geral aos artistas do Instituto de Artes da UERJ, estudantes

e professores, apresentando-lhes a proposta e convidando-os a se juntarem a mim e àquelas

plantas na realização da intervenção, enviando uma imagem e a ficha técnica de uma obra

de arte de sua autoria.

Assim como a presença inusitada daquelas plantas invasoras desafiaria o padrão

rigidamente estabelecido e preservado do jardim que iriam habitar, os artistas e as obras de

arte que lhes emprestariam os nomes estariam também naquele momento – simbolicamente

ao menos –, exercendo de forma plena a sua potência transgressora. Cada artista encarnando

uma “erva daninha”, cada “erva daninha” se expressando como obra de arte. Um pequeno

deslocamento que propunha a suspensão temporária das moderações imposta pelas regras

sociais e pelos princípios da cultura e do mundo da arte, instâncias sistêmicas das quais tanto

umas quanto os outros dificilmente conseguem se desvencilhar ao longo da sua existência.

Ao mesmo tempo, mas por outra camada de sentidos, essa contaminação simbólica

de um espaço paisagístico projetado em integração tão rígida com a arquitetura – um jardim

planejado para ser conservado em suas características originais –, pretendia também

instaurar um espaço de reflexão sobre a possibilidade de borrar fronteiras e provocar zonas

de permeabilidade em territórios bem demarcados e defendidos como aqueles do meio

acadêmico, das instâncias da arte e da arquitetura e urbanismo.


39

Apesar da realização de Arte Daninha envolver uma operação relativamente simples,

a sua execução acabou se mostrando um processo surpreendentemente mais complexo do

que eu havia imaginado. Foi preciso aprender muito sobre essas plantas que no senso comum

são tidas como muito resistentes, mas cuja resistência, como eu logo viria a descobrir, reside

muito mais nas suas estratégias de reprodução e disseminação do que propriamente na sua

capacidade de sobrevivência a mudanças bruscas no ambiente onde se instalaram.

Foram necessários quase dois meses de muitos estudos, investigações e

experimentações até que eu aprendesse minimamente a lidar com as fragilidades de cada

espécie que eu encontrava e conseguir manter saudáveis um numero adequado de

exemplares que me permitisse realizar a instalação como eu havia proposto.

Achar as plantas era a tarefa mais prazerosa e envolvia me deslocar em errâncias

mapeando as áreas mais abandonadas da universidade onde o mato era poupado da

jardinagem e eu podia descobrir as minhas daninhas. A cada descoberta eu me encantava ao

perceber a beleza e a singularidade de cada espécie, revelada pelo simples ato de ser

deslocada da massa coletiva em que antes estava mergulhada.

Ao longo do processo da colheita, eu transplantava para saquinho plásticos próprios

para mudas as plantas que ia encontrando e selecionando. Feito isso, as plantas eram

acomodadas em uma caixa de papelão para facilitar o transporte até o pequeno “horto”

improvisado no canteiro à entrada do ateliê coletivo do Instituto de Artes da UERJ, onde

ficariam abrigadas até o dia do festival quando aconteceria a montagem da instalação.

Durante os meus deslocamentos nesse período de coleta, era muito comum que as

pessoas fossem atraídas pela minha presença e se aproximassem para admirar aquelas


40

plantinhas floridas ou de aspecto exuberante, ficando algumas vezes surpresas e outras

vezes decepcionadas quando descobriam que eram ervas daninhas.

E assim, depois de dois meses convivendo com as manhas do mato, pesquisando e

descobrindo as melhores estratégias para transplantar essas plantas, aprendendo a

diferenciar cada espécie e compreendendo cada vez mais suas necessidades específicas, eu

consegui finalmente prover um local onde elas se mantinham vivas e saudáveis. Agora

chegava a hora de levar esse mato que nasceu aqui, para renascer lá. Chegava a hora de

pensar uma forma de transportar esse matagal.

No dia do festival, depois de uma viagem em um fusquinha que por alguns minutos se

tornou jardim, lá estava eu com várias caixas de papelão cheias de mudas de ervas daninhas

e um aparato de ferramentas de jardinagem, plantando o mato nos canteiros dos jardins

projetados por Burle Marx. Algumas pessoas olhavam sem entender muito bem o que eu

fazia, mas também não se aproximavam para saber o que estava acontecendo. Não sei se

me confundiam com um dos jardineiros habituais ou se já normalizavam mesmo qualquer

coisa e não estranhavam mais nada.

O mesmo, no entanto, não aconteceu com os jardineiros responsáveis pela

manutenção dos jardins que logo perceberam com estranheza a minha presença e se

aproximaram questionando o que que eu estava fazendo. Quando me abordaram, eu já

desconfiava de qual seria a questão e respondi a eles simplesmente que estava plantando

mato. A reação deles foi imediata: – Plantando mato? – Não pode plantar nada aí. – Este

jardim é do Burle Marx, não pode plantar qualquer coisa. Eu então argumentei que aquelas

plantas eram as mesmas ervas daninhas que já nasciam ali por conta própria, que brotavam

espontaneamente nos canteiros e que eles capinavam. Uma explicação que depois eu


41

sintetizaria escrevendo a frase “o mato que nasce aqui é como mato que nasce lá” pelo chão

e pelas bordas dos canteiros.

Eles se afastaram e, como não haviam me proibido de continuar, voltei ao plantio.

Ficaram confabulando provavelmente tentando entender o que eu estava fazendo e depois

saíram. Mais tarde retornaram acompanhados do chefe da jardinagem e em uma nova

conversa, depois de eu explicar que aquilo era uma proposição artística, eles concordaram

em me deixar seguir com o plantio e se comprometeram a manter as plantas nos canteiros

por uma semana, deixando claro que depois elas seriam removidas. Sabedor de que o destino

das ervas daninhas na cidade é mesmo a capina, agradeci a eles e fiquei feliz por poder

concluir a instalação.

Mas era no mínimo curioso que enquanto os jardineiros haviam percebido rapidamente

a estranheza daquela operação e se mobilizado para compreender o que estava acontecendo,

os estudantes de artes e de arquitetura não demonstrassem muita curiosidade pelo que eu

fazia. Mesmo depois, quando decidi expandir os limites da intervenção e fui plantar no baldio

que havia atrás do prédio, um local informal de encontro dos estudantes, ninguém prestava

muita atenção quando eu me abaixava ao lado para plantar uma muda. Raramente alguém

questionava o que eu estava fazendo e quando isso acontecia e eu respondia que estava

plantando mato, lançavam um olhar de estranheza, mas não perguntavam mais nada. Só uma

pessoa, reconhecendo os nome dos artistas nas plaquinhas junto às plantas, me perguntou

se aquilo era uma proposição artística.

Arte Daninha se apresentava como uma intervenção quase invisível, uma instalação

que ia se fazendo acontecer ao longo do dia, no próprio tempo efêmero do festival. Assim que

era plantado nos canteiros do jardim de Burle Marx, o verde daquele mato se desbotava

transparente aos olhos das pessoas que percorriam a exposição. Restava mais visível o ato


42

de plantar que acabou se tornando uma espécie de performance não anunciada e chamava

um pouco mais a atenção do público.

Embora inicialmente a recepção que a intervenção recebeu tenha me causado uma

certa frustação, logo percebi a ambiguidade das minhas expectativas já que a verdadeira

potência do que eu estava propondo residia em um desaparecimento, um deslocamento para

a invisibilidade que ocorria quando eu inseria aquelas plantas invasoras no jardim e elas

imediatamente se confundiam com as espécies autorizadas que desde sempre o habitavam.


44

a “alta sociedade” paisagística e revelem a sua beleza e encanto a um público muitas vezes

sofisticado demais para percebe-las em seu habitat natural.

Helicônias, antes conhecidas simplesmente como “bananeiras selvagens”, o junco

taboa dos brejos e alagados, os cactos e outras plantas da caatinga, os capins do cerrado e

tantas outras espécies sempre desprezadas, ganham dignidade e admiração. O mato, no

entanto, ainda continua sendo o mato.


43

O MATO NA HIGH SOCIETY

O traçado modernista e o caráter aparentemente formal dos jardins de Burle Marx 6

guardam surpresas que só se revelam a um olhar atento. São fruto de uma linguagem

orgânica que evolui propondo jogos onde as formas ondulantes ou geométricas promovem

passagens para a natureza e dão continuidade à arquitetura, não quebrando seu ritmo regular

nem lhe opondo resistência. Não buscam uma síntese de cidade e natureza, mas oscilam em

movimentos que se aproximam ora de uma, ora da outra, levando em conta a instabilidade, a

mobilidade da natureza e as mudanças ao longo do tempo.

Burle Marx, com apenas 19 anos, descobre a diversidade da flora tropical e se encanta

pela jardinagem durante as muitas visitas que fazia ao Jardim Botânico de Berlim no período

em que morou na Alemanha com a família. Meio século depois, aos 74 anos e já consagrado

como paisagista, coordena uma expedição científica à Amazônia com o objetivo de ampliar

seu “vocabulário jardinístico” e valorizar a flora brasileira.

A aventura é cercada de rigores e lembra as viagens científicas dos exploradores

europeus no século XIX embora, ao contrário deles, o que Burle Marx buscasse não fossem

as espécies exóticas, mas principalmente as plantas comuns de cada região, aquelas mais

corriqueiras e que são consideradas como mato pelos habitantes locais.

Em seus projetos, a flora local é uma presença constante. Deslocando espécies

nativas ordinárias do seu contexto natural e valorizando-as em arranjos que realçam as suas

características mais singulares, Burle Marx abre espaço para que essas plantas frequentem

6

Roberto Burle Marx (1909-1994) - botânico autodidata, paisagista e artista plástico reconhecido

internacionalmente com projetos realizados em mais de 20 países.








A CIDADE PULSA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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. [A cidade pulsa se rasgando em ruas. Trama

. bruta de asfalto e concreto. Corpos que

. vagam. Delicada tecitura de carne e afeto.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Construções e rompimentos. Muitas camadas.

Trançar a cidade. Trançar e ser trançado.

Aproximar fragmentos. Provocar fricção.

Imaginar memórias. Inventar histórias. Escutaescrita.

Criar ficção.]

45


46

O meio urbano é o campo de imersão a partir do qual eu percebo o mundo e construo

a minha poética. O meu fazer artístico se desdobra na tentativa de atravessar as imagens da

cidade, de alcançar aquilo que nelas escapa, os vestígios deixados por essa complexa

construção cultural que ao mesmo tempo me transforma e está em constante transformação.

Falo do que vejo convocado pelo que me olha e pelo que me alcança a partir de cada fratura,

de cada ferida aberta nessa estrutura.

São as transformações na paisagem urbana que me revelam as diversas dimensões

da cidade. Para percebê-las é preciso ser mais do que um voyeur. É preciso flanar, mas

também mergulhar nela. É preciso estar em movimento. É preciso estar atento ao que está

ao nível dos nossos olhos, mas também ao que se revela acima do horizonte e ao que se

esconde abaixo dos pés. É preciso atravessar o seu tempo e sentir o acúmulo de momentos

que constituem esse agora. É preciso sentir seus movimentos, seguir seus rastros, procurar

indícios, registrar momentos, colecionar fragmentos e sensações. É preciso compreender,

antes de tudo, que ela se constrói a todo instante a partir do olhar de cada um que nela habita

ou que por ela transita.

A cidade em mim é sempre uma impressão fugidia. Só se dá a ver por fragmentos

(CALVINO, 1990). Dela alcanço apenas a percepção de alguns instantes. O todo é uma

miragem, uma ilusão provocada pela aparência sólida de concreto e asfalto que encobre sua

natureza fluida. O corpo morto da cidade viva me atravessa e me provoca a olhar para dentro.

Tento abrir passagens e trazer para fora a vida que pulsa e que se insinua desobediente. Um

mato que brota pelas rachaduras. Ervas daninhas contrariando os desejos de ordem,

profanando paisagismos e desafiando arquiteturas, um verde que desbota transparente aos

olhos de quem passa, mas que é rastro de ancestralidades e índice de desejos ainda

selvagens


as cidades e a memória

as cidades e o desejo

as cidades e os símbolos

as cidades delgadas

as cidades e as trocas

as cidades e os olhos

as cidades e o nome

as cidades e os mortos

as cidades e o céu

as cidades contínuas

as cidades ocultas

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49

BALDIO VOLANTE

Ano: 2017

Técnicas: instalação e vídeo

Material: carrinho de supermercado, entulhos diversos, terra e plantas.

Dimensões da instalação: 110 x 60 x 110cm

Duração do vídeo: 04’ 35”

Baldio Volante surge a partir de uma longa investigação em que eu me propunha a

refletir sobre a natureza fragmentada da cidade. Ele deriva diretamente das questões

levantadas nesse processo e de experimentos deflagrados anteriormente no ateliê com

pedaços de concreto, asfalto e outros fragmentos encontrados nas ruas, mas especialmente

das germinações espontâneas que ocorriam na terra que eu recolhia em diversos locais da

cidade.

A proposta apresentada no edital da exposição tinha a intenção de instaurar um lugar

baldio na galeria através daquilo que apelidei de dispositivo performativo móvel e que seria

elaborado a partir de um carrinho de supermercado, pedaços de entulho, detritos e terra.

Embora tenha sido pensado desde o início como uma instalação, Baldio Volante transitava

formalmente muito próximo ao campo da escultura, mas em um limiar que, no entanto, era

tensionado por uma dimensão temporal que prometia se fazer presente no decorrer da

exposição pelo acontecimento de uma transformação latente na sua estrutura.

Conceitualmente, ele poderia ser posto também em uma relação – embora de uma

maneira um tanto atravessada –, com a estratégia dos ready-made 7 propostos por Marcel

7

O ready-made (ou objet trouvé) é uma estratégia radical introduzida por Marcel Duchamp na primeira

década do século XX para romper com a ideia da operação artística como uma artesania. Ao se apropriar

de um objeto ordinário, retirando-o do contexto utilitário cotidiano e deslocando-o para um contexto de arte

(galeria, museu, etc.), Duchamp eleva esse objeto à categoria de obra de arte.


50

Duchamp 8 , mas por suas características conceituais prefiro não o fazer por razões

semelhantes às que foram colocadas por Hélio Oiticica 9 em um texto que escreve em 1963

no qual apresenta os Bólides, suas últimas obras naquele momento.

Nada mais infeliz poderia ser dito do que a palavra “acaso”, como se houvesse

eu “achado ao acaso” um objeto, a cuba, e daí criado uma obra; não! A obstinada

procura “daquele” objeto já indicava a identificação a priori de uma ideia com a

forma objetiva que foi “achada” depois, não ao “acaso” ou na “multiplicidade das

coisas” onde foi escolhido, mas “visada” sem indecisão no mundo dos objetos,

não como “um deles que me fala à vontade criativa”, mas como o “único possível

à realização da ideia criativa intuída a priori” e que ao realizar-se no espaço e no

tempo identifica a sua vontade estrutural apriorística com a estrutura “aberta” do

objeto já existente, aberta porque já predisposta a que o espírito a capte.

(OITICICA, 1986, p. 64)

Pensar uma aproximação com os Bólides talvez seja realmente mais interessante,

embora as razões que me levaram à realização do Baldio Volante sejam de alguma forma

distintas daquelas de onde Oiticica parte. Se para ele, inicialmente ao menos, os Bólides

surgem da “necessidade de dar à cor uma nova estrutura, de dar-lhe ‘corpo’ [...]” (OITICICA,

1986, p. 63), para mim o Baldio Volante se propõe a revelar a vida que habita invisível e

latente o corpo de uma ruína. De qualquer forma me identifico com a ideia que ele tece sobre

o objeto pré-existente como parte da obra.

. [...] A cuba de vidro que contem a cor poderia ser chamada de objeto prémoldado,

visto já estar pronto de antemão. O que eu faço ao transformá-lo numa

obra não é a simples “lirificação” do objeto ou situá-lo fora do cotidiano, mas

8

Marcel Duchamp (1887-1968) foi um artista franco-americano associado a vários movimentos de arte

moderna como o dadaísmo, o cubismo e o surrealismo. Criador dos ready-made, é considerado

também como um dos precursores da Pop Art e da Arte Conceitual.

9

Hélio Oiticica (1937-1980) foi um artista e teórico brasileiro com participação marcante no Movimento

Neoconcreto e que posteriormente viria a propor aquilo que denominou de "arte ambiental" que incluía os

parangolés e os penetráveis, suas obras mais conhecidas.


51

incorporá-lo a uma ideia estética, fazê-lo parte da gênese da obra, tomando ele

assim um caráter transcendental, visto participar de uma ideia universal sem

perder a sua estrutura anterior. Daí a designação “transobjeto” adequada à

experiência. (OITICICA, 1986, p. 63)

A primeira etapa da realização do Baldio Volante foi uma empreitada que não estava

prevista inicialmente, mas que se mostrou como única alternativa possível para viabilizar o

trabalho. Como o carrinho de supermercado encontrava-se em um depósito de reciclagem no

subúrbio carioca da Piedade e não havia verba suficiente para cobrir os custos do seu

transporte até a galeria onde seria montada a instalação, a única alternativa que restava era

fazer esse deslocamento em um percurso a pé pelas ruas da cidade.

A caminhada de 10km que inicialmente seria apenas uma solução cansativa para um

problema prático de produção, logo se revelaria como uma possibilidade de expansão

conceitual do projeto inicial e um fator crucial no seu processo de elaboração e construção. A

montagem que inicialmente seria realizada a partir de materiais recolhidos em áreas baldias

no entorno da galeria, acabou tendo início já na saída do depósito de reciclagem pois ao longo

da caminhada o baldio já foi se instalando no carrinho com entulhos que chamavam atenção

e eram recolhidos pelas ruas. Além disso, esse inesperado movimento provocou um

desdobramento na forma de um vídeo de animação elaborado a partir de centenas de

fotografias tomadas ao longo do percurso para registrar o trajeto percorrido. Ao final, o vídeo

e a instalação foram expostos na galeria como proposições independente, mas em estreita

articulação.


52

Depois de montado e instalado no espaço expositivo, ao longo dos dois meses de

duração da exposição o baldio foi diariamente movimentado do interior da galeria para áreas

ao ar livre e regado. Esse procedimento paciente e teimoso tinha a intenção não só de

exercitar a mobilidade do dispositivo, mas especialmente de propiciar as condições para a

eventual germinação de sementes que por ventura, e muito possivelmente, estivessem

dormentes na terra que cobria os escombros.

Ao final da exposição já se podia ver algumas brotações despontando no terreno

instalado que inicialmente parecia inerte. Pequenos rebentos que anunciavam a potência de

um futuro matagal destinado a tomar conta daquele lugar e transformar em coisa viva aquela

ruína construída. No ciclo das coisas, a ruína parece ser afinal o berço propício para embalar

uma nova vida.






53

RUÍNA RADICAL, ESPAÇO CORINGA

Os terrenos baldios são ruínas radicais, quebra-cabeças de fragmentos

embaralhados, espécie de tabula rasa. São áreas de indefinição em meio à configuração

arquitetônica das cidades, pedaços de “ex-cidade” que guardam os escombros das

edificações que um dia neles existiram e que são referenciados no abandono e na falta de

cuidados. Não possuem uma ocupação reconhecível, são aberrações que denunciam um

vazio insuportável que precisa ser suprimido.

O arquiteto Sola-Morales refere-se a esses espaços como “lotes vagos” e vai

buscar na etimologia uma forma de expor a ambiguidade da sua natureza, pois afinal,

vago pode significar tanto alguma coisa que está vazia, como aquilo que é vago, indefinido

ou impreciso, ou ainda algo que vaga à deriva 10 .

Assim, apesar de sua fragilidade marginal, o terreno baldio desponta como um

espaço livre e transitório, resistente às estruturas de controle e aberto à possibilidade de

outras arquiteturas, menos concretas e formais. Um espaço de fuga e de certo nível de

impunidade que permite a experimentação de alternativas ainda não exploradas.

Na década de 1920, um banal jardim público de Paris é o local de uma intervenção

dadaísta intitulada A Visita, que imprime um valor estético àquele espaço com leituras de

trechos de dicionários e distribuição de presentes aos passantes. Em 1965, em Nova

10

Também a respeito da palavra “vago”, Italo Calvino faz a seguinte observação em seu livro Seis

Propostas para o Próximo Milênio, no capítulo sobre a exatidão. Diz ele: “Giacomo Leopardi sustentava

que a linguagem será tanto mais poética quanto mais vaga e imprecisa for. (Quero observar de passagem

que o italiano, tanto quanto sei, é a única língua em que “vago” significa também gracioso, atraente;

partindo do significado original (wandering), a palavra “vago” traz consigo uma ideia de movimento e

mutabilidade, que se associa em italiano tanto ao incerto e ao indefinido quanto à graça e ao agradável).”

(CALVINO, 2010, p. 73)


54

Iorque, Alan Sonfist executou o trabalho Time Landscape 11 plantando durante anos um

terreno baldio que hoje é uma mata protegida e cercada na esquina de LaGuardia Place

e West Houston Street em Manhattan, Nova York.

Em 2005, em Belo-Horizonte, Breno Silva e Louise Ganz, realizam o projeto Lotes

Vagos: Ação Coletiva de Ocupação Urbana Experimental (SILVA; GANZ, 2009) que teve

por finalidade transformar lotes vagos de propriedade privada em espaços públicos

temporários. O trabalho contou com a colaboração de grupos de artistas e arquitetos e

possibilitou que o público local participasse ativamente da produção do espaço da cidade

propondo diferentes usos para os lotes em questão 12 .

O baldio é um coringa no jogo embaralhado da cidade e, assim como o bufão podia

criticar o rei enquanto o divertia, ele também pode ser um espaço a partir do qual se

discutam as questões éticas e estéticas da urbanidade e a forma como a sociedade

contemporânea se organiza nessas estruturas.

11

Time Landscape, Alan Sonfist, árvores nativas, terra, campo aberto, 45 x 200ft. (1965-atual)

https://www.alansonfiststudio.com/install/time-landscape

12

Projeto Lotes Vagos: Ação Coletiva de Ocupação Urbana Experimental, Breno Silva e Louise Ganz em

colaboração com Escritório Ambulante e diversos artistas e arquitetos (Belo Horizonte, 2005 e 2006 /

Fortaleza, 2008).


55

A cidade dá a ilusão de que a terra não existe 13

13

Robert Smithson no ensaio intitulado Uma Sedimentação da Mente: projetos da terra. (FERREIRA;

COTRIM, 2006, p. 184)


56


57

[2]

INSTALAÇÃO


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INSTALAÇÃO

substantivo feminino

Etimologia: instalar + -ção

I. Dicio – Dicionário Online de Português

1. Ação de instalar, se estabelecer algo ou alguém em determinado lugar.

2. Colocação de algo no seu devido lugar, especialmente falando de aparelhos elétricos:

instalação de um aparelho, uma rede elétrica, telefônica etc.

3. Conjunto desses aparelhos, dessas redes: consertar a instalação elétrica.

4. Ato de instalar algo (água, eletricidade, gás, sistema se segurança etc.) numa casa:

instalação hidráulica, elétrica.

5. [Artes] Peça de arte composta por objetos que se dispõem tridimensionalmente,

compondo uma unidade de interação com quem a observa

II. Dicionário de português Google-Oxford Languages.

1. colocação dos objetos necessários a determinado trabalho ou empreendimento,

incluindo-se a conexão de aparelhos com a rede elétrica.

2. colocação de redes elétrica, hidráulica, de gás, de sistema de segurança etc., de

modo que funcionem a contento.

3. conjunto de aparelhos e peças dispostos com este fim.

4. conjunto de atos pelos quais se inaugura órgão do poder público ou de entidade

particular; inauguração, abertura.

5. [artes plásticas] obra de arte que consiste em construção ou empilhamento de

materiais, permanente ou temporário, em que o espectador pode participar,

manipulando-a, ou, sendo, às vezes, de tamanho tão grande, que o espectador pode

nela entrar.

6. lugar (prédio, conjunto de salas etc.) preparado e mobiliado para determinada

atividade.

III. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021

1. Ato ou efeito de instalar ou instalar-se.

2. Conjunto de coisas instaladas.

3. Obra artística que consiste em diferentes materiais ou objetos expostos ou compostos

num espaço.


60

4. Dispor para funcionar; colocar um aparelho em algum local para que esteja em

condições de funcionar

5. [Informática] Adicionar software ou hardware num computador.

6. Dar ou tomar posse (de um cargo).

7. Acomodar ou acomodar-se num local (ex.: instalaram as visitas no quarto de

hóspedes).

8. Fixar residência ou local de trabalho em

9. Fazer surgir ou surgir

IV. Itaú Cultural

1. O termo instalação é incorporado ao vocabulário das artes visuais na década de 1960,

designando assemblage ou ambiente construído em espaços de galerias e museus.

As dificuldades de definir os contornos específicos de uma instalação datam de seu

início e talvez permaneçam até hoje.










o chão não é concreto

61


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63

MITO-RITO-GRITO

Ano: 2017

Técnica: instalação

Material: pedaços de calçamento, plantas dissecadas, plantas vivas, Livro-Coisa-Mato e vídeo

Dimensões: 3,00 x 2,00m

O mato na cidade é um signo que denuncia a Natureza como uma instância apartada

de nós e ressignificada pelo infindável contingente de imagens acumuladas no decorrer do

processo de formação e transformação da complexa estrutura das cidades modernas e

contemporâneas.

O mato traz em si a memória de algo que é percebido como primitivo. Ele desnuda a

cidade de sua vestimenta arquitetônica e nos revela a volúpia da terra que é o seu corpo nu.

Ele rompe as costuras culturais que fundamentam o ideal urbano de civilidade mostrando que

a cidade é uma representação arquitetada da realidade que define um modo de pensar e de

estar no mundo.

Mito-Rito-Grito parte inicialmente de uma reflexão sobre as ervas daninhas que brotam

espontaneamente nas frestas e rachaduras da pele da cidade, lançando sobre elas um olhar

que as desloca do lugar comum de presenças invasoras e indesejadas para percebê-las como

índices de uma ancestralidade esquecida e anterior à vida urbana.

A instalação tem sua origem em uma série de acúmulos conceituais e materiais que

se deram no longo percurso de um processo de pesquisa e de inúmeras errâncias pela cidade

que habito e que habita em mim. Uma cidade que me é tão familiar quanto estranha, que me

provoca a olhar para fora ao mesmo tempo em que me seduz a mergulhar dentro de mim.

Pedaços de construções e de calçamentos, pedras e lascas de asfalto, plantas que

brotam espontaneamente em canteiros públicos e nas frestas das arquiteturas, foram sendo


64

colecionados. Ao mesmo tempo, imagens do mato que toma conta dos terrenos baldios,

estacionamentos fechados e outros espaços abandonados da cidade iam sendo registradas

em gravações de vídeo.

Aos poucos foi se formando um acervo, uma pequena coleção de memórias e

fragmentos de lugares que por muito tempo eu percebi apenas como uma espécie de

“gabinete de curiosas trivialidades”. Um acumulo despretensioso que somente algum tempo

depois, no percurso subjetivo dos arranjos para uma exposição, ganharia os contornos de

uma proposição artística pelo encontro com a peça fundamental que desencadearia o

processo instalativo e que traria todas aquelas coisas de volta a vida 14 .

Tergiversando a percepção mais convencional da arquitetura, aquele canto da galeria

do centro cultural poderia, no fim das contas, ser considerado como mais um pedaço da

cidade. Por si só, aquela estrutura ortogonal formada pelo encontro de uma parede tomada

por infiltrações com outra onde havia uma janela de balcão e o chão de tábuas corridas

surradas, já propunha uma reflexão a respeito do caráter fragmentário e da inevitável condição

de ruína da cidade.

Um rasgo feito na parede mofada deixou à mostra o barro úmido dos tijolos, revelando

pela fresta aberta o chão da sua origem, um lugar propício para o mato se abrigar. Do nicho

da janela, imagens em movimento se projetavam sobre os ângulos das dobras da parede,

14

Em seu artigo intitulado Trazendo as coisas de volta à vida, Tim Ingold (2012, p. 29) se baseia nos

argumentos de Heidegger (1971) que em seu ensaio sobre A coisa, para propor o entendimento de coisa

como um “certo agregado de fios vitais”. Enquanto o objeto se apresentaria como fato consumado,

oferecendo somente as possibilidades das suas superfícies externas congeladas e definindo-se pelo

contraste com a situação em que se encontra, a coisa, por outro lado, não seria uma entidade fechada,

situada no mundo e contra o mundo, mas um nó cujos fios deixam rastros e são capturados por outros fios

em outros nós. Ela seria um "acontecer", um lugar onde vários aconteceres se entrelaçam. Elas vazam e

transbordam das superfícies que se formam temporariamente ao seu redor.


65

esparramando matagais que se esgarçavam como um tecido tentando se adaptar à

arquitetura. Acima dos altos rodapés, se enfileiravam diferentes tipos de inofensivas “ervas

daninhas” colhidas nas errâncias pela cidade e dissecadas pelo tempo. No assoalho, a

madeira acolhe gentilmente algumas pedras, fragmentos de calçamentos e pedaços de

asfalto. Sobre o tampo de vidro de uma mesa, desafiando a sua fragilidade, um bruto pedaço

de concreto contrasta com a delicadeza das folhas soltas do Livro-Coisa-Mato de onde a

escrita transborda para as paredes próximas em dialogo com tudo o que o cerca e que dele

se acerca.

O Livro-Coisa-Mato é uma experimentação estético-literária que, embora se constitua

como proposição autônoma, é também um dos elementos que integram a instalação Mito-

Rito-Grito. Ele também teve as ervas daninhas como principal disparador do seu processo de

criação e se fundamenta conceitualmente em reflexões a respeito da forma como lemos o


66

mundo e as coisas do mundo. Sua realização se dá em caminhos errantes por quatro eixos

de pensamento que se desdobram a partir do mato para alcançar questões relacionadas à

cidade, ao fragmento e à ruína.

Textos autorais curtos e sucintos que transitam de um formato quase didático a

tessituras mais poéticas se misturam e se confundem com outros escritos e com escritos de

outros que se revelam na forma de letras de músicas, receitas culinárias, poesias, fotografias

e hiperlinks da Web. As folhas são soltas e as páginas não são numeradas. Os blocos de

texto referentes aos quatro eixos de pensamento se confundem, distinguindo-se entre si

apenas por uma quase imperceptível variação no tom da tinta de impressão que oscila em

cada um ligeiramente para o verde, o vermelho, o amarelo ou o azul. Essa ausência de

qualquer forma de hierarquia empresta ao livro uma estranheza que o aproxima da ideia de

uma instalação. Sem um caminho obvio a seguir, quem o manuseia é provocado a se perder

nos textos e a encontrar novos percursos e possíveis linhas de fuga a cada leitura.

Apesar da sua total autonomia, Livro-Coisa-Mato foi gestado pari passu e em estreito

diálogo com a instalação Mito-Rito-Grito da qual recebeu uma forte reverberação plástica e à

qual emprestou a sua presença – e mais especialmente a dimensão da sua escrita –,

passando a constituir-se elemento ativo na proposição dessa paisagem fragmentária.


67

A parede mofada está rasgada

O barro dos tijolos é o chão

A vida pulsa na fresta aberta

O nicho da janela convida imagens

A luz esgarçada pelas paredes

O mato se projeta na arquitetura

O rodapé alto de madeira

As plantas secas enfileiradas

A memória dos terrenos baldios

As tábuas delicadas do assoalho

A pele dura e cinzenta da cidade

As pedras, o asfalto e o cimento

A frágil transparência do vidro

O bloco rugoso de concreto

O peso desafia a resistência

O livro transborda esparramado

O papel se aproxima de tudo

Tudo ao seu redor é escrita


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69

A INSTALAÇÃO

Apesar da minha poética ter sido atravessada pelo encontro com as ervas daninhas e

elas terem se tornado um dos principais motores conceituais das minhas proposições artística,

as qualidades formais mais características dessa produção emergem de outra camada de

reflexões, de um momento em que o meu interesse se voltava principalmente para uma

investigação da qualidade fragmentária das coisas e para os efeitos que diferentes operações

de deslocamento poderiam causar sobre a sua visibilidade e sobre a nossa percepção do

mundo.

Os fragmentos da cidade foram os disparadores inaugurais dessas reflexões. Passei

a colecioná-los e foi deles que derivou posteriormente o desvio do meu olhar para as ervas

daninhas. Essas plantas que brotam espontaneamente e são consideradas invasoras no

ambiente urbano também eram percebidas por mim como fragmentos de uma Natureza

estilizada. Como em um pedaço de concreto ou de asfalto, nelas também residiam rupturas

que quando expostas provocavam perturbações e estranhamentos capazes de ativar

memórias e colocar em questão o Real, derruindo a percepção ordinária e objetificada do

mundo.

Essa tentativa de apreensão da cidade pela perspectiva dos seus fragmentos e do

mato que brota das suas frestas foi potencializada pelas ressonâncias do meu encontro com


70

a obra de Hélio Oiticica e o seu Programa Ambiental 15 , mas especialmente com a Land Art 16

e as questões que Robert Smithson 17 coloca em uma série de proposições produzidas em

1968 e intituladas de forma generalizada de Nonsites.

Nesses trabalhos ele estabelece uma relação oposta e dialética entre o Site

propriamente dito, uma locação externa específica, e aquilo que ele passou a nomear como

Nonsite, um espaço interno – geralmente dedicado à arte, como uma galeria ou um museu

por exemplo –, para o qual materiais coletados na locação em foco eram deslocados e aos

quais ele juntava outros elementos como fotografias, mapas dos locais, textos, diagramas,

etc.

“Eu gosto dos limites artificiais que a galeria apresenta. Diria que a minha arte

existe em dois domínios – em meus Sites ao ar livre, que podem apenas ser

visitados e onde não são impostos quaisquer objetos, e do lado de dentro, onde

de fato existem objetos...” (FERREIRA, 2009, p. 279)

Para ele, os Sites eram parte das proposições tanto quanto os Nonsites expostos na

galeria de arte e a obra se fazia existir pelo trânsito entre esses dois polos distintos que,

embora nunca pudessem ser vistos juntos ou ao mesmo tempo, eram complementares e

15

Em um texto datado de 1966 Hélio Oiticica descreve assim seu Programa Ambiental: “A posição com

referência a uma ‘ambientação’ e à consequente derrubada de todas as antigas modalidades de

expressão: pintura-quadro, escultura, etc., propõe uma manifestação total, íntegra do artista nas suas

criações que poderiam ser proposições para a participação do espectador. Ambiental é para mim a reunião

indivisível de todas as modalidades em posse do artista ao criar – as já conhecidas: cor, palavra, luz, ação,

construção etc., e as que a cada momento surgem na ânsia inventiva do mesmo ou do próprio participador

ao tomar contato com a obra.” (OITICICA, 1986, p.78)

16

Robert Smithson (1938-1973) foi um artista estadunidense que fez parte da corrente artística

denominada Land Art desafiando as noções tradicionais da arte redefinindo a ideia de escultura.

17

A Land Art foi uma corrente artística que surgiu na década de 1960 e se caracterizou por promover uma

aproximação radical entre arte e natureza, criando proposições artísticas que tomavam ambientes naturais

como material de trabalho e, ao mesmo tempo, transformando esses ambientes em espaços da arte.


71

indissociáveis. O Nonsite, embora se constituísse como um espaço de representatividade, se

distanciava do sentido clássico da representação. Ele não derivava de um desejo mimético,

não era uma tentativa de trasladar um lugar ou uma paisagem. Usava os fragmentos do Site

para representá-lo sem tentar compor a sua imagem ou abarcar a sua integralidade.

Instigado por essas questões comecei a perceber que ao distanciar fragmentos da

cidade do seu lugar de origem e aproximá-los de outros lugares e de outros fragmentos, novas

relações se estabeleciam e outros sentidos emergiam das suas presenças. A partir daí

despertou em mim com mais força a inclinação que persiste até hoje no meu fazer artístico

de propor deslocamentos, encontros e atravessamentos para instaurar lugares e a partir deles

propor um “vocabulário de presenças” que não somente crie sentidos, mas que também se

apresente aos sentidos e possa ser sentido.

Desde o início a instalação foi a plataforma de trabalho com a qual mais me identifiquei,

que se afirmou para mim e que passei a utilizar com maior frequência nas minhas realizações.

Atravessando-a quase sempre com outras mídias (vídeo, som, etc.) e utilizando

experimentalmente as mais diversas técnicas, aplico nessas construções os princípios da

montagem na tentativa de instaurar lugares que transitem entre o espaço, as coisas e os

seres.

Para mim, as instalações trazem em si a potência de transcender o olhar objetificado

que habitualmente é lançado sobre o mundo. As operações nelas envolvidas ou provocadas

por elas, as tornam capazes de lidar com a urgência de rever a nossa condição de “sujeitos”.

Através delas é possível desafiar a noção de “objeto” e propor “a retomada da noção de


72

‘coisa’, porosa e fluida, perpassada por fluxos vitais, integrada aos ciclos e dinâmicas da vida

e do meio ambiente”, como afirma Tim Ingold 18 (2012, p. 25).

Embora se afirme materialmente como uma presença, a instalação se apresenta antes

de tudo como uma operação conceitual, na razão inversa da maneira como muitos ainda a

abordam – mesmo considerando-a em um campo expandido da arte 19 –, como uma

proposição quase objetual que tenderia a se aproximar da escultura ou da arquitetura. Ela

não se propõe a representar o mundo, mas a provocar sentidos e emanar significações que

inauguram um novo mundo.

Como na Arte Conceitual 20 , em uma Instalação a ideia e seu impacto se sobrepõem

muitas vezes ao apuro da técnica, mas ao contrário da Arte Conceitual tradicional que se

propõe a ser experienciada na mente, a Instalação está fundamentada no espaço físico e no

tempo, propondo uma experiência para o corpo e para os sentidos. Indiferente ao grau de

participação ou de intervenção que uma instalação proponha, ela instaura sempre uma

situação complexa, abordando o publico na sua presença literal, corporificado no espaço e

estimulando nele vários sentidos além da visão.

O público não se encontra mais diante de uma obra, ele é levado a “entrar” e “se

mover” em seu “interior” 21 , é descentralizado pela sua natureza fragmentada e por sua

18

Tim Ingold (1948- ) é um antropólogo e escritor e ensaísta britânico

19

Em um artigo intitulado Sculpture in the Expanded Field, publicado em 1979 na revista October, a

pesquisadora e crítica de arte Rosalind Krauss questiona os limites da utilização do termo escultura para

definir determinadas manifestações artísticas que surgem no final da década de 1960 e propõe a ideia de

um campo expandido da arte no qual essas proposições inusitadas poderiam se posicionar melhor e de

forma mais clara. (KRAUSS, 1984)

20

Movimento artístico iniciado na década de 1960 no qual os artistas valorizavam mais a ideia e os

conceitos por trás da obra de arte do que a sua forma que nem mesmo precisaria existir.

21

Escrevo entre aspas por pensar esses termos de forma mais ampla. “Entrar” e “se mover”, embora se

refiram a ações do corpo, não implicam necessariamente em um deslocamento pelo espaço literal. Da


73

espacialidade que o olhar perspectivo não consegue abarcar. Não há mais um objeto de arte

autônomo. O espaço com suas especificidades e tudo o que nele está colocado passa a ser

percebido como coisa única, como a obra de arte. Mais do que contemplar a habilidade

manual e a destreza do artista, uma instalação nos provoca à experimentação, nos provoca

a repensá-la e a nos repensar, repensando o mundo.

Na relação com uma Instalação o público não é mais nem um espectador – aquele

que examina ou que apenas observa, admira ou contempla –, nem um expectador – aquele

que tem alguma expectativa, que espera alguma conclusão ou a confirmação de alguma

verdade. Mobilizado em sua presença, ele passa a ter uma relação física mais profunda e

fenomenológica com o mundo material, tornando-se também mais consciente das

associações que os lugares e as coisas carregam consigo.

Embora nem sempre de uma forma muito perceptível, estabelece-se uma relação

entre os gestos desse público e o rastro dos gestos do artista, reminiscentes do constructo e

da experimentação primeira da obra que culminou na sua materialização no mundo. Aquilo

que Hélio Oiticica pensava em relação à arte de maneira geral, é especialmente notável em

relação às instalações que ainda não eram reconhecidas ou de alguma forma nominadas

quando em 1960 ele escreveu:

Todo o visível é antes invisível. A arte é o invisível que se torna visível, não como

um passe de mágica, mas pelo próprio fazer do artista com a matéria, que se

torna obra. Terminada a obra, fica nela o movimento do artista, movimento total,

seu tempo vital, tempo total, onde interior e exterior se fundem e as contradições

são apenas polos de um só processo, o processo cósmico, mistério primeiro de

que a obra de arte é exemplo. (OITICICA, 1986, p. 21)

mesma forma “interior” também pode ser pensado além do que materialmente está dentro. O corpo vai

além da sua literalidade.


74


75

O Homem

destrói

O homem

A ruína

A natureza

transforma

“Do pó ao pó”, da construção à destruição em um ciclo que se

repetirá enquanto houver desejo de construir, um desejo que não

se extingue nunca e que traz em si o seu oposto, o desejo de

destruir. Destruir na guerra para construir (n)a paz.

O novo

Destruir o velho para construir o novo.

Construir o novo para esquecer o

velho.

Destruir o velho para vender o

novo.

Vender o novo para vender de

novo.

O velho.


76

construir

(des)

construir


77

A construção se dá no tempo, mas ocupa o

espaço. É uma forma de obstrução. Cria

troços que ocupam, limitam, orientam e

ordenam.

A destruição se dá no tempo, mas libera o

espaço. É uma forma de desobstrução. Cria

destroços que desocupam, ampliam,

desorientam e desordenam.

A existência se arruína ao

mesmo tempo em que se

constrói. A cada prédio que

sobe, a cidade se arruína. A

cada ruína que tomba, a

cidade se reinventa. A cada

momento e desde sempre.

Paulo Leminski disse que uma

rua é uma “ruína de milhões de

passos e pegadas, de

encontros fortuitos”. Outro

poeta menos inspirado diria

que a vida se constrói nos

encontros, passo a passo.

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78


79

PROCESSO DE_COMPOSIÇÃO

Ano: 2019-2020

Técnica: instalação, técnicas mistas

Material: cobertores de feltro, plantas, aviamentos, madeira, vergalhões e pedaços de calçamento

Dimensões: variáveis

........... A cidade pulsa se rasgando em ruas. Trama bruta

de asfalto e concreto. Corpos que vagam pela estrutura.

Delicada tecitura de carne e afeto. Construções e

rompimentos. Muitas camadas. .............. Trançar a cidade.

Trançar e ser trançado. Aproximar fragmentos. Provocar

fricção. Imaginar memórias. Inventar histórias. Escutaescrita.

Criar ficção. Processo de_composição. ........ Tecer

um destino. Se perder e se achar. Ora estar à frente, ora

passar por trás. A cada volta um abraço. Mergulhar e vir à

tona. A deriva que engole tudo. ................. Forma, deforma

e reforma. Construir o novo, destruir o velho para construir

de novo. Movimento bendito e maldição. Singularidades

tecendo multidão. ............... Força bruta e suave presença.

Ocupa o espaço e experimenta movimento. Um todo que

não é a soma das partes. Um corpo sintético mutável e

mutante. Estrutura e forma estruturante. ...........................

Processo de_composição foi como nomeei uma série de trabalhos realizados entre

2019 e 2020 com cobertores de feltro, um produto barato e amplamente distribuído àqueles

que vivem e dormem nas ruas na tentativa de amenizar o seu sofrimento diante do frio e das

intempéries. Se foram o estigma e a carga simbólica desse material que que me atraíram

primeiro para ele, não demorou muito para meus olhos recaírem sobre a sua cor cinzenta que

remetia ao asfalto e ao cimento da pele urbana e começar a percebê-lo como uma espécie


80

de camuflagem que, lançada sobre aqueles corpos desabrigados, os confundia com o chão

da cidade e os tornava ainda menos visíveis.

Depois, com o manuseio e a pesquisa, esse interesse inicial se expandiu quando

comecei a perceber melhor as suas qualidades formais e a sua carga matéria. Rústico e

maleável esse feltro é um aglomerado denso e amorfo confeccionado industrialmente a partir

da prensagem de resíduos têxteis reciclados. Embora não seja propriamente um tecido – não

há trama nem urdidura –, ele se constitui um pano, uma superfície faceada, no qual se pode

perceber um vasto repertório de vestígios de materiais têxteis. São tantas cores e diferentes

texturas presentes aleatoriamente que cada cobertor se torna uma peça única apesar de

serem fabricados em larga escala, em rolos até. Cada cobertor é ao mesmo tempo uma peça

única e banal.

Processo de_composição #1 [cobredor] foi realizado no início de 2019 quando eu

ainda investigava de forma mais específica a carga simbólica e a planaridade dos cobertores

de feltro. Era uma instalação quase bidimensional, uma espécie de estandarte composto por

várias peças de feltro. A maior peça era um cobertor inteiro e possuía uma inscrição feita com

asfalto, pequenos bordados e algumas aplicações de ervas daninhas costuradas à mão e que

foram secando na peça até se tornarem palha. As outras peças eram retalhos menores de

feltro que, penduradas nas laterais, se juntavam àquela para formar um manto-manifesto, uma

reunião de presenças excluídas. O feltro como pele, como carne, mas também como solo,

como chão. Pendurada em um sarrafo de madeira e em ganchos de vergalhão, aquelas

superfícies capturadas e expostas se propunham ser ao mesmo tempo um habitante e a sua

habitação.


81

Também realizado em 2019, quase simultaneamente ao trabalho anterior, Processo

de_composição #1A [quasi-retrato com passe-partout] foi elaborado a partir de técnicas

mistas como uma tentativa de diálogo com conceitos da pintura relativos ao retrato, à natureza

morta e à paisagem.

Quasi-retrato é quase uma pintura. A tela é formada por dois retalhos de um cobertor

de feltro industrial sobrepostos. As tintas são as próprias fibras coloridas que despontam na

superfície do feltro, a etiqueta original do cobertor onde se pode ler ”casal, medidas:

1.80x1.60, composição: fibras diversas” e as duas ervas daninhas aplicadas com costuras em

torno dessa etiqueta. Sobre a tela, a tentativa de construir uma representação do ‘deslimite’

da existência humana no cinzento das cidades. A tentativa de capturar uma inimaginável

imagem do limiar entre ser uma pessoa, uma coisa ou uma paisagem.

Processo de_composição #2 [trama] foi realizado no final de 2019, em um momento

em que eu já não estava mais pensando o feltro como superfície plana, mas tentando explorar

as suas possibilidades em uma relação tridimensional com o espaço. O ponto de partida foram

as suas qualidades plásticas, sua maleabilidade e a sua grande fragilidade. E foi assim que

cheguei ao trançado.

A trança é ela mesma um trançado de ideias. Essa tecitura primeira, primitiva e

primordial. É irmã do nó e junto com ele foi provavelmente uma das primeiras formas de

escultura. Ela trás em si os princípios da geometria. Trançar é uma operação estruturante que


82

agrega e torna forte na multitude o que era fraco na singularidade. A trança é uma estrutura,

é multidão.

Singularidades se entrelaçando,

se perdendo e se achando,

ora passando pela frente,

ora passando por trás,

mergulhando e vindo à tona,

se abraçando e tecendo uma multidão.

Uma forma mutável e mutante,

uma estrutura e uma forma estruturante

que deseja ganhar o espaço e escalar as alturas.

E assim, em meio a tantas reflexões, os cobertores foram trançados. Utilizando

diferentes técnicas e fazendo diversas experimentações deram origem a estruturas com

espessuras e comprimentos variados, algumas ramificadas e outra mais lineares, elaboradas

utilizando peças inteiras ou com tiras menores de feltro cortadas dos cobertores. Essas

estruturas individuais foram depois se juntando durante o processo final de montagem para

dar origem a uma peça única com quase quinze metros de comprimento. Partindo do piso do

andar térreo, a instalação ia negociando o espaço com a arquitetura e se insinuando para o

alto pelas paredes, atravessando uma grade de ventilação que separava os pisos para

alcançar o teto no segundo andar do espaço expositivo.

Já em 2020, durante o período de confinamento imposto pela pandemia do

coronavírus, compelido pelo encontro casual entre alguns remanescentes dos cobertores de

feltro e “pedaços da cidade” que eu havia trazido para casa meses antes, retornei a essa série

de proposições que havia deixado de lado e já julgava terminada.


83

Foi do contraste das qualidades desses materiais que me pareciam tão diferentes

quanto próximos, duas peles da cidade, que surgiu a motivação para realizar Processo

de_composição #3 [reparações] que explora o confronto da flexibilidade, maciez e fragilidade

do feltro com a rigidez, dureza e resistência do asfalto e do concreto.

A partir de um retorno à proposição anterior e à experiência do trançado, comecei a

pesquisar outras possibilidades para explorar as qualidades do feltro na criação de estruturas

capazes de conter e resistir ao peso e à dureza do concreto, do asfalto e de outros materiais

de demolição.

Assim cheguei à ideia das redes e ao macramê, uma forma de tecelagem muito

simples e totalmente manual que consiste no uso de nós para criar tramas. Uma técnica cuja

origem se perde no tempo e que foi introduzida na Europa pelos mouros durante as invasões

da península Ibérica. Em uma surpreendente convergência com o que eu estava pensando e

propondo, descobri que o termo macramê tem origem na palavra árabe migramah que

literalmente significa “proteção”.

Para construir o que viria a ser a primeira estrutura, escolhi um fragmento de concreto

com vergalhões e madeira que há tempos havia encontrado em uma caçamba de entulhos.

Uma peça que tinha me chamado atenção pela forma singular e pelos materiais que se

agregavam nela. Sua presença destacava-se no monte de pedregulhos, tinha uma forma

definida que guardava ainda a memória de uma construção, mas que também lembrava um

coração. O trabalho com o feltro foi feito a partir de tiras de cobertores, em um processo no

qual os nós de macramê foram tecidos diretamente sobre a peça.

À medida que o trabalho ia avançando, uma rede de feltro foi se formando e recobrindo

a superfície do concreto até restar apenas uma pequena parte descoberta. Com as pontas


84

das tiras de feltro que sobraram fiz um trançado que remetia e resgatava a técnica de

Processo de_composição #2 que eu havia realizado antes.

Depois de pronta a estrutura, meu primeiro gesto – um gesto latente e inevitável –, foi

suspendê-la no ar. Eu precisava sentir seu peso, testar a relação de forças entre os materiais

e sentir a tensão desse confronto. No fim, porém, apesar da expectativa de um possível

esgarçamento, ou mesmo de um rompimento, não havia sinais de uma falência eminente e,

pelo contrário, o que se manifestava era uma estabilidade, um equilíbrio entre a resistência

da contenção e a acomodação do material contido.

A segunda estrutura foi realizada a partir de dois pedaços esguios de asfalto que me

pareceram interessantes pelo contraste que faziam em todos os sentidos com a primeira peça

de concreto, já que expressavam uma neutralidade total que tornava impossível localizá-las

em qualquer especificidade. Não traziam rastros de uma ação que as tivesse constituído,

eram presenças puramente minerais, quase naturais. Escolhi um cobertor que fosse mais

claro para ressaltar a diferença entre os materiais e procedi por um processo de tecelagem

similar ao realizado na primeira estrutura.

Havia na ideia inicial a possibilidade e o desejo de construir outras estruturas a partir

de peças que possuíssem aspectos de maior intimidade e pessoalidade como pedaços de

tijolos e alvenaria de casas demolidas, terra e plantas. Uma nostalgia do baldio talvez, mas

que não se realizou afinal e restaram prontas somente essas duas estruturas mais

impessoais.

Feltro, pedaços de concreto e asfalto. Uma lassidão maleável tentando se estruturar

em torno da dureza fragmentada de ruínas da cidade em busca de um equilíbrio. A tentativa

de criar continuidades e promover um espaço ilusório, comum e compartilhado capaz de

borrar as fronteiras das materialidades para fazer surgir zonas nebulosas onde o antagonismo


85

pudesse refletir-se em identificações. Tudo é cinzento e tudo é ruína no enfrentamento desses

campos simbólicos. Os materiais familiares se tornam corpos estranho que desafiavam um

pouco além e fazem emergia visível o que se encontrava oculto.

As estruturas estavam prontas, e haviam sido pensadas como peças para uma

instalação, mas diante do espaço expositivo virtual no website de uma galeria de arte – única

possibilidade de realizar uma exposição naquele momento –, eu era desafiado ainda a criar

alguma estratégia para prover um lugar que fosse capaz de provocar relações delas entre si,

mas também delas com o público.

Um vídeo de animação me pareceu a operação possível que poderia mais se

aproximar de um processo instalativo. Uma forma de preservar ainda em alguma medida as

minhas questões, tentando transpor a presença daquelas estruturas tridimensionais para um

público mediado pela tela plana de um computador e impossibilitado de se aproximar.

Instantâneos tomados ao redor das estruturas ofereceriam a experiência dos meus

olhos e do meu corpo a um espectador com olhar limitado e movimentos interditados. Foram

editadas lado a lado duas animações, uma para cada estrutura, em um mesmo vídeo com um

minuto de duração. Resgatando a ideia de um loop infinito que há pouco tempo eu havia

explorado em uma proposição de Arte Gif, o vídeo inicia com as duas estruturas paradas que

depois começam a rodar em velocidade crescente sobre seus próprios eixos até realizarem

um movimento completo de rotação, momento em que começam a diminuir de velocidade até

pararem novamente na mesma posição do início, repetindo depois esses movimentos em um

looping infinito.


86














87

INSTALAR PAISAGENS

A cada nova Instalação que proponho vou me convencendo cada vez mais que a arte

instalativa não cabe na definição de uma categoria ou de um estilo e por isso passei a tratála

mais como uma forma de pensar e de operar. A Instalação é mais do que uma plataforma

de trabalho, ela é uma plataforma poética que se projeta como um conjunto flexível e

praticamente ilimitado de operações e se mostra aberta em suas possibilidades a todos os

tipos de experimentação.

Uma Instalação tem a capacidade de se apropriar de qualquer coisa, material ou não.

Ela não é escultura nem arquitetura; não é pintura, gravura, desenho ou fotografia; não é

teatro nem performance; não é dança; não é música, não é vídeo nem cinema; mas pode se

aproximar de qualquer dessas manifestações artísticas ou mesmo abrigá-las diretamente em

sua composição, combinando-as entre si, com outros elementos ou simplesmente fazendo

uso de suas técnicas para, de outra forma, instaurar sua arena experimental.

Como característica fundamental e talvez a única que eu perceba ser capaz de

aproximar tantos trabalhos que operam sob a denominação de Instalação, estaria a

disposição recorrente de perceber e tratar o espaço como um elemento estrutural 22

assumindo-o na sua dimensão conceitual, mas também como matéria plástica que per si traz

sempre questões e se posiciona ativamente na relação com outros elementos para fundar um

lugar, instaurar no mundo um outro mundo.

Diante de um campo de possibilidades tão vasto e movido pelos acontecimentos que

entremeiam esta escrita, tenho me arriscado ultimamente em reflexões e devaneios em um

22

Força Vital ou Coisa Vital talvez sejam termos mais adequados para a forma como compreendo o

espaço se fazendo presença e instaurando um lugar em uma proposta instalativa. Deixo apontado, mas

não avançarei nessa discussão agora pois creio que não caberia no escopo desta escrita.


88

caminho de aproximação entre a Instalação e a paisagem, essas duas entidades complexas

e problemáticas, difusas e escorregadias que estão a princípio relacionadas de alguma forma

ao espaço. Um apoio forte e frágil ao mesmo tempo, já que o espaço apesar de

conceitualmente abarcar tudo e não possuir limites, por outro lado não se define em nada

enquanto não ganha propósito e se torna lugar 23 .

Na perspectiva de provocar uma tal convergência, duas possibilidades me ocorreram

de imediato, quais sejam “instalar uma paisagem” ou “instalar em uma paisagem”. Nem uma

opção nem a outra são exatamente uma novidade e alguns artistas como Olafur Eliasson 24 e

a dupla Christo e Jeanne-Claude 25 , entre tantos outros que eu poderia convocar, já se

lançaram nesse caminho há algum tempo com trabalhos em escala monumental que

enfrentam essa discussão – não sei se pensando exatamente nela –, nas duas frentes que

apresentei.

Uma questão que se coloca imediatamente para mim é que em uma tal convergência

entre a Instalação e a paisagem, essas duas entidades correm o risco de se anularem

mutuamente ou, mais provavelmente, uma prevalecer sobre a outra anulando-a. Afinal,

embora ambas sejam de alguma forma uma “invenção”, enquanto a Instalação prevê a

imersão e a interação do público convocando-o para si em algum grau, a paisagem é um

23

Nesse sentido tendo a concordar com Tim Ingold (2015a, p. 215) quando afirma que o espaço é um

conceito abstrato e rarefeito que resulta daquilo que ele coloca como a lógica da inversão que “transforma

as vias ao longo das quais a vida é vivida em limites dentro dos quais está encerrada”. Assim, um mundo

ocupado pelas coisas, onde elas simplesmente existem, é um mundo de espaço. Ao entrarem em fluxo, as

coisas passam a habitar o mundo, se colocam em relação com ele que assim tecido por essas relações se

torna um lugar.

24

Olafur Eliasson (1967- ) é um artista islandês-dinamarquês, escultor e criador de Instalações em grande

escala que empregam materiais elementares como luz, água e a temperatura do ar.

25

Christo (1935-2020) e Jeanne-Claude (1935-2009) foi um casal de artistas conhecido pelas instalações

de arte ambiental.


89

conceito que se fundamenta mais na contemplação e no distanciamento, existindo somente

em uma relação de afastamento.

Seria possível instalar uma paisagem que se dobrasse sobre si mesma e aquele que

a contempla, levando-o a se perceber parte dela, tomá-la em si e se perder na sua presença?

Ainda poderíamos nomeá-la de paisagem? Seria possível também uma Instalação se

confundir com o seu entorno, extrapolar os seus limites a ponto de lançar aquele que a

experimenta na direção do mundo para nele se perder? Ainda seria uma Instalação? Quando

me coloco essas perguntas, penso no Site e no Nonsite de Smithson entrando em rota de

colisão, mas também no ideal de “Museu é o mundo” 26 legado por Hélio Oiticica.

Deixarei aqui apenas lançadas essas questões e não avançarei mais no assunto por

não estar ele suficientemente desenvolvido e requerer ainda uma investigação e uma

experimentação mais profundas. Ao invés disso, motivado por essas últimas indagações,

seguirei daqui para abordar alguns experimentos mais recentes e tecer algumas

considerações introdutórias sobre a paisagem.

26

Em 1966 Hélio Oiticica escrevia como parte da descrição do seu Programa Ambiental:

“[...] pretendo estender o sentido de ‘apropriação’ às coisas do mundo com que deparo nas ruas, terrenos

baldios, campos, o mundo ambiente, enfim – coisas que não seriam transportáveis, mas para as quais eu

chamaria o público à participação – seria isso um golpe fatal ao conceito de museu, galeria de arte etc., e

ao próprio conceito de ‘exposição’ – ou nós o modificamos ou continuamos na mesma. Museu é o mundo;

é a experiência cotidiana [...]” (OITICICA, 1986, p. 79)


90


91

[3]

PAISAGEM


92


93

PAISAGEM

substantivo feminino

Etimologia: fr. paysage acp. de belas-artes, 'conjunto de países', 'extensão de terra que a

vista alcança'

I. Dicionário de português Google-Oxford Languages.

1. extensão de território que o olhar alcança num lance; vista, panorama.

"do alto, essa p. é mais bonita"

2. conjunto de componentes naturais ou não de um espaço externo que pode ser

apreendido pelo olhar.

3. espaço geográfico de um determinado tipo.

"p. costeira"

4. pintura, desenho, gravura, fotografia etc. em que o tema principal é a representação de

formas naturais, de lugares campestres.

"Frans Post pintou várias p. de Pernambuco"

II. Dicio – Dicionário Online de Português

1. Extensão territorial que a vista alcança; panorama.

2. Reunião dos componentes e elementos naturais, ou não, observados a partir de um

determinado lugar: vejo a paisagem da janela do meu quarto.

3. Natureza, tipo ou característica de um espaço geográfico: paisagem repleta de

montanhas.

4. Expressão artística (pintura, desenho, fotografia, gravura etc.) cujo tema é a natureza,

as formas naturais, os ambientes do campo.

III. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021

1. Extensão de território que se abrange com um lance de vista.

2. Desenho, quadro, gênero literário ou trecho que representa ou em que se descreve

um sítio campestre.


94


95

A PAISAGEM

A frequente incidência com que o termo ‘paisagem’ se manifesta, a facilidade com que

ele se presta para explicar tantas e tão diferentes coisas, o automatismo e a naturalidade com

que transita ao meu redor e através de mim, me motivam a seguir a trilha de algumas questões

que rondam essa ideia sobre a qual pairam tantas dúvidas e incertezas.

De origem incerta, a paisagem é uma entidade conceitual que vem se estruturando ao

longo de muito tempo e que se tornou cada vez mais complexa à medida que foi sendo tomada

para si por diferentes campos de estudo, cada qual propondo diferentes definições e

aproximações teóricas na difícil tentativa de estabelecer seus limites e definir suas

possibilidades.

Apenas começo a me dedicar às suas questões e ainda de forma intuitiva, através da

minha prática artística que foi a via do meu encontro com ela. Falta-me fôlego e estofo teórico

neste momento para um mergulho na sua complexidade que, de qualquer forma, também não

caberia nestas poucas páginas. Assim, ao invés de tentar estabelecer certezas ou chegar a

conclusões, proponho lançar sobre ela um olhar panorâmico, “passando os olhos” sobre

algumas abordagens sobre as quais tenho me debruçado.

A intensão aqui não é tentar criar um coro harmônico, mas explorar a dissonância

como mecanismo e dispositivo para esgarçar em alguma medida os nós que existem ao redor

desse assunto, tornando mais visível a malha que se forma a partir deles, evidenciando entre

os fios soltos, linhas de fluxo por onde se possam estabelecer novas relações e levantar outras

questões. Em última instância tentar perceber a paisagem, ela mesma como uma espécie de

paisagem.


96

Milton Santos 27 escreveu sobre a paisagem em diversos momentos, lançando-se

sobre ela sempre a partir de um olhar da geografia urbana e social. Para ele a paisagem por

si mesma, é uma abstração. Ela seria o espaço onde não há a ação humana e só existe em

contraponto com o espaço social, o espaço humano no qual as pessoas vivem e trabalham,

a morada do homem, geralmente coincidindo com o espaço urbano ou urbanizado. Destaco

abaixo um pequeno trecho extraído do livro A Natureza do Espaço que traduz, mesmo que

superficialmente esse pensamento.

Paisagem e espaço não são sinónimos. A paisagem é o conjunto de formas que,

num dado momento, exprimem as heranças que representam as sucessivas

relações localizadas entre homem e natureza. O espaço são essas formas mais

a vida que as anima. [...] Considerada em si mesma, a paisagem é apenas uma

abstração, apesar de sua concretude como coisa material. Sua realidade é

histórica e advém de sua associação com o espaço social. (SANTOS, 2006, p.

70)

Um pouco mais adiante, em outro trecho, Milton Santos indaga

Pode-se pensar numa dialética entre a sociedade e o conjunto de formas

espaciais, entre a sociedade e a paisagem? Ou a dialética se daria

exclusivamente entre sociedade e espaço?” (Ibid.)

27

Milton Santos (1926-2001) foi um geógrafo brasileiro conhecido por seus conceitos inovadores no campo

da geografia urbana e um dos grandes expoentes do movimento renovador da geografia no

Brasil na década de 1970.


97

Em um pequeno livro intitulado A Invenção da Paisagem (CAUQUELIN, 2007), Anne

Cauquelin 28 explora a origem desse termo e as suas implicações, revelando ao longo do texto

de que maneira essa ideia foi pensada como o equivalente da natureza em uma construção

que se inicia, segundo ela, na pintura do Ocidente no século XV e que se estende até a

contemporaneidade quando começam a se constituir outras abordagens da natureza, do real

e da sua imagem.

Para Cauquelin, renunciar à ilusão da paisagem é necessário assim como tentar

desnaturalizá-la, desassociando-a da ideia de Natureza e afirmando a sua condição de

imagem.

De fato, parece que a paisagem é continuamente confrontada com um

essencialismo que a transforma em um dado natural. Há algo como uma crença

comum em uma naturalidade da paisagem, crença bem arraigada e difícil de

erradicar, mesmo sendo ela permanentemente desmentida por numerosas

práticas. (CAUQUELIN, 2007, p. 8)

Em relação à arte, se na sua origem a paisagem estava submetida às convenções

pictóricas que a lançavam em uma condição de substituto da natureza, o fato da arte

contemporânea ter expandido a dimensão puramente visual da pintura para outras

sensorialidades e espacialidades, propondo experiências sonoras e táteis por exemplo,

parece não ter alterado a persistência desse estatuto.

Pintura, escultura, fotografia, vídeo e trilhas sonoras compõem paisagens

mestiças, híbridas, nas quais o espectador se sente imerso. [...] a educação da

visão e da audição, da compreensão das coisas e dos vínculos que elas mantêm

28

Anne Cauquelin (1926- ) é uma filósofa e artista visual, docente, ensaísta e romancista francesa.


98

entre si, tudo isso é atualmente bem diferente do que era típico das outras

gerações. O interesse não é constatar isso de um modo qualquer (nostalgia ou

triunfalismo), mas reconhecer que, se os conteúdos mudaram, a experiência do

mundo passa sempre pelos mesmos caminhos: as paisagens digitais, [...] o

ambiente virtual no qual você adentra [...] desempenham sua função de

aprendizado, assim como outrora a arte pictórica, determinando então um

conjunto de valores ordenados em uma visão, ou seja: uma paisagem. (Ibid., p.

16)

Já nas últimas páginas do livro Anne Cauquelin escreve um trecho que de certa forma

arremata essa discussão das relações entre a paisagem e Natureza.

[...] a paisagem, no equilíbrio de suas duas vertentes, Natureza-Natureza e

Natureza-Artifício, usando de todos os recursos de uma estilística ordinária’,

constrói pela linguagem espelhada da Natureza que ela trai e exibe, marca esse

ponto singular onde se articulam a razão e a crença, o evidente e suas dobras.

Como obra, ela é ‘fragmento’, e, mesmo que saiba que ela é produzida pelo

artifício, é uma totalidade em si: uma ‘natureza’. Não há dúvida de que é por esse

viés que a natureza está presente na paisagem, não porque seria uma parte dela,

valendo pelo todo, mas porque é produzida por uma sequência de regras, cuja

coerência faz um objeto em tudo e por tudo semelhante a um objeto natural. (Ibid.,

p. 186)

Jean-Marc Besse 29 inicia o ensaio As Cinco Portas da Paisagem (BESSE, 2014a, p.

11-66) com duas perguntas que transcrevo aqui por julgar importante deixá-las no ar.

O que é a ‘paisagem’ nas culturas espaciais modernas e contemporâneas? Qual

‘realidade’ é indicada com esse nome, quais são as práticas e os valores que

correspondem a esse nome, e quais são os objetos que resultam dele? (BESSE,

2014a, p. 11)

29

Jean-Marc Besse (1956- ) filósofo francês que trabalha com a história, a epistemologia e com questões

da paisagem e de ambiente na cultura contemporânea


99

Assim sem respostas, sigamos então para uma apresentação bastante resumida das

“cinco portas” que Besse nos propõe para pensar a paisagem.

1. A paisagem é representação cultural e social, ela se renova, se transforma e se

reinventa, podendo surgir em novas formas e composta por novos elementos dependendo

das mudanças sociais e culturais que ocorram.

2. A paisagem é um território fabricado e habitado, ela é uma obra coletiva das

sociedades, um espaço social, e deriva da relação do ser humano com a superfície da terra.

Ela não é só coisas, mas também rastros e pegadas. Memórias

3. A paisagem é o meio ambiente material e vivo das sociedades humanas, ela não é

apenas uma imagem e excede as significações subjetivas e sociais, ela possui

substancialidade e espessura, uma realidade material.

4. A paisagem é uma experiência fenomenológica, ela pode ser definida como o

acontecimento do encontro concreto entre o ser humano e o mundo que o cerca, ela é antes

de tudo uma experiência (como o caminhar, por exemplo).

5. A paisagem como projeto, o paisagismo e o pensamento da cidade nas suas

relações com o solo, o território e o meio vivo (aquilo que chamamos natureza). O projeto de

paisagem consiste em criar ou elaborar algo que já está presente, mas que não se vê.


100

Em vários momentos da sua produção ensaística o antropólogo britânico Tim Ingold

aborda as questões que envolvem os conceitos de espaço, lugar e paisagem na relação

complicada que estabelecem entre si, mas também em relação ao mundo e ao tempo, as

pessoas e as coisas.

As considerações que apresentarei a seguir são discutidas por ele no livro The

Perception of the Environment, em um capítulo em que aborda a temporalidade da paisagem,

que ele acredita nos permitir transpor a oposição entre uma visão naturalista da paisagem

como um cenário externo neutro em relação às atividades humanas, e a visão culturalista que

percebe cada paisagem como uma ordenação cognitiva ou simbólica específica do espaço.

Para ele

devemos adotar, no lugar dessas duas visões, o que chamei de ‘perspectiva de

habitação’, segundo a qual a paisagem é constituída como um registro duradouro

– e testemunho – das vidas e obras das gerações passadas que a habitaram e

que ao fazê-lo, deixaram algo de si mesmos. (INGOLD, 2000, p. 189, tradução

nossa)

Mais adiante, seguindo na tentativa de definir a paisagem, Tim Ingold faz uma

aproximação negativa, ou seja, apontando o que ela não é. Para ele, a paisagem não é terreno

(land) 30 , não é natureza e nem é espaço.

Para ele, o terreno (land) assim pensado seria uma espécie de mínimo denominador

comum do mundo fenomenológico. Ele é uma entidade homogênea que só podemos aferir

quantitativamente, enquanto a paisagem é uma entidade qualitativa e heterogênea.

30

Land em inglês pode significar terra, terreno, solo, país, região, nação. Na tradução preferi utilizar o

termo terreno, no sentido de uma extensão de terras.


101

A paisagem não é idêntica à natureza, mas também não está contra ela. O que ocorre

é que nós a habitando, ela está conosco, é parte de nós e nós dela e isso a faz implicada e

comprometida conosco enquanto a natureza se mantém apartada.

Em relação ao espaço, para Ingold ele seria uma espécie de abstração potencial de

movimento, enquanto que os deslocamentos reais são feitos através de uma paisagem.

Mais adiante, sintetizando essas questões, Tim Ingold conclui

Em suma a paisagem é o mundo tal como é conhecido por aqueles que nela

habitam, que habitam os seus lugares e percorrem os caminhos que os ligam.

Não é, então, idêntico ao que poderíamos chamar de ambiente? Certamente a

distinção entre paisagem e ambiente não é fácil de fazer e, para muitos

propósitos, eles podem ser tratados praticamente como sinônimos. (Ibidem, p.

193, tradução nossa)

Para fazer um contraponto às vozes majoritariamente científicas, termino essa

pequena série de considerações convidando a palavra de Fernando Pessoa 31 , que entre

tantas outras coisas foi, em companhia dos seus heterônomos, uma das maiores expressões

da poesia nos nossos tempos.

Nos três parágrafos da nota preliminar de Cancioneiro, obra que reúne poemas líricos

com forte influência simbolista, o poeta se dedica integralmente a pensar os estados da alma

como paisagens. Para ele, os estados da alma não seriam somente passíveis de serem

representados por uma paisagem, mas seriam mesmo, e verdadeiramente, uma paisagem.

31

Fernando Pessoa (1888-1935) foi um poeta, filósofo, dramaturgo, ensaísta português.


102

Fazendo o esforço de uma torção, creio que é interessante pensar, de modo inverso,

que uma paisagem possa ser um estado de alma, uma abstração que deriva e se constitui a

partir do estado de alma de quem a convoca. Vejamos então as palavras do poeta, que de

simples não têm nada e que escondem segredos nas entrelinhas que podem nos surpreender.

CANCIONEIRO

Nota Preliminar

1. Em todo o momento de atividade mental acontece em nós um duplo fenômeno

de percepção: ao mesmo tempo que tempos consciência dum estado de alma,

temos diante de nós, impressionando-nos os sentidos que estão virados para o

exterior, uma paisagem qualquer, entendendo por paisagem, para conveniência

de frases, tudo o que forma o mundo exterior num determinado momento da

nossa percepção.

2. Todo o estado de alma é uma passagem. Isto é, todo o estado de alma é não

só representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem. Há

em nós um espaço interior onde a matéria da nossa vida física se agita. Assim

uma tristeza é um lago morto dentro de nós, uma alegria um dia de sol no nosso

espírito. E — mesmo que se não queira admitir que todo o estado de alma é uma

paisagem — pode ao menos admitir-se que todo o estado de alma se pode

representar por uma paisagem. Se eu disser “Há sol nos meus pensamentos”,

ninguém compreenderá que os meus pensamentos são tristes.

3. Assim, tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior e do nosso

espírito, e sendo o nosso espírito uma paisagem, tempos ao mesmo tempo

consciência de duas paisagens. Ora, essas paisagens fundem-se, interpenetramse,

de modo que o nosso estado de alma, seja ele qual for, sofre um pouco da

paisagem que estamos vendo — num dia de sol uma alma triste não pode estar

tão triste como num dia de chuva — e, também, a paisagem exterior sofre do

nosso estado de alma — é de todos os tempos dizer-se, sobretudo em verso,

coisas como que “na ausência da amada o sol não brilha”, e outras coisas assim.

De maneira que a arte que queira representar bem a realidade terá de a dar

através duma representação simultânea da paisagem interior e da paisagem

exterior. Resulta que terá de tentar dar uma intersecção de duas paisagens. Tem

de ser duas paisagens, mas pode ser — não se querendo admitir que um estado

de alma é uma paisagem — que se queira simplesmente interseccionar um

estado de alma (puro e simples sentimento) com a paisagem exterior. [...]

(PESSOA, 2002)


103

Silêncio das pedras é o início das palavras? 32

32

Manoel de Barros em Escritos em verbal de ave (BARROS, 2011)


104


105

ALONE

Ano: 2020

Técnica: Animação Gif

Dimensões: 1024x768px

Quando me candidatei ao mestrado em 2019 eu não podia imaginar que no início do

ano seguinte uma pandemia de proporções globais se alastraria em velocidade estonteante

e colocaria o mundo em estado de confinamento, suspendendo todas as urgências e todas

as atividades que não estivessem relacionadas à preservação mais básica da vida.

Diante do desconhecimento da magnitude da catástrofe, o medo tornou-se um

fantasma, as ruas ficaram desertas e mergulharam em um silêncio inimaginável. A situação

que parecia temporária começou a dar sinais de que se prolongaria muito além do imaginado.

As errâncias costumeiras pela cidade, agora se limitavam aos percursos pelos cômodos

desse espaço-casa que passou de refúgio a único lugar possível. A cidade parecia se

desfazer na memória assim como tudo o que não estivesse relacionado diretamente com o

ambiente doméstico.

Meus materiais de trabalho trazidos do ateliê estavam também confinados em

armários ou caixas empilhadas pela casa, compartilhando comigo aquele estado de inanição

que me tornava criativamente incapaz de produzir qualquer coisa. Com o passar do tempo,

que é cura para todos os males e solução para qualquer problema, fui me ajustando e aos

poucos a pequena escrivaninha do meu quarto foi se transformando em um improvisado ateliê

digital que se expandia no espaço mais amplo dos ambientes virtuais.

Minhas deambulações agora eram pelas periferias dos arquivos do meu computador,

percorrendo os registros de antigos trabalhos, atravessando textos arquivados nas pastas e

olhando através da tela as paisagens nos vídeos que fui colecionando ao longo do tempo.


106

Passei também a fazer longas derivas por páginas na internet, passando horas me

deslocando sem destino pelos links da internet ou navegando nas redes sociais em busca de

alguma emoção ou surpresa, das novidades dos amigos e das notícias do mundo.

Todas as relações passaram a ser travadas por vídeo conferências ou por chamadas

de vídeo e a casa, que até então era só um “dentro”, ganhou natureza híbrida e tornou-se um

“dentro-fora” que acumulava funções do espaço íntimo e do espaço público. Através do

computador, minha imagem e minha voz se projetavam para o mundo e o mundo se projetava

de volta para me alcançar. A impressão que eu tinha era que o espaço tinha se tornado

descontínuo, um imenso arquipélago com incontáveis ilhas espalhadas pelo mar sem fim de

um oceano único.

Depois de seis meses de estagnação, sem conseguir retomar o caminho que eu vinha

seguindo antes ou encontrar qualquer outro, surge Alone, uma proposição de arte digital na

intersecção da Arte GIF 33 e da Arte Glitch 34 que começo a realizar como uma brincadeira, mas

que logo vou perceber como a porta de saída do estado de inércia em que eu me encontrava.

Voltar a usar a imagem e os processos de edição como forma de expressão foi uma espécie

de regressão a processos que há muito eu havia abandonado, uma reconexão nostálgica que

eu não sabia se era só um ponto fora da curva ou se viria a ser um desvio de rota.

33

Arte GIF (GIF Art) é um meio/linguagem de arte contemporânea acessível a grande número de pessoas

que opera na esfera da Cultura Visual produzindo animações em arquivos de imagem no formato GIF

(Graphics Interchange Format ou Formato de Intercambio de Gráficos”). Apesar de sua baixa resolução e do

numero restrito de cores, esse formato vintage de imagem que surgiu no final da década de 1980 permite a

criação de loops infinitos e gera arquivos leves e compactos de fácil circulação e compartilhamento em

ambientes digitais de rápido consumo como as redes sociais e os programas de troca de mensagens.

34

Arte Glitch (Glitch Art) é uma forma de arte digital realizada pela deterioração de imagens pela inserção

de erros em suas matrizes binárias, geralmente de forma aleatória, através de sucessivos e diferentes

processos. O resultado é uma imagem danificada que apresenta visíveis falhas nas formas e cores

causando desconfortos e estranhamentos que podem interferir no seu sentido e significados.


107

Alone é uma paisagem eletrônica que se apresenta na forma de um letreiro luminoso,

uma espécie de outdoor elaborado pela animação de dois posts criados no Facebook, que

pode trafegar velozmente nas redes sociais viralizando ou se perdendo no limbo da Web.

‘LIVE me alone’, o primeiro post, foi um trocadilho-manifesto, um grito diante do insuportável

tsunami de lives que invadiam as redes sociais. ‘LOVE me alone’, publicado no dia seguinte

como trocadilho do trocadilho, foi um eco apaziguador convocando afetos para abrandar a

solidão. No processo de montagem e edição da animação, ocorreu uma falha que deteriorou

e distorceu as imagens. Um erro indesejado que acabou sendo acolhido pois introduzia uma

estranheza que tornava o loop infinito daquelas imagens simples em algo mais complexo e

potente.

Depois de Alone, o vídeo volta a surgir como plataforma para outras proposições que

apresentarei mais adiante, mas antes de prosseguir com essa semeadura, preciso falar de

alguns processos que já vinham acontecendo e dos quais só me dei conta depois dessa

retomada. Farei aqui uma pequena dobra no tempo para voltar a um momento anterior

marcado pelo meu encontro com o jardim e o início das minhas reflexões sobre a paisagem.


108




109

MOVIMENTOS DO MATO

Em 1974, Gilles Clément 35 propõe o conceito de um “Jardim em Movimento”, a partir

da observação da vegetação que cresce livremente em um terreno abandonado que adquire

para instalar sua casa-laboratório. Com essa proposta, o paisagista se opõe radicalmente à

ideia dos jardins tradicionais, onde a natureza domesticada é rigidamente controlada para

garantir a manutenção da ordem e a preservação do seu projeto original.

O nome deriva do rápido deslocamento que as espécies herbáceas, chamadas por ele

de “plantas vagabundas”, e outras plantas espontâneas, fazem em um determinado território.

Ao longo do tempo, elas desaparecem e reaparecem em outros locais seja pela passagem

das estações, a reação a movimentos do solo, à ação das intempéries ou pelo trânsito das

pessoas que constroem caminhos pelas passagens mais fáceis.

Esse deslocamento da cobertura vegetal não é propriamente uma novidade, já que é

conhecido e observado desde a antiguidade. O que há de novo na proposta de Clément é a

transformação do jardineiro e do trabalho de jardinagem em um dispositivo capaz de

transformar terrenos baldios e outras áreas abandonadas em Jardins em Movimento.

O jardim não partirá de um projeto. Seu design é livre, se faz e se altera ao longo do

tempo. Sua energia é guiada pelas mãos do jardineiro, que terá como fundamento a máxima

de “fazer o máximo possível a favor e o mínimo possível contra”. A ele não caberá mais o

controle artificial do fluxo da natureza por meio de podas ou capinas, mas simplesmente a

35

Gilles Clément é engenheiro agrônomo, jardineiro, paisagista, botânico e professor da École Nationale

Supérieure du Paysage em Versailles na França. O conceito do Jardim em Movimento (CLÉMENT, 1997)

criado por ele na década de 1970 foi aplicado em projetos paisagísticos de diversas proporções, dos quais

podemos destacar o Parc André-Citroën em Paris construído na margem do rio Sena em uma área de 14

hectares antes ocupada por uma antiga fábrica de automóveis da Citroën.


110

observação desse fluxo e a decisão de manter ou não determinados arranjos, guiando o seu

desenvolvimento.

O Jardim em Movimento questiona a concepção cultural de ordem e da visão utópica

que nega uma inevitável entropia. Ele propõe uma mudança de paradigma do pensamento

paisagístico, de nossa visão de mundo e das ideias ecológicas puristas que buscam, como

nos jardins clássicos, a recuperação de uma harmonia perdida e inalcançável. O mato não é

virgem e “a pureza é um mito”, como disse Hélio Oiticica.


111

O SÍTIO

Ano: 2020 - atual

Técnica: Instauração de vida

Materiais: Imaginação, sementes, plantas, recipientes, terra, água, luz do sol

Dimensões: inimagináveis

O Sitio a que me refiro aqui é um lugar que se faz antes como abstração. Ele “é” para

depois “estar”. Não surge no espaço, se instaura no desejo. É construção imaginária.

Imaginário que provoca sensação, se torna ideia para então se mostrar aos olhos. Ele não

surge da terra. Ele faz a terra surgir.

São vários os desejos que instalam esse Sítio e que nele se instalam. O desejo de

uma gravioleira de frutificar, o desejo das sementes de germinar e o meu desejo de habitar

um mundo que não há. Sua materialidade é relativa, não se pretende absoluto. É um

acontecer sem tempo, é quase um não acontecimento.

No tempo opaco da solidão do confinamento eu colecionava sementes. Guardava as

sementes de todas as frutas que eu comia. Pensava as sementes como vida latente, como

vida-semente. Pensava-as como árvores, como potências de árvores, pomar, horto, bosque,

ou floresta.

As primeiras germinações foram as dos caroços de abacate e de manga, na água pois

a terra era escassa. Os caroços brotaram e o verde que despontou me estimulou a revisitar o

jardim da minha infância. Um lugar esquecido há tempo onde a terra dorme embaixo do

cimento e dos caquinhos de ladrilhos vermelhos que há tempo o recobriram. Encontrei


112

algumas plantas esquecidas no pequeno canteiro que restava e outras tantas que sobreviviam

apáticas vendo, dos seus vasos, o tempo passar.

No maior de todos os vasos habitava uma antiga gravioleira que me acompanhou de

casa em casa ao longo de tantas mudanças e que há tempos se acomodou aqui sem nunca

frutificar. Se sentia abandonada, talvez. Comecei a cuidar dela e um dia ela floriu. Imaginando

suas flores se tornando graviolas, me propus a adentrar seus mistérios. Aprendi a ser inseto

para levar o pólen de uma flor a outra. Queria ver com meus próprios olhos os frutos se

formarem.

Do fruto ao fruto. O pé de graviola e os abacateiros e mangueiras que brotavam da

água no parapeito da janela me inspiravam. Me lancei a germinar as sementes que vinha

guardando e fui descobrindo que cada uma tem seu mistério. As de maçã e pera só germinam

na geladeira, as de pêssego e ameixa precisam ser retiradas da casca dura do caroço, as de

goiaba não têm pudores e brotam só de ver a terra. As de tangerina e laranja também não

dão muito trabalho, mas com as de tamarindo é preciso ter paciência. E assim foi que em

conversas sem palavras, me tornei amigo de todas elas.

Foram brotando e se esparramando em vasos improvisados sobre o piso do jardim.

As primeiras graviolas surgiram quase ao mesmo tempo em que as sementes começaram a

brotar. Os brotos dos caroços que estavam na água foram para a terra para e juntarem aos

outros. A terra parecia se derramar sobre o piso de ladrilhos e se projetar verde para o céu.

Eu já não estava apartado do mundo, já não estava só.


113

O Sítio pede chão maior, chama a terra, quer ser pedaço de mundo no mundo. Ele é

um sítio artístico, um sítio ex situ 36 . Uma obra de arte de ficção gerada por fricção. Uma

Instalação em eterno processo. O Site e o Nonsite em si mesmo. Não espera pelo futuro. Ele

é presente. Não guarda expectativas. Não tem projeto. Ele projeta o presente para outros

presentes.

36

ex situ: (do latim) fora do lugar, fora do seu próprio lugar, .fora do lugar de origem


114








115

Refazenda (Gilberto Gil, 1975)

Tom: D

D Em D Em D

Abacateiro, acataremos teu ato

Em D Em D

Nós também somos do mato, como o pato e o leão

Em

D

Aguardaremos, brincaremos no regato

Em D Em D

Até que nos tragam frutos, teu amor, teu coração

Em

D

Abacateiro, teu recolhimento é, justamente

Em D A D

O significado da palavra temporão

Em

D

Enquanto o tempo não trouxer teu abacate

Em D Em D

Amanhecerá tomate e anoitecerá mamão

Dm G Dm G

Abacateiro, sabes ao que estou me referindo

Dm G Dm G Dm G

Porque todo tamarindo tem seu gosto azedo

Dm G Dm G Dm

Cedo, antes que o janeiro doce manga venha ser também

D Em D

Abacateiro, será meu parceiro solitário

Em D Em D

Nesse itinerário da leveza pelo ar

Em

D

Abacateiro, saiba que na refazenda

Em Dm Em D

Tu me ensina a fazer renda que eu te ensino a namorar


116


117

ENTRE O CÉU E A TERRA

Ano: 2020

Técnica: Experimento Instalativo Virtual

Materiais: ImaginoGrafias

Ao longo do período de confinamento, imerso numa rotina doméstica e com pouca interação

social, encontrei-me desconectado e afastado do mundo. Minha casa, meu refúgio, de repente

se tornou um lugar onde a vida parecia tênue e distante. O tempo se expandiu e comecei a

perceber coisas que antes não percebia. Coisas banais que se tornavam agora mais

interessantes. Passei a prestar mais atenção aos meus gestos, passei a me perceber mais

nas coisas simples, a reparar mais nas ações triviais do meu dia a dia. Minha alimentação

ganhou outro foco e comecei a refletir sobre os alimentos que comia a cada refeição.

Alimentos frescos ficaram mais raros e passaram a chamar a minha atenção. As frutas me

atraíam especialmente com suas formas, cores e aromas e comecei a comê-las mais devagar

e a guardar suas sementes imaginando-as como possíveis árvores. Sementes de maçã,

manga, abacate, goiaba, mamão, melão e muitas outras. De tamanhos diferentes e cheias de

peculiaridades, cada uma diferente da outra. À medida que a coleção crescia, a certa altura,

senti vontade de germinar algumas delas, deixar que ganhassem vida e cuidar dos seus

rebentos. E foi assim que nasceu um abacateiro, primeira árvore de um pomar imaginário.

Colecionava sementes e

guardava o céu em pequenos frascos

Pensava possibilidades para explorar o espaço virtual da web como espaço de

trabalho, tentava perceber sua dimensionalidade e formas possíveis para criar movimentos e

habitar essa brecha. Assim surgiu a proposta de instaurar um lugar no espaço virtual de uma

plataforma de vídeo conferências povoando-o com outras imagens e sons que não fossem as

usuais imagens e vozes das pessoas. Tentar estabelecer relações entre essas imagens


118

casuais de forma a tornar esse espaço maquínico em um lugar orgânico, com dimensão

temporal, aberto para a casualidade, para encontros imprevistos e o erro.

Lançar-me em terrenos férteis, desafiar desertos, avançar pelas superfícies planas

criando relevos sinuosos. Fincar raízes para abrir brechas, espalhar rizomas para se

dispersar. Cultivar imaginários, criar jardins de imagens e deixar crescer imagens-mato que

se alastrem para brotar baldios ou florestas.

Depois do tempo, que parecia infinito àquela altura, as imagens eram a matéria de que

eu dispunha em maior abundancia naquele momento e possuíam as qualidades necessárias

para fluir e se instalar em ambientes virtuais. Imagens visuais, imagens sonoras e imagens

sensoriais, imagens que eram produzidas e outras que dormiam nos arquivos, imagens banais

e displicentes ou casuais, imagens ficcionais, mas também imagens reais, imagens

necessárias e urgentes. Imagens pela composição de imagens, imagens pela manipulação

do tempo, imagens pela experimentação da escala, imagens pela sugestão de movimento,

imagens por aproximação com outras imagens, com sons ou com silêncios. Imagens

semente, imagens que germinam imagens.

Entre o Céu e a Terra foi um experimento instalativo criado especificamente para

ambientes virtuais que foi realizado ao vivo através da plataforma Zoom Meetings durante o

evento aDentro, em setembro de 2020. Uma ação que se propunha a explorar as tecnologias

e ferramentas utilizadas para realizar a transmissão de eventos ao vivo pela internet – as

assim chamadas lives –, e com elas criar um ambiente virtual no qual fosse possível propor


119

uma instalação visual pela aproximação orquestrada em tempo real de pequenos imaginários

produzidos em vídeo aos quais passei a chamar de ImaginoGrafias.

Uma ImaginoGrafia é uma espécie de poema multisensorium, um experimento

artístico no qual imagens, palavras, sons e silêncios, mas também sementes, semeaduras e

germinações, deram origem a pequenos imaginários para provocar o olhar para além do

tempo e revelar convergências entre os saberes arcaicos e as tecnologias modernas

desapercebidas nas sutilezas da vida que pulsa ao redor.

O ponto de partida da concepção das ImaginoGrafias que iriam compor a instalação

foram as situações e objetos do cotidiano doméstico, esse espaço-casa que se afirmou lugar

de referência em um momento de confinamento. A passagem se fez pelas sementes, por

aquilo que guardam latente e por sua vontade de germinar. Não pensei em um fim. Esperava

não haver. Desejava que se prolongasse além do término como uma semente que qualquer

gota do orvalho de uma manhã, inesperadamente pode fazer germinar.


120






121

MIRANTES

Ano: 2021

Técnica: Instalação ao ar livre

Materiais: Ferro, Mourões de madeira e tábuas, cordas, rede de dormir, tecidos, varas de bambu

Dimensões: variáveis

Mirantes foi a proposição artística que inaugurou o coletivo A2 – no qual existo a dois

com a artista Ana Alves –, e que foi selecionada na modalidade “Artes na terra” para ser

desenvolvida e realizada em julho de 2021 ao longo da residência artística Sarandira Criativa,

um projeto capitaneado pela Associação Carabina Cultural sediada em Sandira, em parceria

com a galeria Quarto Amado de Belo-Horizonte.

Sarandira é um pequeno distrito rural e periférico da cidade de Juiz de Fora, na Zona

da Mata de Minas Gerais. Uma região que abrigou grandes fazendas de café no período

colonial, passando depois a ser um polo de produção leiteira e atualmente, com essa atividade

também em crise, é um lugar em busca do resgate do seu passado – ou presente –, histórico

e de uma nova vocação.

A proposta de Mirantes se baseava em uma operação aparentemente muito simples

que consistia na instalação de pequenas intervenções em diferentes pontos da paisagem de

modo a provocar os moradores do local a experimentar outras aproximações, percepções e

vivências em relação àqueles lugares que se por um lado são fetichizados e exóticos para

nós visitantes, por outro lado talvez já estejam bastante normalizados para a maioria daqueles

que os habitavam. Ao texto de apresentação dessa ideia acrescentamos algumas imagens

ilustrativas, mas deixamos claro que esses eram apenas pequenos devaneios de situações

possíveis a partir do nosso imaginário e que qualquer proposição real só poderia surgir a partir


122

do contato com as pessoas do lugar e com os próprios lugares, em um processo de nos

acharmos e nos perdermos nas conversas e nos recantos de Sarandira.

Na sua simplicidade de propósitos, Mirantes representava para mim uma expansão na

experimentação com os processos instalativos, não só pela questão da escala e da

emancipação em relação aos espaços tradicionais da arte, mas especialmente pela

possibilidade de escapar à logica da observação e por ser uma proposição de instalações ao

ar livre e livres também dos mecanismos de controle dos espaços expositivos, sem vigilância

e sem instruções ou orientações de uso. Os mirantes emergiam (n)os lugares. Estariam lá

para quem quisesse e para o que desse e viesse. Um mirante, um lugar na trilha ou a trilha

para um lugar, um lugar para estar e para ser na paisagem, um lugar para ser com a

paisagem, para ser paisagem.

Sarandira é um lugar paisagem, tudo ao redor é paisagem, está envolvida na

paisagem, é paisagem. Essa foi a primeira impressão na nossa chegada ao pequeno vilarejo,

mas que não duraria muito pois já nas primeiras andanças – sobe e desce, serpenteia e segue

em frente –, a paisagem foi se transformando à medida em que íamos descobrindo que ela

tinha donos. Sim, a paisagem era propriedade, estava repartida e loteada, tinha nomes e

sobrenomes. Era preciso permissão para adentrá-la.

Autorizações concedidas e outras negadas, decidimos os locais que a princípio

poderiam abrigar os mirantes. Com algumas ideias em mente, engajamos alguns moradores

e começamos uma série de explorações para percebermos melhor o que as pessoas nos

diziam desses lugares e o que esses lugares nos diziam. Ao final ficamos divididos entre dois


123

pontos opostos do vilarejo, duas montanhas, ambas autorizadas, mas uma com trânsito mais

livre para as pessoas do que a outra.

Decidimos então instalar os mirantes na área com maior acesso e na outra, dada a

interdição, instalar o que passamos a chamar de mirável. O mirável, em uma lógica inversa à

dos mirantes, não era para mirar a paisagem, mas para ser mirado. O mirável seria uma

grande biruta ao sabor do vento e avistável de qualquer ponto do vilarejo.

Da biruta às bandeiras – ou o inverso, não me lembro mais –, decidimos que diante

dessa posse que a terra tinha, os mirantes tinham que tomar posse dela também. Assim os

locais onde se instalassem seriam marcados por bandeiras de vermelha e branca – para

contrastar com o verde da paisagem –, que acabaram se tornando, no processo de

elaboração, um marco específico com formas inspiradas e fazendo alusão às características

de cada lugar – um fragmento estilizado da paisagem, na paisagem. E assim seria. Mirantes

na montanha de um lado e mirável na montanha do outro lado.

Instalamos o Mirável para constatar na manhã do dia seguinte que os proprietários da

terra haviam voltado atrás na sua autorização e queriam que retirássemos a biruta do terreno,

o que acabou não se constituindo em um problema maior pois descobrimos quase ao mesmo

tempo que o vento havia carregado a biruta durante a noite – ou talvez ela se sentindo

indesejada tenha se largado ao vento, se libertado da paisagem. Fato é que diante de tais

ocorridos, o Mirável se tornou, literalmente da noite para o dia, uma instalação efêmera que

durou menos do que 24 horas.

Seguimos adiante para instalar os mirantes e após fincar a bandeira daquele que seria

o Mirante mais natural de todos, uma grande pedra em frente ao riachinho que corria na parte

baixa da montanha, recebemos a notícia de aquele proprietário também havia voltado atrás

na sua autorização. Decidimos, no entanto, não retirar a bandeira, pois aquele lugar,


124

independente de qualquer autorização, já era frequentado pelas pessoas e se constituiria em

um “Mirante clandestino” caso o proprietário não decidisse retirar a bandeira.

Os outros mirantes foram instalados no alto do morro. Uma cadeira alta no meio do

pasto mirando o vilarejo e, do lado oposto, também no cume, uma rede suspensa entre dois

moirões que balançava diante da visão de um mar de montanhas. Um terceiro Mirante

consistia em um balanço instalado com cordas longas amarradas a uma árvore jovem e

pequena, esse último um “ainda não Mirante” aguardando a árvore crescer, aguardando um

futuro.

Durante a residência, para prover um acesso melhor e mais bem sinalizado aos

mirantes, as trilhas antigas que subiam o morro e que levavam até o “Mirante clandestino”,

foram renovadas e nesse processo decidimos instalar um quarto Mirante. Era um balanço

suspenso no meio de uma trilha de subida, na passagem mesmo, como uma espécie de

obstáculo, mas também como uma forma de dar outra finalidade ao caminho que não o de

segui-lo até seu final. Um lugar para mirar o caminho.

Muitas outras histórias poderiam ainda ser contadas desse que foi um dos processos

mais ricos e prazerosos de que já participei, mas não me alongarei aqui a contar causos, até

porque são muitos e é difícil, uma vez começando, não querer contar todos. Afinal, uma Coisa

leva à outra, uma Coisa me leva à outra, uma Coisa se reflete, deriva e flui para a outra.









79


125

PELE-PAISAGEM

Ano: 2021- em andamento

Técnica: monotipias botânicas sobre tecidos por transferência tintória

Materiais: plantas tintórias, tecido e peças de vestuário de fibras naturais

Dimensões: variáveis

Pele-Paisagem avança nas questões da minha poética, dá continuidade e expande as

reflexões que venho conduzindo há alguns anos no eixo da aparentemente dicotomia entre

Natureza e Cidade. Este é o experimento a que venho me dedicando ultimamente, e que vem

me apontando novos rumos na investigação do tecido urbano, essa trama maleável que se

estrutura através da urdidura da cidade e é constantemente esgarçada pelas linhas de fluxo

originadas pelos seus habitantes em trânsito e pela vitalidade que emerge da terra nas suas

entranhas.

Seguindo a trilha dos estudos que venho realizando sobre a origem e o

desenvolvimento de diferentes formas tradicionais de tecelagem e confecção de tramas

têxteis – e ainda atravessado pelo mato à beira do meu caminho –, a pesquisa se desdobra

agora em um mergulho em antigas técnicas de tingimento natural e de impressão botânica.

Uma alquimia. Uma série de novas experimentações a partir do potencial tintório que

determinadas plantas detém em suas folhas, flores, cascas, sementes, etc., e que pode ser

transferido para as fibras naturais de diversos tecidos.

Em caminhadas exploratórias por jardins ou redutos florestais, e mesmo no meu

deslocamento diário pela cidade, adquiri o hábito de recolher os diferentes materiais que são

descartados pela população vegetal – folhas, flores, cascas, sementes, etc. –, que mais tarde

poderei utilizar para o tingimento ou a elaboração de impressões botânicas sobre tecidos,

peças de vestuário ou papeis.


126

O processo de tingimento é mais simples. As tinturas são extraídas por diversas

técnicas de acordo com a natureza do material que contenha a carga tintória. Folhas e flores

normalmente tem uma extração mais fácil e imediata enquanto cascas e raízes podem

demandar trituração e mais tempo. A carga tintória a firmeza da cor e outras especificidades

de cada material também podem influenciar o processo escolhido e o tempo demandado. O

processo se completa pela preparação dos tecidos para receber e fixar a tintura, o cozimento,

a lavagem e a secagem.

As técnicas de impressão são mais complexas e são realizadas por monotipia pela

transferência direta do material tintório das plantas para o tecido ou para o papel. Até o

resultado final há um longo caminho a percorrer que começa ao ar livre, seguindo os rastros

da natureza para recolher o material de tingimento. Depois é preparar o tecido ou o papel,

selecionar e dispor as partes das plantas sobre eles, enrolar e amarrar cuidadosamente,

cozinhar a peça na água ou no vapor, deixar esfriar e esperar pacientemente por horas ou

dias para descansar antes de abrir.

Cada planta tem as suas especificidades, mas mesmo uma planta da mesma espécie,

especialmente nos processos de impressão, pode responder de forma diferente a diferentes

suportes e aos diferentes tratamentos que esses suportes podem receber durante sua

preparação. Pode responder de diferentes formas também dependendo da época do ano em

que foi colhida ou das condições em que se desenvolveu. São muitas variáveis e, embora

exista quase sempre algum nível de previsibilidade, o controle sobre o resultado é limitado e

aberto a grandes surpresas.

A natureza dos materiais e os aromas e cores que emanam durante o processo de

trabalho, remetem às práticas de alquimia, mas também às tradições da preparação do

alimento em uma cozinha mais rústica. A recompensa pelo tempo demandado pode vir em


127

formas definidas ou mais fluidas, em cores previsíveis ou distorcidas e em uma variedade de

texturas que vão resultar imagens que remetem a memórias indiciais e fragmentadas. São

estranhos jardins que se constituem pela presença fantasmática da Natureza que se revela

aos olhos por outras visibilidades.

Tenho percebido uma potência de expansão nessas impressões que contrastam e

desestabilizam a percepção sólida e opaca que o cimento e o asfalto da cidade impõem. Elas

possuem uma força de expressão que tem aguçado em mim a vontade de explorar

articulações possíveis na composição de proposições mais complexas. A possibilidade de

instaurar processos instalativos é algo que sempre me ronda e naturalmente me interessa,

mas neste momento me volto mais fortemente para as impressões sobre peças de vestuário

e os desdobramentos implícitos na vestimenta.

Habitar é um verbo que tem estado muito presente para mim nos últimos tempos e

vestir é habitar como sugere Emanuele Coccia quando escreve que “na roupa o indivíduo se

torna capaz de habitar momentaneamente o mundo, de constituir-se nele, fazendo com que

as coisas se tornem veículos de subjetividade” (COCCIA, 2010, p. 80).

A roupa é uma segunda pele, uma sobrepele que aproxima e agrega ao corpo as

coisas do mundo. A vestimenta não é mais apenas uma forma de proteção do corpo, ela

emana significados e é um fator de diferenciação capaz de expressar uma identidade. Coccia

percebe na roupa também uma forma de se confundir com traços do mundo para evidenciar

a individualidade e também que “É como se a roupa – que, uma vez assumida, de repente

parece transforma-se de corpo inanimado em corpo animado – mostrasse que a vida transita

em corpos alheios e inanimados, que pode repousar em objetos, costumes e usos” (Ibid.).

A vestimenta se evidencia também em uma dimensão de representatividade totêmica

e o ato de vestir-se, de portar uma vestimenta, pode ser percebido como uma espécie de


128

evocação, uma forma de atrair e se aproximar do sagrado. Assim, para mim, uma roupa

impregnada da memória de vida deixada pelas plantas no tecido ao longo do tempo do

processo de impressão, é uma evocação de ancestralidades que estabelece novos fluxos com

o mundo. É uma roupa-paisagem que traz o mundo à flor da pele. É uma pele-paisagem.

Pele-Paisagem se coloca em ressonância com os parangolés de Hélio Oiticica e se

alinha a sua ideia de que “Museu é o Mundo” (OITICICA, 1986, p. 79). É uma proposição que

emerge do campo da arte, mas reverbera fora dos seus limites assumindo um lugar de coisa

que flui para o mundo e com o mundo. Não exige uma postura especial ou uma ocasião

específica. Ela se assume mundana e utilitária. É coisa para ser usada na vida, é coisa para

ser vivida. Pele-Paisagem acontece na fricção com o corpo e quando no corpo, se perde na

multidão.


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85


129

Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore. 37

37

Manoel de Barros em O Livro Sobre Nada (BARROS, 1996, p. 65)


130


131

[0]

POSFÁCIO


132


133

“Pensa(r)mato, ocupar as brechas” é um texto marcado por muitas reviravoltas e não

poderia ser diferente já que é por reviravoltas que se dá o meu percurso. O Mato, ele próprio

uma reviravolta, me mostrando o tempo todo que diante das grandes adversidades, a gente

se vira, revira e volta.

E foi assim que iniciei o mestrado, em meio a uma pandemia que instalou um estado

de suspensão no mundo e me lançou em um vazio existencial e a um pandemônio que me

deixava em estado permanente de alerta. Durante a pandemia passei por períodos de

introspecção profunda e por momentos de grande solidão. Me revirei nos encontros das aulas

online – nas trocas generosas com professores e colegas, pessoas lindas e artistas talentosos

com tanto a me mostrar – e nas muitas e intermináveis conversas à distancia com os amigos

mais queridos. Voltei reinventado a me sentir e a me perceber no mundo, mas diante do

pandemônio de um momento político inimaginável e de tanta violência, foi preciso dar outras

voltas, encontrar pontos de fuga e novas perspectivas em meio ao caos instaurado.

Assim, o fazer desta escrita é um fazer interrompido que se dá aos solavancos. Não

sei se em outras condições esse texto teria se voltado tanto para mim mesmo – meus

processos e a minha produção artística –, mas esse foi o caminho possível e eu o abracei

mesmo sabendo que não seria fácil me revisitar, trazer de volta à vida – e dar vida nova – a

tudo aquilo que já estava há tempos adormecido e guardado.

Ao final valeu a pena fazer esse percurso, me reencontrar com os meus processos e

com a minha produção, repensar os meus pensamentos colocando-os em relação com o

agora, com o que estou vivendo e pensando agora. Não como um confronto, mas como um

encontro mesmo. Um encontro entre velhos conhecidos que há muito não se viam e que

tinham tanto para contar um ao outro desse tempo que não compartilharam.


134

Antes do fim, voltemos ao início, à delimitação desses três temas principais através

dos quais todas as discussões vão se articular. A princípio essa divisão surgiu apenas como

uma forma esquemática –, uma espécie de catalogação que me ajudava a organizar meu

pensamento –, e eu não pretendia mantê-la na escrita final. Com o passar do tempo, no

entanto, à medida que eu ia revisitando os processos e as proposições fui percebendo que

ela funcionava muito bem pois o fato dos temas estarem sempre presentes uns nos outros

criava fluxos entre eles, uma tecitura forte o bastante para se contrapor ao caráter

naturalmente cronológico do texto.

O início da escrita, as primeiras linhas mesmo, foram o palco de um embate com as

palavras que não se faziam presentes. Foi a partir desse embate que decidi incluir na abertura

de cada tema um léxico, um compêndio de verbetes de dicionários que serviria como uma

espécie de apresentador daquele tema em seu espectro mais amplo, a palavra despida de

particularidades. Sim, porque mesmo que não nos interessem, as palavras trazem em si todos

os seus significados e eu sou ressabiado com as palavras, gosto sempre de saber tudo o que

elas têm a dizer.

Uma vez que eu havia decidido apontar a escrita para mim mesmo, julguei necessário

me apresentar para que o meu leitor pudesse me contextualizar minimamente naquilo que

viria pela frente. Assim, logo depois de apresentar o Mato – que é aquele que dá título a este

texto –, resolvi escrever a minha própria MICROesquizoBIOGRAFIA, um breve relato de mim,

atravessado por mim mesmo, minhas lembranças e meus esquecimentos.

Depois, permeados por pequenos textos, poesias, frases soltas e por blocos de

imagens – que também são textos –, os trabalhos vão se apresentando e vão apresentando

de alguma forma os processos envolvidos na sua realização, relatos mais pessoais e algumas

das questões de onde eles fluem, que fluem para eles e que fluem deles.


135

É em fluxos que a escrita se desenrola. Em Arte Daninha, por exemplo, trata-se do

mato, mas também de questões da Instalação. Do mato e da cidade para a Instalação, “Mito,

Rito, Grito” e “Livro, Coisa, Mato” são duas proposições autônomas que operam em fluxo

entre elas ancoradas em uma reflexão sobre a natureza fragmentada das coisas,

especialmente da cidade e da escrita.

A seguir a Instalação é abordada mais diretamente na relação com o meu trabalho,

mas em referência à sua origem e à sua própria natureza como plataforma de trabalho, como

poética artística. Os textos curtos, as frases e as imagens criam um trançado com a escrita,

ora se aproximando dela, ora criando nós e tensionando-a. Propondo então instalar

paisagens, criando uma fricção entre esses dois temas, a paisagem se revela.

A paisagem se apresenta através de um coro polifônico de vozes aparentemente

dissonantes. Ela se mostra digital em Alone e Entre o Céu e a Terra. É ficção e utopia no

“Sitio” imaginário que “é” antes de “estar”. É som e poesia na “Refazenda” de Gilberto Gil e

se expande pelas intervenções em si mesma propostas por Mirantes. Finalmente a paisagem

se torna pele, se torna Pele-Paisagem para recobrir o corpo, seguir caminho e se perder na

multidão.

Pensa(r)mato, ocupar as brechas é uma escrita enviesada que se dobra sobre ela

mesma em tecituras para transbordar da minha prática artística e respingar no mundo. Uma

escrita que não se pretende resolvida nem definitiva e que reconhece o seu inevitável destino

ao desbotamento e à ruína na fricção com o tempo e as outras coisas do mundo.


136


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Capa e contracapa: Pele-paisagem (impressão botânica sobre tecido de linho)

Manu Neves, 2023


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