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UnicaPhoto v20, n.20 2023

Revista do curso de Fotografia da Universidade Católica de Pernambuco

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Unicaphoto

a revista de fotografia da Unicap

#

20

ISTO NÃO É

UMA FOTOGRAFIA

Há cem anos do nascimento de Diane Arbus, Unicaphoto anota a importância de saber respeitar as diferenças. Em um país que volta a navegar pela democracia, você

viaja com o povo Mundukuru, do Tapajós, e em canoas indígenas de outros rios do Nordeste. Entre a sociologia dos vivos & mortos, uma viagem pela tecnologia: não ao

cinema transcendental ao hipercinema. Nesta edição, a hipermodernidade, o mundo da hiperinteligência, inteligência, o hiperativismo. E no meio disso todas as nossas fragilidades.


editorial

a síndrome da

hiperrealidade

Neste 2023, se comemora o centenário de nascimento

da fotógrafa e escritora estadunidense Diane Arbus,

morta em 1971. Diane, conhecida como “a fotógrafa da

representatividade” é a homenageada desta vigésima

edição de Unicaphoto. Renata Victor apresenta a

fotógrafa e você pode ler entrevista com o cineasta

André Antônio, professor da Universidade Federal de

Pernambuco, sobre as reverberações, as escolhas e a

“indecifrável estranheza” em Arbus, e como isso se vê

ainda hoje na fotografia e o quanto esses ecos se fazem

presentes (e urgentes) na luta pela igualdade e respeito

à diversidade. Aproveitando o tema, na sua coluna

“Audiodescrição”, Liliana Tavares apresenta uma das

obras mais representativas de Diane (sobretudo em

tempos de guerra, de atentados às nossas crianças e às

escolas, tempos de ascensão de grupos neonazistas nas

redes sociais, no mundo inteiro).

Porém, na parte do país que busca navegar pela

democracia, a Unicaphoto viaja com o povo Munduruku,

do rio Tapajós, no ensaio de Paulo Airton Maia, onde

florestariopovo são uma entidade indissociável. Noutro

ensaio, sob os remos do poeta João Cabral, o historiador

Gustavo Maia apresenta viagens ainda pitorescas,

com rastros do pintor alemão Rugendas e o fotógrafo

brasileiro Marc Ferrez, sobre a pesca artesanal, em

canoas de ancestralidade indígena, de outros rios e mares

do Nordeste. Por sinal, Ferrez, que aparece no artigo

de Gustavo Maia, também faz dupla data redonda neste

ano. O brasileiro nasceu em 1843. E morreu em 1923.

Unicaphoto prepara novidades para registrar as datas.

Ainda sobre representatividade e democracia, você

pode ler entrevista com a cineasta afrociberativista

pernambucana, brasileira, Yane Mendes. E saber sobre

suas inquietações, suas mensagens, suas metáforas.

Sobre o fim de todas as metáforas, a morte,

apresentamos importante ensaio do antropólogo

Antonio Motta e, se podemos resumi-lo, e não podemos,

se trata de uma “sociologia dos mortos”, das necrópoles

oitocentistas do Brasil. Para isso, o palco é

o campo-santo do Bom Jesus da Redenção de Santo

Amaro das Salinas, no Recife.

Sobre mortes ou falsas mortes e falsas memórias,

a matéria de capa não foge ao debate sobre a inteligência

artificial e seus impactos. Que caixa (de Pandora) se

abre com o novo panorama na produção e consumo de

imagens? O admirável mundo novo das IAs.

Destaque para o “projeto Pseudomnesia, do artista

alemão Boris Eldagsen, autor, dentre outras obras,

da imagem “The eletrician”, vencedora do Sony World

Photography Awards, uma instalação artística que

desafia a nossa percepção da realidade.”

Ao ler a nossa matéria de capa, atente para a nota

editorial ali. Mais não diremos.

Da hiperinteligência ao hipercinema. Em tese de

doutoramento defendida recentemente na UFPE,

com indicação para publicação, Paulo Souza responde à

nossa entrevista sobre essa tal hipermodernidade na sua

pesquisa sobre cinematografia digital, e comenta certa

“arte da geração de imagens sintéticas”.

Nas entrevistas, tanto ele quanto o professor-cineasta

André Antonio respondem também sobre

os avanços das inteligências artificiais

no mundo da arte visual. E do mundo real.

Em ponto paralelo, ainda, a psicóloga e crítica Simonetta

Persichetti discute o que é e o que não é fotojornalismo a

partir de recente polêmica sobre foto

de Gabriela Biló, publicada pela Folhapress.

Hiperinteligências. Hiperativismos. Hiperestesias.

Hipercinemas. Hipermodernidades.

Em meio a esse hipermundo vasto mundo, você

aproveita, nos entremeses, os ensaios fotográficos,

trágicos: “Frágil”, de Nivaldo Carvalho;

e “Lado oculto”, de Clarice Melo,

além da clássica seção “Aconteceu”, do curso de

Fotografia, da Escola de Comunicação da Unicap.

Esperamos que você goste.



COORDENAÇÃO-GERAL

Renata Victor

EDITOR

Sidney Rocha

CONSELHO EDITORIAL

Filipe Falcão, Renata Victor e Sidney Rocha

ASSISTÊNCIA EDITORIAL

Quel Valentim

IMAGEM DA CAPA

“Pseudomnesia: The Electrician”, Boris Eldagsen

como olhar para

as diferenças

por Renata Victor

8

66

os mortos no

espelho dos vivos

por Antonio Motta

FOTO DA QUARTA CAPA

Renata Victor

QUEM É QUEM NESTA EDIÇÃO

audiodescrição, em

quantos caracteres?

por Liliana Tavares

18

o gênio saiu

86 da garrafa

Adelson Alves é fotógrafo

Arnaldo Sete é fotógrafo

André Antônio é professor no curso de Artes Visuais da UFPE e cineasta

Antonio Motta é antropólogo

Clarice Melo é estudante de fotografia na Unicap

Filipe Falcão é doutor em Comunicação, pesquisador em audiovisual, professor da Unicap

Gabriel Costa é estudante de fotografia na Unicap

GG Silva é estudante de fotografia na Unicap

Gustavo Maia é fotógrafo e historiador

Letícia Alves é estudante de fotografia na Unicap

Liliana Tavares é psicóloga e idealizadora do festival VerOuvindo

Nivaldo Carvalho é fotógrafo

Paulo Airton Maia é fotógrafo

Paulo André Pedrosa é estudante de fotografia na Unicap

Paulo Souza é doutor em Comunicação pela UFPE

Renata Victor é mestre em História e coordenadora do curso de Fotografia da Unicap

Ruan Pablo é estudante de fotografia na Unicap

Simonetta Persichetti é jornalista, crítica de fotografia e doutora em Psicologia

Yane Mendes é cineasta

“nela, a vida brilha

com indecifráfrável

estranheza”

entrevista com André Antônio

“rios todos com nome/

e que abraço como a amigos”

por Gustavo Maia

Munduruku,

guardiões do Tapajós

por Paulo Airton Maia

mulher. cineasta.

negra. periférica.

educadora

entrevista com Yane Mendes

20

24

42

58

102

108

114

124

127

lado oculto

por Clarice Melo

nos tempos

do hipercinema

entrevista com Paulo Souza

SouzaCâmara Lima

frágil

por Nivaldo Carvalho

não, não é

fototojornalismo

por Simonetta Persichetti

aconteceu

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Artigos e os seus comentários publicados não refletem necessariamente

a opinião da revista

Unicaphoto é uma publicação semestral do Curso Superior de Tecnologia

em Fotografia da Universidade Católica de Pernambuco.

Esta sua 20 a edição vem a público em 18 de maio de 2023.

(ISSN 2357 8793)



Lady on a bus, 1957

© The Estate of Diane Arbus

Stripper with bare breasts sitting

in her dressing room, 1961

© The Estate of DianeArbus

6

7



homenagem

como olhar para

as diferenças

Renata Victor

A fotógráfa e escritora

estudunidense

Diane Arbus

(1923 — 1971),

retratada por Roz Kelly

(c. 1968).

Diane Arbus foi uma das

fotógrafas mais influentes do

século XX, conhecida por suas

imagens ousadas e provocativas

de pessoas que muitas vezes eram

marginalizadas pela sociedade. Em

14 de março de 2023, Diane Arbus

teria completado 100 anos, e sua

obra continua a inspirar e desafiar

todo o mundo.

Nascida em Nova York em 1923,

Diane Arbus começou sua carreira

como fotógrafa na década de 1940,

trabalhando com seu marido,

Allan Arbus, em uma agência de

fotografia para publicidade. Ela se

tornou cada vez mais insatisfeita

com esse trabalho e decidiu seguir

sua paixão pela fotografia, focando

em pessoas comuns em situações

incomuns.

Diane acreditava que a câmera era

uma ferramenta poderosa para

revelar a verdade sobre as pessoas

e as coisas, e suas imagens muitas

vezes retratavam indivíduos que

eram vistos como estranhos ou

excêntricos. Ela se concentrou em

temas como anões, transexuais,

artistas de circo e pessoas com

deficiência mental, que muitas

vezes eram invisíveis para a

sociedade em geral.

O trabalho fotográfico de Diane

Arbus é caracterizado por sua

abordagem direta e íntima,

que muitas vezes revela a

vulnerabilidade e a complexidade

dos indivíduos retratados. Diane

estava interessada em capturar

a essência das pessoas, em vez

de simplesmente registrar sua

aparência física, e muitas de suas

imagens são consideradas retratos

psicológicos.

A linguagem visual utilizada por

ela é marcada por uma escolha

cuidadosa de luz, enquadramento

e composição. Ela frequentemente

utilizava luz natural ou luz artificial

dura para criar sombras intensas

e contrastes dramáticos em suas

imagens. Diane também costumava

usar enquadramentos apertados,

que destacavam os detalhes

faciais e corporais de seus sujeitos

e aumentavam a sensação de

proximidade com eles.

Além disso, a composição aplicada

por Diane muitas vezes era

simétrica e centrada, o que dava

às suas imagens uma sensação de

equilíbrio e harmonia. No entanto,

sua escolha de sujeitos incomuns

e inesperados causaram muito

impacto.

A linguagem de Diane também é

caracterizada por uma abordagem

ética de sua relação com o

fotografado. Ela se aproximava

Three female

impersonators,

N.Y.C., 1962

© The Estate of

Diane Arbus

8

9



da pessoa com uma atitude de

curiosidade e empatia, e muitas

vezes estabelecia uma relação

pessoal com eles antes de

fotografá-los. Ela também estava

preocupada com a representação

justa e precisa de seus sujeitos,

e muitas vezes permitia que eles

se retratassem da maneira que

queriam ser vistos.

A obra de Diane Arbus é

considerada uma das mais

importantes do século XX e

influenciou muitos fotógrafos e

fotógrafas. Infelizmente, sua vida

foi marcada por lutas pessoais,

incluindo depressão e um divórcio

doloroso. Em 1971, Diane

cometeu suicídio, deixando para

trás um legado impressionante de

imagens que continuam a desafiar

e inspirar.

Ao comemorar o 100º aniversário

de Diane Arbus, é importante

reconhecer o impacto duradouro

que sua obra teve na fotografia e

na arte em geral. Seus retratos

ousados e honestos de pessoas

incomuns e marginalizadas

continuam a nos lembrar da beleza

e da humanidade que podem

ser encontradas em todos os

lugares, mesmo nos lugares mais

inesperados.

A Jewish giant at home

with his parents

in the Bronx, 1970

© The Estate of Diane Arbus

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Female Impersonator

on a Bed, 1961

© The Estate of Diane Arbus

Woman with a veil

on Fifth Avenue, 1968

© The Estate of Diane Arbus

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Tattooed Man

at a Carnival, 1970

© The Estate of Diane Arbus

Patriotic Young Man

with a Flag, 1967

© The Estate of Diane Arbus

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A young man in curlers at

home on West 20th Street

© The Estate of Diane Arbus

‘A Naked Man Being

A Woman, 1968

© The Estate of Diane Arbus

16

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audiodescrição

Exposições, sites de notícias,

sites de artistas, redes sociais,

visitas guiadas gravadas ou ao

vivo, filmes, livros on-line, cada

modalidade audiodescrição (AD)

tem suas especificidades. O tempo

estimado para ouvir a AD de

uma fotografia vai depender do

ambiente, do local em que ela

está exposta, e do tempo de que a

pessoa dispõe.

Geralmente, a AD de uma

fotografia é começa pelo aspecto

mais relevante da imagem. Muitas

vezes, o título ou a legenda já

revela isso, como nesse caso com a

fotografia de Diane Arbus.

Numa exposição, o conjunto da

Liliana Tavares

obra se sobrepõe, fazendo com

que o audiodescritor busque ser

ainda mais suscinto, de acordo

com a quantidade de fotos e com a

dinâmica proposta pela expografia.

Uma AD longa demais pode

fazer com que o usuário fique

enfadado e perca o interesse. Uma

AD curta demais pode omitir

informações, o que poderia reduzir

as possibilidades de o usuário

imaginar, devanear e inferir.

Assim, numa mesma exposição, é

possível que o artista ou a produção

combine com o audiodescritor

estratégias para capturar a atenção

do visitante mais em algumas

imagens do que em outras.

audiodescrição,

em quantos

caracteres?

Audiodescrição:

Com Acessibilidade Comunicacional

Roteiro e narração:

Liliana Tavares

Consultoria:

Michelle Alheiros

Edição de áudio:

Júlio Reis

Child with a toy

hand grenade

in Central Park, 1962.

© The Estate of Diane Arbus

Diane Arbus – Menino com uma

granada de brinquedo no Central

Park, Nova Iorque, 1962.

Em preto e branco, fotografia de

um menino de 7 anos. Ele é branco

e muito magro. Está de pé, com os

braços estendidos rentes ao corpo.

A mão direita segura uma granada

de brinquedo e a mão esquerda

está rígida, flexionada para cima,

com os dedos arqueados em forma

de garras, como se segurasse

outra granada. Ele olha em nossa

direção com olhos arregalados,

enquanto pende sutilmente a

cabeça para a esquerda e contrai

a boca na horizontal. Tem cabelos

claros, lisos e grossos, com franja

curta; olhos castanhos, grandes,

e nariz comprido. Os joelhos se

sobressaem como duas bolas

escurecidas nas pernas finas. Usa

camisa clara de mangas curtas,

com estampa quadriculada escura,

shorts escuros com suspensório,

meias grossas até a canela e sapato

escuro com cadarços claros. Uma

das alças do suspensório está caída

até o cotovelo da mão esquerda.

Ele está em um caminho calçado,

marcado pela fraca luz do sol que

atravessa as folhas das árvores.

Por trás dele, na altura dos

ombros, dois troncos de árvores.

À direita, levemente desfocadas,

quatro pessoas vêm andado pelo

mesmo caminho, uma criança de

mãos dadas com uma mulher e um

homem que empurra um carrinho

de bebê. Ao fundo, na amplitude

do parque, também em desfoque, a

luz suave do sol ilumina as árvores,

provocando um efeito de névoa.

18

19



entrevista

“nela, a vida brilha com

indecifráfrável estranheza”

Uma conversa sobre fotografia e história da arte

com o cineasta André Antonio se transforma fácil

em polifonias. No meio da tarde, para falar do “eu” e

o do “outro” e de Sontag, quando apontávamos para

Diane Arbus com alguma ideia de profundidade,

André dispara: “Deleuze disse nA lógica do sentido:

‘o mais profundo é a pele’” e o papo se amplia para

Velazquéz, os surrealistas, os julgamentos morais,

o posicionamento do fotógrafo, a espetacularização

do estranho, “ou do pobre”; e as comparações e

aliterações seguem de Bresson a Brassai, (“Este

teve de engatinhar para Diane andar”); até Salgado.

E a conversa seguiu pelos temas banais em Diane e

noutros artistas, a erotização, a (des)heroificação,

em James Joyce e seu Ulisses, e nos invernos de

Ítalo Calvino.

Porque o espírito de Joyce se mexeu durante nossa

conversa, enquanto editava a entrevista, enviei ao

professor um trecho de “Retrato do artista quando

jovem”, do irlandês, que talvez sirva como síntese

da nossa conversa em torno de Diane Arbus, da

sua relação com quem estava sob seu olhar:

“Não queria brincar. O que queria era encontrar

no mundo real a imagem sem substância que

a sua alma tão constantemente baralhava.

Não sabia onde a descobriria, nem como; mas

um pressentimento o advertia sempre de que

essa imagem, sem nenhum ato aparente seu,

lhe viria ao encontro. Haviam de se encontrar

sem alvoroço, como se já conhecessem um

ao outro e tivessem marcado uma entrevista

talvez num daqueles portões ou noutro lugar

mais secreto. Estariam sós, cercados pela treva

e pelo silêncio; e nesse momento de suprema

ternura ele seria transfigurado. Dissolver-seia

dentro de qualquer coisa impalpável, sob os

olhos dela. E depois então, num momento, se

transfiguraria.”

A conversa continua pelo aplicativo de mensagens.

Por enquanto, enviamos a entrevista [S.R.]

“Uma artista empenhada

em desconstruir o exótico”.

André Antônio, professor

no curso de Artes Visuais da

UFPE e cineasta, apresenta

pontos de possíveis leituras

à obra de Diane Arbus,

para Unicaphoto.

Foto:Arquivo pessoal/Divulgação

Unicaphoto – Para usar uma expressão que se lê

em “Aquele lustro queer” (Index ebooks, 2015),

de Bruno, Horta: “Diane Arbus aquém e além dos

monstros”, diga para gente: para além do universo

“freak”, que mundo a obra de Diane Arbus pode nos

mostrar?

AA– Não conhecia esse livro, mas acho que a frase

tem tudo a ver com a fotografia de Diane Arbus.

De fato, ela sempre estava aquém dos “monstros”

fotografados por ela, isto é, dos sujeitos cuja

aparência – e por diferentes motivos – destoavam

do padrão das imagens midiáticas e oficiais da

época. Quem visita o trabalho de Arbus esperando

encontrar aqueles antigos freakshows de parques de

diversões, com palco, cortina colorida e um holofote

espetacularizador, vai se decepcionar. O que vemos

nessas imagens é algo aquém do espetáculo: são

esses sujeitos em uma singeleza e um despojamento

absolutamente banais, habituais, cotidianos, comuns.

E ela também estava além dos monstros porque

seu trabalho nunca foi sobre monstros. Mas, pelo

contrário, mostrar que o próprio real – por ela

capturado em fotografias – é, ele sim, um manancial

monstruoso e infinito do insólito. Na obra dela, não

é que algumas pessoas sejam estranhas, destoando

da normalidade. Tudo – a própria vida – brilha com

uma indecifrável estranheza. Diane estava além:

suas fotos construíram uma visão muito ampla e

instigante da vida. Então acho que é esse o mundo

que podemos ver na obra de Arbus: um mundo muito

mais complexo do que aquele que categorias binárias

habituais – feio e bonito, bom e mau, normal e

monstruoso, banal e estranho – conseguem dar conta.

Unicaphoto – Susan Sontag dizia que Arbus

transformava “comuns mortais” em monstros e

explorou as dores dos retratados em “imagens

repelentes” que tornaram os espectadores

insensíveis. Grosso modo, o comentário pode nos

induzir à ideia de que sua fotografia talvez ferisse a

dignidade dos retratados e retratadas. Dignidade,

portanto: onde o verbete veste bem ou não veste a

ética em Diane Arbus?

AA– Faz tempo que li essa análise que Sontag fez de

Arbus. Esse tema interessava mesmo a Sontag, basta

pensarmos nas suas famosas reflexões a respeito da

representação da dor do outro. Mas, se me lembro bem

– e conhecendo o desprezo que o gosto de Sontag nutria

por obras com efeitos sentimentalistas, as quais, para

ela, só poderiam ser redimidas pela sensibilidade

camp – acho que a autora estava elogiando Arbus

quando falava desse jeito! Realmente, as imagens

de Arbus são repelentes – e o eram ainda mais na

época de sua primeira publicação – porque não são

o que se chamaria de imagens “bem feitas”. Não

existe nelas aquele rigor, aquele primor, aquele apelo

monumental da fotografia modernista de antes dos

anos 1970 (Evans, Bresson, Lange ou qualquer dos

outros). Arbus dialoga muito mais com a fotografia

contemporânea, onde o debate não é mais sobre certo

cânone de bom gosto da imagem fotográfica, mas sobre

um conceito que amarre bem sua prática fotográfica.

Uma ideia, um dispositivo, um jogo que faça você

questionar seu olhar habitual, mesmo que o resultado

seja imagens desfocadas, mal-enquadradas e até

mesmo medíocres. Imagine ver essas fotos – ainda

por cima com modelos que eram considerados freaks,

aberrações – tomando as paredes das galerias e

chegando a ir, inclusive, à Bienal de Veneza? Existia

um valor de choque associado às imagens de Arbus –

valor ao qual a arte contemporânea sempre dá boas

vindas. Se os espectadores ficam insensíveis a essas

imagens é porque antes era muito fácil se sensibilizar,

mostrar emoção: as imagens do fotojornalismo

monumental eram apelativas, sensacionalistas. Você

tinha que chorar, berrar, se ajoelhar, não sei. Agora

as imagens de Arbus tinham uma banalidade que

era quase ofensiva para quem ainda cultivava um

certo gosto pelo alto modernismo fotográfico da Life.

Mas, justamente, a inovação do olhar de Arbus foi

fazer o espectador sentir outra coisa quando visse

pessoas com aquelas aparências – não sentir pena,

20

21



não ser condescendente, não julgar e se frustrar ao

não conseguir apontar para a foto e dizer quem eram

os vilões e os heróis da história. Por causa disso,

e sendo bem direto, acredito que é válido sim falar

que há dignidade na representação dos modelos nas

fotografias de Diane Arbus.

Unicaphoto – O exótico e o extremo são pontos de

chegada ou de partida, em Diane Arbus?

De partida. Inclusive por tudo que expus até agora.

É conhecido o método de Arbus, que ela mesma

compartilhou: ela pesquisava pessoas cuja aparência

destoasse do padrão pelos mais aleatórios motivos.

Podia ser uma drag queen ou alguém com gigantismo.

Uma vez encontrando seu modelo, Diane produzia

uma imagem “decepcionante”: absolutamente banal,

sem espetacularização. Você podia encontrar doçura

nas fotos, mas não sensacionalismo. Mas esse método

já bastante comentado pelos estudiosos da sua obra

fala apenas sobre uma parte de sua produção. Diane

também ia atrás das pessoas ditas “normais”: ela tem

fotos de casais heterossexuais, crianças brincando na

rua, e por aí vai. Mas, se olharmos bem, esse casal

hetero está vestido de forma ridícula. A criança na

rua fez uma careta para a lente da câmera. De fato,

ninguém é normal ou nossa frágil noção do que é a

normalidade se esfacela. Por isso acho que ela era

uma artista empenhada em desconstruir o exótico,

nossa noção comum do outro – e não o contrário.

Unicaphoto – Sobre um ponto caro aos fotógrafos:

“o instante decisivo”, essa ideia que se popularizou

mais a partir de Cartier-Bresson. Em Diane, parece

que não há essa perseguição, ou me engano? A gente

pode pensar que essa ideia de flagrante não existe

para ela. Talvez certo delicado vouyerismo. Se puder,

defina isso para gente: essa estética em Diane Arbus.

Essa atmosfera, talvez.

AA– Você tem razão. Aquela sensibilidade heroica

bressoniana de viajar para outros países capturando

instantes mágicos parece não pertencer muito

a Diane, cuja estética se filia a um tom menor,

mais cotidiano. Ao mesmo tempo, ela não usava

estúdio e não investia muito em pensar poses, como

na fotografia de moda. É documental, mas não

fotojornalística. Pouco antes do suicídio, ela deu uma

masterclass na NYU, cujo áudio pode ser acessado

no Youtube. Há um momento que ela diz algo como:

“Quando estou diante de alguém, eu faço incontáveis

cliques, sem economizar. Muita coisa vai ficar chata

e pouca coisa vai se salvar. E, pra falar a verdade, eu

até gosto quando fica chato”.

Ora, isso é o oposto do que Bresson diria! A fotografia

dele nunca é chata – sempre é um espetáculo a ser

admirado. A atmosfera em Diane tem a ver com ela

deixar os modelos à vontade. Se acreditamos no que

ela fala nessa palestra, ela pedia para o modelo contar

sobre sua própria vida, ela criava um momento de

descontração e aí – clique! Por causa dessa doçura,

as fotos fugiam do sensacionalismo, era o registro

de um momento doce de conexão entre fotógrafa e

fotografado. Arbus na mesma ocasião falou: “Descobri

que essas pessoas só queriam falar um pouco sobre si,

sobre suas vidas. Elas só queriam ser ouvidas. Quem

não quer?”

Unicaphoto – Se [você fosse] um viajante numa noite

de inverno e tivesse no bolso uma única foto de Diane

Arbus, que imagem seria essa? Ah, e por quê?

AA– Difícil escolher! Mas eu tenho um afeto especial

pela série que ela fez sobre a comunidade das dykes

(uma gíria da língua inglesa que poderíamos traduzir

mais ou menos por “sapatão”) no Central Park, em

Nova York. Os looks são tão incríveis! Então, se eu

estivesse nesse trem numa noite de inverno, adoraria

ter uma dessas fotos. Pelo menos eu estaria olhando

para pessoas com um estilo que considero incrível.

Unicaphoto – “Uma fotografia é um segredo sobre

um segredo. Quanto mais você diz, menos sabe”,

ensinava Diane Arbus. A obra de Arbus era sobre

pessoas estigmatizadas, cujo segredo era vital para

sua sobrevivência. Psicológica. Social. E hoje,

em épocas de tanta exposição, o que as pessoas

ainda escondem? Vivemos o fim da intimidade e do

segredo? Num exercício de imaginação, que mundo e

segredos Diane Arbus fotografaria hoje?

AA– Nossa, essa pergunta é difícil! Eu gostaria

de ver, por exemplo, para onde Sontag levaria os

debates dela a respeito da dor do outro a partir

dos reality shows de hoje. Mas com relação a uma

obra fotográfica como a de Arbus, não sei onde

encontraríamos algo parecido com isso hoje. Flusser

dizia que a câmera fotográfica é como um jogo cujos

quebra-cabeças os fotógrafos vão desvendando. É

comum ouvir de um fotógrafo: “saí pra brincar um

pouco com a câmera”. Sem dúvida, Arbus decifrou um

quebra-cabeça em sua obra. E foi algo assombroso, um

choque, ver essas imagens na época pela primeira vez.

Uma câmera nunca havia mostrado algo daquele jeito

– e só havia chegado perto, talvez, na fotografia de

Brassai, na década de 1930. Hoje, vemos incontáveis

continuadores do “Código Arbus” (continuo falando

como Flusser), mas já estamos acostumados. Não nos

choca mais. Estamos jogando esse jogo há bastante

tempo e começamos a ficar entediados. Em épocas de

inteligência artificial e fake news, acho que o novo

quebra-cabeça, o novo código, vai ser desvendado em

ambientes e aspectos imagéticos que nem conseguimos

imaginar ainda.

Unicaphoto – Por falar em inteligência artificial,

neste número, Unicaphoto discute um pouco não a

fotografia digital, mas as imagens geradas por IA.

Qual sua visão sobre o tema?

AA– Eu estaria mentindo se dissesse que estudei o

assunto o bastante para ter uma opinião. No entanto,

a sensação que eu tenho diante desse tema é a de

estar vendo imagens que trazem novas questões,

novos modos de ver e de sentir. A imagem do papa

com casaco acolchoado ou as imagens que, agora,

são facilmente geradas nos aplicativos de IA textoimagem.

Você digita “paisagem de praia como se fosse

feita por Pablo Picasso” e em minutos você tem diante

de si um quadro nunca antes visto feito “com o estilo”

de Picasso. Walter Benjamin falou que de tempo em

tempos, mudanças sociais e tecnológicas nos levam a

redefinir o que entendemos como arte. Sinto que talvez

estejamos diante de um momento onde precisaremos

rever a própria ideia de prática artística, de direitos

autorais, e por aí vai. A crença que temos na imagem

fotográfica atualmente ainda é imensa. Me pergunto:

será que a partir de agora não conseguiremos mais

olhar para uma fotografia sem nos perguntamos: “é

real?”. Enfim, o assunto é complexo e estamos apenas

começando a nos acostumar aos seus termos. Mas o

que Benjamin e outros autores ensinaram é que não

adianta moralizar a questão, ou enxergá-la através

de extremos binários. Foi exatamente assim quando

a fotografia surgiu. Uns achavam que era a maior

inovação já testemunhada na face da Terra. Outros,

apocalipticamente, decretavam o fim da arte. Como

alguém poderia fazer arte assim tão fácil, apertando

só um botão? O tempo passou e hoje vemos que ambos

esses lados extremos estavam enganados. A fotografia

não era tão inovadora assim. Desde o século 18, pelo

menos, os artistas já faziam imagens de perspectiva

monocular a partir de câmaras escuras e de lentes. A

novidade foi só a descoberta química de uma forma

de fixar a imagem. Por outro lado, nossa ideia de

arte mudou tanto que, sim, você pode hoje fazer arte

apertando um botão, ou fazendo até menos do que isso.

Então acho que devemos começar a ver as imagens

geradas por IA com parcimônia e sem julgamentos

precipitados.

Self portrait

© The Estate of Diane Arbus

Nota: o documentário citado por André Antonio,

Masters of photography – Diane Arbus (documentary,

1972), está disponível em https://www.youtube.com/

watch?v=Q_0sQI90kYI, em 11/mai/2023

22

23



ensaio

“rios todos com nome/

e que abraço como a amigos”

Gustavo Maia

Arez, RN

24



Os versos que dão título a

este ensaio são de autoria

João Cabral de Melo Neto.

Aqui, o historiador e fotógrafo

Gustavo Maia trata não

somente do rio como um

amigo, “em que a água

sempre está por um fio”

(ainda seguindo o curso do

poema de Cabral),

mas dos homens e o mar

[“que deste mar de cinza/

vai a um mar de mar];

pescadores artesanais,

trabalhadores e

trabalhadoras,

sobretudo do Nordeste.

No excelente artigo, Maia

apresenta seu work in

progress “com passo de rio,

que é de barco navegando”,

trabalhos de fotógrafo

experiente, mostra algumas

fotos inéditas, enquanto

continua sua pesquisa

histórica sobre as influências

índígenas na pesca da região.

Atapuz, PE (detalhe)

As fotos que compõem este

ensaio foram especialmente

escolhidas, recorte de um

conjunto maior e mais

abrangente de pesquisa histórica

e artística, com documentação

fotográfica, para a temática da

pesca artesanal. Em princípio, o

trabalho acadêmico de conclusão

do curso de História buscou

investigar em campo a possível

herança da cultura indígena

nas artes da pesca praticadas

atualmente.

Em um outro momento, durante

um trabalho de levantamento

e documentação fotográfica

realizado em 2007, em sítios

arqueológicos de pinturas

rupestres, e outros com gravuras,

ao acompanhar e trabalhar para

uma equipe de arqueólogos da

UFPE, na região sertaneja

do Seridó, no Rio Grande do

Norte, o fotógrafo ficou bastante

impressionado com o que viu e

conheceu. Esta experiência, de

tão marcante e emocionante,

provocou um novo interesse

de estudo, uma nova maneira

de olhar para estes povos

antepassados e originários.

Dessa forma, a temática indígena

ficou, entre outras, naturalmente

incorporada aos interesses e

valores pessoais e profissionais

deste autor.

Para a pesca artesanal, o

trabalho de campo foi realizado

em algumas praias, rios, mangues

e lagoas, pontos localizados

nos litorais de Alagoas,

Pernambuco, Paraíba e Rio

Grande do Norte. Em certas

ocasiões tornou-se necessário

o aluguel de um pequeno barco

para adentrar os lugares, através

dos rios, caminhos entre águas

e manguezais, ambientes ricos

em natureza, naturais para a

atividade da pesca artesanal.

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A pesca artesanal em Coruripe, AL

Embarcação de Forte Velho, PB (detalhe)

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Embarcação

em Maragogi, AL

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o rio Una, PE

Entretanto, estes mesmos

elementos na paisagem receberam

a atenção deste autor em

tempos anteriores, por tratarse

de temáticas de interesse

autoral natural. Fazem parte

da construção de um acervo

com quase trinta anos baseado

em trabalhos de pesquisa e

documentação fotográfica nas

áreas de Patrimônio.

O material registrado em campo,

fotografias e anotações, conduziu a

outras etapas da pesquisa, para as

fontes bibliográficas,

e para a iconografia disponível

sobre o tema.

Enquanto fonte histórica, a

fotografia pode relacionar-se e

associar-se a outras, de alguma

maneira, para compor um

conjunto. Assim, transcendendo

a beleza, a poesia e a estética,

naturais da linguagem e

expressão fotográfica, o

documento fotográfico adquire

outros importantes sentidos

adicionais. No campo das Ciências

Humanas, e particularmente, no

estudo da História, este tipo de

documentação possui importante

relevo, sendo frequente a este

pesquisador, sempre que possível,

sua utilização como ferramenta de

trabalho.

A propósito de trabalhos com

documentação iconográfica,

é importante lembrar que,

antes da fotografia, as grandes

expedições realizadas ao

continente americano, apenas

para exemplificar, entre outros

profissionais, contratavam artistas.

Eram pintores, desenhistas e

gravuristas, que documentavam

as viagens exploratórias, as

paisagens, os grupos indígenas

encontrados durante o percurso da

expedição, com suas características

particulares, além dos muitos

registros da fauna e da flora

tropical.

Para o século 17, o legado

artístico e iconográfico deixado

por artistas e cientistas do período

holandês, principalmente para

Pernambuco, e outras capitanias

vizinhas, constitui documentação

de inestimável importância para

diversos tipos de estudo. Vários

desses documentos tornaram-se

icônicos, a exemplo de pinturas de

Franz Post, e de Albert Eckhout,

além dos belos documentos

cartográficos.

Ao avançar no tempo para a

iconografia histórica brasileira do

século 19, em breve comentário,

como esquecer as aquarelas,

gravuras e desenhos de Johann

Moritz Rugendas ou Jean-Baptiste

Debret? E o século 19 trouxe a

grande novidade, a fotografia! As

paisagens fotográficas registradas

por Marc Ferrez, em diversas

regiões do país, e os retratos

feitos por ele, grandes obras de

arte, fariam falta à nossa história

e memória, caso não existissem.

Sem, no entanto, esquecer tantos

outros importantes fotógrafos,

imigrantes e brasileiros, que

instalaram seus estúdios

fotográficos principalmente nas

cidades do Recife, Salvador

e Rio de Janeiro.

Em retorno a este ensaio

fotográfico, como exemplo e

sem grandes pretensões, várias

leituras tornar-se-iam plausíveis

a partir do conjunto imagético

aqui apresentado. Este, natural ou

hipoteticamente, poderia conduzir

a uma leitura histórico-social,

étnica, antropológica, cultural,

entre outros aspectos, envolvendo

os pescadores como sujeitos

históricos importantes e principais,

onde essas visões e leituras se

interrelacionam.

Fazem parte e alegram a paisagem

litorânea, inseparáveis de seus

pescadores, os barcos, construídos

artesanalmente em madeira, com

Pescadores em Coruripe, AL

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Viagem pitoresca

através do Brasil.

O pintor alemão Johann

Moritz Rugendas

(1802 — 1858), e o fotógrafo

brasileiro Marc Ferrez

(1843 — 1923), citados

no artigo de Gustavo Maia,

contribuiram para uma nova

perspectiva do olhar sobre o

Brasil, suas populações,

seu território, seus costumes.

“Canoa indígena”.

Gravura de 1835,

de Adam Victor,

(1801-1866).

Acervo da Biblioteca Nacional

do Brasil.

Copacabana,

com o Morro Dois Irmãos ao

fundo, c. 1895.

Marc Ferrez.

Acervo IMS

suas pinturas em cor. Movem-se

e flutuam poeticamente sobre as

ondas e a paisagem marinha, e

dos rios e das lagoas. Associada

a estes, a presença humana dos

pescadores, mulheres e homens,

conferem vida e movimento à

paisagem iluminada dos lugares.

São, naturalmente, motivos

atrativos a alguns artistas.

Invisíveis à sociedade em geral,

de existência à margem, certas

comunidades de pescadores

possuem como principal

fonte de renda a atividade da

pesca artesanal, seja para a

própria subsistência, ou para

comercialização de pequena

escala, nos mercados locais ou

regionais.

No que refere à história da

pesca no Brasil e no Nordeste,

presente na historiografia, as

primeiras informações registradas

provêm dos relatos de cronistas

e viajantes, ao longo dos séculos.

No início da colonização, ao

tratar sobre o assunto da pesca,

em geral entre outros assuntos,

alguns destes comentam

sobre a habilidade natural dos

indígenas para a pesca, profundos

conhecedores da natureza,

exímios pescadores de arco e

flecha, entre outras técnicas e

habilidades.

Este torna-se, em seguida, um

tema historiográfico trabalhado

por poucos pesquisadores, ao

menos até o século 20. Com

merecidos destaques, entre

outros, para o professor,

jornalista e historiador literário

paraense José Veríssimo,

com A pesca na Amazônia,

publicado em 1895. Assim

como para o pesquisador e

antropólogo potiguar Luís da

Câmara Cascudo, com dois

livros publicados: Jangadas:

uma pesquisa etnográfica (MEC,

1957) e Jangadeiros (1957),

entre outros escritos desse autor

sobre a pesca.

Em seu livro Os pescadores

na História do Brasil: Colônia

e Império, publicado no

Recife (1988), resultante de

uma pesquisa patrocinada

pela Comissão Pastoral dos

Pescadores, o historiador

Luiz Geraldo Silva conseguiu,

provavelmente pela primeira

vez no Brasil, sistematizar um

conjunto de informações sobre “a

história de uma categoria sócio

profissional durante o Brasil

Colônia e o Brasil Império: os

pescadores artesanais.”

O autor escolheu justamente a

região Nordeste como universo

de estudo, admitindo poder

transcender a região ilustrada.

Para Luiz Geraldo, em contexto

mais amplo, “a história dos

pescadores no Brasil Colônia

está profundamente ligada à

história dos grupos oprimidos da

sociedade colonial – os indígenas

e, posteriormente, o negro

africano.”

Seu trabalho focaliza

importantes processos

econômicos e sociais envolvidos,

relevantes para a compreensão

do processo histórico. Doutor

pela Universidade de São Paulo,

Luís Geraldo Silva é Professor

Titular do Departamento

de História da Universidade

Federal do Paraná – UFPR.

Jequiá da Praia, AL

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Aldeia Indígena

Tramataia,

Marcação, PB

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Nas páginas duplas, anteriores, pescador de Barra de Mamanguape, PE

Nesta página, na foto maior, paisagem no município de Arez, RN.

Na fotos menores, a pesca astesanal na Ilha de Itamaracá, PE,

e canoa fotografada em Coruripe, AL.

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ensaio

Munduruku,

guardiões

do Tapajós

Paulo Airton Maia

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Quando se navega sobre o rio

Tapajós numa canoa, as bordas

dela ficam quase rentes à água.

Naquela paisagem a visão que se

tem do céu nos faz ter impressão

que ele está mais próximo, quase

sobre nossas cabeças, ou quase

encontrando-se com a água. Toda

essa paisagem nos provoca uma

sensação de estar imersos no

rio e ao mesmo tempo flutuando

entre as nuvens no céu. Enquanto

vamos nos inebriando com a

paisagem, a leve canoa desliza

sorrateira sobre as águas do rio,

cortando delicadamente suas

pequenas ondulações.

O Tapajós é imenso. Tudo

parece uma grande composição

harmônica: a água, o vento suave,

o calor escaldante, a umidade

e as centenas – e dificilmente

identificáveis – cantorias

dos pássaros. São muitos os

sentimentos que o contato com

aquela natureza nos provoca.

Estar de frente a esse mar fluvial

nos leva a uma experiência quase

mística, como se retornássemos

às nossas origens.

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O Tapajós nos recebe e acolhe

com sua história, que também

é nossa história. É como um

retorno à morada que habitamos

na história por meio de nossos

antepassados. Adentrar naquele

espaço imenso, banhado por tanta

água e tanto verde, é como um

retorno à antiga casa, de onde se

originou e ainda se origina muita

vida.

Foi ali, às margens daquele

imenso rio que encontrei algumas

comunidades do povo Munduruku.

Povo amável, atencioso e

também guerreiro. Como filhos

do Tapajós, são os guardiões da

natureza que os envolve. Vivem a

cada dia do que lhes dão a floresta

e o rio. O povo Munduruku, a

floresta e o rio vivenciam uma

cumplicidade, partilham da

mesma realidade e compartilham

a mesma história.

Ao chegar a uma aldeia

Munduruku, creio que para a

maioria dos visitantes, primeiro

salta aos olhos o carinhoso

olhar das crianças. Apesar

de não falarem português, as

crianças são excelentes anfitriões.

Falam a língua da alegria e do

acolhimento.

Em geral, uma comunidade

Munduruku se caracteriza por

ser formada por um núcleo

familiar. Isso quer dizer que

sua organização social se dá por

meio da relação de parentesco.

Quando um membro ou um

grupo de membros saem de

sua comunidade originária,

significa que este pequeno

desmembramento aconteceu

para que se inicie uma

nova comunidade. E foram

comunidades assim, familiares

que nos acolheram para que

pudéssemos realizar nosso

trabalho e conhecer um pouco de

sua história.

Dentre o que nos alcançou

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aprender, destaco o aspecto de

seu pertencimento à terra. Ao

procurar uma nova terra para

morar, apesar de não ser algo

determinante, eles aspiram

encontrar um “katomp”, um

lugar de “terra preta”, ou seja,

territórios considerados sagrados

por já terem sido ocupados por

outras gerações de sua etnia

no passado. Esses lugares,

além de bons para o cultivo da

agricultura, são verdadeiros

sítios arqueológicos, uma vez que

teve intensa ocupação e atividade

humanas. Trata-se, portanto,

de um espaço territorial

que os liga diretamente às

suas ancestralidades, não

simbolicamente, mas espiritual

e materialmente, pois segundo

a sua complexa cosmovisão,

há distintos modos de seu povo

assumir formas de estar neste

plano material.

A relação de pertencimento à

terra, às águas e à floresta não

corresponde à compreensão

ocidental de propriedade que

compartilhamos neste período

moderno. O seu pertencimento

é de cuidado com a terra, o

que significa também cuidar de

sua ancestralidade, e ao fazer

isso, estão cuidando de sua

própria identidade. Portanto,

a luta constante que esse povo

trava contra as mais distintas

forças que insistem em fazêlos

sucumbir, não é uma luta

somente deles, mas de todos

nós que esperamos viver em um

mundo melhor. Não é uma luta

localizada “lá entre eles”. A

Amazônia é a última fronteira

a ser rompida por aqueles que

desejam explorar o que temos de

mais precioso. Por isso, escutar

atentamente o que dizem os

povos da floresta, pode ser um

primeiro passo importante, para

aprendermos a construir um

mundo melhor para todos. Como

nos disse o cacique Osmarino

Manhuary Munduruku: “Para

nós, o rio significa a nossa vida.

A mata significa a nossa mãe.

A gente pede à mãe, e quando a

mãe morre, a gente não tem mais

a quem pedir”.

A ideia de pertencimento, de

ancestralidade e do cuidado

com a natureza nos dá a

compreensão que isso não

é uma luta e consciência “lá

deles”, mas que precisa ser

nossa, também.

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entrevista

mulher.

cineasta.

negra.

periférica.

educadora.

As inquietações de Yane Mendes e sua

compreensão política de que tudo deve

estar a serviço de sua luta. Sua alma,

mas também seu corpo.

“Nada se trata somente de mensagens,

mas de metáforas”, ela explica nesta

entrevista a Renata Victor,

com fotos de Arnaldo Sete,

para a Unicaphoto.

Entre os grandes desafios de Yane

Mendes, que ela faz questão de

repassar para os mais jovens, é o de

não desistir. Nunca.

Foto nesta página: Yane Mendes

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Yane Mendes é cineasta

periférica da favela do Totó,

no Recife.

Sua militância envolve várias

lutas. Afrociberativista,

ela coordena a rede Tumulto,

no trabalho de articulação,

comunicação e formação e

educação social, em outras

periferias da cidade.

É integrante de Articulação

de Negras Jovens Feministas

e do Instituto Nu.

Entre seus trabalhos,

se destaca “A live delas”,

(2020, Brasil, 10’, DCP,

Acervo IMS).

Além desse trabalho, outras

realizações da cineasta,

como “Podia ter sido eu” e

“PensaDOR”, “Mandala num

compasso diferente” e

“No sábado eu dou autógrafo”

que podem ser conferidos

online.

Unicaphoto – Como você se identifica enquanto

cineasta negra e periférica, e como isso influencia o

seu trabalho?

Yane Mendes – Sou Yane Mendes, sou cineasta, é…

periférica, também sou articuladora de favelas. tanto

regional, territorial e nacional, trabalho também

como educadora social. Então, eu me identifico

como cineasta periférica, é porque eu acredito no

cinema que eu faço, utilizando a metodologia que

eu aprendi na favela, né, que é uma maneira mais

coletiva, uma maneira onde a gente, vamos dizer,

tem menos hierarquia, pelo menos dentro dos becos

e das ladeiras? Tá ligado? Assim é como funciona,

né, e tentando aprender vivendo, né, na coletividade

e pá. Nas experiências que às vezes dão certo ou

não. Então, por isso que eu identifico que o meu

cinema, ele pega essa metodologia, eu tento aplicar

a vivência da periferia, por isso que me identifico

como cineasta periférica e sou uma jovem preta. Isso

influencia diretamente no meu trabalho. Primeiro

que o meu corpo é político, então onde ele chega, ele

abre a boca pra falar de cinema, as pessoas muitas

vezes infelizmente ainda estranham, né, como eu

digo, eu me autointitulei cineasta. Não tenho um

papel que comprove isso. Foi fazendo filme, foi tendo

retorno das pessoas que assistiram o meu filme, foi

entendendo o poder que os meus filmes têm. Então

acho isso suficientemente legítimo para eu me

intitular cineasta. Então o impacto e a influência

que isso tem no meu trabalho, é que eu acredito num

cinema preto também, mas não somente feito por

pessoas pretas, mas um cinema que tenta enegrecer a

tela, sabe, não só colocando personagens pretos como

personagens principais, narrativas principais, mas

colocando profissionais pretos pra trabalhar, que são

profissionais com a qualidade técnica também muito

grande. Por vezes não tem a oportunidade de trabalho.

Então eu acho que falar de periferia, fala de negritude

em conjunto, fala do cinema que eu faço, fala sobre

o cinema que acredito e que luto pra todo mundo

conseguir acessar e conseguir produzir. Mas com

recurso, né. Falar de dinheiro, que é importante.

Unicaphoto – Quais são os principais temas e

mensagens que você busca transmitir através dos

seus filmes?

YM –Então, eu tenho hoje uma filmografia que é

muito ligada à documentário, mas eu digo que a

minha marca maior é ter filmes provocativos e de

inquietação. Ele não dá resposta, não coloco a minha

única verdade dentro deles e nem defendo isso. Mas

eu coloco provocação, né, porque a gente não tá

olhando pra aquele lugar, daquele jeito. Se eu olhasse

essa narrativa, esse tema, por esse lado. Despertar

um pouco as pessoas para o não óbvio também. O

nosso olhar tá muito viciado no que a gente tem aí,

escutando, assistindo e tendo acesso, então eu tento

trazer filmes que falem desse protagonismo que a

favela já tem dentro dela mesmo, mas expandindo e

dizendo que se eu tenho que colocar numa imagem

de uma câmera 4k pra que as pessoas consigam

enxergar, né, o quanto a minha favela e outras

periferias têm potência, eu vou fazer isso, e venha

fazendo isso. Então têm mensagens subliminares, que

eu diria mensagens-metáforas. Eu acho que eu não

passo muitas mensagens, eu passo metáforas dentro

dos meus filmes. Metáforas que por vezes eu consigo

ter 10, 20 leituras, que não foi nenhuma que eu pensei

antes de filmar, antes de pensar na ideia. Eu acho

que é isso também o interessante. E enxergar que o

processo, também, como eu faço o filme, né? Ele já é

um processo à parte, mas também já é um audiovisual

também, a partir do momento que eu defino um

roteiro, como que eu vou dirigir aquele filme? Montar

equipe, que eu acho que ali já começa uma trajetória,

uma narrativa que com certeza esses processos

filmados já dariam um outro filme. A possibilidade

de mil narrativas quando a gente junta um monte

de pessoas faveladas para produzir, né conteúdo

narrativo e audiovisual.

Unicaphoto – Quais são os principais desafios que

você enfrentou na sua carreira como cineasta negra e

periférica. E como lidou com eles?

YM – Eu acho que na verdade os desafios, eu enfrento,

né. Só que vai mudando os graus de desafios. Mas

eu acho que o primeiro desafio foi essa questão de

reconhecimento enquanto cineasta. Eu acho que hoje

existe um hackeamento aí, que eu consigo hoje ser

um pouco mais legitimada por algumas pessoas da

área do cinema, que conhecem e admiram e trocam

sobre o meu trabalho, né. Eu acho que as pessoas que

assistiram os meus filmes e fazem eles circularem,

eu acho é que uma das escadas principais pra eu

conseguir espaços hoje, e reconhecimento como

alguém que produz audiovisual e que dirige filmes.

Eu acho também que o meu trabalho, é que eu junto o

audiovisual, mas com o meu trabalho de articulação.

Ele também proporciona, né, para que eu consiga

fazer o hackeamento. Por exemplo os dois filmes que

eu consegui hoje, vamos dizer assim, usando com

recurso, mesmo que pequeno, ele veio muito a partir

do meu trabalho com articulação, do meu trabalho de

conexão de pessoas e aí consegui ter uma visibilidade

a partir disso, e consegui ter um acesso pra fazer

o meu audiovisual. Ainda nunca acessei um edital

público e consegui um recurso assim, de importância

pra conseguir fazer um filme com a qualidade que eu

sonho em fazer um dia. Então eu acho que os desafios,

primeiro você ir para espaços onde as pessoas estão

falando coisas interessantes sobre a sua vida, mas

você não compreender aquela linguagem porque muita

gente faz questão de colocar palavras difíceis para

que fique numa bolha só aquelas informações. Então

consegui hackear um pouco e entendi que eu precisava

estudar e aproveitar também as oportunidades que eu

tinha pra entender e criar a minha própria estratégia

de tá produzindo, também foi um dos maiores

desafios. E acho que hoje um dos meus maiores

desafios também é não desistir. Não desistir de tantas

barreiras que dizem que eu não posso trabalhar com

cultura. Que eu não posso trabalhar com articulação.

Que eu não posso trabalhar implementando e lutando

pra trazer projetos para minha região aqui do

Nordeste. Que eu não posso dizer o Totó um dia vai

ser uma terra com várias oportunidades para jovens e

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com menos criminalização do que a gente tem hoje, né.

Então eu acredito que leva tanto não na cara todos os

dias, ou então conhecer pessoas que estão vivendo nos

seus emprego, amigos, e tipo, se lembrar também de

como era quando eu não trabalhava na área cultural.

e não conseguia me manter disso, e sempre tá muito

perto do abismo de precisa voltar para esses trabalhos

normais, vamos dizer assim. Eu acho que é um dos

meus maiores desafios. Como é que não vou ter essa

certeza de que consigo tá trabalhando com arte e com

cultura, e produzindo conteúdo?

Unicaphoto – Como você enxerga a

representatividade e a diversidade no cinema

brasileiro atual?

IM – Acho que é um pouco da continuidade da

pergunta três, né. Eu acho que conseguir ter

autoestima e entender o corpo político e o que eu faço

é político. Hoje, conseguir falar disso sabendo da

minha importância, sabendo do meu diferencial, né,

nas minhas produções, e das minhas falas também é

algo que foi todo um processo de muitos anos, para

eu conseguir “me dizer” isso, né, e acreditar no que

eu to falando, e falar e debater tendo a certeza do que

é que eu tô falando. Então eu acho que eu enxergo a

questão da representatividade e a diversidade dentro

cinema como uma crescente, né. Tá longe ainda de ser

para todo mundo, mas eu vejo como uma crescente,

principalmente a questão racial, e de mulheres, que

têm cada vez mais, aumentado o número de pessoas

conseguindo produzir. Apenas eu acho que a gente

não pode cair no baú da ilusão de dizer que “ah, os

números tá crescendo, então tá tudo certo”. Não,

a gente sabe que o número tá crescendo mas que a

quantidade de produtos como por exemplo os longas,

que aí a gente tá falando de milhões e de vários zeros,

continua ainda nas mãos dos homens brancos de

classe média. Então eu acredito que tá crescendo, mas

a gente tem que olhar sobre como tá sendo dividido

essa questão do bolo, né, quando a gente fala de

dinheiro, quando a gente fala de possibilidades de

criação, falando do cinema em específico. Eu acho

que as nossas histórias também tão sendo contadas

de outras maneiras. A gente tem a própria TV aberta

aí hoje se modificando também, né, a novela das

sete hoje, “Vai na Fé”, que é de uma mulher negra e

A cineasta em oficina

de audiovisual no

bairro do Arruda,

Recife, para o coletivo

Lá do beco.

diretora também, Juh Almeida. Tá na casa do povo,

e tem a ver com o cinema sim, porque é o que tá na

casa do povo. Às vezes é a referência mais próxima

de cinema que as pessoas têm. É uma novela, é um

conteúdo audiovisual que chega. E que tá mudando,

né, tá mudando como as nossas famílias estão sendo

representadas, como é que as nossas histórias estão

sendo contadas. É tudo em passos muito lentos, tudo

com mais dificuldade, mas eu acredito que a gente

tá aqui para somar com quem quer mudar também,

e vai sim conseguir fazer com que pessoas pretas e

periféricas consigam ocupar a tela do cinema. Seja

ela fazendo, produzindo, consumindo e dirigindo

também. E eu digo que nem só no cinema também.

Tem que chegar no cinema, tem que chegar na TV,

tem que chegar na internet. Tem que chegar nos

canais que chegam nas pessoas, sabe. Que o cinema

precisa também se tornar mais acessível. A gente tem

cinema na cidade, mas em bairros que as pessoas não

conseguem ir, né, por conta de transporte, por conta

de tudo, assim. E acho que a gente precisa conseguir

convidar mais as pessoas e possibilitar que as pessoas

consumam o nosso cinema. E que debatam mais sobre

ele, e que enxerguem a possibilidade de ter diversos

cineastas também dentro das favelas, que eu tenho

certeza que tem muita gente aí que ainda vai ser

descoberta.

Unicaphoto – Quais são os projetos em que você está

trabalhando atualmente?

YM – Então, hoje eu tô encerrando um ciclo neste

primeiro semestre, dentro do Fórum Construtivo do

Instituto Nu, que é um instituto da Nubank onde eu

construí por um ano, né, esse instituto junto com

mais seis lideranças nacionais que são pessoas muito

referências dentro dos seus estados. Tô finalizando

esse ciclo, tô reestruturando a rede Tumulto junto com

as minhas companheiras Flora Luena e Fernanda

Paixão. A gente tá redesenhando o que é a rede

tumulto, depois de tantos trabalhos emergenciais

como as distribuições das cestas básicas, voltando

a trabalhar mais com o nosso eixo central que é a

comunicação. Acredito também tem os meus planos

pessoais de produções audiovisuais. Que tem muito

filme aí ainda pra vir. Tem o uso da internet também,

que cada vez mais é um espaço que eu tô ocupando,

com meu afrociberativismo, que é a nomenclatura

difícil que eu aprendi pra dar a algo que eu acredito,

que eu tenho que ocupar a internet, com a minha

vivência cotidiana. Entendendo que quando eu danço

um brega é político, tão quanto eu coloco uma fala

de três minutos, tendo não sei quantos views. Então

tem curso online e presencial que eu quero dar, que

eu acredito nesse poder da multiplicação, né, eu

conseguir viajar a alguns estados. E nesses estados

conhecer experiências que dão certo, experiências

que passaram por desafios e que tão por aí. Então

quero muito compartilhar também com as pessoas o

que eu venho aprendendo e o que eu venho trocando.

E quero também aplicar a minha metodologia de

ensino de audiovisual em vários estados e quem sabe

também fora do país, né, que hoje não é um sonho tão

distante, também né, conhecer periferias fora do país

e poder levar também os meus trabalhos. Acho que é

muita coisa pra esse ano, mas acredito que tudo vai

caminhar, sabe. As águas de Iemanjá vão me jogar

para onde ela achar que eu tenho que ir. E sonho não

falta aqui, não.

Unicaphoto – Como você acredita que cinema pode

contribuir a para luta contra o racismo e outras

formas de discriminação?

YM – Eu acredito que o cinema é uma arma. Eu

costumo dizer que a minha câmera é uma arma, e por

isso ela pede que a gente pense muito antes de filmar

qualquer coisa, antes de exibir qualquer coisa, antes

de contar a história de alguém e inventar uma história

e inventar um alguém. Então eu acredito que pode

contribuir e que já contribui, né, só que ela contribui

às vezes pra fortalecer, infelizmente o racismo e a

discriminação. E ela precisa ser mais utilizada para

o contrário, sabe? A gente precisa contar outras

narrativas para que os jovens e as crianças tenham

outros exemplos, para que eles se vejam na tela e

consigam se reconhecer ao assistir o material, sabe.

Para que os professores e as professoras consigam

levar os nossos filmes para debater dentro da sala de

aula também, para que a gente consiga levar para

os jovens que tão dentro dos presídios aí, sabe. Tipo

que erraram e que tão pagando pelo seus erros, mas

que muitos inclusive tão ali e não passaram por

esse processo de ter uma compreensão política sobre

o seu corpo e sobre o que a sociedade faz com seu

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corpo preto. Então acho que os filmes podem

contribuir com a participação da sociedade para

querer usar. Os filmes são ferramentas. Eu não

acredito que um filme de certa maneira modifica

a pessoa. Ele provoca a pessoa a se modificar.

O que modifica as pessoas são as atitudes dela,

quando ela acorda no outro dia, porque assistir

a um filme meu e chorar, ou então dizer que “ai,

fiquei muito emocionada”, e no outro dia você

iniciar o dia fazendo tudo de novo igual, eu acho

que não é muito efetivo, sabe. Então eu acho que

a utilização dessa ferramenta do cinema, ela

precisa estar em mais lugares, sabe. As pessoas

também precisam ter apoio, né, pra poder ter

estrutura, né, pra usar os nossos filmes também.

É, eu acredito que aí sim ela vai conseguir

contribuir para acabar com as discriminações.

Unicaphoto – Quais conselhos você daria para

jovens cineastas negros e periféricos começando

suas carreiras?

YM – Primeiro eu diria: “Pronto, você se ferrou”

(risos). Gostar de cinema é aquela música que diz

“Eu me apaixonei pela pessoa errada”, mas tô

brincando! É, eu queria dizer que você vai pensar

muitas vezes em desistir. Você muitas vezes não

vai ter certeza de nada, e muitas vezes vai achar

que isso não é pra você. E aí por vezes vai ter que

ser você, o espelho e seu filme, pra você acreditar

que “vou conseguir viver disso”, “vou conseguir

fazer com que isso circule”, então eu acho que é

não tentar se encaixar, porque cada um tem sua

história e cada um tem suas possibilidades. Eu

comecei com uma câmera de cinco megapixels

pra hoje conseguir ter minha a Sony 7s. Eu

comecei com uma 5 megapixels onde eu filmava

e pedia pra galera exibir lá no projetor na Oi

Kabum, onde eu fazia o curso, e eu ia editar

dentro da lan house. Então sei que é muito

mais difícil o caminho pra gente. Não tem como

negar, mas acreditar, estudar. Estudar dentro

de uma universidade, mas estudar também

conversando com as pessoas, conversando com

os mais velhos também, usar outras plataformas

quem não conseguem fazer um filme, mas faz

um vídeo curto. Eita, se junta com quem tem

um computador pra editar. Se junta com quem

tem um celular melhorzinho pra fazer um filme,

sabe. Eita, hoje eu não tenho um microfone, então

será que eu não consigo apoio de um mercadinho

do bairro pra ver se eu não consigo alugar um

microfone, né? Em uma dessas locadoras, né?

Eu acho que fazendo o que a gente faz, a gente já taria na

favela, então utilizar o que a gente usa na favela pra se

virar. Quando, às vezes, a gente tem dez reais pra comer,

três pessoas na hora do lanche, e utilizar essas metodologias

pra gente fazer filme por aí, sabe? E não que tem que ser

assim direto não, porque ao mesmo tempo a gente tem que tá

entender que existe edital, que existe política pública, e que

esses nomes difíceis, a gente estudando e trocando com quem

sabe, e tá onde tá tendo debate sobre isso a gente tá pra dizer

“oh, tô fazendo filme aqui com cem conto, que eu consegui

trabalhando entregando Ifood, mas eu não quero, não! Quero

ter num sei quantos mil, porque eu tenho história pra contar

e tenho muita coisa boa pra mostrar aí ainda. É sobre isso”

Unicaphoto – Como você enxerga o futuro do cinema

nacional em relação à inclusão e à diversidade?

YM – Eu acho que o cinema nacional precisa ter mais

histórias contadas por pessoas negras, periféricas, mas

ele precisa valorizar as pessoas que já estão aí,

sabe, também. Tem tanta gente boa produzindo, tem

tantas cineastas negras com boas produções, com

pouca circulação nas suas produções, com pouca

valorização, com poucas premiações. Acho que precisa

valorizar quem tá fazendo, estipular quem quer fazer

e ampliar as possibilidades também, para que mais

pessoas consigam acessar esse cinema nacional.

Independente de querer trabalhar com cinema ou

não, mas que eles consigam entender o que é que o

seu país produz. O que é que a sua região produz, né?

Quais as histórias que já tem aí? E que a gente pode

contar a partir dessa ferramenta do audiovisual. É,

eu acho que prefiro enxergar um futuro onde a gente

vai dizer que no cinema vai ser uma programação de

uma família de favela, com seus três filhos. Ele dizer

assim “pô, no sábado eu quero e eu vou pro cinema,

e levar os filhos para o cinema”, né. Esses filhos

irem pro cinema e ver história que eles digam: “Pô,

mainha, sou eu ali também, oh”. E que a gente tenha

atores pretos tão incríveis valorizados e ocupando

as telas do cinema também. Então acho que enxergo

um futuro nacional que compreenda que o Nordeste

é potencialidade e que tem nas favelas muita história

também, que precisa ser exibida e valorizada. Quando

a gente fala de inclusão não é só ter pessoas pretas e

periféricas, né? Mas de ter as pessoas de baixa visão,

pessoas surdas, as pessoas que possuem deficiência,

que consigam entrar no cinema e assistir um filme.

Que a gente realmente seja um cinema pra todo

mundo, sabe?

Unicaphoto – Qual é a importância da sua produção

cinematográfica para a cultura e sociedade

brasileira?

YM – Eu acredito que as minhas produções, como

eu já falei um pouco anteriormente, são produções

de inquietação. São meus gritos, ali colocados em

imagem e nem sempre são minhas as vozes, mas

sempre são os meus gritos. São reflexões que eu

chamo de castelo, no popular, sendo colocadas como

filme. Acreditando que aquilo vai tocar em alguém

e que alguém talvez consiga tocar em outro alguém,

e consiga tocar em outro alguém, e consiga tocar em

outro alguém. É a minha expectativa quando eu faço

filme. Meus filmes são importantes, porque eles são

filmes que falam de gente de verdade. São filmes que

falam sobre temas da vida real. E são filmes que falam

de uma parte da gente da favela, que muitas vezes

ninguém quer saber, porque não é muito interessante

não ver a gente só se fodendo. Ver a gente cantando.

Ver a gente dançando. Mas também ver a gente

provocando e dizendo que tá puto porque a galera tá

fazendo as coisas erradas. É ver a gente reclamando,

mas ver a gente múltiplo, mas que meus filmes são

importantes porque eles são gritos coletivos, sobre

diversos temas. São sorrisos coletivos sobre diversos

temas. São provocações e metáforas, que têm a minha

individualidade, mas que sempre tem alguém favelado

que diz “Ei, Yane, que castelo do carai, eu também

castelava sobre isso!” Então é sobre se identificar ou

não. Então é “não é sobre se identificar ou não”.

É sobre se sentir provocado ou não.

Unicaphoto – Como você gostaria de ser lembrada

no futuro como cineasta negra e periférica?

Primeiro que eu gostaria de ser reconhecida no

presente, né? Essa história de que a gente é semente

só depois que a gente morre… Eu acho que isso é um

pacto que a branquitude inventou e que eu não quero

pra mim, nem pras minhas. Quero ser reconhecida

no futuro, quero ter possibilidade de fazer mais filme,

quero ter possibilidade de fazer filme com recurso, pra

eu pagar todo mundo do jeito que tem que ser. E poder

aumentar as minhas possibilidades de ferramentas

criativas, porque eu tenho muita vontade, mas com

pouco recurso não dá pra gente fazer tanta coisa do

jeito que a gente quer, né. Eu quero conseguir a partir

do meu trabalho de articulação trazer pra região,

trazer pra Pernambuco um olhar nacional para que

as pessoas valorizem. Valorizem as pessoas que tão aí,

eu não sei há quanto tempo, mas valorizem as pessoas

que têm a sua filmografia invisibilizada. Então

não é como eu gostaria de ser lembrada. Eu vou ser

lembrada como alguém que produz os seus filmes e de

maneira periférica, sabe. Eu quero ser valorizada pela

minha intelectualidade, pela minha técnica e pelo meu

olhar político. E como eu, várias pessoas precisam

ser também. Mas já que eu to falando de mim – é

uma dificuldade que tenho responder perguntas de

cunho mais individual, mas é um exercício que eu

quero fazer, principalmente neste ano. Eu quero ser

valorizada em vida. Não quero ser Carolina Maria

de Jesus, que tem seus diários sendo transcritos e

traduzidos aí, depois que a mulé foi simbora, sabe?

Quero homenagem em vida, fazer muito filme, ver

muita gente feliz a partir de tá comigo na equipe, a

partir de tá assistindo aos meus filmes.

Quero ver muitos jovens também conseguindo dizer

que quer ser cineasta, e quero ser lembrada por um

trabalho de impacto.

Dizer que eu fiz e faço uma revolução pernambucana

a partir do direito à cidade e a partir do direito da

produção de cultura.

64

65



artigo

os mortos no

espelho dos vivos

Antonio Motta

66

Foto: Renata Victor

Rua do Pombal, 1821.

CEP 50100170.

Este é o endereço e código postal do

Cemitério Público do Bom Jesus da

Redenção.

Talvez o nome ainda possa soar

estranho ao recifense. Mas os livros

de História dão mais informações:

“Cemitério do Bom Jesus da

Redenção de Santo Amaro das

Salinas”. Ou simplesmente Cemitério

de Santo Amaro, no Recife, como

é conhecido pela maioria. Sua

inauguração se deu em 1851,

diante do pânico e da mortandade

causados pela epidemia de febre

amarela, entre1849 e 1850.

Quando as autoridades sanitárias

decretaram o fim da Covid-19 como

uma emergência de saúde pública, a

fotógrafa e coordenadora

do curso de Fotografia da Unicap,

Renata Victor, Gabriel Costa,

GG Silva, Letícia Alves, Paulo André

Pedrosa e Ruan Pablo, estudantes

de fotografia, visitaram Santo

Amaro.

E prepararam este ensaio

para acompanhar a belíssima

colaboração de Antonio Motta,

referência na antropologia cultural

brasileira, especialmente sobre

certa “sociologia” da morte e dos

cemitérios brasileiros oitocentistas.

O excerto é parte do seu À flor

da pedra: formas tumulares e

processos sociais nos cemitérios

brasileiros, publicado pela Editora

Massangana, em 2008.

Mesmo que se trate de evento individual, a morte impõe-se

como fato social, a produzir repercussões sobre diferentes

dimensões da vida humana. que a maioria dos grupos

sociais não consegue referir-se a si mesmos, tampouco

existir em sociedade, senão através das representações

de sua própria unidade e continuidade, por meio de um

passado comum elaborado tanto pela ajuda da memória

individual quanto coletiva.

Quando fraturado ou confrontado com a extrema ruptura

que o grupo, cada um à sua maneira, busca integrar tal

fenômeno ao seu universo de representações mentais

e de práticas institucionais, o que confere à morte um

sentido singular em relação ao que cada povo ou cultura

adota como sua própria concepção de vida. Entretanto,

se existe uma enorme diversidade em relação às formas

rituais (danças, banquetes, cultos, cerimônias) e aos

costumes mortuários (enterramento, mumificação,

cremação, exposição do cadáver ao ar livre, imersão em

água, canibalismo, etc.), há também elementos que os

aproximam: a morte é percebida na maioria das sociedades

como a manifestação de uma desordem.

Com efeito, foi Robert Hertz um dos primeiros a chamar a

atenção para a importância da morte como acontecimento

social no qual o grupo ou sociedade costuma inscrever sua

própria identidade. Ao estudar práticas de enterramento

em uma sociedade tradicional, os Daiaque, na ilha de

Bornéu, Hertz buscou mostrar como o tratamento dado

ao corpo do morto adquiria um significado simbólico

importante para a comunidade, então relacionado à

representação do destino da alma. A primeira parte do

ritual post mortem nessa comunidade assegurava ao

morto uma espécie de “residência temporária” enquanto

se concluía a dissolução completa do cadáver e ao grupo,

a possibilidade de realizar o luto. Para isso, o corpo do

morto era colocado sobre uma plataforma, no interior de

uma cabana elevada e isolada, ou envolvido na casca de

uma árvore e colocado sobre os seus galhos, enquanto

a carne se decompunha e o cadáver se reduzia apenas à

ossatura. Durante esse período, os mais achegados ao

morto tornavam-se vulneráveis, pois acreditava-se que o

espírito do falecido vagueava entre os vivos. Consumada

essa fase, ocorria o “segundo enterro”, ocasião os ossos

eram recolhidos e sepultados, seguido de um grande

banquete, quando existiam recursos econômicos suficientes

para realizá-lo, sendo compartilhado pelos enlutados e

membros da comunidade, o que efetivamente marcava

a incorporação do espírito do morto no mundo dos

ancestrais. restituindo a autoridade e a temporalidade ao

grupo envolvido 1 .

Na literatura etnológica não faltam referências à morte,

aos rituais e aos papéis funerários como elementos

organizadores e integradores da vida social.

67



Foto: Renata Victor

69



Também alguns exemplos mostram que a oposição

ou divisão primária entre vivos e mortos depende do

ponto de vista que cada cultura concebe e elabora

suas próprias categorias classificatórias, seus laços de

parentesco, suas representações escatológicas e suas

formas de apreensão do mundo 2 .

A morte não é apenas algo negativo e destrutivo,

mas algo criativo à medida que oferece condições

para ritualizar e reatualizar o sistema simbólico

que mobiliza e estrutura determinados grupos. Ao

estudar as práticas de enterramento dos Merina,

em Madagascar, Maurice Bloch e Jonathan Parry

identificaram nos funerais deste grupo – já que

se trata de uma sociedade baseada em modelos

tradicionais de autoridade – que a revitalização dos

elementos simbólicos e valorativos era realmente o

que mais interessava, ou seja, aquilo que, em última

instância, dava sentido e significado à reprodução

da ordem social existente no grupo, levando-os a

concluir que “aonde não há necessidade de criar

uma autoridade transcendental, os mortos podem ser

deixados em paz”, 3

Nas sociedades ocidentais, as que de fato nos

interessam aqui analisar, embora cessando suas

relações jurídicas como pessoas, os mortos, na maioria

dos casos, continuam a deixar marcas indeléveis sobre

os mais próximos, sejam elas motivadas por crenças

religiosas, por razões afetivas ou orientadas por outros

elementos reguladores da vida social. Talvez, por isso

mesmo, mais importante é se levar em consideração

as formas, as atitudes e significados que os vivos

costumam exprimir em relação aos mortos, atribuindo

um sentido particular à sua falta. Trata-se, pois, de

elementos reveladores do comportamento humano,

importantes marcadores socioculturais que podem

ajudar a entender diferentes lógicas que regulam as

ações e os significados que cada indivíduo estabelece

com o seu próprio grupo e com o corpo social mais

amplo.

Mas, no mundo dos vivos, os mortos passam a ter

vida a partir do trabalho contínuo de memória e

recordação de indivíduos achegados ou do grupo social

ao qual o morto pertenceu. É por isso que os ritos

permitem tanto exorcizar a morte de alguém quanto

presentificar esse alguém na memória dos vivos.

Geralmente definidos como atos sociais performativos,

os ritos post mortem correspondem geralmente a uma

necessidade social e emotiva de interiorizar a perda

de um membro da comunidade, à medida em que

reconfortam, reintegram, revitalizam indivíduos e o

grupo social ao qual o morto pertenceu. Todavia, são

rituais realizados pelos vivos e para os vivos, chegando

a propiciar momentos de intensa sociabilidade, na

maioria das vezes capazes de restaurar e fortalecer

liames familiares, congregar e reaproximar membros

de outras gerações, reunir indivíduos pertencentes a

diferentes grupos.

A depender de operadores classificatórios, próprios

a cada sociedade, os ritos também cumprem

cuidadosamente a função de isolar os mortos no seu

próprio mundo ou de torná-los separados do convívio

mais próximo. Afinal, na maioria das sociedades

ocidentais, sobretudo aquelas que cultivam a oposição

entre vivos e mortos, costuma-se dizer que um morto

não bem enterrado ou uma morte não bem consumada

volta sempre a atormentar e terrificar a mente de

quem vive 4 . Daí a importância exercida pelos ritos

na elaboração do luto, não importando suas formas

de expressão, na medida em que essas restauram e

reafirmam a ordem social existente, pois, em última

instância, são os ritos que “’fazem’ os bons mortos” 5 .

Como já assinalou Hertz, uma das eficácias da ação

ritual é a de localizar e identificar um espaço próprio

para a ocultação do cadáver, posto que a demarcação

de fronteiras impede, no plano simbólico, a irrupção

do morto no mundo da vida, ou ainda, como sugere,

na mesma linha de raciocínio, Louis-Vincent Thomas:

“os vivos não estão completamente do lado da vida

enquanto o morto não estiver completamente do lado

da morte” 6 .

Portanto, a ruptura máxima que a morte instaura se

deve ao fato dela produzir um cadáver, não somente

símbolo de ausência ou de falta absoluta, como também

marca concreta de dissolução do corpo: decomposição,

apodrecimento, asco e horror. 7 Provavelmente, nesses

elementos reside o caráter fantasmático e “contagioso”

que um corpo é capaz de transmitir na iminência de

se decompor. Por isso mesmo a necessidade premente

de sua ocultação, já que a maioria das sociedades não

pode prescindir de rituais de pureza e de impureza,

que funcionam como importantes mecanismos

autorreguladores da vida social: vida/ morte; forma/

não-forma; ordem/desordem, sagrado/profano, etc. 8

De certo modo, cadáver e impureza constituem

faces de uma mesma moeda, criando a necessidade

de ocultar o processo de decomposição da carne,

dissimulado, pelo menos na cultura ocidental, através

da construção de um túmulo, hermeticamente fechado,

que possa materializar e perpetuar a lembrança da

pessoa morta, que no plano imagético atua como

mecanismo de revivescência do defunto, conforme

projeções e fantasias de seus familiares.

Neste sentido, os cemitérios ocidentais, especialmente

aqueles construídos no século XIX, cumpriram

de forma exemplar tal desígnio, desempenhando

uma espécie de eficácia simbólica da conservação,

materializada na monumentalidade arquitetônica de

seus jazigos individualizados, em torno dos quais

se desenvolveram práticas, cultos e produções de

natureza simbólica diversa. Em última instância, seria

esta a função precípua de representação que os vivos

esperam de um túmulo ou monumento funerário, isto

é, o de “produzir esse estranho efeito de comunicação

sugerindo a permanência corporal do defunto”. 9

Tem toda razão Jean-Didier Urbain quando chama

a atenção para a ruptura que se instaura entre os

sistemas de enterramento precedentes e aquele

predominante no século XIX, com o advento dos

primeiros cemitérios secularizados, nos quais se

consolidaria a ideia de conservação em túmulos,

e de forma individualizada, dos restos mortais de

segmentos mais abastados da sociedade europeia

e, posteriormente, de outros povos ocidentais. 10

Melhor do que qualquer outro espaço, os cemitérios

oitocentistas refletiram a visão de mundo que cada

sociedade possuía tanto em relação à vida quanto

em relação à morte. Isto porque tais espaços foram

capazes de reproduzir diferentes aspectos da

Foto: Letícia Alves

vida social, através de suas formas de organizar

e de classificar os indivíduos (filiação, linhagem,

transmissão, estratificação, etc.), passando pelas

representações de mundo e práticas correlatas

(mitos, ritos, cosmologias, religiões, tabus, interditos,

ritos de passagem, etc.), até à noção de pessoa e

seus valores (idade, ciclos vitais, corpo, sofrimento,

honra, prestígio, etc.). Enfim, a morte e, sobretudo, o

destino que se dá ao corpo de um morto são capazes

de gerar dinâmicas e representações socioculturais

diversas sobre as quais se apoiam e regulam grupos e

atividades humanas.

Além da preservação da memória individual e

familiar dos mortos, os cemitérios oitocentistas,

com suas sepulturas individualizadas, cumpriram

também importante papel na estratificação social:

individualização, hierarquia, distinção, transmissão,

filiação, genealogia, etc. Ao se desvincularem do

mundo sobrenatural e das ordens religiosas, esses

espaços, pouco a pouco, começaram a ganhar um

ambíguo estatuto laico em que determinadas camadas

urbanas, a maioria delas abastadas e ascendentes,

puderam registrar suas particularidades de gosto,

e ao mesmo tempo de classe, através da aquisição e

propriedade de jazigos especiais para acolher os seus

membros. 11

1

Embora lugar-comum na literatura especializada,

não convém contudo deixar de considerar o quanto

foi importante e significativo, no século XIX, o

impacto causado pela extinção das sepulturas ad

sanctos, ou seja, a perda de domínio da Igreja sobre

os sepultamentos e os rituais fúnebres e, com ela,

o controle sobre a morte e os mortos no Ocidente

– evento que transformava o cemitério numa nova

instituição social e cultural. 12

Tal como são reconhecidos ainda hoje, os cemitérios

europeus constituem, em certa medida, uma invenção

recente, que data apenas da primeira metade do século

XIX, quando o sepultamento deixou de ser uma prática

exclusiva das confrarias e irmandades, no interior das

igrejas católicas, e se deslocou para os novos espaços

secularizados, projetados e construídos nas periferias

das cidades, ocasionando o que Philippe Ariès chamou

de “les morts en exil”. Esse fato, não é novidade,

acarretaria mudanças profundas nas atitudes diante da

morte, o que veio a provocar uma verdadeira mutação

da sensibilidade coletiva face ao destino dos defuntos.

Primeiro porque a morte, a partir de então, ficaria

subordinada ao controle do poder público, isto é, da

racionalidade administrativa do Estado, rompendo

70

71



com os elos escatológicos precedentes, que tinham

no princípio da inumação dos corpos, no interior

das igrejas, uma de suas garantias simbólicas, a da

salvação e ressurreição dos mortos. Dito de outra

maneira: quanto mais os enterramentos fossem

realizados próximos ao altar ou das relíquias dos

Santos, mais a alma de alguém estaria apta a ser

recompensada na vida extraterrena. Inversamente

proporcional, os que não podiam pagar para

ter tal privilégio, viam-se obrigados a negociar

outros espaços, situados nas galerias laterais das

igrejas, nos corredores, nos adros e até mesmo

no entorno das igrejas, no chamado churchyard,

conhecidas como sepulturas ad ecclesiam.

Segundo, porque instaurava de fato uma ruptura

radical em relação “à coexistência dos vivos e dos

mortos”, anteriormente marcada pela proximidade

física e espiritual de ambos. 13 Isto significa dizer que

quanto mais os enterramentos eram realizados no

centro das cidades, no interior e entorno das igrejas,

mais próximos estavam também a morte e seus

ritos do centro da vida, integrados à comunidade, a

regular o sistema simbólico e a organização social do

grupo. Quanto mais afastados das cidades, mais se

distanciavam os mortos do convívio doméstico, sendo

banidos completamente do cotidiano das famílias e, por

isso, o luto deixava de ser expressão de sentimentos

coletivos para se converter em uma experiência

individual, sendo compartido unicamente pelos

membros da família, o que, de certo modo, tendia a

minimizar a importância do morto na esfera pública. 14

Também o fato de se estabelecer uma rígida

demarcação entre metropolis e necropolis concorreu

para que houvesse maior disseminação da crença no

poder da ciência sobre a morte. O resultado desse

processo, que contava a seu favor com a urbanização

e modernização crescentes das cidades, era notado

de forma mais visível nas reações que os vivos

puderam expressar diante de seu inexorável destino,

particularmente, já no final do século XVIII.

É também verdade que na Europa já vinha de

muitos anos uma preocupação com a higiene pública,

ameaçada pelos enterramentos nas igrejas, como de

resto, nas abadias, nos mosteiros, nos conventos,

nos colégios e outros espaços em que se mesclavam

cadáveres e gente. 15 Entretanto, foi somente a partir

do corolário iluminista, baseado na laicização e

secularização da vida social, somado ao progresso

da medicina, que a crítica aos enterramentos ad

sanctos e ad ecclesiam atingiu seu ponto culminante.

Por toda parte se faziam ouvir clamores contra os

perigos das emanações pútridas advindas dos locais

Foto: Renata Victor

de sepultamento – reação negativa influenciada pela

difusão da doutrina dos miasmas nauseabundos

considerados como maléficos à saúde humana. Uma

nova “vigilância olfativa”, por sua vez, se fazia

também presente em alguns dos principais centros

urbanos europeus, notadamente em Paris, o que

tornava intolerante para a maioria de seus cidadãos

qualquer tipo de odor que remetesse à putrefação

cadavérica, que exalava das fossas comuns, locais

destinados às inumações coletivas de corpos,

sobretudo dos chamados segmentos “desprestigiados”

da população na época. 16 Convém lembrar que essa

modalidade de enterramento surgiu durante as

epidemias que assolaram o continente europeu na

Idade Média, fixando-se enquanto prática, pelo menos,

até o final do século XVIII e, em alguns casos, nos

primeiros decênios do XIX. 17

Além disso, eram as fossas ou valas comuns os

locais mais temidos pelas populações pobres ou

classes laboriosas das cidades. Deste modo. não

surpreende que o fantasma da morte biológica, em

seu último estágio, aumentasse ainda mais o pavor

individual diante da irremediável situação de alguém

se ver jogado num verdadeiro poço, obrigado a

compartilhar a decomposição de seu próprio corpo

com o do anônimo vizinho, igualmente em processo

de putrefação. Ao fim e ao cabo, tudo isso resultava

na profusão de substâncias líquidas, emaranhados

de ossos humanos em meio aos quais se perdiam

completamente os vestígios do morto e, como tais, os

traços de sua pretensa identidade.

O efeito mais imediato desse processo de

transformação urbana foi posto em prática no ano de

1786, em Paris, com a demolição do Cemitério dos

Inocentes (Cimetière des Saints-Innocents), encravado

bem no coração da cidade, com suas catacumbas

amontoadas de ossos e, sobretudo, suas valas repletas

de cadáveres que, segundo alguns relatos da época,

costumavam odorar o ar da redondeza com seus

vapores pútridos. 18 Todavia, como observa Ariès, sua

destruição aconteceu sob a mais profunda indiferença

da população. Atitude, aliás, que já prenunciava o que,

de certo modo, deveria ocorrer alguns decênios mais

tarde, de forma muito mais radical, com a construção

de novos espaços secularizados de enterramento e

também a recepção calorosa e otimista da população

em relação a eles, dos quais o Père-Lachaise se

tornaria exemplo paradigmático na França.

Associado à ideologia da salubridade, que foi

determinante na gestão administrativa da morte pelo

Estado, estava também presente todo um conjunto

de motivações e de práticas coletivas, que já vinha

sendo fomentado algum tempo atrás e cuja ambição

maior era materializar o desejo póstumo de muitos: a

construção de túmulos diferenciados. Sendo assim, a

repulsa pelo sepultamento anônimo, cuja versão mais

aviltante era a inumação coletiva nas valas, não tardou

a lograr adeptos nas camadas populares urbanas

do século XIX, especialmente com a criação, na

Inglaterra, do chamado mutualismo ou sociedades

funerárias (burial clubs) que reivindicavam para si

uma condição mais digna na hora da morte, já que a

desigualdade em vida inevitavelmente se reproduzia,

e talvez de forma ainda mais flagrante, no espaço

Foto: GG Silva

póstumo. 19 Diante disso, segmentos da classe laboriosa

inglesa organizaram-se, através de sociedades

especiais, com o intuito de capitalizar recursos para o

enterramento com direito à sepultura individualizada

e ritual compatível com aquilo que, em vida, puderam

economizar para gastar com um enterro mais digno.

De qualquer modo, fosse entre as camadas mais

desfavorecidas da população ou entre as elites

prósperas da época, a ênfase fundamental sobre os

enterramentos, na maioria das vezes, estava posta

no desejo de individualização do corpo. É o que se

fazia notar com os novos padrões de conduta urbanos

e, com eles, uma diferenciada sensibilidade face à

morte, transformando os cemitérios não somente em

lugar de conservação dos vestígios do morto, mas,

sobretudo, em lugar de culto, cuja visita e recordação

constituíam as sequências mais importantes do novo

ritual urbano. Evidentemente, tal fenômeno tinha suas

raízes no processo de secularização, o qual não se deve

interpretar em oposição direta à Igreja, tampouco à

religião católica, mas a uma tendência ou movimento

de desclericalização da sociedade burguesa. 20

Daí a plasticidade com que a própria Igreja foi capaz

72

73



Foto: Gabriel Costa

Foto: Renata Victor

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75



Foto: Renata Victor Foto: Paulo André Pedrosa

Foto: Renata Victor

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de se moldar a esse rito. Vale acrescentar, todavia,

que um século antes ela detinha o controle da morte

e de seus próprios rituais – embora desacreditasse a

importância do corpo e do túmulo em favor do dogma

teológico da vida eterna –; enquanto que em menos

de um século depois, soube rapidamente aderir e

capitalizar, de maneira muito positiva, o novo culto

dos mortos, que se faria de forma individualizada,

em torno do fetichismo dos túmulos, coisa que ela

própria tanto havia criticado anteriormente. Ademais,

o novo culto dos túmulos ou “religião cívica” tivera

sua origem no positivismo de Comte, exprimindo-se,

sobretudo, através da visita cemiterial e da prática

de recordação dos mortos que, em última instância,

pretendia religar os vivos às gerações desaparecidas,

sendo orientado pelo ideal de filiação, de continuidade

e, fundamentalmente, de historicidade. 21

2

A essa altura não parecia haver muita dúvida

quanto ao grau de afeição que os novos espaços

de enterramento conseguiram despertar nos mais

diversos setores da população. A glorificação do

cemitério, enquanto espaço de culto, estava associada

ao papel cívico que este passou a desempenhar,

assumindo, como qualquer outra instituição do Estado,

a função de manutenção e continuidade da vida social.

Além do que também representava uma espécie de

extensão ou até mesmo parte intrínseca da cidade

que, segundo o ideário positivista, deveria assegurar e

manter a solidariedade dos vivos e dos mortos. 22

Para se ter uma ideia da força e penetração dessa

nova mentalidade urbana, basta lembrar a indignação

e protesto da burguesia parisiense quando o Barão

Haussmann, por volta de 1864, resolveu levar adiante

seu ambicioso projeto de urbanização, desta vez

incluindo a remoção dos principais cemitérios (Père-

Lachaise, Montmartre e Montparnasse) para fora

da cidade, com a perspectiva de vir a transformá-los

em um único grande espaço de enterramento: o de

Méry-sur-Oise, na região de Pontoise. Isto porque

a centralidade dos principais cemitérios parisienses

dificultava o plano de expansão da malha urbana que o

Barão tanto buscava concretizar, obrigando-o inclusive

a invocar o argumento higienista da época anterior.

Registre-se que antes havia ele tido o cuidado de

expulsar a chamada classe laboriosa, considerada como

classe dangereuse, do centro de Paris, transferindo-a

para a periferia sob o pretexto de demolir parte da

cidade medieval. 23 Impiedosamente, agora seria a vez

dos mortos, novamente deportados ou expulsos para

fora da cidade, já que os cemitérios, como no século

Foto: Renata Victor

78



Foto: Ruan Pablo

Foto: Renata Victor

80



anterior, tinham se integrado rapidamente à paisagem

urbana que àquela altura havia atingido alto valor

aquisitivo.

O mais importante, todavia, foi a reação da população,

especialmente das elites intelectuais e políticas,

o que incontestavelmente era prova do quanto o

espaço cemiterial havia adquirido importância na

sociedade civil francesa, como de resto na sociedade

europeia. Um verdadeiro bombardeio de críticas se

fez ecoar de todos os lados. Dos católicos fervorosos

aos positivistas mais ferrenhos, como era o caso do

professor de matemática Pierre Laffite, e do médico

Jean François Eugène Robinet, o Dr. Robinet, a quem

se atribui a autoria da sentença: “pas de cimetière,

pas de cité”. Afinal, era a ciência que dava o veredicto,

provando desta vez que não havia risco nenhum na

presença dos cemitérios no entorno urbano e que os

pavorosos miasmas, denunciados e temidos um século

antes, não passavam de equívocos ou superstições

que já não mais se coadunavam com o espírito da

vida moderna, tampouco com o progresso na era da

ciência positivista, como sentenciava o Dr. Robinet: “O

Teatro da Ópera só por si fornece, por ano, 13 vezes

mais ácido carbônico do todos os cemitérios juntos.”

Assim, em 1865, o projeto de Haussmann fora

definitivamente deixado de lado, ano em que o Père-

Lachaise já contava com 17.000 mausoléus.

Desde então, intensificar-se-iam ainda mais o culto e a

veneração aos túmulos, fixando-se no calendário oficial

o dia dois de novembro como o Dia de Finados, que

geralmente se confundia com o de Todos os Santos.

Já no início do século XX, durante a celebração

de Finados, em 1902, o número de visitantes

nos cemitérios parisienses chegou a 350.000, o

equivalente, à época, a mais de 10% de população da

cidade.

A cada ano, esse número de visitantes aumentava e,

proporcionalmente, os túmulos. A eles eram conferidos

cuidados especiais, sendo-lhes acrescidos elementos

alegóricos que costumavam evocar a pessoa do morto,

seja através de peças escultóricas, seja através de

medalhões com fotografia em sépia, acompanhados

em geral de epitáfio ou simples epigrafia onomástica.

Grande parte dos jazigos era construída para abrigar

no seu interior verdadeira árvore genealógica, cuja

raiz era encabeçada por um antepassado fundador. É

o que se nota na forma de construção de alguns deles:

no Père-Lachaise, no Cemitério de Montparnasse,

em Gênova, no Monumental de Milão, no Vecchio, em

Nápoles, no Central de Viena, no Cemitério Central de

Estocolmo.

Para esses casos, a morfologia mais recorrente tornouse

conhecida como capela funerária, uma espécie

de réplica em miniatura de capela ou de construção

monumental do passado, chamando a atenção pelo

ecletismo de suas formas e estilos: pirâmides egípcias,

templos gregos, castelos, palácios renascentistas,

templos neogóticos, neoclássicos, etc.

Vale a pena assinalar que nos países de tradição cristã

os túmulos repetiram basicamente três tipologias:

o túmulo epitáfio, o túmulo horizontal e o túmulo

vertical. O primeiro, o mais antigo, consiste em

pequena abertura recoberta de placa em pedra sobre

a qual se apresenta o epitáfio. Provavelmente, tem

origem nos lóculos onde eram depositados os ossos

do defunto após a sua transferência da primeira

sepultura provisória, sendo muito comum na época dos

enterramentos nas igrejas. Já o horizontal, comumente

denominado campa-rasa, possui a dimensão do corpo

humano, é recoberto por laje de pedra em toda a sua

extensão, conhecendo variações diversas ao longo

do tempo. Finalmente, o vertical apresenta uma

morfologia mais rica e complexa, tendo como uma de

suas principais características a monumentalidade,

recebendo interpretações diversificadas, como por

exemplo, a morfologia de capela, de mausoléu, de

monumento, etc.

As edificações tumulares, antes de tudo, eram para

ser vistas, admiradas e reverenciadas por todos.

Ao se distanciar de outros segmentos médios da

população, que tinham nas necropolis das periferias

urbanas o seu lugar de enterramento, a burguesia

afortunada da segunda metade do século XIX cultuou

entre si o desejo de distinção e de individualização

em espaços de sepultamento altamente segregativos,

o que de praxe também se repetia em suas vivendas

das cidades. Assim deveria se pautar a lógica dos

espaços cemiteriais e a construção dos túmulos,

que começaram a se povoar de figuras: estátuas,

fotografias e outros signos alusivos aos que ali eram

sepultados.

Foto: Renata Victor

82

83



Notas

1

Sobre o assunto ver HERTZ, R.

« Contribution à une étude sur la

représentation collective de la mort

», in Sociologie religieuse et folklore

(1928), Paris, PUF, 1970, p. 45.

2

Ver LEVI-STRAUSS, C. “Les vivants et

les morts”, In Tristes Tropiques, Paris,

Plon, 1955, p. 259-277. Ver também

CUNHA, M. C da. Os Mortos e os Outros:

uma análise do sistema funerário e da

noção de pessoa entre os índios Krahó.

São Paulo, Hucitec, 1978.

3

O foco de análise de Bloch e Parry

incide sobre os rituais de fertilidade.

Nos funerais dos Merina, de

Madagáscar, a autoridade é atribuida

aos mais velhos e do sexo masculino,

ocasião em que são reatualizados e

reforçados alguns valores do grupo [....]

4

[....] Evidentemente não se pode

reduzir a diversidade e riqueza

das culturas funerárias a práticas

ocidentalizadas, nos modes aqui

descritos de separação primária

entre vivos e mortos. Há de fato uma

enorme variedade de ritos mortuários,

sobretudo entre populações indígenas

tradicionais, que não correspondem

à conhecida oposição vivos/mortos.

A título de exemplo, basta lembrar

que os Tupi tinham como costume

funerário o enterramento de seus

mortos dentro da própria cabana,

no mesmo lugar em que armavam

suas redes para dormir. Já os Bororo

tinham como prática o enterro duplo,

nos moldes do que descreve Hertz. Os

Krahó, também praticavam a inumação

secundária, isto é, algum tempo

depois retiravam os ossos, lavava-os,

pintava-os de urucu e realizavam um

outro enterramento. Por outro lado,

os Ianomami costumavam fazer uma

pasta de banana, misturando-a com

as cinzas do morto, para em seguida

deglutí-la. No que concerne aos Krahó

ver: CUNHA, M. C da. Os Mortos e

os Outros, Op. Cit.. CLASTRES, P. Ver

também SEBAG, L. “Cannibalisme et

mort chez les Guayakis”, in Revista do

Museu Paulista, nº s. XIV, pp.174-181.

5

A expressão “les rites “font” les bons

morts” é utilizada de FABRE, D. «Le

retour des morts», in Études Rurales,

nº 105-106, janvier-juin, 1987, p. 19.

6

Ver TOMAS, L-V. Le cadáver. Paris,

Payot, 1982, p.11. O referido autor é

um dos precursores na França sobre

a abordagem sócio-antropológica

contemporânea da morte, com uma

obra bastante diversificada sobre o

tema, destacando-se como referência

o livro: (1975) Anthropologie de la mort,

Paris, Payot, 1980.

7

Ver URBAIN, J-D. La Société de

Conservation. Étude sémiologique des

cemitières d’Occident. Paris, Payot,

1978.

8

Sobre crenças e práticas rituais de

pureza e impureza nas sociedades

ocidentais e não ocidentais ver

DOUGLAS, M. Purity and Danger. An

Analysis of Concepts of Pollution and

Taboo. London, Routledge et Kegan

Paul, 1966.

9

URBAIN, J-D. L’archipel des morts.

Le sentiment de la mort et les dérives

de la mémoire dans les cimetières

d’Occident. Paris, Payot, 1998, p. 175

10

Ver URBAIN, J-D. La Société de

Conservation. Étude sémiologique des

cemitières d’Occident, Ob. Cit.

11

É interessante consultar o trabalho

de CATROGA, F. O céu da memória.

Cemitério romântico e culto cívico

dos mortos em Portugal (1756-1911),

Coimbra, Minerva, 1999. O trabalho

do historiador português apresenta

um quadro bastante interessante

e completo do que ele chama de

“revolução romântica dos cemitérios”

em Portugal, fenômeno que se repete

na maioria dos cemitérios europeus da

época.

12

A morte é um tema que

vem merecendo a atenção de

pesquisadores das mais diversas

sensibilidades. A ênfase é quase

sempre posta sobre os sistemas de

morte nas sociedades ocidentais, a

partir de uma perspectiva de longa

duração. É este o caminho seguido pela

historiografia francesa, notadamente,

por alguns de seus mais conhecidos

especialistas, considerados

referências no assunto: ARIÈS, Ph.

Essais sur l’histoire de la mort em

Occident. Paris, Seuil, 1975; VOVELLE,

M. La mort et l’Occident de 1330 à nous

jours. Paris, Gallimard, 1988.

13

[....] Sobre os mecanismos de

controle da Igreja sobre as atitudes

diante da morte, bem como a

separação entre Igreja e Estado

consultar ARIÈS, Ph. Essais sur

l’histoire de la mort en Occident. Du

moyen age a nos jours. Paris, Seuil,

1975. Ver também, do mesmo autor

Images de l’homme devant la mort.

Paris, Seuil, 1983.

14

Ver ARIÈS, Ph. Images de l’homme

devant la mort, Ob. Cit.

15

Sobre o assunto ver CHAUNU, P. La

mort à Paris: 16e, 17e, 18e siècles.

Paris, Fayard, 1978.

16

Sobre os vapores mefíticos no

interior das igrejas e a emergência

de uma mentalidade higienista, ver os

estudos de: CORBAIN, A. Le Miasme

et la Jonquille. L’odorat et l’imaginaire

social 18e-19e siècles. Paris, Aubier

Montaigne, 1982; VIGARELLO, G. Le

Propre et le Sale. L’hygiène du corps

depuis le Moyen Age, Paris, Seuil, 1985.

17

É interessante consultar

MCMANNERS, J. Death and

Enlightenment. Changing Attitudes to

Death among Christian and Unbelievrs

in Eithteenth-century France. Oxford,

Oxford University Press, 1981.

18

Como relatam alguns historiadores,

o principal episódio que levou ao

seu fechamento, em 1780, assim

como a sua demolição, em 1786, foi

o rompimento de uma de suas fossas

comuns, liberando odores pútridos

que produziram pânico na vizinhança,

já que este lugar de enterramento

se encontrava bem no coração de

Paris, praticamente vizinho ao velho

mercado de Halles, zona muito densa

de construções. Sobre o assunto, é

interessante consultar ARIÈS, Ph.

Essais sur l’histoire de la mort en

Occident, Op. cit.; CHAUNU, P. La mort à

Paris, Op. cit.

19

Sobre o assunto ver os seguintes

trabalhos: GITTINGS, C. Death , burial

and the individual in early modern

England. London, Routledge, 1984;

WILSON, A. e LERY, H. Burial Reform

and Funeral Cost, London, Oxford

University Press, 1938, LITTEN, J. The

English Way of Death: The common

Funeral since 1450, London, Robert

Hale Ltd., 1991; MORLEY, J. Death

Heaven and Victorians London, Studio

Vista, 1971; GITTINGS, G. Death, Burial

and Individual in Early Modern England.

London, Routledge, 1988.

20

“N’a-t-on pas trop longtemps appelé

christianisme un mélange de pratiques

et de doctrines qui n’avaient parfois

qu’on lointain rapport avec le message

évangélique et, s’il en est ainsi, doit-on

encore parler de “déchristianisation”

”.Ver DELUMEAU, J. Le Catholicisme

entre Luther et Voltaire. Paris, Press

Universitaires de France, Coll. Nouvelle

Clio, 1971, p. 330. 21 Ver COMTE, A.

Cours de philosophie positive. Paris,

Anthropos, 1969; Système de politique

positive. Paris, Anthropos, 1969.

22

Em 1874, observava Pierre Laffitte:

“La tombe développe le sentiment de la

continuité dans la famille, et le cimetière

dans la cité et dans l’humanité”. Ver

LAFFITE, P. Considérations géneral à

propos des cimetières de Paris, Paris,

1874, p.8.

23

Sobre o episódio é interessante

consultar o clássico estudo de

CHEVALIER, L. Classes laborieuses et

classes dangereuses. Paris, Pluriel,

1978.

Foto: Renata Victor

84

85



capa

o gênio saiu

da garrafa

Nesta imagem que você vê,

os surfistas não são reais.

Nem o mar, Nem as ondas. Na

verdade, esse local não existe.

Tudo nesta imagem é falso,

Foi gerado por inteligência

Artificial, pixel a pixel, e é o

resultado de combinações de

infinitas fotografias

pré-existentes, fruto de

milhões de imagens que as

pessoas carregaram

na internet por dezenas

de anos.

Esta imagem, uma falsa

fotografia, ganhou importante

prêmio na Austrália. Ela foi

gerada por uma ferramenta

de Inteligência Artificial,

similar às mais usadas,

como a DALL-E, Midjourney e

Stable Diffusion, embora os

criadores não confessassem

qual ferramenta utilizaram

para gerar a imagem.

O grande avanço da

tecnologia das IAs tem

assustado o campo das

artes, como a fotografia.

Nesse caso, a imagem gerada

pela empresa Absolutely AI,

instituição por detrás do feito,

é representa um mar revolto

onde surtistas desafiam o

infinito e a natureza.

O resultado visual é

impactante.

Tanto foi assim que os

jurados da DigiDirect,

promotora do concurso,

se deram por satisfeitos.

Acreditaram que a

“fotografia” teria sido feita

a partir de um drone e lhe

deram primeiro lugar no

concurso, na categoria

“Verão”, inscrita sob o

pseudônimo de Jan van Eyck,

nome de importante artista

europeu do século 15.

Segundo a empresa, a ideia

não era quebrar as regras,

mas estabelecer

alguma polêmica:

“Demonstrar como devemos

nos preparar para o ‘Novo

Mundo’, com as inteligências

artificiais, com imagens

paradas ou em movimento,

cada vez mais realistas.

Diante do resultado, os

“vencedores” devolveram

o prêmio: 100 dólares

australianos. Mas ficaram

com a fama de terem

produzido a primeira imagem

gerada por Inteligência

Artificial a ganhar um

concurso de fotografia.

86

87



88

No mundo da fotografia, a

tecnologia está desempenhando

um papel cada vez maior, com

a inteligência artificial (IA)

liderando o caminho em muitas

áreas. Recentemente, uma

fotografia vencedora de um

concurso chamou a atenção do

mundo da arte e tecnologia, pois

foi criada inteiramente

por uma IA.

A fotografia, intitulada “The

electrician”, foi gerada por

uma rede neural alimentada

com milhares de imagens. A

IA criou a imagem com base

em algoritmos que analisaram

e combinaram diferentes

características das imagens

fornecidas, culminando nesse

resultado, duas mulheres, em

tons sépia, onde se destacam

faixas de luz, como “fotografia

espirituais” do início do século

XX. Apesar de ter sido escolhido

como vencedor, Eldagsen optou

por recusar o prêmio.

A fotografia, vencedora do

Sony World Photography

Awards, da World Photography

Organization, foi inscrita pelo

Venceu e não levou.

“The electrician”, o imagem

vencedora do Sony World

Photography Awards, da World

Photography Organization.

artista alemão Boris Eldagsen,

e gerou uma série de críticas e

debates no mundo da fotografia.

Embora tenha sido amplamente

elogiada por alguns, muitos

críticos de fotografia levantaram

questões sobre sua qualidade

artística e mensagem.

A premiação à foto falsa abriu

debates sobre o uso na fotografia

— sobretudo para fenômenos

chamados deepfakes, imagens

que são muito realistas e de

difícil detecção de sua origem.

A estudiosa Susan Sontag,

famosa por seu ensaio “Sobre

a Fotografia”, argumentava

que a fotografia deve ser

analisada por sua capacidade

de capturar a realidade. Na

sua opinião, a fotografia deve

refletir a verdade e oferecer uma

perspectiva objetiva da real.

Sontag talvez questionasse se

“The Electrician” cumpre esse

critério. Outro crítico notável,

Roland Barthes, em seu ensaio

“A Câmara Clara”, argumentou

que uma fotografia é uma

“pequena morte”, um momento

congelado no tempo que nunca

poderá ser reproduzido. Ele

enfatizou a importância de como

uma imagem evoca emoções

e sentimentos em quem a vê.

No entanto, alguns críticos de

fotografia questionaram se “The

Electrician” atinge esse objetivo,

argumentando que a imagem não

parece transmitir uma mensagem

clara ou emocionante.

Críticos que enfatizam a

importância da composição e da

forma na fotografia, argumentam

que a qualidade de uma imagem

não é determinada apenas pelo

assunto, mas também pela

forma como ele é retratado.

E questionaram se “The

Electrician” atinge esse objetivo,

argumentando que a imagem

parece desorganizada e não tem

uma composição forte.

Acredite se quiser.

No final do século 19, surgia,

na Inglaterra, o Círculo

Espiritual de Crewe, sociedade

secreta que se dedicava

ao estudo de fotografias

‘espirituais’. Durante as

primeiras décadas do século

20, coordenado pelo fotógrafo

William Hope, o Círculo de

Crewe produziu grande

variedade de fotos onde

humanos de carne e osso se

confundiam com entidades

espirituais. “The eletrician”

parece suscitar essas

fotografias.

89





Théâtre d’Opéra Spatial.

Nesta página, a imagem criada

por Jason M. Allen usando

a plataforma generativa

de Inteligência Artificial

Midjourney. A pintura se

tornou notícia quando ganhou

a competição anual de belas

artes da Feira Estadual do

Colorado em 5 de setembro de

2022, tornando-se uma das

primeiras imagens geradas

por IA a ganhar tal prêmio.

Artistas acusaram Allen

de trapacear. “Não vou me

desculpar por isso. Ganhei

sem quebrar nenhuma regra”,

disse ele.

Machina eMnemósine.

Na sequência, fotos

da série projeto

Pseudomnesia,

de Boris Eldagsen:

na página seguinte,

“Love” (“Amor”);

nas páginas 96 e 97,

“The Breath” (“A Respiração”),

“The Mask” (“A Máscara”)

e “The Illusion” (“A Ilusão”).

Na página 99, “

The Torso” (“O Torso”)

e “The Veil” (“O Véu”).

92

93



Apesar disso, outros críticos

elogiaram “The Electrician”

por sua capacidade de capturar

um momento no tempo e por

sua qualidade técnica. Eles

destacaram a iluminação e a

nitidez da imagem, bem como

a forma como os perosnagens

são retratados em sua atividade

diária.

Independentemente das

opiniões divergentes, é inegável

que a imagem gerou um

debate acalourado e destacou

a importância contínua da

fotografia como uma forma de

arte e meio de comunicação.

No mundo da fotografia, a

tecnologia está desempenhando

um papel cada vez maior, com

a inteligência artificial (IA)

liderando o caminho em muitas

áreas. Recentemente, uma

fotografia vencedora de um

concurso chamou a atenção do

mundo da arte e tecnologia, pois

foi criada inteiramente

por uma IA.

A criação da fotografia

vencedora é um marco

importante na história da

fotografia, pois prova que a

IA pode ser usada para criar

arte em um nível semelhante

ao humano. Além disso, essa

fotografia destaca a interseção

entre tecnologia e arte e

questiona a definição tradicional

de arte.

Embora a ideia de uma IA

criando arte possa parecer

intimidante para alguns, é

importante reconhecer que a

tecnologia não está substituindo

a criatividade humana, mas sim

ajudando-a a evoluir. A IA pode

ser usada para criar imagens

incrivelmente complexas e

originais que os seres humanos

podem não ser capazes de

produzir sozinhos.

Além disso, a IA pode ser

usada para resolver problemas

criativos em diferentes campos,

desde a engenharia até a

medicina. A capacidade da IA

de analisar grandes quantidades

de dados e encontrar padrões

é uma ferramenta valiosa

para a resolução de problemas

complexos.

No entanto, é importante

reconhecer que a IA não é

uma panaceia para todos os

problemas criativos.

A criatividade humana ainda

é necessária para avaliar e

interpretar as criações da IA e

dar-lhes significado. A tecnologia

não pode substituir a visão e o

julgamento humanos, mas pode

ser usada como uma ferramenta

para aprimorar e desenvolver a

criatividade humana.

No futuro, podemos esperar

ver mais e mais exemplos de

IA sendo usada na arte e na

fotografia, à medida que a

tecnologia se desenvolve ainda

mais. Será interessante ver

como os artistas e fotógrafos

incorporam a IA em seu trabalho

e como a tecnologia continua a

evoluir.

Por fim, a fotografia vencedora

do concurso criada pela IA é um

marco importante na história da

arte e da tecnologia. Ela destaca

a capacidade da IA de criar

arte em um nível semelhante

ao humano. Embora a IA possa

ser usada como uma ferramenta

para a resolução de problemas

criativos, ainda é necessário o

julgamento humano para avaliar

e interpretar as criações da

IA. À medida que a tecnologia

continua a se desenvolver,

podemos esperar ver mais

exemplos de IA sendo usada na

arte e na fotografia, à medida

que os artistas incorporam a

tecnologia em seu trabalho e

aprimoram sua criatividade.

94

95





Nem Deus nem o Diabo:

a inteligência está nos

detalhes.

Talvez alguns dedos a

mais, ou um “um jeito

de corpo”, nem tudo é

glorioso no reino

das imagens

geradas por IA.

O canal no Discord

mostra resultados

duvidosos (ou

pavorosos), chamado

failed-diffusions,

produzidos pelo Stable

Diffusion, ferramenta

de geração de imagens.

Algumas delas foram

compartilhadas

pelo tecnólogo

americano Andy Baio, e

viralizaram nas redes.

(Nesta página, imagens:

Discord/Divulgação)

a falsa

memória

de Boris

Eldagsen

O projeto Pseudomnesia,

criado pelo artista alemão

Boris Eldagsen, autor, dentre

outras obras, da imagem “The

eletrician”, vencedora do do

Sony World Photography

Awards, é uma instalação

artística que desafia a nossa

percepção da realidade. O

projeto é composto por uma

série de fotografias manipuladas

digitalmente, que criam

cenas surreais e oníricas,

aparentemente retiradas de

nossos sonhos mais profundos.

No entanto, essas cenas não

são criações imaginárias de

Eldagsen, mas sim baseadas

em eventos e locais reais, que o

artista visitou e fotografou em

suas viagens pelo mundo.

O nome do projeto,

Pseudomnesia é uma referência

à condição psicológica conhecida

como falsa memória, na qual

uma pessoa se lembra de

eventos que nunca ocorreram.

Essa condição é muitas vezes

associada a traumas emocionais,

e é comumente relatada por

vítimas de abuso infantil.

No entanto, no caso de

Eldagsen, a falsa memória

é deliberadamente criada,

como parte de uma exploração

artística da natureza da

percepção e da realidade.

Para criar as imagens em

Pseudomnesia, Eldagsen usa

uma técnica de manipulação

digital que envolve a

98



Foto: Thomas Gerwers

sobreposição de várias camadas

de fotografias em uma única

imagem final. Essas camadas

podem incluir fotografias de

paisagens naturais, edifícios,

objetos e até mesmo pessoas, que

são combinadas para criar uma

imagem única que parece extrairse

de um sonho.

No entanto, apesar da aparência

surreal das imagens em

Pseudomnesia, Eldagsen enfatiza

que todas elas são baseadas em

eventos e locais reais.

“Eu viajo muito e gosto de

explorar lugares que tenham

um certo mistério ou atmosfera

sobrenatural”, diz o artista.

“Depois, quando começo a

trabalhar em uma nova imagem,

tento criar algo que capture essa

atmosfera, mas que também

pareça possível, como se pudesse

ter realmente acontecido”.

A manipulação digital das

imagens em Pseudomnesia

é realizada com um cuidado

meticuloso, a fim de garantir

que as cenas pareçam naturais

e plausíveis, apesar de seu

conteúdo surreal. Eldagsen

também presta muita atenção

à iluminação e às sombras nas

imagens, a fim de criar uma

sensação de profundidade e

textura.

“Acho que a iluminação é uma

das coisas mais importantes na

fotografia”, diz ele. “Se você pode

criar a iluminação certa, você

pode fazer qualquer coisa

parecer real”.

Embora as imagens em

Pseudomnesia sejam

impressionantes em sua qualidade

e complexidade, elas também são

altamente evocativas, sugerindo

histórias e narrativas que não

são explícitas na imagem em si.

Talvez seja esse um dos pontos

criticados no seu trabalho: a falta

de objetividade ou “excesso de

imaginação”.

Eldagsen gosta de deixar essas

histórias abertas à interpretação

do espectador, permitindo que

cada pessoa crie sua própria

narrativa a partir das imagens.

“Eu acho que é importante deixar

um pouco de espaço para a

imaginação das pessoas”, diz ele.

“Eu não quero contar a história

toda, eu quero que as pessoas

criem sua própria história”.

Boris Eldagsen é um artista

visual alemão.Suas obras,

que exploram temas como a

identidade, a tecnologia e a

natureza humana, têm sido

exibidas em galerias e museus

ao redor do mundo.

Nascido em 1970, em Bonn,

Eldagsen estudou fotografia na

Universidade de Artes e Design

de Karlsruhe e mais tarde

fez mestrado em fotografia

e imagem em movimento, na

Academia de Arte e Design de

Bergen, na Noruega.

O trabalho de Eldagsen é

marcado por uma forte

influência do cinema e da

literatura, criando imagens

que desafiam as convenções

estéticas e narrativas. Entre

suas obras mais conhecidas

está a série “Bilderbuch”,

que combina fotografia e

ilustração em um formato

de livro de histórias. Outro

destaque é a instalação

“The Feast of Trimalchio”,

exibida no CAC de Adelaide,

na Austrália, em 2018. Boris

Eldagsen tem sido reconhecido

por sua contribuição à

arte contemporânea. Seu

trabalho continua a desafiar

espectadores em todo o mundo.

Nota do editor:

Todos os textos desta seção

foram gerados por uma

inteligência artificial, o

ChatGpt, chatbot online

desenvolvido pela OpenAI.

100

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ensaio fotográfico

lado oculto

Clarice Melo

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entrevista

nos tempos

do hipercinema

Foto:Arquivo pessoal/Divulgação

Foto: Divulgação

Árida luz nordestina:

o cinema de Rucker Vieira,

de Paulo Cunha,

358 páginas,

Editora Contraluz, 2022

Unicaphoto procurou o pesquisador Paulo Souza para comentar sobre essa tal

”hipermodernidade”, entre outros neologismos como “hipercinema”. Os termos estão

na sua tese Cinematografia digital: da arte do índice à arte da síntese, que acaba de

ser aprovada, e recomendada à publicação pelo Programa de Pós-Graduação em

Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito à obtenção

do título de doutor em Comunicação. No centro do estudo, a direção de fotografia

na era digital ou o que singulariza essa cinematografia. Nesta entrevista, Souza

comenta alguns pontos da pesquisa, na construção, segundo ele, de novos tempos,

novos paradigmas, no surgimento de uma “arte da geração de imagens sintéticas”.

(Altas) luzes, câmeras, ação.

Em busca do controle absoluto.

Filmagem do longa Hardcore:

Missão Extrema (Hardcore

Henry, Ilya Naishuller,2015).

Atores-dublês filmam com

duas GoPro’s montadas lado a

lado, para facilitar a captura

de imagens com ajustes de

exposição diferentes para cada

um dos dispositivos.

Fonte: Imagens de divulgação

da STX Entertainment

Unicaphoto – Há um termo

recorrente no seu trabalho, ou

um universo de onde você parte:

a hipermodernidade. Você pode

conceituar esse termo e como

ele é útil para entendermos

as transformações culturais,

sobretudo da fotografia no

cinema?

Paulo Souza –

A hipermodernidade é um

termo que descreve uma fase ou

estágio avançado da sociedade

contemporânea, caracterizada por

mudanças rápidas e profundas

em várias esferas da vida. É

uma extensão do conceito de

modernidade, mas com ênfase

nas transformações aceleradas

e intensificadas pela influência

das tecnologias digitais, da

globalização e da sociedade de

consumo.

Na hipermodernidade, a

tecnologia desempenha um

papel central na vida cotidiana,

permeando todos os aspectos da

sociedade, desde as interações

sociais até as instituições

governamentais e econômicas.

A Internet e as redes sociais

tornaram-se ferramentas

essenciais de comunicação e

informação, permitindo a conexão

instantânea e global entre pessoas

e culturas.

Além disso, a hipermodernidade é

marcada pela aceleração do tempo

e da velocidade das mudanças.

As pessoas estão constantemente

108

109



“Brutalmente real”.

Cena do longa “Tangerina”

(“Tangerine”, Sean Baker, 2015).

o filme recebeu alguns prêmios

pelas singularidades de sua

fotografia. A obra, fotografada

por Sean Baker e Radium

Cheung, utilizou um Apple

iPhone 5S com um adaptador

anamórfico da Moondog Labs

acoplado na lente do aparelho

para a filmagem.

“Devido à leveza do celular e

de suas lentes seria impossível

evitar uma grande trepidação

nas situações de câmera na

mão, o que poderia aproximar

o longa dos milhares de

vídeos amadores gravados

diariamente com telefones

portáteis – uma estética que

não interessava à dupla de

fotógrafos”. Souza cita Maria

Marina Cavalcanti Tedesco,

quanto à portabilidade e

mobilidade em produções de

audiovisual, no que toca à

direção de fotografia na era

digital, ponto de partida

do seu estudo.

expostas a um fluxo contínuo de

informações e estímulos, o que

leva a uma sensação de urgência e

pressão para acompanhar o ritmo

acelerado da sociedade.

Na esfera cultural, a

hipermodernidade é

caracterizada pela fragmentação

e pela diversidade de estilos e

expressões. Não há um único

padrão dominante, mas sim uma

multiplicidade de gostos, opiniões

e identidades. As fronteiras entre

alta cultura e cultura popular

tornam-se borradas, e novas

formas de expressão artística e

cultural emergem constantemente.

No entanto, é importante

destacar que o conceito de

hipermodernidade é objeto

de debate entre estudiosos

e teóricos sociais. Alguns

críticos argumentam que a

hipermodernidade é apenas uma

continuação da modernidade,

enquanto outros a veem como

uma ruptura significativa com

os paradigmas anteriores. A

interpretação e definição da

hipermodernidade podem variar

dependendo do contexto e das

perspectivas teóricas adotadas.

Unicaphoto – Que parâmetros

marcam as rupturas,

intensificações e transformações

da direção de fotografia na

hipermodernidade?

PS –A quebra da hegemonia dos

meios de produção é uma marca

importante. Antes, a produção

audiovisual estava centrada nos

grandes estúdios de cinema ou

redes de televisão. Com o digital

e o consequente barateamento

das tecnologias, a centralidade

da produção está agora nas

mãos dos usuários, os chamados

prosumidores. Em volume,

produz-se muito mais para redes

sociais do que já foi produzido em

toda a história do cinema.

Um segundo ponto a ser

destacado é a consolidação de

uma sociedade de tecnovigilância,

inundada por máquinas de ver,

armazenar e analisar imagens.

A inteligência algorítmica é uma

marca da contemporaneidade.

Esses dispositivos de vigilância,

como câmeras, drones, celulares,

dispositivos vestíveis, entre outros,

são fortemente incorporados ao rol

de equipamentos fotográficos do

hipercinema.

Por último, destacaria uma

caminhada rumo ao virtual, um

escape de nosso universo natural

em busca de fotografar dentro das

redes digitais, dos aplicativos de

comunicação, de relacionamento,

utilizando a internet como locus

de um novo cinema, com novos

códigos. Além disso, vemos a

consolidação do cinema digital, a

criação de universos inteiramente

gerados por computador, dando

vazão à imaginação humana com

uma qualidade fotorrealista antes

não alcançável.

Unicaphoto – No ponto de vista

tecnológico, o que caracteriza

(ou singulariza) a cinematografia

digital, hoje? Se pode falar

de um estilo, nessa dimensão,

atualmente?

PS – Em geral, penso na

adoção de dispositivos antes

inexistentes ou dedicados a

outros usos. A tradicional câmera

cinematográfica é apenas mais

um dos dispositivos de filmar.

Como a produção de imagem

está disseminada na sociedade,

isso transparece e se integra aos

filmes.

No entanto, não vejo a

cinematografia digital como

um estilo, mas sim como um

fenômeno cultural e tecnológico.

As implicações estilísticas são

derivadas desse fenômeno e,

claro, existem. Maneirismos do

cinegrafista doméstico são muito

mais comumente utilizados,

como movimentos irregulares

de câmera, perdas de foco e

zooms abruptos, surgindo agora

para naturalizar a imagem

cinematográfica digital e

compatibilizar seu uso com o

contexto dos personagens.

Podemos falar em um novo estilo

também quando pensamos nas

ações desenvolvidas em um universo

fílmico que habita as redes. Hoje,

podemos ver um casal flertar sem

o tradicional plano e contraplano

de troca de olhares, mas sim com

hesitações na digitação de um texto

no WhatsApp e troca de emojis.

Essa nova gramática audiovisual

certamente compreende um novo

corpo estilístico que vem sendo

explorado.

Unicaphoto – A tecnologia

oferece impactos, certamente

nessa produção. Mas que outros

fenômenos terminaram por

mudar nossa forma de produzir

(e consumir) imagens, de toda

ordem?

PS – Acredito que o fenômeno

formal, tecnológico ou de

linguagem não se dissocia do

contexto social e cultural em

que acontece, transformando-o

e sendo por ele transformado.

A condição hipermoderna,

de uma sociedade acelerada,

individualista, com desejos de

participação, personalização e

necessidade de intensificação

do prazer, acaba por refletir na

busca de estratégias por parte da

instância criativa.

Os estúdios de cinema percebem

a mudança social, o sucesso de

indústrias vizinhas, como a dos

games, nas quais há muito mais

interação e engajamento por

parte do jogador/consumidor. A

partir daí, naturalmente, criamse

filmes espetáculo, cadeiras que

vibram, tecnologias imersivas,

lançamentos megalomaníacos,

roteiros com premissas de

interatividade projetada, entre

outras tentativas de atualizar

o imaginário do consumo de

cinema.

Unicaphoto – Vivemos,

portanto, o fim da era

“romântica” do cinema?

Podemos falar, hoje, de um

cinema novo, um hipercinema,

a partir de tantas mudanças?

Se sim, como se deu essa

transformação? E que mudanças

mais experimentaremos nesse

hiperconsumo de imagem?

PS – Não acredito em mortes

do cinema, mas sim em ciclos

que se alteram e tensionam

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demandas distintas a cada

tempo. No cinema comercial, nos

blockbusters, há uma tendência

ao consumo acelerado, à

intensificação e ao espetáculo. No

entanto, o cinema não se resume

apenas a isso, felizmente.

No cinema de horror, por

exemplo, observamos um

fenômeno interessante: filmes

mais densos, com menos sustos

gratuitos, explorando o medo

atmosférico em detrimento

da geração anterior, em que

a aceleração e o caos na ação

levavam o espectador ao limite.

Outra tendência importante que

tenho observado é a dos filmes que

buscam trabalhar com a questão

sensorial, um cinema háptico, no

qual as sensações e percepções

não cognitivas ganham

protagonismo. Aqui, vemos

filmes mais contemplativos, nos

quais a experiência do tempo

é mais comumente explorada

por meio de planos longos,

movimentos solenes de câmera

e o estabelecimento de vínculos

afetivos com a audiência que

nada têm a ver com tecnologia ou

fragmentações.

Unicaphoto – O cinema,

você menciona em seu

trabalho, sempre dialogou

com o amadorismo. Você cita

experiência onde a tecnologia,

no passado, entrou em casa,

como foi o cado do Superoito.

E, hoje, com tanta tecnologia,

tanta “democracia de acesso”,

como drones, e Dashcams,

para ficar nesses mais simples,

onde se pode fazer cinema

sem tantos recursos (e sempre

com consideráveis facilidades

técnicas oferecidas smartphones

e aplicativos etc) a tendência

é que esse amadorismo vire a

regra na produção de imagem

ou que todos nós viremos

hipercineastas? O que acabou e

o que começou, afinal?

PS – Uma das principais

características do cinema

amador na era digital é

a capacidade de criação e

distribuição de conteúdo por

qualquer pessoa com acesso aos

recursos tecnológicos necessários.

Isso permite que indivíduos

expressem sua criatividade,

contem histórias pessoais e

compartilhem suas visões com

um público potencialmente

amplo.

A facilidade de uso dos

dispositivos digitais e o acesso

a softwares de edição de vídeo

também contribuem para o

crescimento desse fenômeno.

As pessoas podem capturar,

editar e aprimorar seus vídeos

de maneira relativamente

simples, sem a necessidade

de conhecimentos técnicos

avançados. Além disso, a

capacidade de compartilhar esses

vídeos nas plataformas de mídia

social permite que os cineastas

amadores alcancem audiências

maiores e interajam com elas.

Assim como nos ciclos do

super oito, cinema direto

ou nos novos cinemas, a

produção com dispositivos

mais portáteis e com fluxo de

produção e distribuição não

hegemônicos sempre coexistiu

com as produções mais formais

e estruturadas. O que há de

novo no contemporâneo é a

naturalidade com a qual as

grandes indústrias passam

a incorporar linguagem e

tecnologia, antes amadoras, aos

seus grandes filmes.

Unicaphoto – Neste número,

Unicaphoto discute um pouco

não a fotografia digital,

mas as imagens geradas por

Inteligência Artificial? Qual sua

visão sobre o tema, levando em

conta suas pesquisas?

PS – Nos últimos anos, com o

avanço da inteligência artificial

e do aprendizado de máquina,

tem havido desenvolvimentos

significativos na geração de

imagens por meio de algoritmos.

Por exemplo, as redes neurais

generativas adversariais

(GANs, do inglês Generative

Adversarial Networks) têm sido

usadas para gerar imagens

realistas, que parecem ter sido

criadas por seres humanos.

As GANs consistem em dois

componentes principais: o

gerador e o discriminador. O

gerador produz amostras a

partir de ruído aleatório ou de

um conjunto de dados existente,

enquanto o discriminador avalia

se as imagens geradas são

verdadeiras ou falsas. Esses

dois componentes são treinados

simultaneamente em um processo

de competição, o que permite ao

gerador aprimorar sua habilidade

de gerar imagens mais realistas

ao longo do tempo.

Embora os resultados tenham

melhorado significativamente,

ainda existem desafios a serem

superados para alcançar um

nível de perfeição e criatividade

equiparável ao do ser humano.

A geração de imagens envolve

muitos aspectos complexos,

como compreensão de contexto,

emoção, estilo e interpretação

visual, que são habilidades

intrinsecamente humanas.

Estamos na pré-história

das imagens geradas por

Inteligência Artificial, mas é

impressionante – e assustador –

imaginar seu potencial.

A ideia de uma máquina capaz

de se auto avaliar e melhorar

o resultado de seu próprio

processamento é impressionante.

Estamos frente a diversos novos

dilemas éticos no campo da

imagem e discussões urgentes

precisam ser travadas.

Os sons ao redor.

Na sua tese, Paulo Souza

registra certa familiaridade

visual entre movimentos de

cinema independente, como

a Nouvelle Vague, como

influências indiretas para

o nascimento de novos “estilos”

(o entre aspas são nossos,

porque talvez o autor não

concorde com o termo).

Entre as novas tendências

está o mumblecore. A palavra

vem de mumble, algo “como

murmúrio, fala ininteligível, e

está diretamente associada a

má qualidade sonora de muitos

dos filmes do ciclo”. A criação

do termo se atribui ao editor

de som, da equipe de Andrew

Bujalski.

Na cena ao lado, Sara (Seung-

Min Lee) e Alan (Justin Rice)

estão procurando algo

em “Mutual Appreciation”,

(“Admiração Mútua”, no Brasil),

2005, escrito e dirigido pelo

estadunidense Andrew Bujalski,

considerado o “pai do

momblecore”, um dos diretores,

entre vários, abordados na

pesquisa de Paulo Souza.

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ensaio

frágil

Nivaldo Carvalho

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Um filho recém-nascido, uma cidade nova.

Três corpos tendo que deixar um espaço e ocupar outro.

Uma casa inteira sendo embalada pra gente carregar.

Corpos, coisas e caixas a casa uma grande caixa com

coisas a serem manuseadas com cuidado.

A luz, o movimento, a passagem, a transição:

como se chegou até aqui?

No fim, somos nós que nos reorganizamos

no próprio corpo, frágil.

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fotojornalismo

não, não é

fotojornalismo

Simonetta Persichetti

Foto: Gabriela Biló/Folhapress

Toda foto é política. Não existem imagens ou olhares

ingênuos. Existem a imagem histórica, o contexto e o

olhar do período.

O debate que tomou conta das redes sociais a respeito da

imagem (não a defino fotografia de propósito) de Gabriela

Biló, publicada na capa do jornal Folha de S.Paulo já

estava há muito tempo para explodir.

A imagem de Gabriela Biló não é a primeira e nem será

a última a criar polêmicas. Com isso dito, é importante

ressaltar que discordamos frontalmente do ataque que

a fotógrafa vem sofrendo nas redes sociais. Este tipo de

ofensa é inaceitável, assim como a violência demonstrada.

Devemos refletir, no entanto, sobre o que poderia ter

criado tanto impacto na imagem divulgada: o papel do

fotojornalismo e sua função na criação de leituras de

histórias tem sido deixado de lado. Nenhuma imagem

é unívoca ou tem apenas uma interpretação, mas a

decodificação de seus códigos depende do momento sóciohistórico

vivido.

Se é verdade que o fotojornalismo ou as fotografias

jornalísticas foram desde sempre manipuladas

(poderíamos ter uma lista de fotografias que falsificaram

a história) e que a fotomontagem foi muito usada por

artistas e publicadas em revistas, também é verdade

que nem tudo que é publicado na mídia é fotojornalismo.

Além disso, estas imagens – sem inocentá-las – estavam

dentro de um tempo histórico e de uma circulação restrita

e não escancaradas e circulantes pelas redes sociais.

O fotojornalismo por mais expressivo que possa ser tem

suas normativas, uma delas é a da noticiabilidade, assim

como regras éticas que constam da maioria dos manuais

de redação – se é que alguém os lê. No fotojornalismo

contemporâneo – que se inicia no final dos anos 1990 e é

muitas vezes apoiado por editores de fotografia (quando

existiam) – esta busca pela “expressividade criativa”

foi muitas vezes estimulada como uma nova forma de

linguagem; não era. A partir daí essa vertente “criativa”

foi se potencializando com a única função de criar

discussões e não debates.

Em que momento sócio-histórico se dá a publicação da

referida imagem? O de uma eleição conturbada e da

tentativa de golpe acontecida no dia 8 de janeiro, além

A partir da publicação da foto do presidente Luiz Inácio

Lula da Silva, a doutora, jornalista e crítica de fotografia

Simonetta Persichetti tece uma reflexão sobre a imagem,

o fotojornalismo e suas políticas.

Matéria originalmente publicada na revista

Arte!Brasileiros, em 20/01/2023.

do recrudescimento das fakes news do sentimento de

sermos enganados e vilipendiados pelas notícias ou pela

falta delas. Ou seja, não há momento mais inadequado.

Já em 2017 “fake news” foi eleita a palavra do ano pelos

dicionários internacionais e desde lá se tornou vocábulo

comum em todas as conversas.

Em contrapartida, nos últimos anos (que coincidem

com a pandemia) o fotojornalismo ressurgiu em seu

papel fundamental em tentar restabelecer a ordem dos

acontecimentos. Por outro lado, encontramos toda uma

“geração TikTok” que usa a imagem sem conhecê-la

e que de forma paradoxal não consegue interpretá-la,

logo a vive de forma literal. É aí que a imagem se torna

perigosa.

A estranheza da imagem de Biló está também na legenda

que procura explicar – não se sabe para quem – múltipla

exposição. Conceitos vazios para a maioria das pessoas.

Não se trata aqui de usar técnicas, mas se trata aqui

de encaminhar o pensamento para algo que de fato não

existiu. Manipular uma fotografia não é usar editores de

imagem, é alterar seu sentido. A escolha criativa se dá na

gramática que você utiliza para apresentar um fato e não

na sua distorção. Todo jornalista – e, sim, o fotojornalista

é antes de mais nada um jornalista e não um artista –

é sim responsável por aquilo que torna público e não

pode se isentar afirmando que cada um interpreta como

quer. Não. Existe uma credibilidade intrínseca em quem

procura determinada mídia para se informar.

Quando o jornalista se torna personagem da própria

notícia que está buscando, se inserindo por meio de

vídeos, selfies e gracejos, transformando tudo em memes

– que não é humor, mas alienação – estamos caminhando

por um terreno um tanto perigoso. Espanta a estética das

redes sociais que se impõe de forma leviana sobre todas

as áreas do conhecimento sem a devida reflexão.

Falar que jornalismo se tornou entretenimento já está

ultrapassado numa sociedade que trata tudo como

espetáculo. Esta discussão foi muito falada pela tão

citada Susan Sontag, que cria uma divisão entre estético

e político, e pela escola francesa pós-estruturalista, que

desdenha a fotografia documental, jornalística, a ideia de

autoria. Aliás a ideia de autoria ou do reconhecimento do

autor pressupõe uma responsabilização.

Como afirma a pesquisadora Ariella Azoulay: “A criação

ou a imaginação não são o oposto do político”. Existe sim,

uma intencionalidade política na imagem divulgada pela

Folha de S.Paulo junto a um texto que leva a uma leitura

da imagem.

Foi triste o momento da publicação desta imagem, mas

quem sabe desta polêmica não possa nascer um bom

debate e reflexão de como estamos construindo nossa

história a partir do jornalismo e que retornemos a

respeitar a verdade factual dos acontecimentos.

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aconteceu

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AGOSTO

29/08 - Aula inaugural da 2ª

turma do MBA Cultura Visual

Participação da professora

Marina Feldhues

SETEMBRO

01/09 - Encerramento da

aula de História e Estética da

Fotografia e do Audiovisual

Disciplina ministrada pela

professora Jualianna Torezani

e pelo professor Álvaro Brito.

Um passeio de Catamarã

Passeio fotográfico pelo rio

Capibaribe, em parceria com

a empresa do Catamarã.

Turma do segundo módulo da

graduação.

02/09 – Visita à Fundaj

Turma do quarto módulo

da graduação. Disciplina de

Captura de Vídeo e Edição,

ministrada pelo professor

Filipe Falcão. Na ocasião

assistiram ao filme: “Maria:

Ninguém Sabe a Minha

História”, que conta a vida de

Maria Bethânia.

09/09 – Convidado Felipe

André Silva

Turma de graduação. Felipe

André Silva é cineasta,

escritor e curador, ele falou

sobre como fazer cinema com

baixo orçamento, experiências

com direção e set de filmagem,

trabalho com atores,

desenvolvimento de estéticas

audiovisuais e muito mais.

20/09 – Palestra sobre

cultura visual

Com a pesquisadora Alice

Martins, falou sobre “Estudos

da Cultura Visual: uma breve

cartografia”.

24/09 – Manhã Fotográfica

com as Crianças da Biblioteca

Caranguejo Tabaiares

Dia de vivência com crianças da

biblioteca Caranguejo Tabaiares,

vendo um pouco do analógico e

digital, com apoio dos alunos do

segundo módulo da graduação.

OUTUBRO

01/10 a 13/10 - Exposição

fotográfica no Convento de São

Francisco

Parceria do curso de fotografia

da Unicap com o convento

de São Francisco, em Olinda.

A mostra é composta por

produções de professores e

alunos do segundo módulo,

intitulada “Nosso Olhar Sobre o

Convento”.

03/10 – Prêmio Pernambucano

de Fotografia 2021

O evento elegeu 15 fotógrafos

para serem premiados e dentre

eles, o nosso ex-aluno Rafael

Cândido.

Ex-aluna Paloma Aquino recebe

prêmio internacional

Premiada no concurso

Outstanding Maternity Award

06/10 – Alunos da

Especialização recebem a visita

de João Vieira Júnior

O professor Marcelo Pedroso, da

disciplina “Processos Criativos

e Gestão de Projetos em

Fotografia” recebeu o produtor

cinematográfico e sócio da

Carnaval Filmes, que falou de

sua experiência de montagem

dos seus longas-metragens,

internacionalmente conhecidos e

demais produções.

17 a 21/10 - Exposição

fotográfica “Por trás da Lona”

O ex-aluno Arnaldo Sete, teve

a sua mostra inaugurada na

Biblioteca Central da Unicap.

18/10 – Alunos de fotografia à

exposição “Por trás da lona”

Alunos do segundo módulo da

graduação visitaram a exposição

e tiveram uma conversa com

o próprio autor sobre seu

processo criativo.

20/10 – Feira de Profissões

2022

O curso de Fotografia e demais

graduações participaram

de ação intitulada “Feira de

Profissões”, no colégio Santa

Maria. Com o intuito de engajar

os alunos, a coordenadora

Renata Victor, com apoio da

aluna Letícia Lima e do aluno

Pedro Augusto, leva estúdio

fotográfico para registro dos

estudantes.

NOVEMBRO

04/11 – Avaliação Cinco Estrelas

O Curso de Fotografia foi avaliado

com 5 estrelas pelo Guia

Quero/ Estadão

08/11 – Visita técnica à

Rede Globo

Os(as) alunos(as) do segundo

módulo da graduação

fizeram uma visita técnica

aos estúdios da Rede Globo,

guiada pelo supervisor de

cinegrafia da empresa:

Antônio Henrique.

09 a 11/11 – FotoVídeo

Décima primeira edição

do evento que se tornou

referência no calendário do

curso de Fotografia. Três

dias de imersão ao universo

fotográfico e audiovisual,

com oficinas, com temas

diversos, palestras e

mostras de vídeos, abertas

ao público.

18/11 – Convidada Ana

Yoneda

A ex-aluna da pósgraduação,

Ana Yoneda

foi convidada para uma

conversa com os alunos

do segundo módulo, sobre

arte conceitual, vídeo

performance, processos

criativos e as relações entre

fotografia e audiovisual.

28/11 – Convidada Milena

Travassos

Presença da artista visual,

pesquisadora e professora

Milena Travassos, para uma

conversa sobre as ações

do projeto “Relâmpago-

Trovão”. A ideia foi pensar

sobre a linguagem de forma

expandida (linguagem dos

homens e linguagem em

geral, W. Benjamin).

29/11 – Manhã de fotos com

as crianças do Procriu

Grupo composto por 36

meninos e meninas do

Projeto Minha Vida na

Comunidade, do Centro de

Revitalização e Valorização

da Vida, conhecido como

Procriu, visitaram o nosso

estúdio fotográfico, para

uma tarde de registros. As

crianças criaram textos e

ilustrações publicados em

um livro. Niedja Dias cuidou

da produção fotográfica,

junto com a professora

Carla Teixeira, do curso de

Jornalismo.

30/11 – Exposição

Interdisciplinar 2022.2

Graduação de Fotografia

inaugura, no hall da

Biblioteca Central Unicap,

exposição composta por

trabalhos desenvolvidos

ao longo do semestre:

Iluminação, As Artes e

as Novas Tecnologias,

Linguagem Fotográfica I,

Semiótica da Fotografia e

a disciplina introdutória,

incluindo, também, as

disciplinas dos cursos de

Jornalismo e Publicidade

e Propaganda. A mostra

teve exibição até o final de

fevereiro de 2023.

30/11 – Oficina de Pinhole

com alunos do Liceu

Os alunos do colégio

Liceu de Artes e Ofícios,

vivenciaram a experiência

do princípio da fotografia

analógica, com a professora

Niedja Dias, através da

técnica de Pinhole, que

consiste em fotografar com

latinhas.

DEZEMBRO

03/12 – Exposição Coletiva

“Reflorestar”

Visita guiada pela Christal

Galeria, com alunos do

segundo e do quarto módulo

da graduação.

14/12 – Resultado do 3º

Concurso Fotográfico

“Consciência Negra”

Campeã do júri técnico:

Franciele Isabel de Souza

Campeão do júri popular:

Ítalo Henrique Gomes Filho

14/12- Resultado do 2º

Concurso Fotográfico SOS

Oceanos

Campeão do júri técnico:

Paulo Henrique Romão Dias

Campeão do júri popular:

Douglas Fagner Correia de

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Almeida

20/12 – Confraternização à

conclusão de mais uma turma de

graduação

Na ocasião, professores, alunos

e alunas da graduação, MBA,

Especialização e equipe de trabalho,

se uniram para confraternizar-se

ao final de mais um semestre.

JANEIRO

18/01 – Especialização em retorno

às aulas

A quinta turma da Especialização

“As Narrativas Contemporâneas da

Fotografia e do Audiovisual”, teve

sua primeira aula sobre Direção de

Fotografia com o professor Paulo

Souza.

FEVEREIRO

01/02 – Última aula do professor

Paulo Souza

A turma da especialização “As

Narrativas Contemporâneas da

Fotografia e do Audiovisual” se

despediu do Professor Paulo Souza,

que ministrou a disciplina “Direção

de Fotografia”. Como convidada,

receberam Sylara Silvério, diretora

de fotografia e assistente de

câmera.

Paulo foi aluno do Curso Superior

de Fotografia, e também já passou

pela especialização, até lecionar

para as turmas. Encerrando mais

um ciclo, agora vai seguir sua

carreira no Rio de Janeiro.

130

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Priorizar atividades

que coloquem

o campus em contato

com a sociedade.

Esta é uma das diretrizes

do curso de fotografia da Unicap,

além de estimular a prática de

saberes e vivências

diversas, compartilhadas.

Exposições, prêmios, visitas à

instituições de pesquisa e órgãos de

comunicação, consultas, atividades

de formação continuada, serviços à

comunidade, marcaram

as ações do curso de fotografia da

Unicap, de agosto de 2022

a fevereiro de 2023.

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