18.08.2023 Views

UnicaPhoto v21, n.21 2023

Revista do curso de Fotografia da Universidade Católica de Pernambuco

Revista do curso de Fotografia da Universidade Católica de Pernambuco

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Unicaphoto

a revista de fotografia da Unicap

#

21

Éric Rondepierre

RETRATOS

FANTASMAS

Para expulsar todos os fantasmas do cotidiano, Unicaphoto embarca em trens-fantasmais, passeia pelos recifes de todo lugar, entra em cidades-fantasmas,

paralelas, visíveis & invisíveis, alienadas & alienígenas & sobrepostas, encara crises humanas de identidade (e a crise humana definitiva, da dor com a qual

muitos e muitas tiveram que se deparar), acompanha irônico sermão para peixes & homens, enquanto lê curiosos mandamentos: “escrever, filmar, montar”.


Éric Rondepierre.

W1932A, da série

“Précis de

décomposition”,

de 1993,


editorial

fantasmas,

peixes e cidades

Esta revista cumpre a tradição: será lançada no dia 19

de agosto. Dia Mundial da Fotografia.

A data foi criada para celebrar a fotografia, mas também

valorizar o trabalho dos fotógrafos em todo o mundo.

De nossa parte, já há 21 edições, a Unicaphoto tem

feito de cada edição um manifesto de celebração e

incentivo a esses e essas profissionais. Especialmente

porque este veículo, acadêmico, reflete o pensamento da

Unicap, no tocante à formação e, em especial, da Escola

de Comunicação, do curso de Fotografia, onde se dê a

ênfase à “comunicação”, à “fotografia”, mas sobretudo à

palavra “escola”.

Por isso, você sempre encontrará, aqui, contribuição

valorosa de estudantes e de professores e orientadores

empenhados em formar profissionais não somente para

o campo de trabalho, mas educar e instruir cidadãos e

cidadãs para um mundo mais democrático e plural.

Neste número, estão muito presentes o cotidiano, de

muitas formas: desde as questões da perda, do luto, da

saudade, no impactante ensaio de Amanda Remígio, às

questões desse pluralismo, subjetivismo e identidade no

tocante ensaio de Ismael Holanda, sobre o que se vê e o

que não se vê.

Saudade também é um dos eixos do artigo sobre o

cineasta-anarquista Amin Stepple e seu trem-fantasma.

Contudo, essa saudade apresentada pelo pesquisador

e professor Paulo Cunha termina por entregar um dos

textos mais emocionantes desses últimos números de

Unicaphoto. Porque é, ao final, sobre a amizade. Sobre a

presença do outro, sempre, e na necessidade de divulgar

o trabalho do amigo. E, no caso de Amin Stepple, que

obra, hem? Era esse tipo de cara que a vida é ao mesmo

tempo a obra. Um tipo de consciência aguda e sensível do

seu tempo. Este número, portanto, celebra a memória, a

amizade, como o faz quando aponta para Alcir Lacerda,

e ao prêmio que leva seu nome. Neste ano, recebem-no

a fotógrafa Alcione Ferreira e o fotógrafo Fred Jordão,

tudo apresentado na matéria de Walli Fontenele.

O prêmio ainda homenageia o trabalho de Fritz Simons,

in memorian, com texto também muito sensível do seu

filho, Udo Simons. A cidade e seus mitos e suas lendas,

gente de carne e osso, como a travesti Consuelá, que é

tema de filme de Alexandre Figuêiroa, entrevistado do

Grabriela Agra.

Gente de osso e carne e esperança e afeto se apresentam

no trabalho de Mariana Barros, em fotos feitas na

África, as fotos mais humanas, de sensibilidade e

urgência inadiáveis. É sobre a condição humana.

A mesma humanidade que aparece na objetiva/subjetiva

de Renata Victor que, ao fotografar um aquário

marinho, termina nos fazendo pensar não em peixes,

somente, mas em comportamentos humanos.

Demasiadamente humanos.

Esta Unicaphoto também se volta para a cidade. Ou as

cidades. As visíveis, as invisíveis, as paralelas, como é

o Recife de Leonardo Araújo e as cidades do interior

de Douglas Fagner. Ou, ainda, da arquitetura feita de

luz e sombra, da nossa cidade universitária, o campus

da Unicap, por Júlia Brito. Ou em Paulo Pedrosa e

sua a cidade alienígena/alienada, pontiaguda, inóspita,

distópica, prateada. Mas, nem de prata nem de ouro, nos

alerta o ensaio compacto e conciso da artista visual K.

Ford sobre o mundo das aparências.

Na matéria de capa, o obra do fotógrafo contemporâneo

Éric Rondepierre. Todo retrato é um retrato mortuário,

uma fantasmagoria? Em um texto de Denis Laberge,

com muitas conexões, literárias, teatrais, sobre poética

da imagem, ou da desomposição, com questionamentos

de uma fotografia cada vez mais arte híbrida.

Ainda, e especialmente, o grande diretor de fotografia,

Pedro Sotero, conversa com Filipe Falcão sobre os

mandos e desmandos do cinema, com ênfase para o

roteiro e a luta corporal e mental num set de filmagem.

Além da clássica seção “Aconteceu”, do curso de

Fotografia, da Escola de Comunicação da Unicap.

Esperamos que você goste.


COORDENAÇÃO-GERAL

Renata Victor

EDITOR

Sidney Rocha

CONSELHO EDITORIAL

Filipe Falcão, Renata Victor e Sidney Rocha

ASSISTÊNCIA EDITORIAL

Quel Valentim

IMAGEM DA CAPA

W1910A (1993-1995), de Éric Rondepierre.

FOTO DA QUARTA CAPA

Frits Simons

QUEM É QUEM NESTA EDIÇÃO

Alcione Ferreira, Prêmio Alcir Lacerda, é fotógrafa

Alexandre Figuêiroa é jornalista e realizador

Amanda Remígio é jornalista

Douglas Fagner é fotógrafo

Filipe Falcão é doutor em Comunicação, pesquisador em audiovisual, professor da Unicap

Fred Jordão, Prêmio Alcir Lacerda, é fotógrafo

Fritz Simons, Prêmio Alcir Lacerda, foi fotógrafo

Gabriela Agra é aluna de jornalismo da Unicap

Ismael Holanda é fotógrafo

Júlia Brito é fotógrafa

K. Ford é artista visual e arte-educadora

Leonardo Araújo é fotógrafo e documentarista

Mariana Barros é jornalista e fotógrafa

Padre Antônio Vieira foi missionário e filósofo

Paulo Cunha é professor, escritor e jornalista

Paulo Pedrosa é estudante de fotografia da Unicap

Pedro Sotero é diretor de fotografia

Renata Victor é mestre em História e coordenadora do curso de Fotografia da Unicap

Udo Simons é jornalista

Walli Fontenele é jornalista, fotógrafo e videomaker

Escaneie o código QR abaixo, através de aplicativo no seu smartphone, e acesse todas as edições da revista

pelo nosso site.

Artigos e os seus comentários publicados não refletem necessariamente a opinião da revista.

Unicaphoto é uma publicação semestral do Curso Superior de Tecnologia em Fotografia da Universidade

Católica de Pernambuco.

Esta sua 21 a edição vem a público em 19 de agosto de 2023.

(ISSN 2357 8793)


a crise humana

definitiva

por Amanda Remígio

amin stepple: um

anarquista na periferia da

américa do sul

por Paulo Cunha

por uma memória lgbtqua+

do recife no cinema

entrevista com Alexandre

Figuêiroa

8

22

28

82

98

114

retratos

fantasmas

por Denis Laberge

prêmio

alcir lacerda

por Walli Fontenele e Udo Simons

cidade

paralela

por Leonardo Araújo

quando

ninguém vê

por Ismael Holanda

34

122

urbanalien:

subversão das cidades

por Paulo Pedrosa

nem tudo

que reluz

por K. Ford

46

130

um tributo

a paul strand

por Júlia Brito

sermão

aos peixes

por Renata Victor

52

140

a santíssima trindade:

escrever, filmar, montar

entrevista com Pedro Sotero

pernambuco

sobrexposto

por Douglas Fagner

74

146

a força encontra

a delicadeza

por Mariana Barros

157

aconteceu


Lady on a bus, 1957

© The Estate of Diane Arbus

6


Stripper with bare breasts sitting

in her dressing room, 1961

© The Estate of DianeArbus

Éric Rondepierre.

W189, da série “Précis de

décomposition” (1993-1995)

7


fotojornalismo

a crise humana

definitiva

Amanda Remígio

Este artigo é um excerto do projeto

de conclusão de Amanda Remígio,

orientanda do professor Filipe

Falcão, no curso de Jornalismo

da Universidade Católica de

Pernambuco. Em breve, o estudo

estará disponível no repositório de

Unicap.

Parte das fotos que compõem

o estudo, você pode ver aqui.

“Este projeto tem como propósito

analisar como a dor do luto pode

ser um processo muito particular,

permitindo assim, que a mesma

seja expressa nos mínimos detalhes

da sensibilidade humana. O estudo

sobre a essência deste fenômeno

será desenvolvido através de um

ensaio fotográfico jornalístico com

cinco pessoas que já passaram pelo

processo de luto”, explica a jornalista.

Danse Macabre,

uma alegoria sobre

a inevitabilidade da

morte

[Um detalhe de pintura

a óleo do século

18 representando

a Dança da Morte.

Imagens/Londres/ CC

BY 4.0]

8

FOTOJORNALISMO

A vida é a história da nossa morte.

Ter consciência de que tal fato é

imutável é compreender o limite da

própria existência, é se permitir ser

fascinado pelo terror de um futuro

certo a todos. Assim, sabendo da

sensibilidade inerente ao processo

da perda, se faz necessário

observar como o fenômeno pode

transcender as barreiras da dor e

se transformar de maneira a retirar

algo de bom. Músicas, filmes,

livros, além de outras grandes

obras dedicadas àqueles que já se

foram, demonstram a capacidade

humana de reinventar processos

dolorosos. É o potencial da morte

de aflorar reações alternativas.

Existe beleza nessa mudança, na

forma como lidamos com a perda

com o passar dos anos? Isso pode

ser capturado através do registro

fotográfico?

O foco do trabalho fotojornalístico

que aqui será desenvolvido diz

respeito ao estímulo e registro do

processo de ressignificação.

É importante compreender que o

ensaio realizado não diz respeito

ao impacto inicial da morte, não é

sobre o momento em que esse tipo

de notícia é recebida, e sim, sobre a

convivência com a perda. A forma

como lidamos com o fantasma do

luto sob nós. Este trabalho diz

respeito à capacidade dicotômica

do abstrato de ser nítido. Tal

fenômeno — vale ressaltar —

difere da romantização da perda,

discorre sobre a relação direta do

luto como uma expressão de amor,

da falta e consequentemente, do

desejo.

O núcleo central da pesquisa e do

ensaio jornalístico foi apresentar

esta análise através das imagens

sem depender necessariamente do

que é dito pelos personagens, mas

sim, do que é expresso. Exatamente

por isso, o produto escolhido para

apresentar o tema foi a fotografia.

A decisão de pôr em prática tal

ideia, mais especificamente através

do fotojornalismo, descende de

sua capacidade de eternizar as

reações do inconsciente humano

como registro da sua existência.

Entretanto, apesar de sua natureza

de expressão realística, é necessário

esclarecer que os ensaios aqui

apresentados passaram pelo

processo de produção. A parte

idealizada deste projeto diz

respeito a criação de um contexto

provocativo, o que não quer dizer

que estas mesmas reações sofreram

intervenções, mantendo assim, o

perfil fotojornalístico de captura do

fato.


As fotos

publicadas junto

a este artigo são

reproduções do

ensaio O retrato

da dor: um ensaio

sobre como o luto

impacta o ser, de

Amanda Remígio

9


O projeto foi pensado para

posteriormente virar uma matéria

especial em um portal de notícias

ou em uma revista fotográfica.

A ideia é dar espaço para que as

imagens sejam expostas e falem

por si, não sendo necessários

textos longos ou outras formas

de contextualização para

compreender o tema. Assim, além

do resumo das histórias de cada

personagem, a interpretação de

suas emoções fica por conta dos

espectadores.

O presente trabalho é sobre

não somente o olhar de quem

tem sua dor retratada como

também compreende o olhar do

telespectador, o direcionamento

que este recebe para compreender

o que é exposto.

A FAMILIARIDADE

A morte, por sua natureza elegíaca

de maneira geral é retratada na

grande maioria dos casos através

da dor. Exatamente pelo tema

constantemente ser limitado, surge

a necessidade de falar sobre suas

variáveis principalmente a partir

de um recorte fotojornalístico.

Temos assim, sua contextualização

histórica e os impactos individuais

que permitem que a perda tornese

muitas vezes um canal de

canalização do amor.

10

Letícia [e Thomas,]

ambos de 18 anos,

perderam seu filho,

Anthonny Miguel de

Souza Silva, de 10

meses, no dia 28 de

maio de 2022.


A Jewish giant at home

with his parents

in the Bronx, 1970

© The Estate of Diane Arbus

11


12


13


É importante esclarecer que por se

tratar de um tema naturalmente

extenso e delicado, entretanto,

inerente à história da humanidade,

não é possível trazer neste relato

um detalhamento específico de cada

período, sendo assim, seguirei a

abordagem a partir de uma análise

de pontos específicos e saltos

temporais.

Independentemente de religião

ou filosofia, sabemos que as

interpretações atuais sobre a

morte vem de uma herança das

gerações anteriores. Através dos

desenhos os nossos ancestrais do

período paleolítico (5.000.000

- 8.000 A.C.), expressavam

artisticamente as experiências

do cotidiano da época. Nesses

registros, temos o surgimento das

primeiras manifestações religiosas

e consequentemente o início de ritos

relacionados com a morte.

Na Idade Média (476 - 1.453),

devido à insalubridade na saúde,

alimentação e higiene, com pestes

e epidemias frequentes, era

comum lidar com a morte como

um fenômeno corriqueiro. Como

defende Ariès (2012, p. 49–50),

a vida na idade das trevas não

“valia o suficiente” para se permitir

prolongar um fato concreto.

A familiaridade com a morte

era uma forma de aceitação

da ordem da natureza. Com a

morte, o homem se sujeitava a

uma das grandes leis daespécie

e não cogitava evitá-la, nem

exaltá-la. Simplesmente

a aceitava, apenas com a

solenidade necessária para

marcar a importância das

grandes etapas que cada vida

devia sempre transpor. (ARIÈS,

2003, p. 46-47)

No que se concerne a interpretação

da morte como conhecemos, ela

surgiu ainda na antiguidade, mas

ganhou força a partir do século 18

com os filósofos iluministas. Tal

concepção ainda foi aperfeiçoada

pelos existencialistas que tratavam

a partida como algo inconcebível.

Até o momento, via-se a morte

como um ciclo vicioso, mórbido e

sem fim. Essa concepção perdurou

e ainda no século 19, mantinha-se

um perfil mais macabro do luto,

dando espaço para um dualismo na

sensibilidade coletiva desse fim.

Não é de se surpreender,

portanto, que o homem, diante

de tanto descontrole sobre a vida,

tente se defender psiquicamente,

de forma cada vez mais intensa

contra a morte. “Diminuindo

a cada dia sua capacidade

de defesa física, atuam de

várias maneiras suas defesas

psicológicas. (KÜBLER-ROSS,

1997, p. 52)

Tal qual elucidado pela psiquiatra

Elisabeth Kübler-Ross, o luto ainda

é visto como uma perda. Mesmo

com a naturalização do tema e

o avanço da ciência em tornar o

A perda, o luto, suas fases.

Esses elementos definem ou são

definidos no modo como cada um

vai lidar com sua dor.

Como disse a psiquiatra Elisabeth

Kübler-Ross, em um perfil para a

revista Life (1969), “quem melhor

para oferecer instruções sobre

‘a crise humana definitiva’ do que

aqueles que estão no meio dela?”

A psiquiatra, responsável por

grandes estudos nessa área do

luto, é parte das referências no

estudo de Amanda Remígio, que

Unicaphoto publica ineditamente

parte da introdução.

Kübler-Ross ainda aifirma:

“Quando eu quis saber como era

ser esquizofrênico”, disse o Dr.

Kübler-Ross à Time, no início do

mesmo ano, “passei muito tempo

com esquizofrênicos. Por que não

fazer a mesma coisa? Sentaremos

juntos com pacientes moribundos

e pediremos que sejam nossos

professores”.

[A psiquiatra Elisabeth Kubler-Ross

in 1983 Lyn Alweis—Post Archive/

Getty Images]

14


fato mais compreensivo, ele segue

mistificado. Tendo em vista que a

dor é inerente a natureza humana,

a cultura da submissão deste

trauma para o ser contemporâneo

agrava o medo do homem moderno

diante da morte.

Apesar do tabu presente pelo

medo de tal efemeridade, faz

parte da essência cultural do ser

humano a necessidade de registrar

suas vivências, até mesmo as

mais difíceis. Antes da invenção

da fotografia, por exemplo, era

comum retratar a vida através das

pinturas. É neste contexto que

surge o gênero artístico francês,

conhecido como Danse Macabre,

ou, dança da morte. O movimento

artístico popular do folclore

europeu foi elaborado no final da

Idade Média. A alegoria retratava

a universalidade da morte. É desta

maneira, com gênese na pintura,

que a fotografia começa a abordar a

temática da morte.

Outro fator que contribuiu para a

relação foi o fato de que no século

XIX, os tempos de exposição da

câmera eram longos, tornando

difícil capturar imagens nítidas

de pessoas vivas, já que qualquer

movimento poderia tirar a nitidez

do resultado. Dessa forma,

fotografar corpos imóveis de

pessoas já mortas era mais comum.

Superfícies estáticas garantiam,

portanto, melhores resultados na

revelação e impressão fotográfica.

Assim surge a fotografia pósmorte,

ou fotografia post-mortem.

Esta é a arte de fotografar os

mortos, hábito comum na era

Vitoriana, no final do século XIX.

A captura de momentos, seja

por uma despedida ou de forma

factual objetiva, diz respeito

essencialmente a registros

passados a partir do clique de

um botão. A morte é inerente a

nós de tal forma que a fotografia

está ligada à captura de

sentimentos e o fotojornalismo

à exposição da vulnerabilidade

do ser humano diante das

circunstâncias da vida. Assim,

o objetivo do presente trabalho

é então romper esse conceito da

natureza fotojornalística como

exclusivamente crua e instantânea,

permitindo a criação de um

ensaio pré-produzido e sensível

que dialogue em todas as suas

camadas com a temática da morte e

permaneça coerente à captura dos

fatos.

Dando seguimento, foi realizado

desta forma, o ensaio fotográfico

jornalístico O retrato da dor: um

ensaio sobre como o luto impacta

o ser, com 40 imagens, todas em

preto e branco. A temática da

morte conversa com as distintas

reações do luto capturadas nestes

registros. A escolha dos locais

nesta pré-produção também está

de acordo com a essência do tema,

desta maneira, foram selecionados

espaços que de alguma forma

representavam memórias as quais

os vivos tinham com os parentes já

falecidos. Elementos como objetos

pessoais e fotos também foram

utilizados para remeter a presença

como uma homenagem aos que já

se foram.

A INEGOCIÁVEL

Visando desmistificar a morbidez

do tema e chamar atenção para

a sensibilidade e profundidade

presente na expressão da perda, o

trabalho aqui desenvolvido será em

formato fotográfico de uma visão

jornalística. O propósito é capturar

através das imagens a sensibilidade

na forma com a qual os marcados

pela perda manifestam sua dor.

A perda, como já esclarecido aqui

anteriormente, afeta diretamente

o ser humano, mas, podemos

afirmar que existe beleza colateral

no luto? Neste trabalho é possível

compreender que a beleza a qual

me refiro diz respeito à capacidade

humana de redirecionar a dor, de

forma a ressignificá-la. Em outras

palavras, conviver com a perda.

O processo de luto é, portanto,

um redimensionamento das

fantasias e defesas do psiquismo,

em busca de um novo equilíbrio

de forças (VIANA, E, 2013).

Como esclarecido pelo psicólogo

Érico Bruno Viana, o luto é sobre

a maneira como cada um vai se

distrair da dor, sendo esta, o

lembrete da ligação entre o vivo

e o morto. Seguindo a lógica, se

não houvesse amor não haveria,

portanto, dano pela perda.

Entretanto, como aqui é defendido,

o luto é uma expressão de amor.

“Pedir a Deus para não sofrer

é como pedir para voar. Mas a

gente pede assim mesmo e depois

fica com raiva do pobre coitado.

O sofrimento é certo como a

morte e tão inegociável quanto”

(MADEIRA, C, 2021, p. 109.)

Bem como expresso nas palavras

da escritora Carla Madeira, o

luto é uma obrigação. Não existe

escolha, a morte é o instrumento

determinante da efemeridade do

homem.

Como consciência de nossa finitude,

tomamos um desesperado ato

de preservação da memória e do

afeto. Os registros daqueles que já

partiram ainda se fazem presentes

em nossa cultura. A imagem como

ferramenta de consolação, se opõe

à ideia da fotografia como um

instrumento de captura daquilo

cujo é representável, neste caso,

a função é capturar o que já não é

mais visível, a despedida, a dor e a

saudade.

Deixando em segundo plano

a potencialidade abstrata

da fotografia e voltando ao

registro da realidade palpável,

o fotojornalismo tem em sua

natureza a característica de

representar a vida humana de

15


Cintia [Maria Reis Guimarães], de 53 anos, passou pelo processo de luto duas

vezes em pouco mais de 1 ano. Sua mãe, Lidice Cortes Lustoza, de 74 anos,

faleceu em 13 de novembro de 2021, vítima da Covid-19. Seu pai, Adelmo Reis

Guimarães, 85 anos, morreu no dia 26 de dezembro de 2022, pelo rompimento de

um aneurisma e uma parada respiratória e pulmonar.

Sandy [Kettlin Ramos Feitosa], de 19 anos, teve um processo de luto intenso. No

dia 28 de maio de 2022 ela perdeu 12 parentes de uma só vez. Todos morreram

soterrados na lama depois do deslizamento de uma barreira em Jardim

Monteverde, na divisa entre os municípios de Recife e Jaboatão dos Guararapes.

Apesar de ter saído viva, ela faz parte da história do maior desastre natural em

números de mortos em Pernambuco

16


17




“Mirtes Renata, 36 anos, era

empregada doméstica. Ela

trabalhava para a família de

Sari Cortes Real, na época

primeira dama da cidade de

Tamandaré. Como de rotina,

a patroa solicitou que Mirtes

descesse com o cachorro

da família para passear,

entretanto, neste dia, Miguel,

seu filho de apenas 5 anos,

estava no trabalho da mãe. A

doméstica deixou a criança,

sob os cuidados de Sari,

que fazia as unhas em casa.

Ao pedir para ver a mãe, a

primeira dama permitiu que

a criança fosse sozinha ao

elevador. De lá, ele parou

no 9º andar, de onde caiu.

Ao voltar do passeio, Mirtes

encontrou seu filho no chão, o

acompanhou imediatamente

até o hospital, mas Miguel não

resistiu. Em entrevista, a

ex-empregada doméstica

revelou que não identificou

o crime de imediato, mas

que com o passar do tempo

foi ganhando consciência, e

através disso, tirou forças para

lutar por justiça.

O racismo estrutural

e o trauma sofrido por

Mirtes permitiram que ela

transformasse a dor em um

meio de alcançar a justiça.

Mirtes passou a cursar direito

numa universidade particular

do Recife, onde ganhou uma

bolsa de estudos. Atualmente,

ela também estagia na

Assembléia Legislativa de

Pernambuco.

Mirtes segue buscando a

justiça com suas próprias

mãos, lutando para que a

morte de seu filho não seja em

vão e que faça a diferença na

luta contra o racismo. O luto de

Mirtes Renata, foi traduzido em

força.”

“O ensaio foi realizado na

tarde do dia 7 de mai [....],

com locação na praia de Boa

Viagem, na zona sul do Recife.

A decisão de realizar as fotos

na orla foi em homenagem às

tantas memórias que Mirtes e

seu filho construíram juntos, já

que ambos tinham o costume

de ir lá com frequência. Para

a composição das cenas,

ela levou: fotos;uma bola de

futebol; um chapéu de pirata;

brinquedos e um carrinho que

Miguel usava quando ia à praia.

Na direção do posicionamento,

dei orientações gerais sobre o

uso dos brinquedos e das fotos

em cena, mas não interferi

diretamente e a deixei livre

para se portar e se expressar

de forma espontânea.”

20


tal forma que invariavelmente

também se depara com a morte.

É interessante compreender

como a fotografia, e claro o

fotojornalismo, permitem

então que um mesmo tema seja

retratado através de múltiplas

representações. Para entender

a relação do luto com o registro

de como as pessoas dentro dele

se sentem, podemos explicar

a exata funcionalidade deste

trabalho. No ensaio, a temática

da perda é a principal. A ideia é

fazer uma homenagem a quem já

se foi, mas isso é retratado não

necessariamente com imagens

do morto e sim através do

personagem vivo, que serve de

representação.

Através desse tipo de registro

podemos compreender melhor

não só o conceito dos cinco

estágios do luto, como também

gerar novas interpretações. A

negação, a raiva, a barganha, a

depressão, e a quinta e última

etapa, a de aceitação, podem

ser facilmente observadas nas

pessoas que passam pelo luto, e

consequentemente também podem

ser registradas pela fotografia.

“Não que hoje Cintia

Guimarães, viva em uma utopia

e isenta do sofrimento desses

lutos, mas simultaneamente

vive o prazer de estar consigo

pela primeira vez em seu céu

particular. O luto de Cintia

Guimarães é traduzido em

liberdade.”

“O ensaio realizado na praia

de Casa Caiada, em Olinda. A

praia era um dos poucos locais

onde Cintia tinha permissão de

ir, e, portanto, mesmo quando

acompanhada de sua família,

ela se sentia mais livre lá.”

21


homenagem

amin stepple

um anarquista

na periferia

da américa do sul

Paulo Cunha

22


23


24

Poderia ter vivido como um pequeno-burguês

O jornalista, crítico, roteirista e diretor Amin Stepple

Hiluey marcou profundamente o cinema experimental

no Nordeste do Brasil — e sua trajetória chega a ser

tão instigante quando a sua obra. Sua presença nos

cinemas, bares e redações do Recife e Olinda, a partir

dos anos 1970 será para sempre lembrada por quem

conviveu com ele. Eu, particularmente,

não o esquecerei jamais.

Conheço alguma coisa da trajetória dele: nascido pelas

mãos de uma parteira, em casa, no dia 12 de novembro

de 1950, em Campina Grande, Amin José Stepple

Hiluey era filho do comerciante de miudezas José e

da dona de casa Júlia. Foi uma criança tranquila e

comportada ao lado de dois irmãos e duas irmãs. Era

bom aluno no Colégio Estadual do Prata.

Poderia ter vivido como um pequeno-burguês

interiorano se não tivesse se apaixonado cedo pelo

cinema e se tornado um cinéfilo precoce: ainda

adolescente, aderiu ao Cineclube Glauber Rocha,

considerado o cineclube “de esquerda” (o rival Cineclube

Campina Grande era criticado como sendo “de direita”,


por defender a “arte pela arte”). Aqueles anos 1960 foram

para os jovens cmpinenses um momento de transição entre

o patriarcalismo conservador do interior nordestino e as

novidades que chegavam do mundo.

Além da programação do Cineclube Glauber Rocha e seus

debates acalorados, Amin produzia na Rádio Caturité, nas

tardes de domingo, o programa Sétima Arte. Foi nesse

período que Amin Stepple passou a ser conhecido como

um crítico radical dos costumes do interior do Nordeste e

dono de uma virulência verbal que o caracterizaria para

sempre. Quem conviveu com Amin sabe de como ele podia

ser exigente com os amigos, cobrando cada vacilo. Geneton

Moraes Neto dizia que Amin era o sujeito que não deixou

a nossa geração fazer besteiras. Em 1971, aos vinte anos,

Amin Stepple se muda para o Recife.

Não foi uma adaptação fácil

Durante muitos meses, evitando pedir dinheiro à família,

trabalhou como representante comercial de laboratórios

farmacêuticos. Em 1973, decide fazer o concurso

vestibular para o Curso de Jornalismo da Unicap. Quando

as aulas começaram, ele encontra na sala de aula o grupo

que finalmente o ajudaria a fazer que sempre desejou:

filmes. Surge ali, nos corredores da Unicap, um bando

que adotaria o Super-8 como forma de produzir filmes.

Praticamente todo o grupo aparece no primeiro curta

que Amin Stepple roteirizou e co-dirigiu em 1974 com

Geneton Moraes Neto, chamado “Isso é que é”. Um anos

depois, realiza seu primeiro curta individual, “Tempo

Nublado”. Esses dois filmes iniciais já se posicionam

claramente contra a ditadura militar implantada no Brasil

em 1964 e radicalizada em 1968. Paralelamente, Amin

Stepple também começa a criar filmes definidos por

elementos de sua própria paixão pelo cinema. Dois curtas

de 1976 exploram seu interesse em compreender a força

do cinema comercial: “Robin Hollywood” e “P.S. Um

Beijo”. No terceiro ano do curso, em 1976, Stepple decide

interromper a graduação para estudar no Curso Livre de

Cinema do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. No

MAM, nessa época sob a curadoria de Cosme Alves Netto.

Lá, acompanha centenas de sessões de filmes, e adota,

além do Cinema Novo, influências do cinema experimental

de Júlio Bressane e Rogério Sganzerla e das chanchadas

da Atlântida.

As dificuldades de sobrevivência no Rio o fazem retornar a

Pernambuco, se instalando em Olinda, ainda em 1977.

Amin Stepple cria a Negócio da China Pictures

empresa fictícia que funciona como produtora. Surgem

então “O lento, seguro, gradual e relativo striptease do Zé

Fusquinha” (1978), “Creuzinha não é mais tua” (1979).

25


“Isso é que é”.

Desde os primeiros filmes, Amin se

posicionou francamente contra a

ditadura militar implantada

no Brasil em 1964

e radicalizada em 1968.

[Foto de Regi Galvão]

Talvez eu deva deixar isso bem claro: aquele era um

cinema anarquista, barato, feito com ajuda de amigos,

nos fins de semana ou nas férias. Não tinha nada a

ver com esse cinema hype com orçamento de milhões

praticado hoje em dia. Não tinha nada a ver na forma de

produção, não tinha nada a ver esteticamente.

Antes mesmo de concluir o Curso de Jornalismo, em

1980, Amin Stepple começa a trabalhar como repórter

no Diario de Pernambuco. Também foi correspondente

no Recife da revista Visão e um crítico feroz nas páginas

do Correio de Pernambuco. Foi então que o jornalista

e também cinéfilo Roberto Menezes, designado para

gerenciar o Departamento de Jornalismo da TV

Globo no Recife, aos poucos foi convocando vários

superoitistas para fazer parte da sua equipe. Em 1982,

Amin Stepple torna-se assimW editor de telejornais.

“A Chegada do Trem Fantasma

à Estação da Serra da Borborema”

Chegamos então ao projeto infelizmente inacabado

de “A Chegada do Trem Fantasma à Estação da

Serra da Borborema” (1980), definido por Amin

como “comédia neo-muda romântica” e “dedicada às

donas de casa”. Amin Stepple convoca Ivan Cordeiro

para ser o fotógrafo, Regi Galvão como assistente de

produção e Ana Farache para ser a atriz. Reservou o

teatro a céu aberto do Centro Luís Freire, em Olinda,

e começou as filmagens. Para isso, pediu emprestado a

Ana Farache a penteadeira, um liquidificador, pratos e

panos. Conseguiu uma tela de projeção e cadeiras — ele

arrumou tudo como um ambiente esquizofrênico: ao

mesmo tempo sala de cinema e casa de família.

As filmagens mostram a atriz lavando e enxugando

pratos ou se penteando diante do espelho. Amin Stepple

queria articular essas duas personas do universo

feminino: as estrelas de cinema e as donas de casa.

Ele nos dizia que havia muito mais em comum entre

elas do que diferenças. Queria também fazer essa

aproximação através de uma ideia popular do cinema,

povoada de figuras como Zé do Caixão, Zezé Macedo e

Cantinflas — além das músicas de Waldick Soriano e

Jackson do Pandeiro. Para Amin Stepple, tudo isso se

amalgamou em Campina Grande, nas sessões do Cine

Capitólio, antes mesmo do cineclubismo e da cinefilia.

Por isso a ideia da Estação da Serra da Borborema,

onde paravam os trens que chegaram a Campina Grade.

O belo título reenvia aos Irmãos Lumière, com o trem

primordial que chegava à Gare de la Ciotat, espantando

os espectadores. Mas, como Amin nos escreveu em

várias cartas da época, “problemas técnicos, problemas

financeiros, outros problemas” dificultaram a finalização

do seu último super-8.

Bem mais que um amigo

Em 2022, com o apoio da Iniciativa de Digitalização de

Filmes Brasileiros, do projeto Cinelimite, coordenado

por William Plotnick e Glenis Cardoso, foi possível

digitalizar em 2K todos os super-8 realizados por Amin

Stepple. No meio dos rolos guardados por Anarruth

Correia e Diogo Stepple, viúva e filho de Amin, a

surpresa foi encontrar as filmagens nunca montadas de

“A Chegada do Trem Fantasma à Estação da Serra da

Borborema”. Essas cenas também foram digitalizadas.

Muito envolvido nesse processo de digitalização

e restauração, certa noite do verão de 2022, tive

um sonho incrível, extremamente realista, no qual

Amin Stepple me contava como seria o filme quando

terminado. Ele me tratava como sempre me chamou,

de Paulinho. Listou cena a cena, cada fala, cada

música. Acordei pensando na frase de Kafka: “Quando

Gregor Samsa, certa manhã, despertou de sonhos

intranquilos…” Ainda perturbado, liguei para Ivan

Cordeiro, em Los Angeles, e decidimos, naquela

emoção, “concluir” o filme. Mais tarde, resolvemos dizer

que o filme inacabado de Amin Stepple foi “transcriado”

por nós. Há uma diferença, é claro. Nosso companheiro

Amin Stepple Hiluey foi diagnosticado com câncer de

próstata em 2016. Apesar das tentativas de tratamento,

faleceu no dia 25 de dezembro de 2019, aos 69 anos de

idade. Eu e Ivan Cordeiro consideramos Amin bem mais

do que um amigo. Era um mestre para nós.

26


FILMOGRAFIA DE AMIN

STEPPLE HILUEY

Em Super-8

“Isso é que é” (1974)

“Tempo Nublado” (1975)

“Robin Hollywood” (1976)

“P.S. Um Beijo” (1976)

“O lento, seguro, gradual

e relativo striptease do Zé

Fusquinha” (1978)

“Creuzinha não é mais tua”

(1979)

“A Chegada do Trem

Fantasma à Estação da

Serra da Borborema”

(1980)

Em vídeo (Arquivo Rede

Globo Nordeste)

“Paulo Bruscky - Bruxo e

Inventor (1983)

“O Incrível Rucker

Vieira”(1984)

“Edy Clínio, o Conde do

Rock”(1984)

“Carnaval no Mangue

- Siri na Lata 87”(1987,

em parceria com Ana

Farache)

Em 16 milímetros

“Ciclo — História de

amor em 16 quadros

por segundo” (1999, com

Fernando Spencer)

“That’s a Lero-Lero” (1996,

com Lírio Ferreira)

Série de interprogramas

curtos em vídeo (Arquivo

Rede Globo Nordeste)

“Cinema Pernambucano

—70 anos” (1983)

Como ator

“Funeral para a Década

das Brancas Nuvens”

(1979, de Geneton Moraes

Neto)

“Arabescos Camelóides”

(1982, de Regis Galvão)

Como narrador

“Fabulário Tropical (1979,

de Geneton Moraes Neto)

Como roteirista

“Árido Movie” (2005, de

Lírio Ferreira)

“País do Desejo” (2011, de

Paulo Caldas)

“Rossellini amou a pensão

de Dona Bombom” (2011,

nunca realizado)

Poética & política.

personas: da mulher”do lar”

à pop star, nada escapava

à crítica de Stepple.

A atriz Ana Farache,

em frames de uma das

sequências encontradas

do “Trem...”, identificadas

como “penteadeira”.

amin

steplle:

o resgate

O resgate da obra de Amin Stepple

Hilluey só foi possível com o apoio de

Anarruth Correia e de Diogo Stepple

Correia, viúva e filho do cineasta,

detentores dos direitos autorais.

O primeiro passo se concentro nos

filmes realizados em Super-8, entre

1974 e 1980, a parte mais vulnerável

e inacessível da obra de Amin Stepple.

“Isso é que é, de 1974, já havia sido

digitalizado em 4K, no laboratório

da Pro-8, em Los Angeles, sob a

supervisão de Phil Vigeant e de Ivan

Cordeiro, durante o processo de

digitalização e restauração da obra

de Geneton Moraes Neto. Os outros

seis filmes — “Tempo Nublado” (1975),

“Robin Hollywood” (1976),

“P.S. Um Beijo” (1976), “O lento, seguro,

gradual e relativo striptease do Zé

Fusquinha” (1978), “Creuzinha não

é mais tua” (1979) e “A Chegada

do Trem Fantasma à Estação da

Serra da Borborema” (1980) —

foram incorporados à Iniciativa de

Digitalização de Filmes Brasileiros, de

Cinel;imite, sob a coordenação

de William Plotnick e Glenis Cardoso.

O escaneamento em 2K foi realizado

em duas etapas, no Recife e em São

Paulo.

Curadoria e pesquisa:

Paulo C. Cunha Filho

Licença autoral:

Anarruth Correia e Diogo Correia

Stepple Hiluey

Suporte:

Ivan Cordeiro e Ana Farache

Iniciativa de Digitalização de Filmes

Brasileiros

Coordenação Geral:

William Plotnick e Glenis Cardoso,

Cinelimite

Restauração sonora:

Marcelo Arruda - DJ Mostarda

27


entrevista

por uma

memória lgbtqia+

do recife no

cinema

Gabriela Agra entrevista Alexandre Figuêiroa

28


Consuelá em baile de

carnaval, no Recife,

em 1981.

[Foto: blog Fernando

Machado]

O cineasta e pesquisador de audiovisual

Alexandre Figuêiroa fala para Unicaphoto,

numa entrevista de Gabriela Agra, sobre

seu mais novo trabalho Consuella,

curta-metragem que revisita a trajetória

da travesti mais popular da capital

pernambucana.

Em uma época na qual as travestis só

podiam sair na rua depois das seis da noite,

Consuelo desfilava no Baile Municipal,

participava de concursos de fantasia e virava

centro das atenções nas colunas sociais de

todos os jornais do estado.

Com muita ousadia e irreverência, ela

desafiou as normas do seu tempo e, claro,

incomodou muita gente, tornando-se a

travesti mais famosa do Recife nas décadas

de 1980 e 1990.

É essa a trajetória revisitada em Consuella,

o mais recente curta de Alexandre

Figueirôa, cujo trabalho nos últimos anos

tem se dedicado a investigar personagens

emblemáticos da cena lgbtqia+ do Recife do

passado. A partir de depoimentos e imagens

de arquivo, o novo filme do diretor reconstrói

a história de uma figura que, acima de tudo,

se tornou inspiração para toda uma nova

geração de travestis e mulheres trans.

Mas foi com Eternamente Elza (2003),

um documentário despretensioso sobre

o cotidiano da transformista recifense

dedicada a interpretar as grandes divas

brasileiras do rádio, que o diretor percebeu

a urgência de construir uma memória

LGBQIA+ recifense. Desde então ele não

parou mais e lançou Kibe Lanches (2017),

Piu Piu (2019), Recife, Marrocos (2022) e

agora Consuella (2023). Todos revisitando

personagens e lugares emblemáticos da

cena queer do passado.

“Todos esses filmes resgatam a memória e

atualizam esses personagens ao trazê-los

para o presente”, ele explicou em conversa

à Unicaphoto, na qual detalhou ainda as

dificuldades para reviver essas histórias, a

importância de resgatar esses personagens

e apresentá-los às gerações de agora, além

de algumas das referências que permeiam

o seu trabalho enquanto realizador

audiovisual. Confira a entrevista completa:

Unicaphoto – Em Consuella, você dá continuidade

a um sólido trabalho de resgate de personagens e

vivências LGBTQIA+ no Recife do século passado.

Na sua opinião, de que forma o audiovisual contribui

para a (re)construção dessa memória coletiva?

Alexandre Figuêiroa – A ideia de fazer o resgate

dessas personagens LGBTQIA+ surgiu meio que por

acaso quando eu fiz o meu primeiro documentário

sobre uma dessas figuras, que foi o Eternamente

Elza, em 2003. Mas esse foi um filme feito para Elza

e sem grandes pretensões em torno do audiovisual.

Já essa ideia de documentar essas figuras surgiu em

2013, quando eu fiz a reedição do Eternamente Elza

com Chico Lacerda. Foi quando eu pensei em botar

o filme no YouTube, porque ele tinha ficado nesse

circuito bem alternativo mesmo, sem circular em lugar

nenhum. Falei com Chico, ele sugeriu fazer uma nova

edição e então o filme teve exibições no Festival Mix

Brasil, no For Rainbow e no Recifest que homenageou

Elza. Foi quando eu percebi a importância desse tipo

de documento de registro.

Só que Elza é diferente, porque ela estava viva, fez

show, cantou, deu entrevista e tudo mais, então é

um documento presente, digamos assim. Já quando

foi o Kibe Lanches, do Barão, embora na época ele

estivesse vivo, não havia registro. Foi aí que acentuou

ainda mais, para mim, a necessidade de ter esse

registro, porque o Kibe Lanches e as noitadas do

Barão mexeram com a vida LGBTQIA+ do Recife

no final dos anos 1980 e início dos anos 1990. Fez

muito sucesso e era um point da noite marginal e

alternativa, mas não tem foto, nem vídeo, nada. Tem

um filme de Jomard Muniz de Britto, do qual eu pego

um trecho, e só. Foi aí que eu percebi essa carência,

o que é normal nesse mundo marginal, sobretudo em

uma época que não tinha a facilidade que hoje existe

com os celulares e as câmeras fotográficas.

Então, todos esses filmes resgatam a memória e

atualizam esses personagens ao trazê-los para o

presente. Isso é curioso porque as pessoas, que de

alguma forma viveram a época, começam a recordar

um tempo que elas gostavam e se identificavam, mas

também serve para mostrar às novas gerações que

esses personagens foram a vanguarda antes de existir

todos esses movimentos de libertação e LGBTQIA+

que vemos hoje em dia.

Unicaphoto – Em Piu Piu, um dos seus últimos

curtas, você se vale de uma linguagem mais

poética de reprodução da realidade para contar a

história de um dos mais antigos transformistas do

Recife. Já neste novo filme, a narrativa documental

29


convencional é o que predomina. Você poderia

comentar o porquê dessas escolhas?

AF –Trabalhar com memória é sempre um desafio,

porque você tem que resgatar histórias que muitas

vezes estão esquecidas. Quando o personagem está

vivo, como é o caso do Kibe Lanches e Eternamente

Elza, é mais fácil porque mesmo que você não tenha

imagens, você tem o depoimento das pessoas. Em

Kibe Lanches, por exemplo, nós tentamos fazer uma

encenação de como eram as apresentações que lá

aconteciam, mas usamos pouquíssimas coisas, porque

não dava para reproduzir o clima e a irreverência da

época.

No caso de Piu Piu, isso foi mais grave, porque

apenas a partir de uma entrevista dada por ele para

Lêda Rivas no Diário de Pernambuco, foi possível

reconstruir a trajetória dele. Em termos de imagem,

havia grandes lacunas, porque não existia detalhes

dessa época, então o que conseguimos foram algumas

fotos de jornais com a impressão péssima. Mas era

muito pouco. Tudo o que tínhamos era a lembrança

dele contando nessa entrevista pra Leda, então nós

optamos por uma reconstituição da época, mas de

uma forma mais poética. Então, o personagem é quase

um fantasma, digamos assim, uma espécie de espectro

que caminha no Recife contemporâneo e vaga por

lugares que o personagem estaria circulando nos dias

de hoje como aquele trecho da Manoel Borba [perto

da rua das Ninfas] e o Centro do Recife. Portanto,

a opção por essa reconstituição poética era o que

dava pra fazer. Usamos imagens de arquivo que não

têm nada a ver com o personagem Piu Piu, mas que

remetem e criam uma realidade ficcionalizada ou uma

ficção realista do que foi esse personagem que viveu

nos anos 1950 e 1960 no Recife.

Já Consuella, há o diferencial das muitas imagens

fotográficas e memória das pessoas porque é mais

recente. Mesmo já falecida, ela é uma personagem que

eu conheci. Então, assim, é uma personagem muito

rica em termos de informação. Na verdade, diante da

quantidade de coisas, nós poderíamos até fazer um

longa-metragem, mas para isso teria que investigar

mais a fundo a vida pessoal e familiar dela. Então,

nós preferimos abordar o personagem público da

Consuella, que foi a grande estrela, a grande vedete, a

grande travesti do Recife dos anos 1980 e 1990, que

ficou na memória de muitas pessoas e que tem uma

representatividade muito forte. Mas, mesmo assim

houveram lacunas como é o caso, por exemplo, do

tempo que ela viveu em Paris, porque sabemos o que

as pessoas falam, mas não há imagens. Nesse caso,

eu tive que apelar para recursos da imaginação com

fragmentos que eu mesmo filmei lá na França para

reconstituir essa vida dela na França. Já aqui [no

Recife], são muitos os depoimentos e fotos. E essas

fotografias são um elemento muito importante nessa

reconstrução. Por isso, a opção por uma estrutura

mais clássica com uma cronologia da vida dela. Eu

tinha acesso a mais documentos e imagens. Tem

até um trecho de um filme feito por Jomard Muniz

de Britto, Au Revoir, Madame Bayeux, no qual

Consuella aparece e é a única imagem que existe dela

em movimento.

Unicaphoto – Como a formação em jornalismo

costuma guiar seu olhar sobre essas histórias? Como

isso influencia seu processo produtivo?

AF –O fato de ser jornalista influencia no sentido

de que eu gosto de contar histórias e gosto de ler

biografias, sobretudo de personagens à margem.

Personagens muito importantes como reis e rainhas

não fazem muito minha cabeça, mas eu gosto de

histórias de escritores, de artistas, de pintores,

de cineastas, e sempre presto muita atenção em

biografias bem escritas, nas quais há uma pesquisa

aprofundada. Eu acho fascinante isso de reconstruir a

vida de alguém através de documentos e depoimentos.

Então, de alguma forma, os filmes que eu realizo

acabam tendo essa pegada, porque eu vou nos jornais

e pesquiso.

Em Consuella, folheamos jornais e pegamos matérias

sobre o impacto que ela causava quando chegava aqui

[em Recife], sobre a reação dos jornais e da cidade ao

fato de uma travesti ganhar um concurso de fantasia

Grupo de Teatro Vivencial, marco da irreverência

e da contracultura na cena pernambucana dos anos

1970 e 1980. [Foto: Gilberto Marcelino/Divulgação]

Na página ao lado, Alexandre Figuêiroa,

em foto originalmente publicada em OGrito!,

de 9/12/2019.

30



no Baile Municipal do Recife. Então, são essas

situações que eu resgato através dos depoimentos,

mas sobretudo através da leitura dos jornais da época

porque ela era bem querida pelos colunistas sociais.

Então, foi através da pesquisa dos jornais que certas

escolhas do filme foram realizadas. Os cortes e toda a

edição foram feitos em função dessas informações que

estavam presentes no nos jornais.

Enfim, acredito que, o fato de eu fazer documentário

é uma relação direta com a minha atividade

jornalística e o Consuella talvez seja o mais

jornalístico dos meus trabalhos. É um documentário

jornalístico, diferente do Piu Piu, do Kibe Lanches e

até do Eternamente Elza, que são mais lúdicos e mais

poéticos.

Unicaphoto – Como cineasta e pesquisador do

audiovisual, quais são as referências que você traz

para sua produção?

AF –Por eu ser pesquisador de cinema e de

audiovisual, evidentemente, já assisti muitos filmes,

muitos documentários e muita ficção, assim como já li

muito sobre cinema, sobre diretores e tudo. Mas, para

ser sincero, eu nunca pensei muito nessa bagagem na

hora de fazer os filmes. Talvez venha naturalmente por

conta da intertextualidade, ou seja, eu vi tanto filme,

eu vi tanto documentário, que isso, de alguma forma,

já está dentro de mim. Então, quando eu vou produzir

e pensar um documentário, isso já surge naturalmente

desse conjunto de informações que eu adquiri no

decorrer do tempo.

Mas, como os filmes são focados nas pessoas e no que

elas contam da vida delas, talvez lembre um pouco

o Cinema Direto e o Cinema Verdade. Eu diria que

isso é mais presente no Eternamente Elza, mas menos

em Kibe Lanches e no Piu-Piu, por conta justamente

da necessidade de fazer uma coisa mais poética pelas

lacunas de informação, de documentos e de imagens.

Então pela falta de recursos para reencenação, nós

acabamos pegando muito fragmento de filmes e aí

tem uma coisa de bricolagem, que lembra um pouco

o Super-8 de Jomard Muniz de Britto, que era um

cinema mais aberto, mais livre.

Unicaphoto – Aliás, um elemento recorrente

nos seus trabalhos é a incorporação de registros

fotográficos e imagens de arquivo dos personagens e

Consuelá

no Baile dos

Artistas, Recife,

2012.

(Foto: Zilton

Antunes)

lugares retratados. Você acredita que o diálogo entre

o cinema e a fotografia é uma importante dimensão

contra o apagamento dessas histórias?

AF –Sem as fotos, esses filmes não existiriam. Em

Consuella, especialmente, que é um documentário

mais jornalístico, mais clássico, porque tiveram

muitas fotos e imagens. No caso dos outros, não; não

têm muita foto porque não havia muitas imagens de

arquivo. Então, por exemplo, no Kibe Lanche, as fotos

mostradas são aleatórias: das travestis do grupo de

teatro Vivencial, de gays nos anos 1980, de revistas

pornô, de gravuras que remetem ao mundo árabe.

Enfim, foi muito diversificado. Já Consuella não,

porque está documentado com fotos de quando ela

apareceu nas revistas durante os desfiles de carnavais,

tem fotos de arquivo pessoal, cedidas por algumas

das personagens que aparecem no filme. São fotos

que estavam nas gavetas e armários das pessoas e

agora não mais, porque vão ser vistas por um número

grande de pessoas e vão permanecer de outra maneira,

ressignificadas na medida em que estão no filme.

No caso de Piu Piu, não tínhamos foto, mas

imaginamos tudo a partir do que ele conta na

entrevista. Então, o material utilizado, embora não

seja de fotos de Elpídio Lima, que é o personagem

Piu Piu, remete ao universo dele e dos lugares por

onde ele circulava. Então, por exemplo, temos muitas

fotos dos cartazes do Teatro Marrocos, local onde ele

trabalhou. E essas fotos são documentos importantes,

sobretudo, porque o Teatro Marrocos é um teatro

que não tem muito sua história contada. Então, é

importante resgatar essas imagens, seja em jornais,

32


Teatro Marrocos.

Ilustração publicada

originalmente no GGN -

Jornal de todos os Brasis,

acompanhando excelente

artigo “Marrocos, o teatro de

striptease no Recife “

de Uraniano Mota.

seja em revistas ou nos arquivos pessoais, porque,

mesmo quando não estão presentes no filme, inspiram o

realizador e reencenam o clima da época.

Unicaphoto – Para você, o que representa colocar no

mundo hoje um filme sobre uma figura como Consuelo,

a travesti mais famosa do Recife, no país que mais mata

pessoas trans e travestis e no estado que, tragicamente,

permanece o mais perigoso para a comunidade?

AF –Apesar dos avanços em termos de políticas

públicas, de organizações e de uma parcela dos meios

de comunicação, nós sabemos que ainda há muita

homofobia e muita violência. Um paradoxo, porque no

momento que temos avanços, ao mesmo tempo temos essa

violência absurda. Então, qualquer obra que trate desse

tema com respeito, tem relevância por mais simples que

seja. Eu vejo muito nos festivais LGBTQIA+ ou mesmo

em outros festivais, que são muitos os temas abordados

e ao mesmo tempo são muitas as questões que ainda

que não foram devidamente mapeadas e equacionadas.

Então, qualquer obra audiovisual, por mais simples que

seja, é importante que seja mostrada e que circule para

além dessa bolha do circuito LGBTQIA+, ocupando

também outros espaços.

Um filme como Consuella mostra a relevância de

personagens como ela, que desafiaram as normas e as

regras, embora haja um certo glamour. Consuella fez

parte, digamos assim, daquele universo das travestis

como Jane Di Castro e Rogéria, que foram para

Europa e voltavam bem glamourizadas, quase cópias

de grandes atrizes de cinema. Então, há uma exibição

de um certo luxo. Mas, mesmo assim, elas foram muito

importantes, porque as travestis, as mulheres trans e os

gays eram perseguidos e elas sempre foram muito mais

discriminadas, sempre sofreram muito. E, de alguma

forma, Consuella não tinha essa pretensão política, mas

a sua existência já era política, no sentido de desafiar as

normas, de se impor na sociedade, de não levar desaforo

pra casa, porque não era fácil sair na rua de dia,

em uma época em que travesti só saía depois

das seis da noite. Tudo isso inspirou as outras

e contribuiu para as mudanças que a gente vê

posteriormente. Então retratar isso é importante paras

novas gerações de travestis e mulheres trans, que estão

lutando e brigando por um espaço. E acredito que é uma

forma de estimulá-las a fazer os filmes e não eu. Para

elas serem protagonistas das suas próprias obras, não

serem simplesmente personagens.

33


comportamento

34


quando

ninguém vê

Ismael Holanda

35


36


37


38


o duelo

do eu real

Os bastidores da vida, desejos, sonhos

frustrados na infância, fetiches e ações

censurados pelo machismo, escondidos

entre quatro paredes.“Quando Ninguém

Vê” traduz, em imagens, sentimentos

oprimidos, que explodem em um duelo

entre o eu real e as máscaras sociais. No

momento em que o homem busca a sua

reconstrução, as contradições de um

meio, que insiste em privá-lo dos próprios

sentimentos, ainda o mantém refém de uma

couraça de proteção, tonando ainda mais

forte a dor do “não poder”. Será que ainda

é preciso gritar dentro do próprio casulo,

onde o conforto da invisibilidade parece

ser a única saída? O ensaio é uma crítica

ao machismo ainda vigente na sociedade

brasileira. É um pedido de socorro, uma

tentativa de usar a arte como canal para a

libertação de um masculino ferido, que teve

seus sentimentos sequestrados por uma

sociedade moralista. Afinal, tudo explode “

quando ninguém vê”. [I.H]

39


40


41


42


43


44


45


ensaio

nem tudo

que reluz

K. Ford

Há no deserto do Atacama na periferia

do município de Alto do Hospício,

localizado no Norte do Chile uma

gigantesca pilha de roupas descartadas

que cresce vorazmente a cada ano.

O conteúdo da pilha vem do comércio de

roupas usadas na área situada no porto

de Iquique. As que não são vendidas vão

parar no deserto. A pilha, cujas roupas

têm como origem de envio a Europa,

a Ásia e as Américas, contém itens

cobiçados de marcas famosas.

A pilha colossal de roupas é comparada

a Grande Ilha de Lixo do Pacífico, um

depósito de resíduos plásticos que flutua

entre a Califórnia e o Havaí. Enquanto

o deserto do Atacama acolhe um mar de

roupas, o oceano pacífico recebe em suas

águas uma ilha de plástico. Essas duas

toscas versões das sete maravilhas do

mundo têm em comum um lamentável

predicado: são o resultado do consumo

excessivo e da procura obsessiva pelo

próximo item inestimável. Aqueles

produtos cobiçados por envergarem o

logotipo da moda ou seguirem o hype da

última tendência terão o mesmo

destino: o lixo.

É onde se debruça este ensaio

fotográfico: uma reflexão sobre

a voracidade em que se busca o mais

recente artigo reluzente nas prateleiras

ou nos aplicativos. NTQRO são as letras

iniciais do ditado popular Nem Tudo

Que Reluz é Ouro.

Nas fotos, itens encontrados no lixo

foram pintados de dourado recebendo

assim uma maquilagem reluzente que

ao mesmo tempo questiona e ironiza

sobre o hábito humano de descartar

à esmo e com total ausência de reflexão

ambiental ou comportamental objetos

que uma vez foram cobiçados,

usados com vaidade ou exibidos com

inflado orgulho.

Tijolos quebrados, latas amassadas

e panelas enferrujadas encontrados

em terrenos baldios, abandonados

ao relento, ou em sacos de lixos

precariamente descartados são os

protagonistas deste ensaio.

O ensaio é constituído de 6 fotos

coloridas.

46


47


48


49


50


51


ensaio & crítica

sermão

aos peixes

Renata Victor & Padre Antônio Vieira

52


53


Octopus vulgaris, 1904

Ernst Haeckel (1834-1919)

A fotógrafa e educadora Renata Victor visitou o Aquário Marinho

do Rio de Janeiro, ou AquaRio, e trouxe este excelente ensaio para

a Unicaphoto. O AquaRio é o maior aquário marinho da América do Sul

e abriga mais de 2 mil animais, de 350 espécies diferentes. Um bom lugar

para um discurso sobre a biodiversidade.

Se há um lugar para falar dos peixes (ou aos os peixes), esse é o lugar.

O Sermão de santo Antônio aos peixes, do Padre Antônio Vieira (1608-1997)

nos mostra como o olhar crítico desse filósofo e missionário alcança a

atualidade de forma ainda impactante. Pregado em São Luís, MA, há quase

370 anos, (13 de junho de 1654), o sermão é um documento importante

e constitui um marco sobre as injustiças e as desigualdades da sociedade

daquele período. Fala da ganância dos brancos em relação aos indígenas.

Aborda temas transversais do mundo atual, sobretudo em relação

à educação e o desinteresse das pessoas pelo simples ato de pensar.

É um texto-denúncia.

Numa formidável alegoria, o padre Antônio Vieira, através da lenda

na qual Santo Antônio prefere pregar aos peixes que aos homens,

o texto é uma obra-prima em imaginação e linguagem.

Assim, a rêmora, o torpedo e o quatro-olhos, o roncador, o pegador,

o voador, e até o polvo, entre outras espécies, (nesse “aquário” do padre)

servem ao escritor para estabelecer metáforas poderosas sobre os vícios

humanos como o orgulho, a soberba, a ambição e, como disse a fotógrafa

Renata Victor, “um momento para pensarmos nos discursos, na retórica, no

meio ambiente. E isto inclui o homem’.

Aqui, em excerto, o capítulo V do famoso Sermão.

V

Descendo ao particular, direi

agora, peixes, o que tenho contra

alguns de vós. E começando aqui

pela nossa costa: no mesmo dia

em que cheguei a ela, ouvindo

os roncadores e vendo o seu

tamanho, tanto me moveram o

riso como a ira. É possível que

sendo vós uns peixinhos tão

pequenos, haveis de ser as roncas

do mar?! Se, com uma linha de

coser e um alfinete torcido, vos

pode pescar um aleijado, porque

haveis de roncar tanto? Mas por

isso mesmo roncais. Dizei-me:

o espadarte porque não ronca?

Porque, ordinariamente, quem

tem muita espada, tem pouca

língua. Isto não é regra geral;

mas é regra geral que Deus

não quer roncadores e que tem

particular cuidado de abater e

humilhar aos que muito roncam.

S. Pedro, a quem muito bem

conheceram vossos antepassados,

tinha tão boa espada, que ele

só avançou contra um exército

inteiro de soldados romanos; e

se Cristo lha não mandara meter

na bainha, eu vos prometo que

havia de cortar mais orelhas que

a de Malco. Contudo, que lhe

sucedeu naquela mesma noite?

Tinha roncado e barbateado

Pedro que, se todos fraqueassem,

só ele havia de ser constante até

morrer se fosse necessário; e

foi tanto pelo contrário, que só

ele fraqueou mais que todos, e

bastou a voz de uma mulherzinha

para o fazer tremer e negar.

Antes disso já tinha fraqueado

na mesma hora em que prometeu

tanto de si. Disse-lhe Cristo no

horto que vigiasse, e vindo de aí

a pouco a ver se o fazia, achou-o

dormindo com tal descuido, que

não só o acordou do sono, senão

também do que tinha blasonado:

Sic non potuisti una hora vigilare

54


mecum? Vós, Pedro, sois o valente

que havíeis de morrer por mim,

«e não pudestes uma hora vigiar

comigo»? Pouco há, tanto roncar,

e agora tanto dormir? Mas assim

sucedeu. O muito roncar antes

da ocasião, é sinal de dormir

nela. Pois que vos parece, irmãos

roncadores? Se isto sucedeu

ao maior pescador, que pode

acontecer ao menor peixe? Medivos,

e logo vereis quão pouco

fundamento tendes de blasonar,

nem roncar.

Se as baleias roncaram, tinha

mais desculpa a sua arrogância

na sua grandeza. Mas ainda

nas mesmas baleias não seria

essa arrogância segura. O que

é a baleia entre os peixes, era o

gigante Golias entre os homens.

Se o rio Jordão e o mar de

Tiberíades têm comunicação com

o Oceano, como devem ter, pois

dele manam todos, bem deveis

de saber que este gigante era a

ronca dos Filisteus. Quarenta

dias contínuos esteve armado

no campo, desafiando a todos os

arraiais de Israel, sem haver quem

se lhe atrevesse; e no cabo, que

fim teve toda aquela arrogância?

Bastou um pastorzinho com um

cajado e uma funda, para dar

com ele em terra. Os arrogantes e

soberbos tomam-se com Deus; e

quem se toma com Deus, sempre

fica debaixo. Assim que, amigos

roncadores, o verdadeiro conselho

é calar e imitar a Santo António.

Duas cousas há nos homens, que

os costumam fazer roncadores,

porque ambas incham: o saber e

o poder. Caifás roncava de saber:

Vos nescitis quidquam. Pilatos

roncava de poder: Nescis quia

potestatem habeo? E ambos contra

Cristo. Mas o fiel servo de Cristo,

António, tendo tanto saber, como

já vos disse, e tanto poder, como

vós mesmos experimentastes,

ninguém houve jamais que o

ouvisse falar em saber ou poder,

quanto mais blasonar disso. E

porque tanto calou, por isso deu

tamanho brado.

Nesta viagem, de que fiz menção,

e em todas as que passei a Linha

Equinocial, vi debaixo dela o

que muitas vezes tinha visto e

notado nos homens, e me admirou

que se houvesse estendido esta

ronha e pegado também aos

peixes. Pegadores se chamam

estes de que agora falo, e com

grande propriedade, porque sendo

pequenos, não só se chegam a

outros maiores, mas de tal sorte

se lhes pegam aos costados.

que jamais os desferram. De

alguns animais de menos força

e indústria se conta que vão

seguindo de longe aos leões na

caça, para se sustentarem do que

a eles sobeja. O mesmo fazem

estes pegadores, tão seguros ao

perto como aqueles ao longe;

porque o peixe grande não pode

55


56


57


Padre Antônio Vieira,

(por Cândido Portinari)

autor de famosos sermões,

um dos defensores da natureza

e dos povos originários.

dobrar a cabeça, nem voltar a

boca sobre os que traz às costas,

e assim lhes sustenta o peso e

mais a fome.

Este modo de vida, mais astuto

que generoso, se acaso se passou

e pegou de um elemento a outro,

sem dúvida que o aprenderam

os peixes do alto, depois que os

nossos portugueses o navegaram;

porque não parte vice-rei ou

governador para as Conquistas,

que não vá rodeado de pegadores,

os quais se arrimam a eles, para

que cá lhes matem a fome, de

que lá não tinham remédio. Os

menos ignorantes, desenganados

da experiência, despegam-se e

buscam a vida por outra via; mas

os que se deixam estar pegados à

mercê e fortuna dos maiores, vemlhes

a suceder no fim o que aos

pegadores do mar.

Rodeia a nau o tubarão nas

calmarias da Linha com os seus

pegadores às costas, tão cerzidos

com a pele, que mais parecem

remendos ou manchas naturais,

que os hóspedes ou companheiros.

Lançam-lhe um anzol de cadeia

com a ração de quatro soldados,

arremessa-se furiosamente à

presa, engole tudo de um bocado,

e fica preso. Corre meia companha

a alá-lo acima, bate fortemente o

convés com os últimos arrancos;

enfim, morre o tubarão, e morrem

com ele os pegadores.

Parece-me que estou ouvindo

a S. Mateus, sem ser apóstolo

pescador, descrevendo isto mesmo

na terra. Morto Herodes, diz o

Evangelista, apareceu o Anjo a

José no Egito, e disse-lhe que

já se podia tornar para a pátria,

porque «eram mortos todos

aqueles que queriam tirar a vida

ao Menino»: Defuncti sunt enim

qui quaerebant animam Pueri.

Os que queriam tirar a vida a

Cristo menino, eram Herodes e

todos os seus, toda a sua família,

todos os seus aderentes, todos os

que seguiam e pendiam da sua

fortuna. Pois é possível que todos

estes morressem juntamente

com Herodes?! Sim: porque em

morrendo o tubarão, morrem

também com ele os pegadores:

Defuncto Herode, defuncti sunt

qui quaerebant animam Pueri.

Eis aqui, peixinhos ignorantes

e miseráveis, quão errado e

enganoso é este modo de vida que

escolhestes. Tomai o exemplo nos

homens, pois eles o não tomam em

vós, nem seguem, como deveram,

o de Santo António.

Deus também tem os seus

pegadores. Um destes era David,

que dizia: Mihi autem adhaerere

Deo bonum est. Peguem-se outros

aos grandes da terra, que «eu só

me quero pegar a Deus». Assim

o fez também Santo António;

e senão, olhai para o mesmo

Santo, e vede como está pegado

com Cristo e Cristo com ele.

Verdadeiramente se pode duvidar

qual dos dois é ali o pegador: e

parece que é Cristo, porque o

menor é sempre o que se pega

ao maior, e o Senhor fez-se

tão pequenino, para se pegar a

António. Mas António também se

fez menor, para se pegar mais a

Deus. Daqui se segue, que todos

os que se pegam a Deus, que é

imortal, seguros estão de morrer

como os outros pegadores. E tão

seguros, que ainda no caso em que

Deus se fez homem e morreu, só

morreu para que não morressem

todos os que se pegassem a ele: Si

ego me quaeritis, sinite hos abire.

«Se me buscais a mim, deixai ir

a estes.» E posto que deste modo

só se podem pegar os homens, e

vós, meus peixezinhos, não, ao

menos devereis imitar aos outros

animais do ar e da terra, que

quando se chegam aos grandes e

se amparam do seu poder, não se

pegam de tal sorte que morram

juntamente com eles. Lá diz a

Escritura daquela famosa árvore,

em que era significado o grande

Nabucodonosor, que todas as aves

do céu descansavam sobre os seus

ramos e todos os animais da terra

se recolhiam à sua sombra, e uns

e outros se sustentavam de seus

frutos: mas também diz que, tanto

que foi cortada esta árvore, as

aves voaram e os outros animais

fugiram. Chegai-vos embora aos

grandes; mas não de tal maneira

pegados, que vos mateis por eles,

nem morrais com eles.

Considerai, pegadores vivos,

como morreram os outros que se

pegaram àquele peixe grande, e

porquê. O tubarão morreu porque

58



60


61


62


“Tão alheia cousa é,

não só da razão,

mas da mesma natureza,

que, sendo todos criados

no mesmo elemento,

todos cidadãos da mesma pátria,

e todos finalmente irmãos,

vivais de vos comer!”.

Gravura alemã, 1617.

comeu, e eles morreram pelo que

não comeram. Pode haver maior

ignorância que morrer pela fome e

boca alheia? Que morra o tubarão

porque comeu, matou-o a sua

gula; mas que morra o pegador

pelo que não comeu, é a maior

desgraça que se pode imaginar!

Não cuidei que também nos peixes

havia pecado original. Nós os

homens, fomos tão desgraçados,

que outrem comeu e nós o

pagamos. Toda a nossa morte teve

princípio na gulodice de Adão e

Eva; e que hajamos de morrer

pelo que outrem comeu, grande

desgraça! Mas nós lavamo-nos

desta desgraça com uma pouca de

água, e vós não vos podeis lavar

da vossa ignorância com quanta

água tem o mar.

Com os voadores tenho também

uma palavra, e não é pequena a

queixa. Dizei-me, voadores, não

63


vos fez Deus para peixes? Pois

porque vos meteis a ser aves? O

mar fê-lo Deus para vós, e o ar

para elas. Contentai-vos com o

mar e com nadar, e não queirais

voar, pois sois peixes. Se acaso

vos não conheceis, olhai para as

vossas espinhas e para as vossas

escamas, e conhecereis que não

sois aves, senão peixes, e ainda

entre os peixes não dos melhores.

Dir-me-eis, voador, que vos deu

Deus maiores barbatanas que

aos outros de vosso tamanho.

Pois porque tivestes maiores

barbatanas, por isso haveis de

fazer das barbatanas asas?!

Mas ainda mal, porque tantas

vezes vos desengana o vosso

castigo. Quisestes ser melhor

que os outros peixes, e por isso

sois mais mofino que todos. Aos

outros peixes, do alto mata-os o

anzol ou a fisga, a vós sem fisga

nem anzol, mata-vos a vossa

presunção e o vosso capricho. Vai

o navio navegando e o marinheiro

dormindo, e o voador toca na vela

ou na corda, e cai palpitando.

Aos outros peixes mata-os a fome

e engana-os a isca; ao voador

mata-o a vaidade de voar, e a sua

isca é o vento. Quanto melhor

lhe fora mergulhar por baixo da

quilha e viver, que voar por cima

das entenas e cair morto!

Grande ambição é que, sendo o

mar tão imenso, lhe não basta

a um peixe tão pequeno todo o

mar, e queira outro elemento mais

largo. Mas vedes, peixes, o castigo

da ambição. O voador fê-lo Deus

peixe, e ele quis ser ave, e permite

o mesmo Deus que tenha os

perigos de ave e mais os de peixe.

Todas as velas para ele são redes,

como peixe, e todas as cordas,

laços, como ave. Vê, voador, como

correu pela posta o teu castigo.

Pouco há nadavas vivo no mar

com as barbatanas, e agora jazes

em um convés amortalhado nas

asas. Não contente com ser peixe,

quiseste ser ave, e já não és ave

nem peixe; nem voar poderás já,

nem nadar. A natureza deu-te a

água, tu não quiseste senão o ar, e

eu já te vejo posto ao fogo. Peixes,

contente-se cada um com o seu

elemento. Se o voador não quisera

passar do segundo ao terceiro,

não viera a parar no quarto. Bem

seguro estava ele do fogo, quando

nadava na água, mas porque quis

ser borboleta das ondas, vieramse-lhe

a queimar as asas.

À vista deste exemplo, peixes,

tomai todos na memória esta

sentença: Quem quer mais do

que lhe convém, perde o que quer

e o que tem. Quem pode nadar

e quer voar, tempo virá em que

não voe nem nade. Ouvi o caso

de um voador da terra: Simão

Mago, a quem a arte mágica,

na qual era famosíssimo, deu o

sobrenome, fingindo-se que ele

era o verdadeiro filho de Deus,

sinalou o dia em que aos olhos de

toda Roma havia de subir ao Céu,

e com efeito começou a voar mui

alto; porém a oração de S. Pedro,

que se achava presente, voou

mais depressa que ele, e caindo

lá de cima o mago, não quis Deus

64


que morresse logo, senão que aos

olhos também de todos quebrasse,

como quebrou, os pés.

Não quero que repareis no

castigo, se não no género dele Que

caia Simão, está muito bem caído;

que morra, também estaria muito

bem morto, que o seu atrevimento

e a sua arte diabólica o merecia.

Mas que de uma queda tão alta

não rebente, nem quebre a cabeça

ou os braços, se não os pés?! Sim,

diz S. Máximo, porque quem tem

pés para andar e quer asas para

voar, justo é que perca as asas

e mais os pés. Elegantemente o

Santo Padre: Ut qui paulo ante

volare tentaverat, subito ambulare

non posset; et qui pennas

assumpserat, plantas amitteret.

Se Simão tem pés e quer asas,

pode andar e quer voar; pois

quebrem-se-lhe as asas para que

não voe, e também os pés, para

que não ande. Eis aqui, voadores

do mar, o que sucede aos da terra,

para que cada um se contente com

o seu elemento. Se o mar tomara

exemplo nos rios, depois que Ícaro

se afogou no Danúbio não haveria

tantos Ícaros no Oceano.

Oh alma de Antônio, que só vós

tivestes asas e voastes sem perigo,

porque soubestes voar para baixo

e não para cima! Já S. João viu

no Apocalipse aquela mulher

cujo ornato gastou todas as luzes

ao Firmamento, e diz que «lhe

foram dadas duas grandes asas de

águia»: Datae sunt mulieri alae

duae aquilae magnae. E para quê?

Ut volaret in desertum:

«Para voar ao deserto.» Notável

cousa, que não debalde lhe

chamou o mesmo Profeta grande

maravilha. Esta mulher estava no

Céu: Signum magnum apparauit

in caelo, mulier amicta sole.

Pois se a mulher estava no Céu

e o deserto na terra, como lhe

dão asas para voar ao deserto?

Porque há asas para subir e asas

para descer. As asas para subir

são muito perigosas, as asas para

descer muito seguras; e tais foram

as de Santo António. Deram-se à

alma de Santo António duas asas

de águia, que foi aquela duplicada

sabedoria natural e sobrenatural

tão sublime, como sabemos. E

ele que fez? Não estendeu as

asas para subir, encolheu-as para

descer; e tão encolhidas que,

sendo a Arca do Testamento, era

reputado, como já vos disse, por

leigo e sem ciência. Voadores do

mar (não falo com os da terra),

imitai o vosso santo pregador.

Se vos parece que as vossas

barbatanas vos podem servir de

asas, não as estendais para subir,

porque vos não suceda encontrar

com alguma vela ou algum

costado; encolhei-as para descer,

ide-vos meter no fundo em alguma

cova; e se aí estiverdes mais

escondidos, estareis mais seguros.

Mas já que estamos nas covas

do mar, antes que saiamos

delas, temos lá o irmão polvo,

contra o qual têm suas queixas,

e grandes, não menos que S.

Basílio e Santo Ambrósio. O

polvo com aquele seu capelo na

cabeça, parece um monge; com

aqueles seus raios estendidos,

parece uma estrela; com aquele

não ter osso nem espinha, parece

a mesma brandura, a mesma

mansidão. E debaixo desta

aparência tão modesta, ou desta

hipocrisia tão santa, testemunham

constantemente os dois grandes

Doutores da Igreja latina e grega,

que o dito polvo é o maior traidor

do mar. Consiste esta traição

do polvo primeiramente em se

vestir ou pintar das mesmas cores

de todas aquelas cores a que

está pegado. As cores, que no

camaleão são gala, no polvo são

malícia; as figuras, que em Proteu

são fábula, no polvo são verdade

e artifício. Se está nos limos,

faz-se verde; se está na areia,

faz-se branco; se está no lodo,

faz-se pardo: e se está em alguma

pedra, como mais ordinariamente

costuma estar, faz-se da cor

da mesma pedra. E daqui que

sucede? Sucede que outro peixe,

inocente da traição, vai passando

desacautelado, e o salteador,

que está de emboscada dentro

do seu próprio engano, lançalhe

os braços de repente, e fá-lo

prisioneiro. Fizera mais Judas?

Não fizera mais, porque não fez

tanto. Judas abraçou a Cristo,

mas outros o prenderam; o polvo é

o que abraça e mais o que prende.

Judas com os braços fez o sinal,

e o polvo dos próprios braços faz

as cordas. Judas é verdade que foi

traidor, mas com lanternas diante;

traçou a traição às escuras, mas

executou-a muito às claras. O

polvo, escurecendo-se a si, tira

a vista aos outros, e a primeira

traição e roubo que faz, é a luz,

para que não distinga as cores.

Vê, peixe aleivoso e vil, qual é a

tua maldade, pois Judas em tua

comparação já é menos traidor!

Oh que excesso tão afrontoso e

tão indigno de um elemento tão

puro, tão claro e tão cristalino

como o da água, espelho natural

não só da terra, senão do mesmo

céu! Lá disse o Profeta por

encarecimento, que «nas nuvens

do ar até a água é escura»:

Tenebrosa aqua in nubibus

aeris. E disse nomeadamente

nas nuvens do ar, para atribuir a

escuridade ao outro elemento, e

não à água; a qual em seu próprio

elemento é sempre clara, diáfana e

transparente, em que nada se pode

ocultar, encobrir nem dissimular.

E que neste mesmo elemento se

crie, se conserve e se exercite

com tanto dano do bem público

um monstro tão dissimulado, tão

fingido, tão astuto, tão enganoso e

tão conhecidamente traidor!

65



67


“um amor

mais

profundo”

A beleza dos animais marinhos,

um mundo mágico e misterioso

se desdobra diante de nossos

olhos. O AquaRio, um santuário

aquático de maravilhas marinhas,

nos convida a embarcar em uma

jornada visual única, onde as

cores dançam e a vida submarina

se revela em toda a sua glória.

Neste ensaio fotográfico,

capturamos uma pequena

mostra desse universo aquático

cativante. Desde da graciosa

arraia que desliza graciosamente,

até cardumes vibrantes de peixes

que parecem pintar o aquário

com seus tons iridescentes,

cada imagem nos transporta

para um reino de beleza

indescritível.

As luzes e sombras brincam na

água, proporcionando um cenário

cinematográfico que desafia

nossa imaginação. A vida marinha

se apresenta como uma sinfonia

visual, onde cada criatura

desempenha seu papel em

harmonia. Tubarões majestosos

com suas nadadeiras poderosas,

plantas marinhas e corais que

abrigam uma profusão de cores -

todas essas maravilhas

estão à vista.

O AquaRio não é apenas um lugar

de contemplação, mas também

um lembrete que devemos cuidar

do planeta e daqueles que vivem

nele, preservar a natureza para

as próximas gerações. Que este

ensaio inspire um amor mais

profundo pelos oceanos e uma

determinação renovada para

conservar a beleza que eles

abrigam.[R.V]

68


69


70


Vejo, peixes, que pelo

conhecimento que tendes das

terras em que batem os vossas

mares, me estais respondendo e

convindo, que também nelas há

falsidades, enganos, fingimentos,

embustes, ciladas e muito maiores

e mais perniciosas traições.

E sobre o mesmo sujeito que

defendeis, também podereis

aplicar aos semelhantes outra

propriedade muito própria; mas

pois vós a calais, eu também

a calo. Com grande confusão,

porém, vos confesso tudo, e muito

mais do que dizeis, pois não o

posso negar. Mas ponde os olhos

em António, vosso pregador, e

vereis nele o mais puro exemplar

da candura, da sinceridade e da

verdade, onde nunca houve dolo,

fingimento ou engano. E sabei

também que para haver tudo

isto em cada um de nós, bastava

antigamente ser português, não

era necessário ser santo.

Tenho acabado, irmãos peixes,

os vossos louvores e repreensões,

e satisfeito, como vos prometi,

às duas obrigações do sal, posto

que do mar, e não da terra: Vos

estis sal terrae. Só resta fazervos

uma advertência muito

necessária, para os que viveis

nestes mares. Como eles são tão

esparcelados e cheios de baixios,

bem sabeis que se perdem e dão

à costa muitos navios, com que

se enriquece o mar e a terra

se empobrece. Importa, pois,

que advirtais, que nesta mesma

riqueza tendes um grande perigo,

porque todos os que se aproveitam

dos bens dos naufragantes, ficam

excomungados e malditos.

Esta pena de excomunhão,

que é gravíssima, não se pôs

a vós senão aos homens, mas

tem mostrado Deus por muitas

vezes, que quando os animais

cometem materialmente o que é

proibido por esta lei, também eles

71


incorrem, por seu modo, nas

penas dela, e no mesmo ponto

começam a definhar, até que

acabam miseravelmente.

Mandou Cristo a S. Pedro que

fosse pescar, e que na boca do

primeiro peixe que tomasse,

acharia uma moeda, com que

pagar certo tributo. Se Pedro

havia de tomar mais peixe que

este, suposto que ele era o

primeiro, do preço dele e dos

outros podia fazer o dinheiro com

que pagar aquele tributo, que era

de uma só moeda de prata, e de

pouco peso. Com que mistério

manda logo o Senhor que se tire

da boca deste peixe e que seja

ele o que morra primeiro que os

demais?

Ora estai atentos. Os peixes

não batem moeda no fundo do

mar, nem têm contratos com

os homens, donde lhes possa

vir dinheiro; logo, a moeda

que este peixe tinha engolido,

era de algum navio que fizera

naufrágio naqueles mares. E quis

mostrar o Senhor que as penas

que S. Pedro ou seus sucessores

fulminam contra os homens que

tomam os bens dos naufragantes,

também os peixes por seu

modo as incorrem morrendo

primeiro que os outros, e com o

mesmo dinheiro que engoliram

atravessado na garganta.

Oh que boa doutrina era esta

para a terra, se eu não pregara

para o mar! Para os homens não

há mais miserável morte, que

morrer com o alheio atravessado

na garganta; porque é pecado

de que o mesmo S. Pedro e o

mesmo Sumo Pontífice não pode

absolver. E posto que os homens

incorrem a morte eterna, de

que não são capazes os peixes,

eles contudo apressam a sua

temporal, como neste caso, se

materialmente, como tenho dito,

se não abstêm dos bens dos

naufragantes.

72


73


ensaio

pernambuco

sobrexposto

Douglas Fagner

74


75


76


77


78


simbiose,

leituras

A ideia do projeto surgiu a

partir de experimentações de

sobreposições de imagens ainda

quando cursava Fotografia na

Unicap, quando fui provocado a

criar um projeto para a cadeira

de mídias digitais. Utilizei o

Adobe Photoshop com o objetivo

de criar fotografias sobrepostas,

cujo trabalho resultou em uma

experiência única que despertou

em mim a vontade de investigrar

ainda mais o assunto.

Vendo que dessa experiência

poderia realizar uma pesquisa,

me debrucei sobre o tema para

saber mais sobre como era feita

essa técnica antes

da tecnologia digital. Utilizando

uma câmera digital dslr, apliquei

a técnica como se fosse em uma

câmera analógica, utilizando

a sobreposição de imagens, tendo

como base o fundamento técnico

da dupla exposição.

Com o projeto aprovado

pelo Funcultura, intitulado

Pernambuco sobreposto, consegui

captar fotografias com uma

câmera digital, utilizando tanto

a luz natural como a artificial.

O resultado do trabalho teve

ambientações e cenários diversos,

com visitas a campo em várias

regiões do estado, destacando

personagens e paisagens numa

simbiose subjetiva na leitura,

porém objetiva na essência. [D.F]

79


80


81


retratos

fantasmas

Denis Laberge

82


Imagem da série “Loupe/

Dormeurs”, (1999-2002),

de Éric Rondepierre

83


Éric Rondepierre.

R40

(1993-1995)

84


Rosto ou fisionomia?

O que esconde um rosto?,

se pergunta Fernanflor,

personagem nebuloso do

romance de Sidney Rocha.

Talvez seja essa interrogação

de onde partem fotógrafos

com Éric Rondepierre, e seus

retratos fantasmas. Mais que

um rosto, um rostro, um mento,

o que esconde ou representa

uma fisionomia? Disso tratam

os estudos fisiognomônicos:

desvelar o interior a partir do

aparente e, nisso, a razão do

comportamento das pessoas.

Em um retrato, o que se vê

de um rosto é tanto exterior

com interior. É o presente já

o passado. Mas existe essa

tal “vida interior”, essa alma

invisível, visível nos retratos?

Ou só o que existe são as

aparências?

A personagem Jacobina, no

conto “O espelho”, de Machado

de Assis (1839-1908), tem

uma crença distinta: o homem

não tem somente uma alma,

mas duas. Talvez por isso

Machado seja o escritor mais

“fotógrafo” (e fantasmal) que

tenhamos. Basta lembrar do

começo de Dom Casmurro,

daquelas imagens sombrias,

a arquitetura, a mobília, os

medalhões, na tentativa de

85


Éric Rondepierre.

W1930A

(1993-1995)

86


Éric Rondepierre.

W1921A

(1993-1995)

87


88

Eric Rondepierre.

Etreinte 18, série Les

trente étreintes, Bologne,

(1997-2001)


Éric Rondepierre.

R522A

(1993-1995)

89


reconstruir um tempo morto,

um tempo e atmosfera de onde

pululam fantasmas, uma falha,

e falta: “...um homem consolase

mais ou menos das pessoas

que perde; mas falto eu mesmo,

e esta lacuna é tudo”, diz Dom

Casmurro sobre a tentativa

fracassada de reconstituir o

passado na casa de Matacavalos.

Ou, ainda, em Esaú e Jacó,

as imagens “fantasmagóricas

e demoníacas” em relação à

personagem Flora. Ou no seu

conto “Galeria póstuma”, onde

essas relações com a fotografia

são bem aparentes. E pavorosas.

Não à toa, Machado certa vez

disse que a retina do homem é

uma placa fotográfica, capaz de

tornar visíveis os seus fantasmas.

Todo retrato é um retrato

mortuário. Uma exumação.

Um fantasma.

Se em certa manhã de inverno

uma Inteligência Artificial se

sentasse para escrever um

fotorromance, certamente

buscaria em Machado o motor

para sua “imaginação”.

As imagens o algoritmo as

buscaria na França, no estúdio

do fotógrafo Éric Rondepierre.

A partir dessa junção, seria bem

possível registrar essa “energia

onírica”, expressão de Benjamim,

quando falava em certo mundo

nebuloso, silencioso, que o

entendimento simples não pode

acompanhar.

Éric Rondepierre nasceu em

1950, em Orleans, e vive

em Paris. Suas ligações com

a literatura são antigas e

duradouras. Seu doutorado em

Estética e DEA em Literatura

têm como tema a obra da

romancista Marguerite Duras

(1914-1996).

Suas fotografias aparecem em

coleções públicas francesas

(European House of Photography,

National Fund for Contemporary

Art, Cinémathèque Française,

Centre Pompidou, etc.) e

internacionais (MoMA em

Nova York, LACMA em Los

Angeles, Houston Fine Art

Museum, etc.). Um fotógrafoator.

Um fotógrafo-encenador.

Uma das características de sua

concepção de arte é o fato de

que Rondepierre escreve textos

ficcionais sobre seu trabalho

fotográfico e uma de suas marcas

é unir literatura, teatro, pintura

e cinema, em montagens e

“desvios”, e nisso se incluem

apropriações e elementos

autobiográficos, entre outras

experimentações e aparições.

Uma de suas pesquisas, nos anos

1990, consistiu em identificar

“pontos cegos” a partir da

projeção de filmes. Grosso

modo, se tratou de extrair

alguns fotogramas da película:

imagens que aparecem na tela

Désolé.

A imagem compõe a série

DSL, de Rondespierre.

Nela, ele captura 18

frames de clássicos

cinematográficos. São

experimentações com

antigas e novas mídias que

buscam redimensionar

o olhar e as expectativas

para o fazer e o resultado

fotográfico.

Em referência à sigla DSL

(Digital Subscrive Line),

tecnologia que permitia

acessar conteúdo de

internet pelo mesmo

cabo da linha telefônica,

tecnologia do fim dos

anos 1980, Rondespierre

cria a sua própria sigla:

DSL (Désolé de Sabo-ter

vos Lignes), algo como

“Desculpe-me sabotar

suas linhas”. Ou suas

falas.

90


Éric Rondepierre.

R433A

(1993-1995)

91


Éric Rondepierre.

R40, (1993-1995)

47 x 70 cm

92


a 1/24 segundo, e que não são

“captadas” pelo olho humano,

imagens “invisíveis”, miasmas.

Depois, o artista imprime

esses fotogramas, assumindo

os processos químicos de

películas ou a corrosão entre

outros acidentes, e expõe esses

fantasmas em grandes formatos

para o público.

Para ele, fotografia é invenção,

ficção e encenação. Ou uma arte

da decomposição. Rondepierre

busca decompor a realidade,

ampliá-la e deslocá-la para

alcançar novos sentidos.

Seu ato de criação consiste em

transformar e redefinir novas

possibilidades de decifração. Esse

é o principal ponto de vista que

a série Unicaphoto apresenta,

em parte, aqui: Précis de

décomposition.

Sobre seu trabalho o pesquisador

Phillippe Dubois, comentou:

“Como um arqueólogo que, ao

final de sua longa escavação,

exuma enfim o que até então era

da ordem do soterrado.

O campo de escavação de Éric

Rondepierre é o cinema. Os

tesouros que ele traz de lá são

achados do invisível. Rondepierre

exuma o inconsciente fotográfico

do cinema (dubois, 2004, p.

233) 1

Essas imagens ou

fantasmagorias retratam um

duplo: a realidade e a abstração

(ambas frutos do acaso)

são incorporadas entre si e

interagem sem medir poderes ou

hierarquias.

A composição da imagem

surge a partir deste diálogo

entre diferentes linguagens ou

componentes artísticos, uma

vez que a captura fotográfica

é um componente do processo

de criação da imagem, e a

introdução desse acaso é

outro elemento; um segundo

procedimento, no qual emerge

a imagem, marcada pela

passagem do tempo. São

imagens a meio-termo, e talvez

tudo oposto à fotografia, se a

compreendemos fruto de decisões

(enquadramentos, composição,

abertura, distância focal,

velocidade, etc) e, ao mesmo

tempo, o resultado se aproxima

do cinema, onde se leva em conta

o tempo, o dispositivo e muita,

A influência da literatura em

Éric Rondepierre é bem antiga.

Conceitos que reserva à

fotografia coincidem com o que

pensa do seu processo literário,

como explica em no seu livro

Saída (editora Marest, 118 p.):

“A literatura segundo

Rondepierre seria uma

“interminável meditação de

imagens entre si das quais

somos o pretexto, os reféns”.

Ele acrescenta: “A consistência

imprecisa dessa parede

[esse espelho] em que,

vertiginosamente, meu olhar

afunda, eu a atravesso em

pensamento, ela mAe segue em

um sonho onde me descubro

ganancioso, luminoso, inventivo.

Qualquer distância abolida

entre passado e presente,

realidade e ficção é uma doçura

para mim”: uma forma de melhor

sonhar o livro a ser feito.

Nas lacunas da memória, está o

reservatório de ficções:

“Minha quarta história

é lacunar, estou nela em total

ignorância de mim mesmo.”

Acima, fotos de Marguerite

Duras e Machado de Assis.

[Foto de ER: divulgação]

1

DUBOIS, Phillippe. Efeito filme: figuras,

matérias e formas do cinema na fotografia.

IN: SANTOS, Alexandre e SANTOS, Maria

Ivone dos.A fotografia nos processos

artísticos contemporâneos. Porto Alegre: Ed.

UFRGS, 2004.

As imagens são do site do artista:

https://www.ericrondepierre.com/

93


94


Eric Rondepierre.

“Convulsion”,

série Moires 1996 - 1998

muita imaginação. Assim,

o movimento e a estaticidade se

entrelaçam no trabalho desse

de Éric Rondepierre e sua

poética do acaso, construído por

intuições e acasos.

“Tune in, turn on, drop out”

Nestas obras de Éric

Rondepierre, o que se pode

perceber é uma constante

busca pelo questionamento da

fotografia como representação.

Como o processo de criação

é constituído por adições, é

possível pensar a passagem do

tempo como um elemento a mais

da cena, que não apenas lhe

adiciona elementos visuais,

que favorece novas possibilidades

estéticas. Sinestésicas. É o que

ocorre com a imagem nesta

página, onde o corpo feminino,

de grande apelo sensual, perde

esses elementos e efeitos

plásticos pela corrosão do tempo

ou da química do suporte, abre

variadas formas de sensualidade,

talvez ali tânatos e eros, em total

decadência, enfim,

a vida&morte: uma só. Contudo,

essa metalinguagem nos remete

a um processo em curso, uma

morte lenta, processual, que

está ocorrendo antes mesmo

que tivéssemos contato com ela.

Tempo. Duração. Acaso.

São imagens com cicatrizes.

Nesta série, os personagens

vivem em melancólica

performance, agora atuando

em outra dimensão, que não a

original, do filme.

95


Éric Rondepierre

R487

(1993-1995)

Elas ganham textura e relevo.

Quando Éric as amplia, você

pode tocá-las, diretamente em

suas chagas. Elas se deformam

para que você as veja na

plenitude, como fantasmas

histéricos. São manchas em

baixa velocidade, em altíssima

rotação. Estão em ação, no novo

fotocinema de Rondepierre.

Esses efeitos do tempo terminam

por fundar novas relações com

esses sujeitos, agora em um

drama particular, vivo, como

retirados de uma ficção para sua

própria realidade, ainda assim

inventada, imaginada, ficcional.

Não são mais da narrativa

fílmica, são obras de novos

sentidos. Elas, congeladas, nos

congelam igualmente, estão

ali buscando que lhes demos

sentido. Aí começa o fluxo de

consciência, outra inspiração

na literatura, que precede e

acompanha toda a ação, o

suspense, a pose. Não sugere

especialmente uma continuidade:

aposta na imanência. Por isso,

é preciso ver essas imagens

como uma narrativa pessoal,

nossa, que sempre esteve ali

como está em tudo, um conjunto

de nossos próprios fantasmas,

onde um rosto é mais que um

rosto, é o prolongamento de

muitos. Estamos diante de um

cinema particular, talvez como

aquele prometido pelo psicólogo,

professor de Harvard, Timothy

Leary, que recomendou o lsd

aos seus alunos, e por isso

foi expulso da universidade,

nos anos 1960 e 1970. Leary

tinha uma ideia, em relação

ao LSD, cujo efeito era esse

“cinema particular”. E o lema:

sintonize, ligue, saia. No caso

da obra de Rondepierre, faça o

que você faça, o tempo e o filme

continuarão sendo projetados.

Você não poderá fazer nada para

derrotá-lo.

96


Éric Rondepierre.

413A (detalhe),

de (1993-1995)

97


homenagem

prêmio

alcir lacerda

98


A arte da fotografia continua a

cativar espectadores e artistas,

proporcionando uma janela única

para o mundo através de lentes

criativas. Neste 19 de outubro, o

Curso Superior de Fotografia da

Unicap celebra a 10º edição do

Prêmio Alcir Lacerda, um evento

que reconhece e homenageia os

talentos visionários por trás das

câmeras. Desta vez, os prêmios

serão entregues à Alcione

Ferreira, ao Fred Jordão e Fritz

Simon (in memoriam).

Na ocasião, teremos o lançamento

da 21ª revista Unicaphoto;

exposição dos melhores trabalhos

do último semestre, destacando

as obras e os fotógrafos que

estão redefinindo os limites

da criatividade e da narrativa

visual; e conclusão da 5ª turma

da especialização “As Narrativas

Contemporâneas da Fotografia

e do Audiovisual”. A exposição

fotográfica que acompanha o

lançamento da revista oferece

uma imersão física nas histórias

visuais captadas pelas lentes dos

fotógrafos. Cada imagem exposta

é uma narrativa congelada no

tempo, capturando momentos

emocionais e visuais de grande

impacto. Desde retratos,

fotografias conceituais, até

cenas urbanas deslumbrantes, a

exposição abraça a diversidade da

experiência humana através da

arte da fotografia.

A fotografia tem o poder de

transcender gerações, impactar

vidas e deixar um legado

duradouro. Hoje, prestamos uma

emocionante homenagem a um

indivíduo cuja paixão e dedicação

à arte inspiraram muitos e

continuam a ressoar mesmo

após sua partida. Alcir Lacerda,

um nome da fotografia que se

tornou sinônimo de criatividade

e inovação, deixou um impacto

indelével na fotografia e merece

ser lembrado e celebrado por

suas contribuições notáveis.

Sua dedicação à fotografia

beneficiou muitos profissionais,

deixando uma marca positiva

nas vidas daqueles que tiveram

o privilégio de aprender com

ele. Sua habilidade de estimular

a criatividade e inspirar outros

artistas continua a reverberar.

A arte da fotografia tem a

capacidade única de capturar

momentos efêmeros e contar

histórias profundas. Tivemos a

honra de conversar com Alcione

Ferreira, uma talentosa fotógrafa

cujas imagens transmitem

emoções intensas e narrativas

cativantes. Com um olhar sensível

e uma paixão pela expressão

visual, Alcione nos leva a uma

jornada através de sua carreira,

inspirações e perspectivas únicas

sobre a fotografia no jornalismo.

Quando ainda era estagiária,

Alcione teve o privilégio de

fotografar Alcir Lacerda para o

Dia Mundial da Fotografia. Para a

sua surpresa, o retrato feito pela

fotógrafa foi revelado e ocupava

a mesa de Alcir em um portaretrato.

Confira o relato: “Quando eu

estava estagiando, uma das

primeiras pautas que eu peguei

no jornal foi fotografar seu

Alcir no estúdio dele para uma

matéria sobre o Dia Nacional de

Fotografia. Então eu quando eu

cheguei lá, estava muito nervosa.

Ele já me conhecia porque eu já

tinha sido aluna dele, tinha feito

uma oficina e ele tinha dado aula

de laboratório pra gente. E aí

a primeira pergunta que ele fez

pra mim foi assim: “como é que

você quer a foto?” E eu fiquei

muito nervosa. Aí eu fui colocar

ele numa cadeira e tal, fotografei

e voltei pro jornal. Mas eu voltei

tipo “Ai, meu Deus, tenho certeza

que não está legal”. E aí saiu a

O Prêmio, do curso de

Fotografia da Unicap,

chega à décima edição e

destaca o trabalho de Alcione

Ferreira, Fred Jordão e Fritz

Simons (in memorian).

Em reportagem de Walli

Fontenele, você pode ler sobre

a trajetória de Alcione e Fred,

além de poder ler,

também, o perfil feito por Udo

Simons para seu pai, Fritz.

Em torno de tudo, a presença

e influência de Alcir no

trabalho e vida desses

profissionais.

99



matéria, saiu a foto dele e tal. E

aí, tempos depois, o meu editor,

na época, chegou para mim e disse

“Olhe se ligaram lá do estúdio

do Seu Alcir perguntando por

aquela foto. Aí eu disse “Ai meu

Deus”, fiquei imaginando que ele

não gostou e tal. Aí eu precisava

pegar um material lá que eu tinha

deixado negativo. E quando eu

cheguei lá, para a minha surpresa,

a foto que eu tinha feito dele

estava no porta-retrato lá no

estúdio dele, que ficava no Edifício

Ipê, no centro do Recife. E aí

quando eu entrei, tomei um susto

quando vi a foto. Aí eu carrego

isso aí. Ficou uma lembrança tão

boa do Seu Alcir…”.

Através das lentes de um

fotógrafo talentoso, o mundo

ganha novas dimensões e

perspectivas únicas. Numa

entrevista exclusiva, tivemos o

prazer de conversar com Fred

Jordão, um renomado fotógrafo

cujas imagens se relacionam

a diversos projetos, como o

Lambe-Lambe e a cena musical

do Manguebeat. Fred nos levou

em uma jornada através de sua

carreira, influências e visão

sobre a arte da fotografia, e

também sobre a sua experiência

no audiovisual. Sobre a sua

relação com Alcir e com os outros

homenageados no Prêmio Alcir

Lacerda, Fred nos revela:

“É uma beleza e uma alegria

também muito grande

compartilhar esse prêmio com

duas figuras muito especiais. Eu

queria primeiro falar rapidamente

de Fritz, que eu conheci muito

pouco, o conheci pessoalmente.

Ele já não tava mais se dedicando

à fotografia, mas era, digamos

assim, uma lenda na fotografia

publicitária. Ele tinha um rigor

técnico incrível. Era uma pessoa

que dominava o cromo como

poucas. Era uma referência na

101



publicidade pernambucana e foi

ele quem nos ensinou a fazer

um orçamento, que a gente era

muito jovem, que não sabia fazer

um orçamento. Fomos consultar

Fritz e ele explicou pra gente

como se montava o orçamento,

como se fazia, porque a gente era

muito jovem. Eu, Breno, acho

que Daniel, entrando no mundo

da publicidade, não sabíamos

construir direito os orçamentos

fotográficos. Então a gente foi

visitar ele lá em Olinda e foi uma

tarde maravilhosa, ele mostrou

algumas coisas pra gente e os

vitrais. Então eu me sinto muito

feliz nessa companhia de Fritz e

também da minha querida amiga

Alcione, com quem eu trabalhei

no Diário de Pernambuco, uma

das mais brilhantes fotógrafas

do Brasil. Trabalho muito, um

trabalho maravilhoso. Ela faz

uma migração do fotojornalismo

para um trabalho contemporâneo

de documentação, um trabalho

maravilhoso. Eu tenho um carinho

grande por ela e uma admiração

muito grande também pelo

trabalho dela. Acho que é uma

das pessoas que estão fazendo a

documentação importantíssima

do Recife, de Pernambuco. É uma

grande satisfação estar tão bem

acompanhado assim. É muito

bom. Agradeço essa companhia”.

O Prêmio Alcir Lacerda é um

testemunho da extraordinária

criatividade e impacto da arte

fotográfica. As imagens premiadas

nos convidam a contemplar,

refletir e apreciar a riqueza da

experiência humana através de

uma lente visual única. À medida

que celebramos os talentosos

fotógrafos que deram vida a essas

imagens, também celebramos o

potencial duradouro da fotografia

em transmitir mensagens, contar

histórias e conectar pessoas de

todo o mundo.

103


104

Fritz Simons

[Nottuln, Alemanha, 12 de novembro de 1936 — Olinda, Brasil, 11 de julho de 2020.]




fritz simons,

um artesão

da imagem

Udo Simons

Meu pai entendia

o mundo pelas

cores, luzes e

formas que os olhos

conseguem captar.

Como fotógrafo,

ele acompanhou as

mudanças urbanas,

sociais e do meio

ambiente do Recife,

mas o seu trabalho

transcendeu a

fotografia

Foram os coqueiros de Olinda, ao longo do seu

litoral, e o Alto da Sé, os primeiros locais de

Pernambuco avistados por meu pai. O ano era

1960 e ele estava prestes a desembarcar no porto

do Recife, vindo da Alemanha. Aquela era uma

viagem de começos. Pela primeira vez, ele deixara

o continente europeu. Pela primeira vez, ele

atravessara o Oceano Atlântico. Pela primeira vez,

ele se viu sob o céu e o sol do Nordeste brasileiro.

Tudo era uma grande novidade para aquele jovem

fotógrafo de vinte e poucos anos; e ele se sentiu

completamente capturado pelo que experenciava.

Aquela fora a sua aventura particular da juventude.

Os coqueirais que se espalhavam pela faixa

litorânea e o verde da mata dos morros de Olinda,

àquela época bem mais intocados e abundante, o

fascinaram, atraíram o seu olhar curioso

e o lançaram em um novo mundo sensorial, não

à toa. Em Hamburgo, onde morava antes de sua

mudança para o Brasil, o céu era cinza

na maior parte do tempo.

Banhada pelo rio Elba, a cidade tem uma vida

vibrante, por ser uma das mais ricas da Alemanha

e o centro da mídia tradicional do país, mas o seu

clima úmido é desafiador, sobretudo, nas baixas

temperaturas do inverno, momento em que os

ventos e a chuva são cortantes. Para ele, Recife

se apresentou como o oposto daquela sensação

de desconforto que sentia e não gostava. Meu pai

sempre destetou o frio e as temperaturas muito

baixas. A sua predileção pelo calor o fez até

imaginar, para si, um novo local de nascimento.

Ao ser questionado por desconhecidos de onde era,

107


108


onde havia nascido, ele não se fazia de rogado:

“Eu sou de Ouricuri”. Ao ouvir tal resposta,

as pessoas sorriam e o desacreditavam, mas ele

insistia e justificava a procedência.

“Lá é que é bom. Ultimamente, o clima do Recife

está muito frio.”

Quando ele chegou ao Brasil, foi o calor da capital

pernambucana, o seu céu de um azul profundo

e a brisa morna da cidade que o arrebataram.

Ele se sentiu acolhido e disposto a ficar, mal sabia

onde ou se aquele desejo seria realizado,

mas do deck do navio cargueiro em que realizara

a sua viagem, ele já estava entregue aos encantos

e a beleza de Pernambuco. Essa relação de

encantamento perdurou por mais de cinquenta anos

até a sua partida, em 11 de julho de 2020, em um

dia de céu cinza, com espaçadas,

mas fortes pancadas de chuva.

Foi como se a cidade também chorasse a sua morte.

UM ARTESÃO-VISUAL

Formado em fotografia na Alemanha, a sua

educação nesse ofício, como ele gostava de falar,

foi rígida. Na escola, que era técnica, ele e os seus

colegas de turma aprendiam sobre a composição

da imagem, a importância da luz, o valor das

sombras em uma foto. Estudavam o trabalho

de Henri Cartier-Bresson, entre outros mestres

e referências da fotografia, e visitavam técnicas de

desenho e pintura. Por assim dizer, aquela foi uma

formação clássica para um artista visual,

mesmo ele nunca tendo em vida dimensionado e

ressaltado essa sua formação por essa perspectiva.

Ele detestaria ser identificado dessa maneira,

porque se entedia como um artesão-visual,

a despeito dessa denominação nem ser usual,

mas era assim como ele se sentia feliz, um artesão.

A raiz do seu pensamento como artesão-visual,

porém, pode ser mais bem compreendida quando se

olha para a história do seu aprendizado.

Faz sentido quando ela é vista em perspectiva,

principalmente, pelo distanciamento do tempo,

afinal, vitralista foi o seu primeiro ofício.

Na Alemanha, o ensino formal está estruturado

para que os adolescentes se vinculem a algum

curso técnico no período de sua vida acadêmica

correspondente ao final do ensino médio para a

gente por aqui, no Brasil. Por isso, nos anos de

1950, década de parte da sua adolescência, ele

optou por aprender a fazer vitrais, tendo aulas

desse ofício com os profissionais locais

da região de Noguln, cidade onde nascera,

em 12 de novembro de 1936, e que está localizada

na Nordrhein-WesLalen (Renânia do Norte-

Vesjália), o estado alemão mais populoso.

Após três anos de formação, por volta

dos seus 18 anos, ele seguiu para a Basiléia, na

Suíça, onde por um ano, trabalhou em um ateliê

de vitral, antes de regressar aos seus estudos e,

consequente formação como fotógrafo,

na Alemanha.

Aquela era uma época em que a Europa se

reconstruía. O Continente tinha sido o principal

palco de um dos maiores conflitos bélicos

da humanidade, a Segunda Guerra Mundial,

e, naqueles anos, as pessoas buscavam entender, de

fato, a extensão dos acontecimentos de todos

os embates ocorridos e os caminhos mais

adequados à reconstrução das suas cidades e

sociedades.

Ao se considerar esse contexto, é interessante

observar o fato de ele ter escolhido, como ofício, o

trabalho de uma arte milenar (ser vitralista), para

ter, dessa maneira, a possibilidade

de restaurar obras que haviam sido completamente

ou parcialmente destruídas, em decorrência da

guerra, bem como na criação de vitrais para ocupar

novos espaços que estavam surgindo; e a fotografia,

como uma atividade de registro de um tempo,

de um comportamento, da transformação dos

espaços. Ofício esse, aliás, que se modernizava e

descobria a utilização de linguagens

diversas à sua prática.

Em Hamburgo, ele se dedicou e se aperfeiçoou na

técnica de portrait e nas fotografias de estúdio de

produtos e da publicidade e propaganda,

duas áreas, a propósito, em que ele foi um

dos pioneiros no Recife por sua atuação ao lado

de importantes profissionais que viviam na cidade

a exemplo de Edmond Dansot e Alcir Lacerda.

Entretanto, por mais de 50 anos, o seu trabalho

transcendeu à fotografia. Ao longo do tempo,

ele foi composto por uma ampla produção artística

visual na criação de vitrais, cerâmicas e pinturas.

O Recife possibilitou ao meu pai experimentar e

consolidar a sua visão artística, o seu olhar como

fotógrafo, o seu legado como artesão-visual.

VIDA MAIS PULSANTE

Daquele seu primeiro encontro com Pernambuco, do

alto-mar, ele não levou muito tempo

para se estabelecer como fotógrafo profissional

no estado. Rapidamente, as pessoas o acolheram

e reconheceram o seu talento. Foi uma questão

109


110



de meses. Como ele também era uma pessoa

determinada, agiu com assertividade para construir

condições objetivas para não precisar

mais retornar à Alemanha.

Movido por sua vontade de viver na cidade, que

ele consideraria deslumbrante, arrumou emprego,

estabeleceu relações sociais, aprendeu o idioma,

se casou e constituiu família. Todo aquele seu

movimento foi, de fato, algo absolutamente genuíno.

Sua vontade era sincera e partia dele, porque nada

do que aconteceu após ele desembarcar no bairro de

São José havia sido planejado, não tinha sido esse

o motivo da sua viagem. O que motivou a sua vinda

foi algo bem mais prosaico.

Ele veio ao Brasil para trazer um carro como

presente ao seu irmão, Heinz, que alguns

anos antes havia se mudado para a capital

pernambucana, por questões profissionais, e,

durante a sua estada na cidade, acabara se

casando. O carro que vinha na “bagagem de meu

pai” era um presente de casamento de grossvater e

grossmumer (meus avós) ao filho.

Coube ao meu pai trazer o dito presente. Ou seja,

ele veio com data marcada para voltar à sua

casa, mas Recife atropelou os seus planos que se

transformariam, radicalmente, um ano após a sua

chegada, momento em que ele conheceu a minha

mãe, Anamaria, professora com especial habilidade

na alfabetização de criança, o que foi uma vantagem

para ele aprender o português.

Depois do encontro entre eles, em uma festa nos

salões da sede do Náutico, a Alemanha tornaria-se

um local de visita, uma referência

do seu passado. Ele se estabeleceu como fotógrafo

profissional e atuou como fotojornalista

para o Jornal do Commercio, onde manteve

regularmente uma coluna fotográfica,

registrando a sociedade pernambucana.

Em paralelo ao trabalho no jornalismo diário, criou

o Foto Studio Fritz Simons. No final dos anos de

1960, o trabalho do estúdio cresceu

e ele teve de se afastar das suas atividades no

Jornal do Comercio para se dedicar exclusivamente

à demanda do Foto Studio, que ocupava três

andares do icônico edifício Brasília,

no centro da cidade.

Naquela época, ele aprofundou o seu registro

iconográfico das transformações sociais, urbanas e

do meio ambiente de Pernambuco.

Além de uma produção autoral e de séries

de portrait, ele tornou-se uma das figuras-chave da

publicidade no estado, na medida em que grande

parte do seu trabalho, ao longo das décadas

de 1970 e 1980, foi dedicada à produção da

publicidade e propaganda realizada na capital

pernambucana. Nesses anos, ele tanto era uma

referência como fotógrafo publicitário, como era o

fotógrafo escolhido por alguns dos mais relevantes

arquitetos

do estado (nomes como Acácio Gil Borsoi,

Jerônimo Albuquerque, Wandenkolk Tinoco,

Carlos Fernando Pontual), pelo fato de ele ter

desenvolvido técnicas fotográficas específicas para

o registro em imagens das maquetes dos projetos

arquitetônicos que viriam ser construídos na cidade

do Recife, prioritariamente.

A partir dos anos de 1990, ele retomou

o seu trabalho como vitralista, produzindo uma

série de obras, entre elas, o vitral do Fórum

Desembargador Rodolfo Aureliano (TJPE) e

ampliou a sua atuação artística na produção de

pinturas à óleo e em cerâmica.

No Recife e em Olinda, a sua vida tornou-se mais

pulsante e cheia de perspectivas.

Essas cidades constituíram para ele o cenário

perfeito para a realização do seu ofício.

Até os últimos dias de sua produção profissional,

ele manteve o rigor técnico necessário para

compor as suas imagens, fossem fotografias,

fossem os vitrais ou as pinturas e deixou seu olhar

ser conduzido pelas cores, luz e exuberância de

Pernambuco, um local em que ele avistou do altomar

e escolheucomo porto-seguro para viver e se

expressar.

112



cidade

cidade

paralela

Conforme dados do Censo

2022 do Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística (IBGE),

estima-se que Recife possua

aproximadamente 1,489 milhão

de habitantes, o que equivale a

pouco mais de 16% da população

total do estado de Pernambuco,

sendo a 9ª maior população entre

as capitais do país.

É estimado, ainda, que na capital

pernambucana, em torno de 206

mil pessoas vivem em situação de

risco. Pessoas quem moram em

condições precárias de segurança,

extremamente vulneráveis a

deslizamentos de barreiras,

desabamentos e enchentes. Boa

parte dessa população encontra-se

em vivendo palafitas, às margens

dos rios que cortam a cidade,

Leonardo Araújo

e lhe dão o apelido de Veneza

Brasileira.

O mangue “camufla”, para

a esmagadora maioria dos

recifenses, a existência dessas

habitações ribeirinhas, fazendo

com que esse seja um Recife quase

invisível, dentro do próprio Recife,

como diz o trecho da música de

Chico Science. Sendo, assim, uma

Cidade Paralela.

Os rios, canais e córregos que

cortam o município são as vias por

onde trafegam as pessoas quem

vivem nessa outra cidade. Locais

de onde, na maioria das vezes,

tiram seu sustento, e é, a partir

dessas águas, que essa realidade

paralela se mostra. E, para

conhecê-la, só navegando pelas

suas águas. [L.A]

114


115


116


117


118


119


120


121


cidade

urbanalien:

subversão

das cidades

Paulo Pedrosa

122


123




126


127


128


129


aprendizagem

um tributo

a paul strand

Júlia Brito

130


131


132


133


134


135




o fotógrafo Paul

Strand (1890–1976),

em 1917, por Alfred

Stieglitz.

De inspiração

modernista, os

cenários e cenas de

Strand sçao parques,

os arranha-céus

de Manhattan, as

florestas do Maine,

igrejas mexicanas

e pequenas aldeias

na Itália e na Nova

Inglaterra. São

espétaculos em

ritmos que conjugam

a monotonia com a

monumentalidade.

Suas influências foram

Stieglitz, o fotógrafo

parisiense Eugène

Atget, o roteirista

neorrealista italiano

Cesare Zavattini e o

documentarista social

americano Lewis Hine

(com quem estudou

no Upper West Side de

Manhattan). [ph]

Paul Strand ajudou a estabelecer

a fotografia como uma forma de

arte no século 20. Seu trabalho

passou por várias fases. Um

dos temas predominantes na

fotografia de Paul Strand a sua

abstração da arquitetura: suas

fotografias buscavam retratar

as construções como coisas

gigantes e monumentais, para

evidenciar a ideia de pequenez das

pessoas diante delas.

A técnica da utilização das

sombras também estava bastante

presente em suas obras – que

eram formadas pela luz do sol, que

batia na janela dos prédios e era

refletida em objetos, pessoas e nas

próprias paredes dos edifícios, o

que pode ser visto de forma clara

em suas fotografias.

Outra característica presente

em suas imagens é a utilização

do preto e branco, justamente

para acentuar ainda mais o

contraste entre o claro e o

escuro. A arte fotográfica de

Paul Strand também é marcada

pela valorização das formas

geométricas, das linhas, das

curvas e dos ângulos.

Este ensaio é parte do que foi

apresentado à disciplina de

História da Fotografia. Nas

imagens procurei utilizar os

elementos marcantes na obra

de Strand, buscar a essência

da fotografia desse importante

artista da imagem, seu estilo,

seu modo de fotografar e os

temas predominantes em sua

fotografava.

Minhas imagens, a maioria

capturadas no ambiente do

campus da Unicap, não têm a

pretensão de se igualarem às do

mestre Paul Strand, mas apenas

passear por uma das técnicas tão

bem empregadas por ele: o abuso

das formas, das linhas, da luz e

das sombras. [J.B]

138


139


especial

a santíssima trind

escrever, filmar, m

Filipe Falcão entrevista Pedro Sotero

140


ade:

ontar

141


entrevista

“o rotei

é onde v

Como professor de disciplina de Roteiro e de Direção

de Fotografia, é muito comum me deparar com dúvida

dos estudantes sobre como acontece o processo

de adaptar uma idéia que está no papel, o roteiro, e

transformar a mesma em um produto fílmico. Nas

aulas sempre temos a oportunidade de ler roteiros e

analisar os filmes destes até que os alunos possam

desenvolver seus próprios projetos. A minha resposta

sempre é que se trata de um processo orgânico, que o

roteiro pode trazer indicações de planos e movimentos,

mas é possível que algumas destas marcações não

aconteçam.

Trata-se de um tema muito delicado para quem trabalha

e estuda o audiovisual. Afinal, até onde vai a liberdade

do diretor de fotografia dentro do seu processo

criativo? E a autoria de quem escreveu o roteiro? Quem

tem a palavra final?

Terminei no ano passado uma pesquisa de pósdoutorado

desenvolvida pela UFPE que dialogou muito

com estes questionamentos. Na ocasião, me envolvi com

o trabalho de fotografia de Pedro Sotero nos longas O

Som ao Redor, Aquarius e Bacurau, dirigidos por Kleber

Mendonça Filho. A minha pesquisa incluía estudar as

técnicas de fotografia utilizadas por Sotero e pensar em

uma estética que levasse a assinatura dele.

Eu não conhecia Pedro Sotero, mas ele foi muito

simpático desde o meu primeiro contato. No entanto,

ele mora e trabalha no Rio de Janeiro e como era de

se esperar, tem uma agenda muito cheia. A solução

foi usar o Skype para agendar uma entrevista. Duas

na verdade. A primeira aconteceu em um sábado de

tarde e a segunda, cerca de três meses depois; teve

início ao meio-dia de um domingo. Eu estava um pouco

constrangido por acreditar que ele estava cedendo

seu horário de descanso para me atender. Sotero foi

extremamente solícito e atencioso com relação aos

questionamentos da minha pesquisa. Eu prometi em

agradecimento quando o encontrar aqui no Recife

pagar uma cerveja para ele.

Cocncluí a pesquisa de pós-doutorado e comecei o

processo de publicações em revistas acadêmicas e em

livros. As duas entrevistas ajudaram na construção

deste conteúdo acadêmico, mas elas sempre eram

incluídas no texto como citações diretas ou indiretas.

Como jornalista, pensei que o conteúdo renderia uma

boa entrevista para a Unicaphoto, afinal eu tinha mais

de uma hora de gravação. Entrei em contato com Pedro

para pedir autorização para publicar, uma vez que o

material foi recolhido originalmente para um trabalho

acadêmico. Ele permitiu.

Nestas páginas, temos alguns trechos selecionados

no qual Pedro fala justamente sobre o processo de

adaptação do roteiro para o processo de filmagem,

como as decisões estilísticas são pensadas, a

importância da relação com os demais membros da

equipe, além de outras questões do processo de direção

de fotografia e suas relações com a produção fílmica.

[F.F]

142


ro é uma bíblia.

ocê se apega”

Unicaphoto – Como acontece o processo de criação

fílmica? Você recebe o roteiro e quem decide como o

mesmo será filmado?

Pedro Sotero – Cada processo de realização de um

filme é único, mas quem dita muito o tom da relação

e da construção da cinematografia sempre é o diretor.

Ele tem muito pronto na cabeça quanto e como ele

quer a colaboração do diretor de fotógrafo e do como o

roteiro será trabalhado.

Eu sempre considero o roteiro como uma bíblia. É

onde você se apega. É um objeto muito importante de

toda a realização cinematográfica. Quando você tem

dúvidas, você volta para o roteiro. O roteiro é onde

o tom do filme é gerado. Eu tenho um respeito muito

grande e uma relação muito especial com o roteiro.

Eu uso ele como a minha base para tudo. Mas este

roteiro não é um elemento solitário. Eu vou conversar

muito com o diretor sobre como este roteiro vai ser

transformado em filme.

Unicaphoto – Como acontece o seu primeiro contato

com este roteiro?

PS – Na pré-produção é quando você se depara com o

roteiro e normalmente eu gosto de fazer uma primeira

leitura sem me forçar a pensar em nada técnico, mas

em mergulhar naquela história e ler como um livro.

Não é uma leitura do filme e nem da cinematografia.

É o meu primeiro encontro com a obra. E, depois

dessa primeira leitura, marco uma conversa com o

diretor e eu pergunto o que ele quer me dizer sobre a

imagem daquele filme, o que está na cabeça dele. Como

essa câmera vai se comportar, quais são os filmes

que serão usados como referência, como a luz será

trabalhada, etc.

Normalmente nas primeiras conversas eu gosto muito

de escutar o que o diretor tem a dizer principalmente

quando este diretor também assinou o roteiro. Ou seja,

ele passou muito tempo imaginando e criando aquele

texto. Kleber (Mendonça Filho), por exemplo, é um

diretor e autor que escreve os próprios roteiros. Ele se

relaciona com aquela história por muito mais tempo

do que qualquer outra pessoa envolvida no processo.

Ele tem muito domínio sobre o que ele quer.

Unicaphoto – E após as leituras e conversas com o

diretor, é possível seguir tudo o que está escrito no

roteiro?

PS – Então, às vezes mudanças acontecem do que

está no papel para o que será visto na tela já que

fazer um filme é sempre um processo orgânico aonde

as transformações vão naturalmente acontecer. Você

escreve para uma locação, mas acaba encontrando

outro cenário quando o produtor de locação entra no

projeto e não consegue exatamente aquele cenário

inicial que você queria. E apesar das indicações que

existem no roteiro, o processo de filmar vai sendo

moldado durante a produção. Aqui temos um processo

colaborativo com a direção de arte, com os atores, com

o espaço físico em si.

Unicaphoto – No livro Três Roteiros: O Som ao

Redor, Aquarius e Bacurau, Kleber Mendonça

Filho publicou os roteiros dos longas escritos por

ele. Existem algumas indicações de movimentos

de câmera, enquadramento ou de zoom que estão

presentes no roteiro, mas quando assistimos aos

filmes algumas destas indicações não são vistas nas

telas. Como estas decisões são tomadas?

PS – Pois é, nem todas as cenas que o Kleber descreve

com zoom tem zoom e o contrário também acontece.

Você lê no roteiro e o roteiro indica um movimento

ou um plano, mas você entende que depois de tudo o

que você já filmou, que agora seria a hora de deixar

a câmera estática. Mas então para que foi que serviu

aquela indicação prévia? Serviu para dar o tom

do filme. Isto significa que as notas não são uma

operação matemática exata sobre o que vai para a

tela, mas essas notas no roteiro dão o tom de como

a câmera se comporta no filme de maneira geral.

Vamos lembrar que fazer um filme é percorrer três

143


Foto:Arquivo pessoal/Divulgação

etapas. Você escreve um filme, você filma um filme e

você monta um filme. Até porque o filme também sofre

mudanças na montagem.

Unicaphoto – Trata-se de um processo coletivo

mesmo que cada pessoa assuma uma função

específica.

PS – Exato. A imagem do cinema é feita pelo diretor,

pelo diretor de fotografia, pelo diretor de arte, pelo

caracterizador, pelo figurinista e pelos atores. Sem

este processo coletivo não existe a imagem que vemos

na tela. Se a direção de arte é horrível, não existe uma

fotografia boa. Sem uma caracterização interessante

dos personagens, não existe milagre que você faça com

enquadramento e luz para deixar o filme bom.

Unicaphoto – E no caso de Kleber que além de

diretor também é roteirista? Como acontece?

PS – Apesar de Kleber ter muita personalidade e

saber muito o que quer, o processo pode fugir deste

controle. Ele tem que confiar no diretor de arte, tem

que confiar no fotógrafo e todo mundo vai botando um

pouco de si naquele projeto. E isso é uma coisa muito

bonita. Da figurinista ao maquiador, todos colaboram.

São muitas conversas. E são muitas mãos e muitas

coisas para dar certo e por isso que o filme acaba

tendo uma personalidade muito própria.

Unicaphoto – Então se nem o diretor e roteirista

possuem um controle total da obra, como fica

a função do diretor de fotografia dentro desta

equação? O resultado final sai como você quer?

PS – O diretor de fotografia sofre esse último processo

de transformação que é a montagem. É quando você

entrega tudo o que você produziu nas mãos do diretor

e do montador para eles fazerem a magia e alquimia

deles com o que você produziu. Você se distancia e você

vê um novo produto diferente do roteiro e diferente do

que você filmou e então aparece o filme. É um processo

bonito, complexo. Do roteiro para a filmagem, da

filmagem para a montagem e da montagem para a

tela. Na montagem o diretor de fotografia volta ali

para a correção de cor. Normalmente nos filmes do

Kleber, eu tenho a chance de ver os últimos cortes e de

poder opinar.

Unicaphoto – E como acontece o seu processo

criativo? .

PS – A pré-produção é muito importante. Com Kleber

eu tenho sempre o prazer de ter uma pré-produção

longa. A gente começa a conversar e a se encontrar e

a falar do roteiro e de lente, de movimento de câmera

e aquilo começa a desenvolver numa decupagem. E

então começamos a decupar de fato, a fazer shot list

das cenas. Uma lista dos planos de cada cena, mas

144


Print screen.

Ao modo do francês Éric Rondepierre,

da matéria de capa desta edição, ou de outro

fotógrafo, o chileno Amílcar Packer e seus

“congelamentos”, capturamos frames

da entrevista original concedida a Filipe Falcão

por Pedro Sotero, para acompanhar esta conversa

sobre direção de fotografia.

normalmente a gente nunca faz do filme inteiro. A

gente faz de 60 - 80% do filme e o resto realmente

acontece no set ou nas vésperas. O shot list é a nossa

base, mas este shot list não é uma coisa totalmente

rígida. Quando você chega ao espaço de filmar, você

adapta este shot list.

No set de filmagem é o momento da adaptação de todas

as ideias. É quando você se depara com a realidade

física do espaço e com as limitações e com os sons

externos que te atrapalham. E então você começa

a lidar e a adaptar com tudo e muitas adaptações

começam e é um processo muito importante também.

Unicaphoto – Além de pensar ângulos e movimentos

de câmera, também é importante pensar na cor do

filme. Como este processo funciona para você?

PS – Se um filme tem 100 sequências e cada

sequência dez planos, você vai equalizar aí cerca de

mil takes, mil planos que têm que ter uma colorimetria

exata. A pessoa tem que estar com o mesmo tom de

pele, a densidade do contraste tem que estar a mesma.

Para isso você conta muito com a figura do colorista,

que é o cara ultra técnico, que é uma função muito

importante na correção de cor.

A fotografia mundial tende a ir a um lugar muito

do sublime onde tudo é fotografado na hora mágica.

Kleber é um cara que foge desse padrão desde

sempre. E eu acho que isto está muito forte na minha

cinematografia nesses filmes que é abraçar os horários

da luz dura e colocar isso como linguagem e fazer

o espectador sentir esse calor, esse incômodo e essa

luz que faz uma sombra forte no olho, que não é

considerada a coisa mais estética do mundo e que não

é considerada a coisa de mais de bom gosto do mundo.

É isso, não é uma fotografia sublime, mas é uma

fotografia narrativa que da alma aos filmes, que dá

personalidade aos filmes, que as pessoas nem sabem,

mas fazem as pessoas mergulharem e imergirem na

cidade em um clima que o filme quer impor.

No caso, o Recife onde o clima é quente.

Unicaphoto – E sobre escolha de equipamento,

lentes e tipo de câmera? Como você faz?

PS – Tem diretor de fotografia de Hollywood que vai

dizer qual equipamento quer trabalhar e pronto, mas

tudo é uma adaptação entre o desejo do diretor, o

desejo do fotógrafo e a possibilidade orçamentária da

produção.

Película se tornou uma coisa praticamente impossível

no Brasil hoje. Com a chegada do digital, quase

acabaram os laboratórios de película. Quando se

teve o boom do digital, as grandes produções estavam

sendo filmadas em digital e as pequenas produções em

película e isso já se inverteu radicalmente. Hoje as

grandíssimas produções hollywoodianas são feitas em

película porque ela continua sendo um formato de 35

mm de excelentíssima qualidade técnica e artística.

Na América Latina e no Brasil se tornou meio

inviável financeiramente continuar filmando em

película. O Som ao Redor (2009) foi o último dessa

transição que eu tive a chance de trabalhar com

película. As câmeras digitais ainda não eram tão

fortes no Brasil e nem estavam tão boas. Tinha a

primeira câmera da Red, a Red One, disponível no

Brasil como uma possibilidade de digital, mas não era

uma câmera incrível.

Quando fomos fazer Aquarius (2016),

financeiramente já não era mais compatível. Era

muito mais caro fazer em película. Era mais barato

fazer em digital. E no Aquarius já existiam câmeras

digitais muito boas. A Red já tinha evoluído para

outras câmeras digitais e a ari, que é uma fabricante

alemã muito tradicional de câmeras, começou a

fabricar a câmera digital deles que se chamava Alexa.

Continua em circulação e continua para mim sendo a

melhor câmera digital do mundo.

Unicaphoto – E para continuar aprendendo sobre

as últimas novidades como câmeras e lentes, qual a

forma para estar sempre em dia?

PS – No site InternetMovieDatabase, no Full

Technical Spect, você consegue ver como foram

filmados os filmes com detalhes para câmeras e lentes.

Tem outro site chamado Shot on What, que você

consegue ver quais câmeras e lentes os filmes foram

rodados. Eu vou atrás de entrevistas com os fotógrafos

para entender como eles foram rodados e assim você

vai entendendo as novidades das características das

câmeras e das lentes.

145


a força

encontra

a delicadeza

Mariana Barros

146


147


148


149


150


Era fim de tarde em Tamale, interior de

Gana, e a van que eu estava com vários

jornalistas em uma caravana da ONU,

de repente parou para dar passagem

a uma procissão que cruzava a pista.

Eram homens segurando espingardas

e mulheres em trajes coloridos que

seguiam um senhor mais velho, que do

alto do cavalo que estava, orientava o

percurso para a multidão. Ele vinha

acompanhado por um outro homem que

o seguia a pé com um guarda-chuva o

protegendo do sol. Com o motorista da

van, que era da cidade, eu descobri que

o cortejo era um ritual da troca de chefia

de uma tribo.

Não pensei duas vezes e pedi pra descer,

mesmo sabendo que estava sem internet

e sem ter ideia de como voltaria para

o hotel. Eu e uma jornalista uruguaia

saltamos da van sem pensar muito, com

o intuito de registrar aquele momento,

que acontecia em meio a música e

fumaça dos tiros de bacamarte. Nos

enfiamos no meio do povo, e alguns

homens começaram tocar instrumentos

para nós, dançamos e fizemos fotos, mas

logo depois fomos surpreendidas com um

“money, money”

Tentávamos explicar que não tínhamos,

e era verdade, estávamos só com alguns

trocados para voltar para o hotel,

havíamos deixado as bolsas no carro, e

eles pareciam não muito satisfeitos com

nossa resposta, mudaram semblante

e nos cercaram. Nessa hora eu já

estava catando tudo que era moeda

ou cédula quando uma mão tocou em

meu antebraço e me puxou. Era uma

mulher. Ela nos tirou dali, e com um

gesto com a mão me pediu para segui-la.

Atravessamos o conglomerado de gente

quando chegamos a uma porta de uma

casa que ao ser aberta parecia a porta de

um paraíso.

Só mulheres. Em suas roupas coloridas,

cozinhando em um caldeirão a lenha no

151


chão e um tanto de outros potes coloridos

de comidas espalhadas por ali. Mulheres

coloridas com e sem hijab. Mulheres

amamentando crianças, sorrindo,

cantando e livres. Me senti amparada,

acolhida e protegida naquele pedaço de

mundo onde a comunicação era através

do olhar e apesar das nossas diferenças

de roupas, de pele, cabelo, de línguas

e cultura, eu me sentia igual naquele

momento. Senti a fragilidade em ser uma

mulher só no mundo desconhecido, mas

ao mesmo tempo o poder da sororidade

que era onipresente.

Logo nos tornamos a atração dali, me

pediram para tirar fotos delas, sorriam,

ofereceram comida e explicavam os

perigos da rua. Diziam onde devíamos ir,

o que se passava, nos alertavam sobre os

cuidados com os equipamentos e diziam

para ter medo dos homens. No meio do

burburinho.

Quando a tarde caia e já ia escurecendo,

elas nos levaram até a pista para pegar

uma “tuk tuk”, havia uma fila de espera

pelo transporte, todas mulheres no

aguardo, e em uma linguagem tribal local

conversaram entre si e nos deram a vez,

além de dar orientações ao motorista de

onde nos deixar.

São imagens que não esqueço, tampouco

a sensação de acolhimento. Em Gana,

ao lado de mulheres cujos nomes

não consegui anotar, mas que fui

acompanhando os gestos e a sensação de

estar segura.

Dali, naquele quintal, onde a força

encontra a gentileza, segui viagem

com o coração aquecido. E no trajeto

também encontrei mães que viraram as

próprias professoras em escolas, onde

as atividades eram feitas entre uma

mamada e outra de um filho preso em um

“canguru” em seus troncos.

Eu não sabia de nada sobre suas histórias

e seus hábitos. Agora, aqui, vendo esse

registro, imagino a imensidão de coisas

não sabidas e das forças guardadas em

quintais sagrados. Ainda há um tanto pra

se descobrir e também um bocado de coisas

iguais pra se compartilhar apenas com

gestos e olhares. [M.B]

152


153


154


155


156


aconteceu

157


FEVEREIRO

Partidas e chegadas

O mês de fevereiro foi

marcado pela colação

de grau dos alunos que

se formaram no Curso

Superior de Fotografia. A

cerimônia aconteceu no dia

09, no prestigiado Teatro

Guararapes. Na semana

seguinte, entre os dias 13 e

15, aconteceu o evento de

Abertura do Semestre para

dar início às aulas de 2023.1.

A turma da especialização As

Narrativas Contemporâneas

da Fotografia e do Audiovisual

se despediu do Professor

Paulo Souza, que ministrou

a disciplina “Direção de

Fotografia”. Como convidada

da última aula, a turma

recebeu Sylara Silvério,

diretora de fotografia e

assistente de câmera. Paulo

foi aluno do Curso Superior

de Fotografia e também já

passou pela especialização,

até lecionar para as turmas.

Fevereiro também marcou

a última aula da disciplina

“Poética do Ambiente”, do MBA

Cultura Visual: Fotografia &

Arte Latino-Americana.

MARÇO

O mês de março foi muito

intenso.

Tivemos:

01/03 - Início da disciplina

“Fotografia Documental” no

MBA Cultura Visual: Fotografia

& Arte Latino-Americana. A

disciplina foi ministrada pela

professora Daniela Moura.

02/03 - Primeira reunião do

grupo de estudos “O pensamento

sobre a imagem técnica e sua

estética”. O grupo é guiado pelo

professor Alan Campos.

02/03 - Oficina de desenho

no projeto Ganhando Asas

Através da Comunicação e da

Arte, coordenado pelo curso

de Fotografia. A oficina foi

ministrada por Jaísa Farias.

04/03 - Prática de pinhole com

alunos do primeiro módulo da

graduação em Fotografia.

14/03 - Exposição montada em

homenagem ao Dia da Mulher.

15/03 - Resultado do XIII

Concurso de Fotografia

“Carnaval de Pernambuco”.

Campeão do júri técnico: Wallace

Fontenele de Lima. Campeão

do júri popular: Pedro Augusto

Mendes Chaves

17/03 - Oficina pinhole com as

crianças do projeto “Menina faz

ciência na Unicap”.

21/03 - Participantes do

Ganhando Asas celebram o Dia

Internacional da Síndrome de

Down

No dia em que se celebra o Dia

Internacional da Síndrome

de Down, os participantes

do Ganhando Asas Através

da Comunicação e da Arte

circularam pelo campus

da Unicap em marchas de

frevo esbanjando simpatia

e animação. Ao término do

percurso, visitaram a exposição

fotográfica da colega de

sala Jéssica Marques, com

curadoria de Larissa Alves,

intitulada “O brilho do sol”.

23/03 - Último dia da disciplina

“Literatura, Fotografia e

Audiovisual”, na Especialização

As Narrativas Contemporâneas

da Fotografia e do Audiovisual.

A disciplina foi ministrada pela

professora Catarina Andrade.

23/03 - Alunos do terceiro

módulo da graduação

participaram da abertura

da exposição “Na cidade da

ressaca”, do nosso ex-aluno

Jonathas de Andrade. A

exposição aconteceu no Mamam

- Museu de Arte Moderna Aloísio

Magalhães.

27/03 - Saída fotográfica

analógica e digital do

primeiro e terceiro módulo da

graduação para o Cemitério

de Santo Amaro. A saída foi

proporcionada pelo presidente

do DA, Gabriel Costa.

158


ABRIL

O quarto mês do ano marcou, no

dia 04, o último dia da disciplina

“Fotografia Documental”, do

MBA Cultura Visual. A disciplina

foi ministrada pela professora

Daniela Moura. Já no dia 11

teve início a disciplina

“Publicações Impressas”,

ministrada pela professora

Fernanda Grigolin. O mês

seguiu:

11/04 - Alunos do primeiro

módulo da graduação

receberam o convidado Luiz

Otávio. O convite foi feito

pelo professor Filipe Falcão,

para a disciplina “Roteiro,

Storyboard e Produção no

Audiovisual”

12/04 - Aula aberta em

homenagem à Diane

Arbus por Alan Campos.

O professor Alan Campos

ministrou uma aula

aberta em homenagem ao

centenário da fotógrafa

Diane Arbus. No encontro

foi possível compreender

sobre a importância da

obra de Diane na história da

fotografia.

MAIO

O semestre está caminhando

para o fim, mas ainda

tivemos muitas atividades.

04/05 - Ganhando Asas

teve experiência de aula

de teatro. A turma do

projeto de extensão teve

uma experiência de aula

de teatro ministrada pelo

professor Anderson Leite, no

Teatro Barreto Júnior. Foi

incrível.

05/05 - Encerramento

da disciplina “Gêneros

Audiovisuais”, na

especialização As Narrativas

Contemporânea da

Fotografia e do Audiovisual.

As aulas foram ministradas

pelo professor Vinícius

Andrade. Logo no dia 09 teve

início a disciplina “Edição

de Vídeo e Finalização”,

ministrada pelo professor

Marcelo Pedroso.

13/05 - A Gincana do Saber

Fotográfico já faz parte do

nosso calendário do Curso

Superior de Fotografia e

este ano tivemos a sétima

edição do evento no qual

todos os estudantes da

graduação se unem em uma

série de atividades práticas.

Diversão garantida. A

Gincana inclui o varal

fotográfico.

17/05 - A turma da

especialização As

Narrativas Contemporâneas

da Fotografia e do

Audiovisual recebeu

o cineasta Alexandre

Figueirôa. Na oportunidade,

assistiram ao curta “Recife,

Marrocos”, dirigido por

Figueirôa.

27/05 - O professor Filipe

Falcão representou o curso

de fotografia na feira de

profissões do colégio GGE

30/05 - A turma de

especialização As

Narrativas Contemporâneas

da Fotografia e do

Audiovisual e os estudantes

da graduação do Curso de

Fotografia assistiram ao

filme “Fim de Semana no

Paraíso Selvagem”, dirigido

por Severino. Em seguida,

houve um debate sobre o

processo de montagem e

finalização do longa.

JUNHO

Calma que o semestre

está no final, mas mesmo

assim tivemos uma longa

programação.

05/06 - Alunos do primeiro

módulo recebem Felipe

Gervásio, fundador

e presidente da ONG

Deficiente Eficiente. Na

oportunidade, ouviram

sobre a experiência no

projeto “Um Outro Olhar”,

promovido pelo Núcleo de

Ações de Extensão Social

(NAES) do Curso Superior de

Fotografia.

12/06 - Abertura da

exposição fotográfica dos

trabalhos feitos pelos

alunos da graduação. A

exposição feita na Biblioteca

Central da Unicap.

13/06 - Alunos do primeiro

159


módulo receberam como convidada

a fotógrafa Andréa Leal. Ela falou

sobre fotografia newborn, gestante,

parto e família.

14/06 - Aula prática de

gastronomia com os ex-alunos

Victor Muzzii e Anderson Freire.

Os alunos do terceiro módulo

tiveram aula prática proporcionada

pelo professor João Guilherme

Peixoto na disciplina de “Linguagem

Fotográfica II”.

18/06 - Ensaio de moda “Potência

Periférica”. Os alunos do terceiro

módulo da graduação fizeram um

ensaio de moda com direção de

Uhgo, e orientação do professor

João Guilherme Peixoto para

a disciplina de “Linguagem

Fotográgica II”.

20 a 22/06 - Expocom

Os alunos e ex-alunos da

graduação de Fotografia levaram

seus trabalhos para o Intercom

Nordeste, que aconteceu em

Campina Grande, na Paraíba.

Segue abaixo a lista dos trabalhos

apresentados:

• Ângela Lima: A Queda - CA 05

Roteiro de filme de ficção

• Clarice Melo: Poesia em

Movimento - PT 05 Fotografia

Artística

• Juliana Amara: A Semana 22 - RT

07 Website

• Vinicius Lins: Sai da Frente -

Videoclipe

O trabalho “Sai da Frente” levou

a premiação da categoria CA 04

Videoclipe. O trabalho foi orientado

pelo professor João Guilherme

Peixoto.

• 27/06 - Ganhando Asas encerra o

6° Módulo

O Ganhando Asas Através da

Comunicação e da Arte celebrou

o encerramento do sexto módulo,

contando com a exposição “A Nossa

Natureza”, apresentações, leitura

de cordel e exibição de um vídeo

feito a partir da vivência com a arte

circense. A formatura contou com

entrega dos certificados.

30/06 - Confraternização do

semestre entre os estudantes da

graduação, da especialização As

Narrativas Contemporâneas e do

Audiovisual e do MBA em Cultura

Visual, além de ex-alunos(as),

professores e amigos.

JULHO

Julho marcou o encerramento

das aulas da 5ª turma da

especialização As Narrativas

Contemporâneas da Fotografia

e do Audiovisual. A pós terminou

com a disciplina “Edição de Vídeo

e Finalização”, ministrada pelo

professor Marcelo Pedroso.

AGOSTO

O segundo semestre trouxe o

início das aulas para a graduação

em Fotografia e para este marco

inicial, o curso preparou uma

programação especial com

palestras e oficinas. As atividades

aconteceram entre os dias 10 e 12

de agosto.

O sábado, dia 12, foi duplamente

especial já que os estudantes

fizeram uma visita ao Paço

do Frevo para, na sequência,

assistirem ao longa “Disco Boy”,

no Cinema da Fundação no Porto

Digital.

160


161


162

Priorizar atividades

que coloquem

o campus em contato

com a sociedade.

Esta é uma das diretrizes

do curso de fotografia da Unicap,

além de estimular a prática de

saberes e vivências

diversas, compartilhadas.

Exposições, prêmios, visitas à

instituições de pesquisa e órgãos de

comunicação, consultas, atividades

de formação continuada, serviços à

comunidade, marcaram

as ações do curso de fotografia da

Unicap, de fevereiro

a agosto de 2023.


163


Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!