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OR #12

A Originais Reprovados chega à sua 12ª edição com narrativas e poemas de alunos de diversas unidades da USP. Em 2017, a OR publica, além dos 18 originais da revista impressa, mais 16 autorias escolhidas pela equipe do editorial disponíveis online.

A Originais Reprovados chega à sua 12ª edição com narrativas e poemas de alunos de
diversas unidades da USP. Em 2017, a OR publica, além dos 18 originais da revista
impressa, mais 16 autorias escolhidas pela equipe do editorial disponíveis online.

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Nota Editorial

Nesta edição, implantamos diversas mudanças: modificamos o logo

e a identidade da revista, para refletir o espírito jovem e arrojado dos universitários

dos mais diversos campi. Essa edição conta com textos de autores

da ECA, FFLCH, ICMC, EESC, EACH, Poli, EEL, IEB, PGHEA,

desde alunos de graduação até de pós-doutorado. Como resultado, temos

uma revista heterogênea e extremamente plural, tanto no conteúdo dos

textos quanto nas formas.

Encontros sobrenaturais, assassinatos, dimensões paralelas, epifanias…esses

são alguns dos temas que permeiam as páginas da 12ª edição

da Originais Reprovados.

Nós agradecemos a confiança que mais de 120 autores depositaram

na Equipe OR!

Boa leitura!

4


SUMÁRIO

A Criança Anarquista | 10

Asas de Anjo | 16

BMA | 18

Escárnio ao Sono | 19

Hibiscus | 20

Jardim do Éden | 22

Jornal | 34

Marília | 35

Medo do Mar | 40

Mudança | 42

O Espelho e a Mosca | 44

Pietá | 50

Miragem | 51

Psicologia de um Letárgico | 52

5


Tempo | 54

Irmãos | 59

Vitrine Não Estou Vendendo Nada | 60

Yuki-Onna | 64

ESCOLHA DOS EDITORES

Azul | 71

Bons Tempos, Aqueles | 73

Concurso de Afogamento de Pássaros | 75

Convidada | 78

Córnea | 79

Inconfessável | 80

Em Branco | 89

Maus Poemas | 91

Mentira | 92

Morfologia | 93

Ódio ao Terceiro Mundo | 95

Relacionamento | 98

Poema dos Dias | 103

Remendos | 106

Ruídos | 108

Três Canções em Mi Menor | 112

Triálogos da Mobília | 114

escolha de Mariana Lari Canina

escolha de Nathália Caixeta Francisco

escolha de Pedro Tajiki Salles

escolha de Letícia Yumie Iasukawati

escolha de Karen Kuniyoshi Nakaoka

escolha de Júlia Gretz

escolha de Giovanna Romera Rossi

escolha de Thaísa Carvalho de Oliveira

escolha de Eduarda Figueiredo Ribeiro

escolha de Gabriela Almeida Mendizabal

escolha de Maria Beatriz Rosa

escolha de Victória A. M. Gerace

escolha de Michelle Mayumi Oshiro

escolha de Gabriela Barbugian Azevedo

escolha de Larissa Prada

escolha de Heloísa Fernandes Muriano

escolha de Elisa Kemil Casotti

6


Os autores

A Criança Anarquista

Autor: Leonardo Piana Ribeiro

E-mail: lnrd.piana@gmail.com

Asas de Anjo

Autor: Andri Carvão

E-mail: andricarvao@hotmail.com

BMA

Autora: Daiane Lima

E-mail: daiane.lima.s.2010@gmail.com

Escárnio ao Sono

Autor: Igor Dovizio

E-mail: igor.dovizio@usp.br

Hibiscus

Autora: Maria Scarte

E-mail: mscarte@outlook.com

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Jardim do Éden

Autor: Daniel Goldner

E-mail: dbgoldner@uol.com.br

Jornal

Autor: Thomas Prado

E-mail: thomas.prado@live.com

Marília

Autora: Natalia Ribeiro da Conceição

E-mail: natalia.conceicao@usp.br

Medo do Mar

Autor: Vinícius Souza

E-mail: viniciussas@gmail.com

Mudança

Autora: Thais Rocha

E-mail: thati_rocha@hotmail.com

O Espelho e a Mosca

Autor: Pedro Schimidt

E-mail: schimidtpedro@outlook.com

Pietá

Autor: Pedro Mohallem

E-mail: pedromrd96@gmail.com

Miragem

Autor: Hadriel Theodoro

E-mail: hgtheodoro@gmail.com

Psicologia de um Letárgico

Autor: Pedro Oliveira

E-mail: pedro.siqueira.oliveira@usp.br

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Tempo

Autora: Renata Conde

E-mail: renata.conde2006@gmail.com

Irmãos

Autor: Felipe Marcondes da Costa

E-mail: felipe.marcondes.costa@usp.br

Vitrine Não Estou Vendendo Nada

Autora: Liana Ferraz

E-mail: lianaferraz@gmail.com

Yuki-Onna

Autor: André Carvalho

E-mail: apereiracarvalho2010@bol.com.br

Azul

Autora: Carol Borges

E-mail: carol_bor_ges@usp.br

Bons Tempos, Aqueles

Autor: Eduardo A. A. Almeida

E-mail: edualmeida@artefazparte.com

Concurso de Afogamento de Pássaros

Autora: Caroline Policarpo

E-mail: carol_policarpo2@hotmail.com

Convidada

Autora: Daiane Lima

E-mail: daiane.lima.s.2010@gmail.com

Córnea

Autor: Pedro Oliveira

E-mail: pedro.siqueira.oliveira@usp.br

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Inconfessável

Autor: Jeferson Santiago de França

E-mail: santiago.cabureiwa@gmail.com

Em Branco

Autora: Caroline Fortunato

E-mail: ana.caroline.bueno@usp.br

Maus Poemas

Autor: Wanderley Corino Nunes Filho

E-mail: wcorino@gmail.com

Mentira

Autor: Pedro Oliveira

E-mail: pedro.siqueira.oliveira@usp.br

Morfologia

Autora: Hadassa Paravizo

E-mail: paravizohadassa@gmail.com

Ódio ao Terceiro Mundo

Autor: João Pedro Campos

E-mail: camposjpl@gmail.com

Relacionamento

Autor: Daniel Goldner

E-mail: dbgoldner@uol.com.br

Poema dos Dias

Autora: Dayane Arena

E-mail: dayane_arena@hotmail.com

Remendos

Autor: Vinícius Souza

E-mail: viniciussas@gmail.com

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Ruídos

Autora: Raphaela Ikeuchi

E-mail: raphaela.ikeuchi@gmail.com

Três Canções em Mi Menor

Autor: Henrique Balbi

E-mail: henriquebalbi92@gmail.com

Triálogos da Mobília

Autor: Fabio Moura Cavalcante

E-mail: fabiomouracavalcante02@gmail.com

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A CRI

ANARQ


ANÇA

UISTA


Maria, Maria, o que é liberdade? Eu que trabalho das oito às oito trancada

aqui na casa do teu pai vou lá saber? Vai brincar, vai, menino. A mulher

ergueu os olhos e esfregou forte a bucha cheia de espuma na panela.

O rádio portátil da Maria, apoiado na janela da cozinha, tocava À janela,

do Roberto Carlos. O menino não conhecia a música. Começou com

da janela o horizonte, a liberdade de uma estrada eu posso ver. O que é

liberdade? Maria cantarolava junto, quantas vezes eu pensei sair de casa,

mas desisti. Ele gostava da voz dela. Sentou-se no chão e ficou escutando.

O que é liberdade? A louça limpa escorrendo e Maria com a mão

apoiada na lombar. Ela foi à sala e se sentou na poltrona do canto, que

minha coluna não é boa, já te disse, menino, preciso descansar um pouco.

Ele foi atrás, ficou vendo Maria sossegar. E como gostava dela que era

tão esperta, havia lhe ensinado tantas coisas ainda que não soubesse o que

é liberdade. De olhos fechados, Maria roncou baixinho. Ela mesma lhe

havia dito que quando a gente tá descansando não tem que fazer barulho,

tem que deixar descansar.

O que é liberdade? Não lembrava onde havia escutado a palavra.

Pensou que foi na TV, em que as pessoas certamente deviam ter muito

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disso. Alguém disse que era a melhor coisa do mundo, então ele também

queria. Mas o que era? Como era? Como se escrevia? Foi ao quarto à

procura do giz-de-cera, porque ele já sabia o alfabeto e talvez a coisa

viesse com a palavra. Escreveu as letras tortas com a mão esquerda, LIB.

Faltava alguma coisa na palavra que ele não sabia. Repetiu em voz alta:

liberdade. Li-ber-da-de. Não se lembrou do erre e continuou assim mesmo.

Da-di. LIBDADI na parede ao lado da cama, o giz vermelho que

era sua cor favorita. O que é liberdade? As letras não lhe disseram nada.

Distraiu-se com as cores e acontece que do nada lhe vinha uma vontade

de pintar tudo. Aobra de arte foi na parede: o azul-claro para o céu, o

verde para pintar a árvore do quintal e então do lado vinha ele, boneco-palito

porque era como sabia fazer, mas até que achou bem parecido

porque era magro e Maria havia dito que precisava comer mais, tá muito

magrinho e daqui a pouco vai sumir. Ele não queria sumir.

O que é liberdade? Foi à cozinha, abriu o armário de baixo que

era o que alcançava. Tinha Passatempo, o pacote aberto, pela metade, o

resto da embalagem vazia enrolada, cerrada com o prendedor de roupas.

E quando não tem ninguém vendo, lhe dava uma vontade de comer bolacha.

Mas ele sabia, era só no lanche da tarde e só quatro,porque a Maria

disse que era porcaria, não pode comer muito. Ele não queria sumir.

Para isso tem que comer. Sentou-se no chão e o banquete foi ali mesmo.

Gostava mais do recheio. Abriu as bolachas, uma a uma, ignorando os

desenhos dos animais na parte clara, meio sem gosto – meio sem graça, e

raspou o maxilar superior na parte que teve a sorte do recheio para que a

massa de chocolate caísse dentro da boca. O que sobrou deixou de lado,

no chão mesmo. Foram pedaços abandonados, quebrados e farelo de bolacha.

Terminou com os dentes sujos, cobertos por crostas marrons, e não

percebeu. Alimentado, não sumiria.

O que é liberdade? Lembrou-se da música do rádio, que falava de

liberdade, de janela, de estrada e alguma coisa mais da qual não se lembrava.

Decidiu desenhar tudo, a coisa-liberdade tinha que vir. No quarto,

a obra inacabada já lhe enchia os olhos, o pai e a mãe ficariam tão felizes,

tão bonito era o seu desenho. Do giz preto ele não gostava muito, mas

para janela e para o caminho até que servia. Um quadrado torto e tinha a

16


janela. A estrada começou na parede branca do quarto, o giz correu pela

porta de madeira, pelo corredor todo branco que ficava até mais bonito,

deu a volta na sala do lado oposto da poltrona onde Maria descansava,

subiu no sofá que estava no meio e deixou o risco descontinuado, e chegou

na porta da sala que dava para o quintal. Era um caminho tão bonito

que os pais nem acreditariam que foi ele quem fez. Já podia imaginar o

sorriso e o beijo da mãe, a mão do pai fazendo carinho na cabeça, um

bom trabalho, filho. Estava ansioso para que vissem. Contudo, os pais chegavam

em casa sempre quando já estava escuro e ainda não estava muito.

Vai demorar? Entediou-se.

O que é liberdade? Foi até o quarto, lá estavam as duas caixas de

brinquedo e nem pôde escolher. Virou ambas no chão e foi tanta peça

grande de encaixar, super-heróis eram vários, tinha carrinho e até umas

coisas coloridas de chacoalhar para fazer barulho que ele havia dito para

Maria que não gostava mais porque era brinquedo de bebê. O que é

liberdade? De vez enquanto, em seu íntimo, dava uma vontade do som

dos brinquedos de bebê. Era sua saudade secreta. Chacoalhou a cabeça de

palhaço e riu. Foi sua sinfonia. Chacoalhava e ria cada vez mais. Mas parou

porque não era mais bebê, era pequeno, sabia que ainda era criança, mas

era maior que os bebês. Já tinha cinco. Observou a própria mão aberta

como Maria lhe havia ensinado para mostrar a idade. Contou os dedos

devagar. Cinco, e já era muito maior que os bebês.

O que é liberdade? Viu a porta do quarto do pais aberta e veio

então a ideia de brincar que era a mãe tão bonita, que feliz ela ficaria

quando visse. Pegou ao lado da cama os sapatos que ela usava para ficar

mais alta, os que ele achava mais bonitos, e o batom que deixava a mãe

tão bonita que havia ficado sobre o criado-mudo. Levou tudo para o

seu quarto, os brinquedos no chão e Maria não ia gostar nada disso, mas

deixou para arrumar depois, que já estava ficando escuro e os pais chegariam

logo. Colocou os sapatos no chão, um do lado do outro e foi com

cuidado que os pés entraram porque o mundo ficava de repente alto

demais. Tentou um passo e caiu. Com os sapatos não tinha dado certo e,

frustrado, partiu para o batom. Girou o bastão com cuidado e passou majestosamente

em volta da boca sem olhar no espelho. Achou que a boca

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havia ficado vermelha como a da mãe, tão bonita como quando ela sai

de casa. Foi quando ouviu o carro estacionando na garagem. Esperou no

quarto porque queria fazer surpresa. Que felicidade seria. Ouviu a porta

da cozinha abrindo, os passos avançando. Um grito da mãe na cozinha e

ele se assustou. Maria, o que aconteceu aqui? Foi grito do pai bravo e ele

não gostou nada. Passos em dupla vindo pelo corredor e a mãe não estava

nem acreditando. Nem ele. Que anarquia é essa? A mãe olhou em volta e

o pai entrou atrás. O que você tá pensando? A mão grande de machucar

segurou o braço magro dele tão apertado que os dedos ficaram marcados

na pele. A dobra entre as sobrancelhas, a voz grossa e os olhos que davam

vontade de chorar. Não conseguiu olhar de novo para os olhos do pai.

Que anarquia é essa? Ele queria a Maria e a voz gostosa cantando com o

rádio: coisas da vida, choque de opiniões. Encolheu-se no canto, o rosto

ficando molhado. Os pais olhavam em volta. Porque é a Maria quem vai

limpar tudo isso, não é? Ele queria não ter comido a bolacha para sumir

um pouquinho. Não queria que Maria limpasse nada. O que você acha

que é liberdade? A voz do pai tão alta que dava medo. Não sabia. Não

respondeu. O pai empunhou o giz preto no chão, apertou na mão dele

com força e guiou pela parede: CASTIGO. Agora vira homem, engole

esse choro e lê. Ele não conseguiu ver nada. A mãe saiu, o pai atrás bateu

a porta.

O que é liberdade? Sozinho no quarto, tudo dentro doía. Virou

homem de cinco anos, batom vermelho na cara, bem-alimentado, sua

tela impressionista na parede, saltos perdidos em meio aos brinquedos,

choro amansando, inengolível e tinha até tentado. Coisas da vida, coisas

da vida. A Maria trabalhava das oito às oito. Tomara que volte amanhã.

Perguntaria de novo: Maria, Maria, que é liberdade?

O menino só não sabia que os pais já planejavam a substituição por

outra Maria, mais jovem, mais barata, com menos irmãos para cuidar.

A nova Maria não escuta Roberto Carlos no rádio. Talvez não saiba responder

ao menino o que é liberdade, mas certamente tem a coluna boa.

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Escutava música no volume máximo, com a tevê ligada no canal de notícias

inventadas, enquanto lia em voz alta o livro invisível da vida, peripateticamente,

caminhando para lá e para cá que nem barata tonta, feito

o pêndulo de um relógio de tempos passados.

Começou devagarzinho, uma coceirinha nas costas... uma coceira...

uma coceira dos infernos! Há um bom tempo não roía mais as unhas,

precisava cortá-las. Mas, de certa forma, foram úteis para coçar, coçar e

coçar essa coceira in-su-por-tá-vel nas costas. Como as unhas não davam

conta, tirou a camisa e esfregou as costas nas paredes da sala. Arranhou...

raspou... lanhou... suas costas ficaram em carne viva! Começou a dobrar-

-se sobre si, jogado no carpete, em posição fetal, a rolar e a contorcer-se

como a convulsionar-se. Desesperador!

Atéquenfim, desmaiou. Apagou-se. Será que está vivo? Não. Quero

dizer: não foi dessa vez. Está vivinho da silva, pra lá de Bagdá, mas inteiro.

Quero dizer: todo quebrado, mas inteiro. Digo: partido ao meio. Duas

penas, – duras penas –, uma de cada lado das costas, romperam sua pele,

19


rasgando seu coro sem dó e, junto com elas, duas sequências de penas

brancas formaram uma plumagem alva. As asas brotavam como pétalas

de flores, copos de leite, lírios líricos. De forma crescente e cada vez mais

rapidamente, suas asas foram ganhando corpo e avolumando-se, movendo-se,

movimentando-se, como a adquirir vontade própria, vida própria,

prestes a alçar vôo. Ele, desmaiado, e as asas, vivas, balançavam-no como

uma marionete.

As asas imensas batiam intensas, de modo a erguerem o homem,

dois pés deixando o chão. Desarmado, desalmado, desmaiado, com a cabeça

pensa, de olhos trancados, ignorante de si, de sua condição, e do

mundo que o cercava. Suas asas, batendo agitadas como as asas de um

avestruz desastrado em desabalada carreira, tocavam do chão ao teto, derrubando

objetos. Essas asas batiam como um coração assustado, surtado.

Não havia uma alma quando mais se precisava dela. Não havia

a quem pedir auxílio. Não havia ninguém naquele momento, naquele

apartamento suburbano caindo aos pedaços, cortiço, favela vertical.

Não havia – ah, não – assim como não há.

Os olhos sonolentos, marejados, abriam-se lentamente, pisca-piscando,

como a quererem sair das órbitas, mas mal resistindo à letargia.

Sua alma penada o sustinha. Um levante do além. Seus pés fora do chão,

levantados pelo bater incessante das longas e largas asas. Nuvem e neve.

Alvo algodão. Limpeza hospitalar. Agitação intensa. Pânico!

O homem só. Ele não estava mais só. Suas costas. Elas se abriram.

E ele pariu. Um anjo. Um demônio. Uma mulher? Um alien. Um ser.

Uma criatura. Um monstro. Aquele outrem. Aquilo. Inominável. Despregou-se,

desprendeu-se, destacou-se, desatou-se. Algo descarnou de suas

costas. Brotou de sua cratera, caverna interior. Batendo as asas atabalhoadamente

e, com um impulso dos pés, usando sua lombar como trampolim,

a coisa levantou voo ao mesmo tempo em que largou seu corpo

ensanguentado no chão. Escapou, escapuliu, escalpelou-se pela janela, estilhaçando-a,

ziguezagueante, febril, rumo ao desconhecido.

Durante o voo cabe o silêncio e nunca palavras, palavras, palavras a

mais, vazias de significados. Menos é sempre mais.

20


I.

Os homens sem nome que entrevejo

Através das grandes janelas abertas,

Quando adentram o solene silêncio

Habitado das bibliotecas do centro,

Obrigam-me a parar o que leio

E a acompanhá-los agora de perto.

Penso que isto está ao meu alcance:

Ouvi-los e não mais apenas aos livros.

II.

Dos sons que pouco ouvimos,

E não digo dos ruídos da cidade!

Uma gaita me afaga os sentidos,

Faz vibrar o que me tem sustentado...

E abraça o silêncio colecionado

Como retratos sobre as mesas.

21


Malditos sejam Hipnos e seus oneiros,

Que sejam atirados ao mais profundo canto do Tártaro,

Que me mantêm cativo, como carcereiros,

Que não tenham para esconder-se ânfora ou cântaro.

E ainda que rejeite toda e qualquer vontade

Fazem-me refém da intrínseca necessidade,

E apenas o seu obscuro e temido gêmeo

Oferece a saída como o derradeiro prêmio.

SCÁRNIO AO SONO

22


Hib

aviso de gatilho:

este texto apresenta

uma temática que pode

ser considerada perturbadora

(aborto).

Acordei sentindo umas dores e enxergando

tudo escuro. Era uma e vinte e

duas da madrugada. Meu corpo estava

quente - parecia fabricar algo mais quente

ainda. Consegui abrir os olhos e esticar o

braço para pegar o remédio amarelo. Engoli

a gota dourada com um pequeno gole de

água quase morna, quase fria. Senti o peso

dos músculos se derramarem na cama novamente

e meus olhos se fecharam.

A fabricação dentro de mim continuava

macia, velada pela proteção embriagada

do meu sono. Não deixei de ver o escuro,

mas agora via uma flor, um grande hibisco

vermelho flutuando na água limpa e negra.

A flor se confundia com carne, suas pétalas

pareciam suportar veias que carregavam

vida por todo seu vermelho rosa.

23


iscus

Um primeiro pedaço caiu, mergulhou na água escura e eu senti

seu calor em meu ventre se derretendo até virar uma gota de sangue

vermelho, vivo, quente e em seguida ser lavado pelo líquido escuro. Logo

caiu outra pétala, se transformando em gota de pulsações que pude sentir

no meio das minhas pernas. Assim se seguiu, até que caiu todo o corpo

do hibisco.

Voltei a enxergar o negro. Sem gotas vermelhas, sem flor vermelha.

Não despertei, mas sabia que estava viva.

24


JARDIM

DO

ÉDEN

aviso de gatilho:

este texto apresenta uma temática que pode

ser considerada perturbadora (estupro)

25


(A MENTE DE UM

DESEQUILIBRADO)

Eu a despi totalmente

enquanto ela se debatia.

Éramos eu e ela somente,

ninguém nos incomodaria.

Em pouco tempo ela cedeu

à minha superioridade.

A todo o corpo dela o meu

punia, com suavidade.

Vou contar para vocês

uma linda história de amor.

Começo então: Era uma vez

eu e Eva, a minha flor.

Um pro outro fomos feitos.

Éramos pura harmonia,

um casal mais que perfeito,

tal qual rimas de poesia.

26


Em seus olhos senti o apelo,

na contração de suas pupilas.

Acariciei, então, seus cabelos,

suave aroma de camomila.

Perdi a noção da hora

corrigindo a aviltada.

Culpo, pela minha demora,

ela, até então calada.

Conforme o meu procedimento,

agora hei de abandoná-la,

humilhada, ao relento,

seguido da seguinte fala:

“Não venhas me incriminar,

tiveste o que merecia.

Quiseste sozinha andar

na noite escura do dia.”

Eva, mulher maravilhosa.

Eva, minha prima-dona.

Linda, divina, formosa,

do meu coração era dona.

Fazia-lhe serenatas,

cobria-na de presentes.

Festejava nossas datas,

amava-a completamente.

Adorava ouvi-la falar.

Sua voz, doce melodia,

tal qual sabiá num pomar

celebrando o nascer do dia.

Que eu a amo é irrefutável.

Que eu a amo é iniludível.

Eis meu medo insuperável:

o próprio amor, imprevisível.

27


De uma coisa eu estava certo,

desta mulher eu era rei.

Dela, então, cheguei bem perto

e minha fala continuei:

“A dor que sentes agora

é pífia em comparação

a de quando Eva foi-se embora

e dilacerou meu coração.”

Humilhada, decomposta,

após meu didático ensino,

a ela, então, virei as costas.

Minha morada é o destino.

Após alguns passos dados

ouvi um som vindo das trevas.

Um pranto bem chorado,

idêntico ao de minha Eva.

Certo dia, o meu temor

foi, enfim, concretizado.

Quando Eva, para minha dor,

disse-me: “Está acabado”.

Disse-lhe que a amava.

Ela chamou-me possessivo.

Disse-lhe que a idolatrava.

Ela: “Platônico compulsivo”.

Aprendi desde criança.

Papai, à mamãe castigava,

era dele a liderança.

Mamãe, ao papai respeitava.

Acabado? Mas que desgosto!

Acabado? Mas que piada!

Dei-lhe um forte tapa no rosto,

levando aos prantos minha amada.

28


Doce choro em lá sustenido,

agudo som que ela emitia.

Quando chegou aos meus ouvidos,

extasiou-me em demasia.

À mulher eu me voltei,

fonte deste som excitante.

“Chore mais”, ordenei.

Obedeceu-me a imunda errante.

Lembrei de tempos antigos,

quando comigo Eva estava,

e meus didáticos castigos,

com os quais ela tanto chorava.

Decidi que esta mulher

que acabei de educar –

sim, uma estranha qualquer –

iria para o meu lar.

Doce choro em lá sustenido,

Agudo som que ela emitia.

Quando chegou aos meus ouvidos,

extasiou-me em demasia.

Sinestésica diversão

ouvir, de Eva, os prantos

implorando libertação,

com angelicais encantos.

A macieira do meu quintal

era dos meus locais favoritos,

onde eu, de forma fraternal,

amordaçava Eva, aos gritos.

Fazia isso porque eu podia,

inata superioridade.

Esta mulher me pertencia,

faria as minhas vontades.

29


Carreguei seu corpo duro.

Nunca fizera isto antes.

Eu e ela, no beco escuro,

parecendo dois amantes.

Acomodei-a no meu carro,

sou seu grande condutor.

Ofereci-lhe um cigarro;

acabamos de fazer amor.

Eva não me respondeu.

Que falta de educação!

Com um forte tapa, eu

a fiz chorar outra canção.

Após linda sinfonia,

chorada magistralmente

na minha plácida moradia,

cá chegamos, finalmente.

Nós íamos muito bem

na nossa paixão intensa,

até minha linda refém

causar-me cólera imensa.

Seguindo a mesma rotina,

quando acordei de manhã

fui ver a linda menina

presa à árvore de maçã.

Mas o que eu vi no local

fez-me perder as estribeiras:

Eva, estirada em meu quintal,

jazida à sombra da macieira.

Quando esta cena eu vi,

meu nobre coração parou.

Rapidamente concluí:

Minha amada me abandonou.

30


Retirei-a do automóvel,

na macieira a acorrentei.

E olhando ela ali, imóvel,

da minha Eva eu me lembrei.

Eu punia sem pudor

a minha ilustre visitante.

Por ela eu não sentia amor -

não como por Eva, não como antes

Por um tempo ficamos assim,

num sério relacionamento,

mas não sei se ela gosta de mim,

dado os diários espancamentos.

Num certo dia banal,

estava eu, com a presa minha,

corrigindo-a no quintal,

quando ouço o som da campainha.

Do amor que me restava

fiz-lhe um enterro decente.

À árvore que lhe acorrentava,

Eva serviria de nutrientes.

Em meu coração partido,

a tristeza e a desesperança

viraram, após o ocorrido,

forte desejo de vingança.

Não ter mais Eva pra chorar

não era nem um pouco justo.

Queria alguém para castigar.

Queria alguém a qualquer custo!

Num certo dia banal,

sozinho eu estava, sem ninguém.

Maçãs comendo em meu quintal.

Puro pecado, nenhum bem.

31


No interfone perguntei

quem era e o que queria.

Foi então que me deparei

com uma voz grave, que dizia:

“Tenho um mandado de prisão.

Não há mais onde se esconder,

célebre estuprador Adão,

trate já de se render!”

Sim, aderi ao nome Adão.

Minha triste vida eu ironizo.

Desde que Eva, minha paixão,

abandonou-me no paraíso.

Prodígio entre os policiais,

o corpulento jovem fardado,

ainda movido por seus ideais,

deixou-me até emocionado.

Essa depressão atroz

levou-me à constatação

de que Eva era meu eterno algoz,

e eu era seu eterno Adão

Sim, aderi ao nome Adão.

Minha triste vida eu ironizo.

Desde que Eva, minha paixão,

abandonou-me no paraíso.

Paraíso esse deprimente.

Sem choros, sem felicidade,

que me deixou deveras carente

em expor minha superioridade.

Eis a minha saída final:

Justiça com as próprias mãos.

A qualquer fêmea emissora do mal

eu aplicaria exemplar punição.

32


Sabia que fugir era inútil.

Ainda mais de um tira honesto.

Então, deixei-o sentir-se útil,

e de algemação lhe fiz o gesto.

Levou-me até a viatura

como se eu fosse um criminoso,

e da mulher foi à procura.

De si devia estar orgulhoso.

Chegaram tempos depois.

Ele a carregava com cautela,

e logo eu senti pena dos dois:

“O pau-mandado e a cadela”.

Eu fui no banco de trás

e os dois tolos na minha frente,

achando ela que teria paz

e ele, que viraria tenente.

Após descobrir a minha sina,

iniciei minha vigilância,

caçando perversas meninas,

na cidade, em abundância

A primeira alma que salvei

foi de uma linda jovem mulata.

No escuro, ao acaso a encontrei,

sozinha em uma rua pacata.

Cheguei por trás, curto e grosso.

Ela desabou no chão.

A segurei pelo pescoço,

evitando qualquer reação.

Ambas as calças abaixei,

e ambos os ventres uni.

Até a hora que me levantei

e as seguintes frases rugi:

33


Chegamos à delegacia.

Despedi-me da desgraçada.

Disse-lhe que um dia eu voltaria

para lhe dar umas palmadas.

O jovem muito se irritou

com este meu singelo recado,

e no meu ouvido sussurrou:

“Há de pagar por seus pecados.”

Mandou-me ao interrogatório,

lá de mim iriam cuidar.

Eu, um homem tão simplório,

sem nada a se condenar.

Apareceu o delegado;

do local, a entidade.

Ele estava encarregado

de me pôr atrás das grades.

“Não venhas me incriminar,

tiveste o que merecia.

Quiseste sozinha andar

na noite escura do dia.”

“A dor que sentes agora

é pífia em comparação

a de quando Eva foi-se embora.

Prazer, eu sou Adão.”

Se pensas que sou descuidado,

contigo serei muito franco.

Nunca vi ser condenado

homem da classe média, e branco.

A mulata foi só a primeira

das muitas garotas malvadas

que, à minha dócil maneira,

foram devidamente exorcizadas.

34


Levantei-me e nos abraçamos.

Que saudades do meu amigo!

Por horas e horas conversamos,

e este foi o meu castigo.

Conversa vai, conversa vem.

Enfim chegamos à concordância:

Por míseras dez notas de cem,

nada daquilo teria importância.

O delegado é uma graça,

até me fez um desconto.

Já que tudo por ele passa,

é com ele que sempre conto.

Por fim, ele me tranquilizou

sobre a mulher e o policial:

“Livrar-me-ei do que dela sobrou,

e dele corromperei a moral.”

Mas algo ainda me incomodava.

De minha Eva eu sentia saudade,

pois nenhuma delas chorava

com sua musicalidade.

Mas não deixei isso atrapalhar

a eficiência do meu serviço.

Meu destino ainda era encontrar

o som que tanto cobiço.

Numa noite como outra qualquer,

patrulhando a rua, meu domínio,

deparei-me com uma mulher

que me causou completo fascínio.

Parei meu carro no meio da via

e segui a pé em sua direção,

não sabendo que esta seria

minha mais exemplar punição.

35


Meu amigo de novo abracei.

Fui libertado de forma legitima.

Lembrei de Eva e me perguntei:

Quem será a próxima vítima?

Eu a despi totalmente

enquanto ela se debatia

Éramos eu e ela somente,

ninguém nos incomodaria.

36


jornal

hoje de manhã

cerca de 33 crianças

fortemente peraltas

invadiram o supremo tribunal sideral

os juízes foram rendidos pela realidade

enquanto as crianças abriam os arquivos

e confeccionavam aviões de papel

ainda não se sabe o número de vítimas legais

37


I.

o mar já coube todo

numa concha

o filho,

maior do que a mãe,

já coube todo

no útero

universos

em expansão

sob constantes

de ouro

a natureza

inúmeras

iterações

de uma mesma

essência

38


estirpe

físico-química

de astros

decadentes

II.

às vezes eu ficava

a espreitar

as margens

do riacho

sendas sem ondas

dos oceanos

esperando

tu emergires

vênus

lua

nua

pura

Marília

em pé sobre pedra

a pele orvalhada

enquanto cantavas

com tua voz

frugal

a quem ninavas

com melodia tão doce?

eras,

certo,

39


sereia

em sua pedra insular

eu,

marujo

entorpecido

III.

o encaracolado

de seus cabelos

endêmicos

do cosmos

redemoinhos

trançam o vento

em espirais

de sonho

o som

propagação

de ondas

a pedra

mergulhando

na água

o caramujo

meditando

no oco de sua

concha –

como seus irmãos

40


marinhos

resistem ao sal?

IV.

corpo estendido

boca aberta

a abocanhar

areia

aspirante a suicida

refugado pelo mar

as ondas,

nunca as mesmas,

repetindo

saudades

as ondas

parte

de um mesmo

todo

trazendo de outras

costas

o tempo

no eco

das conchas

eu ouço –

é tarde,

arde, arde...

41


na minha

solidão,

concêntrica

ao pulsar

no peito,

murmuro

teu nome

Marilha

42


MEDO DO

mar

43


Quando eu era menino pequeno

E não custava nada sonhar,

Eu tinha medo do último aceno

E do que guarda a solidão do mar.

Sempre percorri as beiras das praias

Procurando atento ao mais ínfimo brilho,

Quem sabe encontrar o mais belo estribilho,

Numa velha garrafa adornada de arraias.

No ninar das ondas, o instante derradeiro:

Um navegante perdido, como último intento,

Faz daquele papel seu terno testamento

De uma vida repleta de acenos lisonjeiros

Num mundo que se entristece apenas ao ver o sol repousar.

Nunca encontrei esse pergaminho.

Ainda procuro por entre pegadas perdidas,

Porque talvez algumas memórias bonitas

Apenas o mar seja capaz de guardar.

44


45


Aquela porta nem sempre fora vermelha.

Eu passava todo dia por ela, fizesse chuva ou sol, fosse inverno ou

verão. Antes ela não era vermelha – fora sempre uma porta simples de

madeira, envernizada e brilhante.

Foi um choque tão grande para mim que parei de andar, o canudo

na lata de refrigerante a poucos centímetros de minha boca aberta, antes

pronta para agarrá-lo.

A porta estava vermelha. Olhei ao meu redor, procurando mais

alguém que tivesse notado a diferença, assim como eu. Porém ninguém

demonstrava ter notado. Todos continuavam seus caminhos. Ninguém

mais fora tão impactado quanto eu. Atravessei a rua para me aproximar.

Vermelho. Rubi. Escarlate. Vivo como o sangue pulsando em minhas

veias.

Perdi alguns minutos apenas encarando-a, tentando entender aquela

mudança tão súbita, tão profunda, mas não havia mais nada de diferente

além dela, da porta. A escadinha em frente era a mesma, o capacho ainda

dizia «bem-vindo», as flores na jardineira da janela ao lado ainda eram

jasmins de um azul pálido.

Nada havia mudado.

Sorri.

Nada havia mudado, exceto pela porta. Ela agora era vermelha.

46


o espelho

e a mosca

47


Talvez a mais plausível explicação para meu constante nervosismo fosse a

maldita sirene. Há mais ou menos um ano, por um motivo desconhecido

por mim, alguém que também não sei dizer quem decidiu que todo dia,

às 23h20, uma sirene tocaria três vezes por toda a cidade. Sem aviso nem

explicação. Fato é que todos assumiram aquilo como um toque de recolher

e, depois deste horário, todos se trancavam em suas casas. A cidade sempre

foi muito perigosa e um toque de recolher até que faria sentido.

Eu, porém, ficava sempre trancado em casa, há muito tempo, quando

meu tio morreu. Ele deixou o sobrado, a mobília e uma boa quantidade de

dinheiro como herança, e eu, cansado e deprimido, me demiti de meu trabalho

e passei a viver apenas lá. Pagava para me entregarem comida, pagava

para me entregarem cigarros e bebidas, e pagaria para finalmente morrer,

se tivesse coragem.

Sobre o dinheiro, a casa e grande parte da mobília, não há nada

curioso para salientar. Mas havia um espelho. Com uma moldura dourada

já velha e um pequeno furo no vidro, ele me foi dado como herança de

maneira especial, citado separadamente da mobília, nomeado apenas como

“meu espelho”. Como acreditava que ele era de grande estima de meu tio,

deixei-o no mesmo lugar em que sempre ficou e nem cogitei consertá-lo.

Na verdade, de espelho ele mal poderia ser chamado. Velho e sujo,

com poeira sobre poeira sobre o vidro, não se via reflexo algum, somente

48


um borrão disforme. Confesso que ele me causava arrepios, e me causou

mais ainda quando um dia criou vida.

Que eu não tocasse nele, isto já era de se esperar, mas o espelho

não era visitado nem pelos insetos que mais e mais apareciam na casa

Lembro-me de um dia em que vi uma lagartixa correr pela parede, parar

e, confusa, desviar do espelho o máximo que conseguia; depois seguir seu

caminho e desaparecer. A poeira também não parecia se renovar. Intacto,

como se uma redoma o protegesse do mundo que se deteriora.

Mas, naquele dia, o espelho deu seu primeiro sinal de vida, e bem

à minha vista. Pois estava eu indo em direção ao meu quarto e, quando

seguia pelo corredor, encarando o meu não-reflexo naquela coisa, estaquei.

Do pequeno buraco no vidro saiu calmamente uma mosca.

Ora, uma mosca não é algo que cause alarde, mas aquela não era

uma mosca qualquer. Fisicamente, sim, mas seu zumbido era um tanto

quanto suave e baixo, como um grilo ao longe. E ela saía justamente do

lugar mais inimaginável.

Depois de levantar meus pensamentos, tentei ignorá-la, mas foi

impossível. A mosca saiu voando pelo corredor e me seguiu até o quarto.

Deitei e tentei dormir, mas a falta de sono e o zumbido hipnotizante dela

não me deixaram. Levantei e fui atrás da tal criatura, sacudindo travesseiro,

toalhas e mãos pelos ares, tentando pôr fim naquilo. Tudo em vão.

Ela saiu do quarto, e agora eu poderia apenas fechar a porta, mas

estava cheio de vitalidade. A morte daquela mosca era meu objetivo

primo. Fui atrás com uma toalha, batendo nas paredes, e ela escapando.

Até que pousou novamente no espelho e entrou, não no furo de onde

saíra, mas no vidro, por baixo daquelas camadas de poeira. 22h40.

Esfreguei incontáveis vezes meus olhos e tentei me convencer de

que aquilo não passava de uma peça pregada pelo sono. Mas não havia

sono. Poderia ser a bebida. Mas não havia bebido naquele dia. Poderia ser a

loucura. Poderia? Não! E se não, então era verdade. E se era verdade, então

era loucura! Como uma mosca poderia entrar no vidro de um espelho?!

Talvez ela tivesse apenas se escondido naquele monte de poeira, e, com um

sopro, ela se revelaria ainda viva e esperando sua morte pelas minhas mãos.

49


Cheguei enfim ao espelho. Olhei, olhei, e não pude notar uma

alteração sequer na superfície. Onde estaria aquela mosca maldita? Assoprei

para ver se monstruosa criatura acordaria, mas nada. Nem mesmo a

poeira, encalacrada pelo tempo, se moveu. Tudo estava parado. Até o ar

parecia estagnado. Assoprei novamente, mais forte, e nada. Dei algumas

batidas na parede próxima, a fim de que o espelho se movesse e a mosca

saísse, mas nada. Bati mais forte, e nada. Só havia uma solução. Respirei

profundamente, como se pudesse haver medo do que eu estava planejando

fazer, mas de fato havia. Fechei os olhos e toquei.

Este momento se seguiu atrasado, descolado, suspenso do tempo

como o conhecemos. Pude sentir cada milímetro de minha pele transpassando

cada camada de poeira e meus outros sentidos degustando as

épocas em que aquelas poeiras eram recentes, jovens. Eu sentia o cheiro

dos anos 40, o gosto dos anos 30, eu via as cores dos anos 20 e ouvia os

ruídos dos anos 10. Senti a poeira acabando, o frio do vidro tomando

minha pele, mas não senti rigidez. Pelo contrário, percebi, ainda com os

olhos fechados, que minha mão atravessava o vidro e se entregava para o

vazio. Não podia voltar. Fui seguindo até que meus braços, meu ombro,

meu corpo todo estava dentro do espelho. Então abri os olhos.

Loucura, apenas! Obviamente. Como alguém pode entrar num espelho?

Isso é impossível. Quando abri os olhos, estava eu de frente para o

corredor, na mesma casa, com o mesmo espelho, a mesma poeira, só não

mais com a mosca.

Então, decidi ir para meu quarto. No caminho, notei que o ar estava

totalmente parado e úmido. E fedia. Notei também uma certa dificuldade

em respirar, talvez devido à umidade. Entrei em meu quarto, deitei

na cama e olhei uma última vez para o relógio: 23h00. Vinte minutos e

eu ouviria a sirene, aí então poderia dormir sabendo que nada me atrapalharia.

Bebi o copo d’água que ficava em meu criado-mudo, revisitei

as memórias do dia, e acabei dormindo.

Quando acordei, olhei assustado para o relógio, que marcava 16h35.

Como eu não havia acordado com a sirene? Talvez o cansaço finalmente

tivesse me vencido. Levantei, comi, fiz minhas leituras e decidi abrir a

50


janela para que aquela umidade passasse. Era final de tarde, segundo o

relógio, mas noite, segundo o céu. Lá fora a cidade toda entregue ao breu,

a uma noite sem lua. O ar também era úmido lá, e eu não entendia como

tudo aquilo era possível.

Sentei na cama pasmo, com a janela aberta, encarando atônito o

relógio, aguardando até que o dia viesse e eu pudesse arrumar as horas.

O dia nunca veio. Quando o relógio marcou 23h20, a sirene também

não veio. Visitei todos os outros cômodos da casa onde havia relógios e

todos marcavam o mesmo horário. Lá fora, o mesmo breu. No mundo, o

mesmo silêncio.

Resolvi correr para a porta, mas algo me fez parar no corredor.

Olhei para o espelho. O mesmo espelho, intacto e empoeirado, com o

mesmo furo. Tirei um cigarro do bolso para que me acalmasse, mas ao

riscar o fósforo, a chama nasceu e logo morreu, como se não achasse

oxigênio suficiente para abastecê-la. Tentei novamente, e novamente em

vão. O desespero começou a me tomar. Queria ir para a porta, mas não

ia. Queria sair de lá, voltar para o quarto, mas só ficava parado na frente

do espelho.

Creio que fiquei um dia inteiro medido pelo relógio parado ali.

O breu ainda era o mesmo lá fora. O silêncio também. Era como se não

existisse nada além daquelas paredes da casa de meu tio.

Então, vinda do nada, apareceu a mosca. Agora era silenciosa, totalmente

silenciosa, e pousou nesse mesmo silêncio em meu ombro.

Quando a olhei, pude ver o reflexo do relógio de meu quarto na maçaneta

da porta. Eram 22h40. A mosca começou a descer pelo meu

braço, enquanto este se levantava em direção ao espelho e meus olhos

se fechavam. Não era o que eu queria! Então, pude sentir.

Pude sentir cada milímetro de minha pele transpassando cada camada

de poeira e meus outros sentidos degustando as épocas em que

aquelas poeiras eram recentes, jovens. Eu sentia o cheiro dos anos 40, o

gosto dos anos 30, eu via as cores dos anos 20 e ouvia os ruídos dos anos

10. Senti a poeira acabando, o frio do vidro tomando minha pele, mas

não senti rigidez. Pelo contrário, percebi, ainda com os olhos fechados,

51


que minha mão atravessava o vidro e se entregava para o vazio. Não podia

voltar. Fui seguindo até que meus braços, meu ombro, meu corpo todo

estava dentro do espelho. Então abri os olhos.

Loucura, apenas! Obviamente. Como alguém pode entrar num espelho?

Isso é impossível. Quando abri os olhos, estava eu de frente para o

corredor, na mesma casa, com o mesmo espelho, a mesma poeira, só não

mais com a mosca.

...16h35... lá fora a cidade toda entregue ao breu, a uma noite sem

lua... silêncio... a chama nasceu e logo morreu... fiquei um dia inteiro...

a mosca... 22h40... não era o que eu queria! Então, pude sentir... transpassando

cada camada de poeira... 40... 30... 20... 10... não podia voltar...

loucura... na mesma casa, com o mesmo espelho, a mesma poeira...

16h35... lá fora a cidade toda entregue ao breu, a uma noite sem lua...

silêncio... a chama nasceu e logo morreu... fiquei um dia inteiro... a mosca...

22h40... não era o que eu queria! Então, pude sentir...

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Morre Cristo. De sangue e lágrimas coberto,

Dorme sobre o Calvário à nona hora do dia;

Por três cravos suspensa, a Carne que tremia

Cessa o tremor enfim, e o Espírito é liberto.

“Por que me abandonaste, ó Pai? Por quê?”, gemia

Pouco antes de expirar, havendo o seio aberto

Aos vagalhões do oceano e à aridez do deserto.

Sem resposta do Céu, chorou. E eis que Maria,

Ao ver o Cristo em sangue e lágrimas desfeito,

De pronto suplicou: “Senhor, dá-me essa cruz;

Dá, que eu – Não Ele! – arrasto o mundo junto ao peito!”.

E entre o escárnio da terra e o divinal exílio,

Clamou em desalento o nome de Jesus,

Que, antes de Redentor e Deus, era seu filho.

53


A porta se abre para a estação vazia. No vagão, completamente só, percebo

com espanto o deserto onde me encontro. Estende-se por todos

os cantos em seu silêncio amorfo. Não fosse o leve respiro metálico do

trem, como se recuperasse o fôlego antes de retomar a corrida, poderia

jurar ser um sonho. É estranha a sensação que me bate contra o peito.

Sou o único passageiro, talvez o último, e agora, sequer tenho a certeza

do meu destino. Para onde vão os trens? Olho o relógio em meu pulso

frágil. Já é tão tarde! Tenho vontade de gritar para que se apressem, que

partam logo, mas sei que as máquinas não me ouviriam e que a tentativa

seria em vão. As portas continuam abertas e o deserto lá fora se agiganta.

Vou me sentindo fraco, invadido por um temor de algo que não conheço

bem. É como se aos poucos o deserto também crescesse dentro de mim,

transformando-me vagarosamente em areia e pó. Suplico em segredo

e desespero pelo movimento, uma prova qualquer de que não será este

o fim. É então que o vejo! Emergindo do nada, move-se com extrema

calma em minha direção, feito deslizasse sobre dunas. Aprumo os óculos

no rosto. Sim, ele está bem ali. Avança em meneios cadenciados, uma

dança bela apesar de eremítica. Ao longe, ele me vê. Seus olhos negros

encontram meus olhos por detrás das lentes sujas. Quem será ele? Eu me

pergunto. Parece abatido, cansado. Eu sustento o olhar, como a lhe dizer

que não fuja, que estou desarmado, que não há mais medo nenhum.

Ele sustenta o olhar, como a me dizer que o caminho foi muito longo,

que está feliz por me encontrar, que tudo ficará bem. Mas, de repente, um

estampido agudo rompe esse fio invisível que nos une. O trem vai partir!

Ele começa a correr. Eu salto do banco. Talvez tenha uma esperança! Mas

a porta se fecha em um instante e o trem se lança mecanicamente pelos

trilhos veloz, veloz, veloz e a distância só aumenta. Parado no meio da

estação ele vai se desfazendo, até não ser nada além de uma

54


PSICOLOGIA

DE UM

LETÁRGICO

55


penduro aqui a minha consciência,

insônia e sua onipresença,

e afirmo cansado: a diferença

da faca pro cigarro é só urgência

me faltam sonhos; mas a sua ausência

dá espaço aos pesadelos; não me deixam,

com tanta autenticidade que puxam

de minhas cicatrizes, inocência

na vigília que me causei, procuro,

em reflexões imersas no escuro,

um eu sonhador; um ativo eu

mas meu olho já não é mais o mesmo.

nublado, me traz um borrão a esmo.

talvez deva me acostumar ao breu.

56


t•e•m•p•o

aviso de gatilho:

este texto apresenta uma temática que pode ser

considerada perturbadora (estupro).

Meus pés estão alcançando o chão. Papai disse que, quando isso acontecesse,

teria chegado a hora de me casar. Nunca me contaram o que

significa isso de me casar. Aqui em casa a gente amarga um gosto de

pobreza na boca. Mamãe é cuidadosa, costura e nos ensina a não falar.

Me belisca por me dizer curiosa. Diz pra gente se calar por que assim

vamos aos poucos parando de pensar... Eu venho me pegando distraída

com frequência e assim estou por me esforçar em não pensar. Mamãe diz

que assim é melhor pra casar.

Levanto meus pezinhos. Como estão pesados! Ando tão cansada...

Não quero que papai chegue e perceba que estou assim, crescida.

Olho minhas mãos. Nessa nossa cidadezinha nossas unhas estão sempre

denunciando nossa terra roxa. Nesse pedaço do mundo as paredes e as

crianças são vermelhas de terra. O suor também escorre delicadamente

vermelho. Os velhos tentam enxugar a testa com as costas de suas mãos

e assim pigmentam também suas rugas. As tosses e cuspes são assim tingidos.

Nossa cidade ferve em pó.

Mamãe busca sempre o branco. Nos faz esfregar todas as paredes,

cantos e detalhes até sair a vermelhidão. Enquanto nossos bracinhos se

movimentam para cima e para baixo, como um suplício, um sacrifício; a

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gente sente a poeira chegando e nos envolvendo. Vem até o gosto vermelho

na boca. A gente arranca o vermelho que o ar delicadamente deposita

em cada superfície. Não sei se sinto carinho ou raiva desse pó! Me

dá uma raiva desse atrevimento que passivamente tinge todas as bordas.

Mas, me dá uma ternura, essa insistência toda. De qualquer forma, nossos

corpinhos não podem parar e seguem na limpeza até a exaustão. Vermelha.

Mamãe! Não vê que isso é loucura?! Este vermelho é uma mácula

incrustada. Acho que é a mancha de dentro da gente que ela quer limpar.

É esse o não pensar? Será isso o casamento? Meus pezinhos no chão...

Olho pela janela. Está chovendo. A chuva amansa a poeira. Vemos

aquelas nuvens vermelhas deitando-se no chão. Só então podemos brincar.

É só nesse instante que vivo. Hã! Ando tão distraída que nem percebi...

Tem um homem ao meu lado no sofá. Me parece bondoso. Nunca o vi,

mas, me causa uma sensação familiar... Quero olhar ele, descobrir sobre

ele... Enquanto papai não chega posso encarar, curiosa. Ele também me

olha fixamente. Meu Deus! Que olhar é esse que lança em mim? Nunca

vi nada igual. Está me procurando dentro de mim. Sinto muito, senhor,

eu sou vermelha por dentro... Ele estende sua mão, está tremendo. O que

ele quer? São tão limpas as suas unhas. Hã! Que toque áspero! Mas... meu

Deus! Sou uma menina! E se papai chegar?! Quem é esse velho? Deve ser

um amigo de papai... Eu não consigo parar de olhá-lo. O que é isso que

brilha em seu olhar? Ele se levanta devagar. Me estica sua mão, como um

convite. É irresistível ir com ele. Mas, meu Deus! Meus pezinhos mal roçam

o chão... Ele me ajuda a levantar. Devagar vai me conduzindo pelo

caminho. Tudo parece tão branco... Seus olhos seguem fixos em mim.

Estou com medo, senhor. Nem sei ao menos como é o mundo para além

dessas margens. Como será o gosto das frutas de outras bandas? E a cor

do céu? E das noites? São assim tão escuras? Os dias amanhecem todos

os dias? Como é a sua história, senhor? Como é o corpo de um velho?

Como é o corpo de um homem? Por favor, não me faça maldade. Para

onde está me levando? Para o quarto?! Mas, mas... Como? Seus olhos são

estranhos... Por que me sugam tanto? Mas, mas... Eu sou uma menina...

Obrigada por me dar passagem. Mas... Não. Não vai entrar no quarto

comigo. Os seus olhos... estão tão tristes... É isso o que sente? Eu não sei

58


decifrar olhares, senhor, estou aprendendo a despensar... Com licença,

vou fechar a porta. Não, não vou abrir. Por favor, não insista. Papai pode

chegar. Não, não por favor, pare de bater e de me chamar. Não. Não!

Não!! Socorro! Tem um homem tentando entrar no meu quarto! Sai

daqui! Socorro! Eu sou apenas uma menina! Sai! Socorro! Ei... por que

está chorando... escuto seus soluços... te escuto acariciando a porta... por

favor, pare... tenho medo... socorro!

*

O tempo sempre fala do amor. Nossos dedos enrugados, o corpo

incomodado, o movimento descontinuado. Meu silêncio calado de quem

prefere calar a falar a falha. Tenho vontade de tocá-la, amor; de acariciar

seu rosto doce com minhas mãos ásperas e trêmulas. Outrora firmes.

Sinto meu peso flácido jogado no sofá, no calor de um apartamento

inusitado. Ah... Hoje é difícil me levantar. Mais vale deixar-me jogado ao

bafo quente.

Seus olhos estão baixos... São sessenta anos, querida! Não nos

conhecíamos naquele tempo. nNão digo que não conhecêssemos um ao

outro.; não conhecíamos a nós mesmos. Talvez porque simplesmente não

fôssemos até então. Eu me tornei contigo. Foram seus toques que me

deram um lugar no mundo.

Meu pai me enviou à tua casa para tê-la em casamento. Acordos

de dívidas. As perguntas eram proibidas. Fomos a cavalo. Eu, papai e um

tio. Eu era o mais velho dos filhos. Você, sua mãe, pai e irmãos aguardavam

em frente ao sítio. Seus cabelos estavam esvoaçantes com a nossa

brisa de fim de tarde e noites frias. O seu penteado ia se desfazendo...

A noite corria atrás de nós e o vento nos ultrapassara, levantando o seu

vestido quando se deu nossa chegada. Vê-la à minha espera, me entorpeceu.

Era vertigem aquilo. Senti a morte sussurrar ao meu ouvido. Seus

olhos eram de pedra. Sua boca de segredos. Seus joelhos eram docemente

tortos, pareciam se namorar, olhando um ao outro incessantemente. Esses

joelhos me apaixonaram. Meu bem, você estava apavorada, enrijecida.

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Estiquei lhe a mão e você subiu. Sentou-se de lado. Seus cabelos

eram longos e ásperos. Tinham um cheiro diferente de tudo. Você usava

um ramalhete de flores na cabeça, que insistia em se dependurar, o que a

obrigava a subir as mãos para ajeitá-lo. Este ramalhete... ah... me fez pleno

de ternura.

Vieram filhos. Dez. Primeiro meninas, depois meninos. Nasceu

João. Chamado João porque nascido no dia de São João. Tinha medo de

escuro. Eu temia que fosse medroso. Vi você acordando ao escutar o choro

do menino. Era mesmo escura a nossa roça. Você foi até o quarto das

crianças. Deitou-o no seu colo e rezou com ele. Ao final do pai nosso, te

escutei dizendo:

− Meu filho, há um segredo para espantar o escuro. Levante seu

dedinho, aponte para o céu com firmeza e faça um furo no escuro. Você

vai ver, surge um pouquinho de clarinho. Acho que é o amanhecer que

entra, lembrando que tudo passa, até as noites mais escuras.

E reparei que às vezes, no breu da madrugada, seus dedinhos subiam

em riste. Me dá saudade.

O tempo sempre fala de amor. A gente foi simplesmente vivendo

e foi tanto tempo. Às vezes parece que estive sempre aqui nesse sofá, ao seu

lado, olhando as formigas caminhando e as folhas voando. Foram gerações

de formigas. E até de pessoas. Tanto tempo assim, ao lado de alguém nos faz

ver que todo mundo é capaz de algo grande. Ver as noites passarem, as rugas

chegarem, me fizeram te decorar. Seu cheiro, sua textura e seu soluço.

São parte do meu corpo. Assim, tão de pertinho, você ficou linda.

Ei... você está me olhando agora. Seus olhinhos sempre pequenos

e desconfiados. Meu Deus! Estão de pedra! Como à beira do cavalo. São

daquele dia! Sessenta anos atrás! Onde está sua memória, meu amor?

Estico a mão para pegar na sua e beijá-la suavemente. Meu braço

está tão devagarinho. Você anda confusa, meu bem. Repete as poucas

palavras que diz. Às vezes reza mais de uma vez. Isso preocupou as crianças.

Nosso filho rico te levou ao médico. Ele me explicou... Tem um

nome em alemão... É como se... Tua cabecinha estivesse se comendo em

alemão. Tem um monstro da memória se alimentando do tempo den-

60


61

tro de você. Come como sopa, pelas beiradas. Assopra antes de engolir.

E você oscila em saber onde está… e quem é você... Me dê sua mão,

me deixe segurá-la aqui comigo. Assopre! Assopre! Segure esta memória!

Ou pelo menos... este agora. Vem, aceita a minha mão esticada mais uma

vez. Obrigado, meu amor. Que delícia é sentir sua mão cheia de calos...

Sim, já era essa mãozinha calejada que segurava o ramalhete. Vem, vamos

para o nosso quarto. Vamos nos deitar um pouco. Por favor, fique

comigo. Eu te ajudo a levantar. Sim, sim, com calma. Cuidado. Isso. Seus

joelhos. Marina e Rebeca saíram a você. Devagar. Vamos desviar da mesa.

Seu corpo está tão rígido. Como naquele dia. Mais um passo, meu bem.

Chegamos ao quarto. Deixe eu abrir a porta pra você. Isso. Entre primeiro,

por favor. Querida, você precisa sair da entrada para que eu possa

entrar também. Não? Por que você está fechando a porta? Querida?

Seus olhos estão me atravessando. Por que tão duros? Querida, querida,

por favor. Não, não feche a porta. Não! Por que você está gritando?

O quê? “Socorro! Tem um homem tentando entrar no meu quarto!”.

Meu bem, não! Sou eu! “Sai daqui! Socorro! Eu sou apenas uma menina!

Sai! Socorro!”. Explodo em lágrimas. Por favor! Bato na porta, acabo

acariciando a porta, para tentar te encontrar. socorro!


Irmãos

um filho chorou quando

proporcionou à sua mãe

sair do lado dos que servem

e pela primeira vez na vida

estar ao lado dos que são servidos

suas lágrimas seriam outras

se a enorme emoção daquele momento

não tivesse lhe impedido de notar

que aqueles que serviam sua mãe

também tinham filhos

62


vi

tri

ne

aviso de gatilho:

este texto apresenta uma

temática que pode ser

considerada perturbadora

(assédio).

63


não

estou

vendendo

nada

64


para um lado para o outro olho. parada. olho. atrás. um rosto. um cara.

olhos que não chegam aos meus olhos. param.

para quem quer pé para no pé que pé gostosinho pintadinho de

vermelho te chupo esse dedão.

para quem quer perna.perninha gostosinha e tem quem se irrite

que a perna é fina perninha mixuruca vagabunda piranha da perninha

fina.

para quem quer cintura umbigo barriguinha de fora um olho parado

no lugar onde dorme meu útero meu ovário onde dorme meu umbigo

que foi ligação com minha mãe e eu quero não ter nada disso em

mim para não ter que ter olhos parados nisso. sagrada imagem quebrada

cacos. engole o choro menina. você só deu cinco passos.

para quem quer peito.peitinho delícia pequeno tá com tudo em

cima mulher tem peito peito teta seio que amamentou minha filha que

tem que por paninho que tem você a ver com meus seios. queria não ter

seios agora queria ter só lá naquele lugar onde os olhos se encontram.

respira menina que ainda não andou um quarteirão. mimimi. tá pedindo.

vagabunda. tá olhando de um jeito que quer.

para quem quer pescoço. pescoço carne dura. tem quem veja tem

quem grite tem quem sufoque. pescocinho delícia. tô te elogiando. você

deveria agradecer.

para quem quer rosto. uma boca aquela que tá em mim para que

eu fale coma beije para que eu grite para que eu tenha a cor que quiser.

boquinha bonitinha. adoro boquinha que faz biquinho. buzina. biquinho.

gostosinha.

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para quem quer tudo não tem tudo que tudo não anda na rua passando

para ir ali. tudo para fala olha responde.

para quem quer tudo não quer só a mudez da carne recortada em

close de revista de moda de desejo que só vai e não volta.

para quem quer tudo não sou vitrine.

não sou açougue.

não ando para estar à venda.

não vendo abaixo cabeça.

cabeça. cabelo. comprido. do jeito que eu gosto.

tinha um poema aqui antes de você chegar e gritar que queria me comer.

você não pode me comer.

não sou comestível.

não sou corte.

não sou venda em embalagem.

que susto que medo que dor.

abaixo a cabeça.

quanto tinha 14 anos quando tinha 20 quando tenho 30 quando terei 40.

quando terei muito mais serei então a piada da véia da pelanca da

teia de aranha da teta da louca.

serei de novo vitrine do que não vendo só caminho pela rua.

piada padaria esfria café doce.

piada televisão fofoca recorte de novo.

calma menina que a porta tá quase ali.

fechada. soluço.

reconectar todos os dias as partes fatiadas destrinchadas expostas em ganchos.

olho no espelho.

a parte de que não se fala se grita se buzina.

a parte olhos sem venda.

sem venda olhos no espelhinho do banheiro choram.

salgam a carne. conserva.

na carne curtida há mar.

66


YUKI

ONNA

67


Yuki Onna é um espírito encontrado no folclore japonês. Segundo a lenda, ela canta

para seduzir homens fazendo-os se perder na neve.

Percebo o avanço dessa sombra

que cruza a alameda

de voluptuosos pensares,

E de cujos foscos traços

reconheço eu somente

seu conjugado real

pelo íntegro e compassado andar.

Batizei-te Mariana

dando à lídima viva forma

espaço para cultivar

uma sombra que não cessa a medrar,

E ameaça, o arquétipo, findar

a matéria prima que o motivou

e que agora nutre a fim de

em sua penumbra preservar

o viciado da própria ilusão.

Em verdade, Mariana, és quase

tal qual as pétalas do lírio

68


cobertas pelo véu de delicioso mistério

que possibilita ainda

os devaneios de um amante

e sua obsessão por uma sombra.

Mas, querida, tirado o véu

sabes tu que mesmo o lírio não é,

em matéria de pueril beleza,

ainda o branco inocente da neve

que afigura-nos castidade,

sendo na verdade graça

de um passeio tão sublime

do alto firmamento

Onde, como uma criança perdida,

Yuki-onna esqueceu suas cores

e é agora a essência prismática de todas.

Desfalece cansada

num terreno de ideias melancólicas

e faz-se tão logo sombra

a cobrir um observador solitário,

que no fim da tarde procura sem encontrar

uma Mariana,

diferente desta cá,

a cada vez que se deixa sonhar.

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ESCOLHA DOS EDITORES


É interessante constatar o modo singular de operação da memória humana.

Como determinadas situações não deixam vestígios em nossas mentes,

nem digital nem DNA, de forma que chegamos a duvidar de sua

ocorrência. Entretanto, alguns casos raros sobrevivem intactos à ação do

tempo, tão detalhados quanto no momento em que foram concebidos.

O dia em que conheci Clarice é um perfeito exemplo para ambas as

argumentações.

Não digo conhecer no sentido mútuo, em que ambas as partes

tomam consciência uma da outra. Não. Fui a única a notar sua presença

naquele velho vagão de trem. Ela estava sentada a alguns metros de

mim, ouvindo algo em seus fones de ouvido que não lhe permitia abrir

os olhos, uma dessas melodias que só são plenamente absorvidas pela

escuridão por trás de nossas pálpebras. Seus cabelos negros caiam como

avalanches sobre seus ombros, embaraçados de forma displicente por toda

sua extensão.

Estava a exatamente cinco estações de meu destino, sabia disso, pois

a voz do alto-falante acabara de irromper pelo vagão, desembarque pelo

lado direito do trem. Foi então que Clarice decidiu abrir os olhos. Lá estava

ele! O azul mais azul que já vira em toda minha vida fincado como

navalha em seu globo ocular. Olhava para o nada, algum segredo escondido

no vazio a sua frente, mas, sem notar, eu agonizava em sua presença.

Não sei explicar ao certo minha fascinação por seus olhos, nem o que me

71


impeliu àquele tão derradeiro ato que estava prestes a se concretizar, mas,

em minha defesa, digo que mesmo que tentasse impedir o final de meu

relato, não seria capaz. Meu corpo já não era mais meu, era propriedade

do azul de seu olhar.

Quantas estações já havia andado? Perdera completamente a noção

de tempo e de lugar; tudo ao meu redor parecia dissolver-se: as paredes

escorriam, a luz escurecia e eu me afogava em um oceano azul sem fim.

Desejava tocá-los! Por que não me concede o prazer de segurá-los em

minhas mãos? Protegendo-os, então, de serem perdidos na escuridão de

um piscar. Enquanto permanecia perdida em meus pensamentos, Clarice

calmamente levantou-se de seu assento e rumou até a saída, desembarque

pelo lado esquerdo do trem. Não! Não posso perdê-los de vista! Preciso

segurá-la, protegê-la, sufocá-la...

Neste momento preciso me desculpar, pois minha memória não

permite que eu continue, é exatamente aqui que minha primeira argumentação

fará sentido. Não me recordo do que ocorreu após deixar o

vagão, por isso terei de avançar para a manhã seguinte. Acordei sem sentir

qualquer desordem no ambiente, uma manhã banal como todas as outras.

Minhas articulações doíam do colchão esburacado, algo facilmente

resolvido; levantei-me e estiquei meus braços para o teto, como se tocasse

o intocável. Espreguicei até ter o corpo todo alongado como uma

flecha que espera os dedos habilidosos de seu arqueiro. E então senti o

frio. Algo gelado escorria pelos meus braços até as axilas, provocando um

inesperado arrepio. Não queria olhar por medo, mas foi inevitável, a trilha

vermelha chamou minha atenção. Assustada, corri até o banheiro para

lavar o sangue que constatei que não me pertencia... Mas então de quem

era? Minha mente imediatamente lembrou-se da figura de cabelos negros.

Clarice! Clarice? Como sabia seu nome? Nunca trocara uma única

palavra com a mulher. Deixei a água lavar as evidências do dia anterior, o

vermelho escorria pelo ralo. Mesmo após uma noite inteira de sono não

estava descansada, as olheiras certamente alastravam-se por minha face.

Levantei o rosto para averiguar meu reflexo e vi, lá estava ele, o azul mais

azul que já conhecera. Os olhos de Clarice sorriam para mim, enterrados

em minhas órbitas!

72


Bons

tempos,

aqueles

73


Minha avó e três dos seus irmãos juram de pés juntos que era um índio,

ele se perdera da tribo e foi dar na cidade. Seus outros cinco irmãos, menos

preconceituosos, falam num negrinho, só não têm certeza da origem.

Meus pais sorriem da anedota. Todos concordam apenas neste ponto: a

árvore genealógica da família teve um ramo enxertado, e daquele tio-

-avô, de que tanto falam e pouco sabem, resta somente uma fotografia

embaçada, sem cores; um homem enrugado, com lábios grossos e chapéu

de linho, que podia ser tanto índio quanto negro. Restou também um

nome, Jacó Bento de Lima, que não devia ser negro nem índio, mas era.

Falam da caridade do bisavô, que o adotara de imediato, ainda

muito menino. Quantos anos? Ninguém sabe.

Calam-se sobre a morte trágica da bisavó, afogada no poço da fazenda.

Pensam na maldição que contaminou aquela água e a todos que

beberam dela durante gerações. Sentem um arrepio.

Que fazenda era essa?

Virou cidade, não existe mais.

Contam, orgulhosos, que o bisavô apareceu incerto dia com esse

menino meio negro ou meio índio, botou no meio dos filhos, batizou

com o seu sobrenome. Calam sobre o fato de que, daquele dia em diante,

a bisavó viveu amuada.

Onde foi parar esse homem?

A família ignora minhas impertinências. Teve filhos? Onde estão

meus primos índios ou meus primos negros?

Minha avó e seus irmãos se entreolham, meus pais pensam um

instante. Calam-se.

Minha avó diz que, quando geava na fazenda, todos os irmãos corriam

a acender tochas para proteger a plantação. Sim, claro, uma correria

danada, eles se lembram muito bem.

74



as regras proibiam de cortar as asas dos pássaros ou previamente induzi-

-los ao desmaio. vivos, capazes de gritar e lutar pela fuga é que deviam

ser afogados. os participantes dispunham de um aquário bem fundo e

comprido e de suas mãos – hábeis, fortes, cruéis e indiferentes a bicadas,

ou não teriam capturado vítimas o bastante. traziam suas gaiolas lotadas.

dezenas ou centenas de serezinhos escolhidos e capturados por serem o

que eram: alados. e belos, pois belos pássaros eram belos cadáveres em

belas fotografias.

cada um em sua mesa, diante de seus pássaros e de seu aquário. ao

soar do alarme, com rapidez furiosa os arrancavam das gaiolas, os enfiavam

sob a água, os seguravam submersos, até…

alguns escapavam e voavam batendo nas paredes, no teto, tentando

furar uma fuga. vãs batidas de asas.

duas concorrentes se destacavam. uma foi a que não aguentou: após

ter enfiado uns poucos pássaros no aquário, saltou para dentro do vidro e

deitou-se lá no fundo, até seu corpo parar de tremer e descansar.

a outra tinha o corpo todo firme, atento. aquelas unhas pintadas

de preto, aqueles olhos que doíam em quem olhava neles. tinha uma

força feroz, como alguém capaz de tudo. talvez fosse. e em suas mãos, os

pássaros…

os pássaros. por que ela os matava? por raiva?

por raiva, ao pegar um na mão, teria na outra, pronta e afiada, uma

faca para enfiar-lhe no peito. uma rápida, firme facada, que bastaria para

causar ferida definitiva, mortal. por raiva… com os dentes lhes arrancaria

as asas, pisaria neles com os pés descalços para sujar-se de seu sangue. por

raiva, cravaria as unhas em seus pescoços. por raiva, se asseguraria de que

não sobrasse no mundo um só pássaro vivo.

por raiva, não seria capaz de engaiolar aquelas criaturas atrevidas, desesperadamente

vivas e voantes. e o fazia, com calma, com paciência. inclusive,

selecionava os mais fortes ao invés de capturar frágeis passarinhozinhos

desinteressantes. escolhia aqueles que a encaravam como iguais, aqueles

com tanta intensidade que quase a desmoronavam. ela, tão forte, tão exímia

em se deitar na grama com pedacinhos de frutas ou de pão

76


espalhados ao redor do corpo, em alerta espera. e então, quando

vinha um pássaro, lentamente se sentava, lentamente esticava o braço e –

ágil! – cerrava os dedos.

tinha mãos fortes, firmes, seguras. era toda dura, confiante, enquanto

outros concorrentes tremiam de nervosismo ou não aguentavam a dor

das bicadas. afogava pássaros como se fosse esse o grande propósito de sua

vida. afogava pássaros como se ao matá-los, de alguma maneira, se salvasse.

ou talvez quisesse apenas não ter que suportá-los vivos.

não comemorou a vitória, não considerava coisa comemorável. sequer

sorriu. com a mesma dureza inabalável que mantivera ao afogar os

seres alados, recebeu a recompensa pelo esforço: o mais recente e cobiçado

par de asas mecânicas disponível no mercado. além de quantia em

dinheiro suficiente para que, por muitos anos, pudesse sem preocupações

aproveitar seu prêmio.

77


N

O

V

I

D

C

Para a festa à fantasia,

vestiu-se à sua maneira

– estrela caída que era.

De veludo azul escuro,

o vestido que vestia

caía-lhe macio e frio

A

D

A

sobre o corpo-astro.

Sua luz própria – às cegas,

guiava-a entre cometas

e sentinelas fora de órbita;

mas ao firmamento voltaria

– e nessa hora, a noite faria-se dia.

78


CÓRNEA

páginas de tantos livros que nunca lerei

se amarelando na estante com medo do outono

e suas folhas marrons obedecem a lei

de ventanias e abismos e poemas sem dono

desenho em meu pulso com aquela cor de anil

safira líquida que se opaca em minhas teias

liquida teu nome na pele e começa o abril

e tua marca em mim se disfarça de veias

desavença essa entre pele e caneta

que falha em refletir o que carrego

o sangue e a tinta não ficam violeta

e essa aquarela insolúvel me faz cego

mas as pétalas caem por uma razão

os galhos pelados trazem o inverno

seus olhos secos pedem a união

de cores frias na paleta do eterno

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Teu corpo alimenta meu espírito

Teu espírito alegra minha mente

Tua mente descansa meu corpo

Teu corpo aceita o meu corpo como a um irmão

Longe longe, estou em outra estação

(Uma outra estação; Legião Urbana)

Pecado.

O maior pecado de todos.

O mais torpe, o mais podre, o pior.

E o mais prazeroso.

Não podia negar.

Gostava.

Doloroso era admitir para si mesmo que gostava.

A noção de pecado sufocava o prazer.

O arrependimento era quase mais doloroso que a atração sentida.

Arrependimento. Pecado. Danação eterna.

Atração. Desejo incontrolável. Paixão infernal.

Amor.

Fugia muitas vezes para não cometer o ato.

Todas as vezes em que fugia era apreendido nas malhas do próprio

coração.

Vítima de um avassalador desejo.

Loucura irreprimida.

As sensações experimentadas não se comparavam com nenhuma

outra que pudesse sentir de qualquer outra forma.

80


O êxtase era onírico. Uma explosão dolorosa de angústia e prazer intensos.

Algo além de sonhos e de compreensão. Paradisíaco.

Infernal.

Era o pior ser do mundo, alma apodrecida contaminando todos ao

redor.

Era a pessoa mais privilegiada, talvez fosse o único a experimentar

tais sensações.

Delícia e gozo da carne.

Gostava. Não podia negar.

E o irmão também parecia gostar.

Pecado e martírio da alma.

***

A primeira vez fora inesperada. Obviamente inesperada.

Havia pouca diferença de idade entre os irmãos. O mais velho,

vinte e um anos. O mais novo, dezenove. As pessoas não os achavam feios

e tinham até razoável sucesso entre as garotas.

Estranhamente, em certo momento, percebeu que sentia ciúme do

irmão.

Através do comentário de um tio:

– Fiquei sabendo que está pegando todas as meninas do bairro!

Fora o comentário.

Surpreso, notou uma ponta de desagrado cutucar o seu coração.

Achou que era inveja.

Senso de competição.

O irmão e ele já tinham saído com várias meninas. Muitas relações

carnais.

A partir daquele instante começou a prestar mais atenção no

mano.

Pernas poderosas.

Braços fortes.

81


Rosto.

Nunca antes achara o irmão tão belo.

Irresistivelmente belo.

Tronco esculpido.

Dormiam no mesmo quarto. Filhos únicos que eram de um casal

filosófico-político-religiosamente correto.

Observava o irmão trocar de roupa.

Sair do banho só com uma toalha envolvendo o corpo.

Dormir sem noção de ser observado.

Andar nu pelo quarto.

Finalmente, percebeu que sentia-se atraído pelo irmão.

O choque da descoberta aumentou o magnetismo do outro.

Ele parecia inocentemente sensual.

Inconsciente da fascinação que exercia sobre o caçula.

Os dois sozinhos em casa. O pai e a mãe em visita aos avós maternos.

Um jogo de futebol na TV.

Lado a lado no sofá, torcendo por seu time em comum.

As pernas do irmão atraindo o olhar.

Os braços e o tórax.

O inquietante e gostoso calor da proximidade.

Os olhares se trombando no ar.

Desviou os olhos.

O coração acelerado. Medo de o irmão perceber os seus sentimentos.

De repente, um gol marcado. A alegria. Um abraço de

comemoração.

Aqueles braços cingindo as suas costelas, as suas mãos apertando

as carnes do outro, a quentura dos dois corpos, as coxas roçando, sexo

contra sexo.

O irmão sentiu a excitação do mais novo. Excitou-se também. O

abraço completou-se com um beijo.

Prolongado.

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Úmido.

Correspondido.

Foi esquecido o futebol. A atenção desviou-se do jogo. Não importava

a derrota ou a vitória do time.

As camisetas ganharam o ar.

Peito forte contra peito forte.

Carne.

Os calções foram ao chão.

A barba nascente roçando a pele do pescoço.

Sexo possuidor. Sexo possuído.

Libido inconsequente.

Paixão desenfreada.

Tesão a dois.

Orgasmo inebriante.

***

Não mudaram o modo de viver.

Tinham os seus empregos.

Os seus amigos.

As suas garotas.

No quarto em comum, se pertenciam.

Amavam-se.

Dois anjos. Dois demônios. Dois homens. Dois irmãos.

Sexo.

Paixão.

Amor.

Entrega absoluta. Questões fragmentadas. Opiniões em ruínas.

Um segredo que os fazia felizes.

Abraço sem medo.

Beijo sem preconceitos.

83


Carícia sem limites.

Mal nenhum.

Explorando os recantos da boca.

Descobrindo as paisagens ocultas do corpo.

Conhecendo o relevo da carne.

Amor incondicional.

Luz do dia.

Trabalhos diferentes. Cerveja com os amigos. Garotas e sexo.

Alta madrugada.

O quarto fechado. O sono dos pais. Os dois em posse.

Futebol no fim de semana.

Academia de manhã, dia sim.

Corrida ao pôr do sol, dia não.

Sangue de macho.

Suor em ebulição.

Aos olhos da sociedade, bons moços.

Dividindo o mesmo quarto, dois irmãos.

Amantes.

***

– Não podemos continuar com isso.

– Por que não?

– Não é certo. Somos irmãos!

– Foi você quem começou... percebi os seus olhos nas minhas coxas

enquanto a gente assistia ao jogo naquele domingo...

– Eu sei... mas a gente tem que parar!

– É? Você vai conseguir?

– É pecado...

– Será?

– A igreja condena.

84


– Eu não acredito na igreja. Não tenho religião.

– É crime também. Incesto.

– Não, não é. Somos maiores.

– Isso não importa...

– Claro que importa! Se você gosta e eu gosto e nós dois consentimos,

não há por que não fazer.

– Já disse! É contra a igreja e contra as pessoas...

– Quem precisa saber?

– Uma consciência pesada já é suficiente para que a gente pare!

– Está arrependido?

– Muito.

– Não seja fraco, assuma os seus desejos!

– Tenho namorada... você também...

– Gostamos de homens e de mulheres. Se não fosse assim, a gente

não fazia o que faz.

– Chega! É melhor parar com isso, antes que piore.

– Pior não fica. Só melhor...

– Você é impossível!

– E você? Me beija ou não?

***

O arrependimento rasgava a alma.

A noção de pecado apunhalava o coração.

A perda do paraíso e a ameaça do inferno atormentando o espírito.

E o irmão não levava a sério a sua recusa.

O irmão mais velho, atraente, dominador, zombeteiro.

E ele sem forças para resistir, sempre se entregando.

Na ausência dos pais, o irmão exibindo-se no chuveiro com a

porta aberta.

Contra a vontade, ele arrastado para baixo d’água, com roupa e tudo.

85


Na hora de dormir, o irmão desfilando de cueca pelo quarto.

Difícil ocultar o desejo sob as cobertas, o outro sempre o descobria

e acordavam pela manhã no mesmo colchão.

O irmão sabia ser indecente.

E ele sabia ser carnal.

Ou juntos no tapete.

Carnalidade e indecência.

Deus punindo os seus pecados.

O Diabo arrastando-o para o inferno.

Alma e carne.

Guerra sem trégua.

Espírito em agonia.

Lágrimas às escondidas.

O irmão mais velho sentado despudoradamente no sofá. O calção

marcado pelas carnes volumosas.

O irmão mais novo apreensivo, certa ingenuidade arranhada nos

olhos, atraindo o outro com a sua agonia.

Libertinagem.

O desejo explodia ao menor roçar de pele.

Vício.

Inútil negar a atração.

Mescla de medo e coragem.

Ousadia e remorso.

Luxúria descomprometida.

Arrebatadora depressão.

***

– Vista a camisa!

– Nem bem entrou no quarto e já está me evitando...

– Pare com isso! Vista a camisa...

86


– Que foi, irmãozinho? Não gosta mais do meu peito nu?

– Não quero gostar.

– Sinta, estou usando o perfume que você prefere.

– E daí?

– Cheire o meu pescoço.

– Não chegue perto de mim!

– Estou sem cueca, irmãozinho... só de calção...

– Que inferno! Me deixe em paz!

– Vou casar.

– O quê?

– Ficou surpreso, irmãozinho? É isso aí, eu vou casar.

– Casar?

– É. Esqueceu que já sou noivo?

– Verdade...

– Não diz nada?

– Seja feliz, mano.

– Vou te abandonar.

– Quero que seja feliz.

– Vou ser feliz. Tenho uma mulher que me ama...

– E um irmão que te adora.

– Adora mesmo, não é? Sabe, quando eu me casar, você pode ser

meu amante.

– Amante?

– É... irmão e amante.

– Não quero!

– Tudo bem... Irmãozinho, seja feliz com a sua garota.

– Não quero mais saber de relações carnais.

– Como?

– É isso, mano... Vou para o seminário. Já até vi sobre isso... quero

ser padre!

– Não acha que é tarde demais?

87


– Preciso redimir os meus pecados, salvar a minha alma.

– Você não pode fazer isso, irmãozinho.

– Por que não?

– Eu preciso de você.

– E eu de você... mas não quero mais!

– Preciso do teu espírito e da tua carne.

– Você vai casar. Eu vou ser padre.

– Não faça isso... eu nunca mais vou ter você?

– A partir do momento em que eu cruzar a porta do seminário,

vou apagar a carnalidade da minha mente. Quero me dedicar à religião.

– Quando você for padre, eu vou me confessar com você. Só com

você! E vou contar todos os meus pecados, os que cometi e também os

que não cometi... Vou contar cada intimidade com a minha mulher, uma

por uma... Confessarei os meus desejos todos...

– Talvez eu me castre para não cair em tentação.

– Não seja cruel consigo, irmãozinho!

– Minha alma precisa ser salva.

– O teu corpo não tem culpa.

– O corpo é só um invólucro. A pele que a serpente abandona

quando precisa crescer.

– Teu corpo é lindo!

– Mano, só mais uma vez...

– Quero ser possuído.

– Eu quero te receber em mim.

– Um de cada vez, então...

– Certo, mano.

– Quieto... palavras são condenáveis! Os corpos falam por si mesmos.

88


em branco


Pega um copo d’água.

Sai andando pela casa enquanto o toma. Entretanto, derruba parte

do líquido ao chão mediante seu então agitamento.

Na escada, depara-se com alguém lá embaixo. Alguém que não

reconheceu. Seria por culpa da distância? Distância astuta.

– Quem é você?

Então o homem – o desconhecido lá embaixo –, na verdade

um senhor, que lia sossegado um jornal com auxílio de óculos, olha a

menina um pouco perplexo, sem entender a pergunta, intolerante para

brincadeiras.

– Como quem sou eu?

– Quem é você? Já disse! – agora o temor afasta-se dela, criando

um tom autoritário e exigindo-lhe uma resposta exata.

– Sou seu tio, oras! – perde a paciência. – Não está me reconhecendo?

Será que está precisando de óculos também? – agora parecia mais

compreensivo.

Então a garota sai correndo de volta à cozinha (de onde emergiu).

Estava aflita, temperada ao desespero.

Sabia perfeitamente que enxergava muito bem. E que a questão

não era essa: também não reconheceu a voz daquele senhor. Seria, mesmo

assim, verdade? Era cética demais para lhe acreditar.

Então, visando salvar seu pai (com quem vivia) do pior, busca pelo

revólver que sabia que ele tinha em casa, onde, certa vez, ainda mais jovem,

descobriu “por um acaso” o esconderijo do objeto – que, aliás, por

falta de desconfiança, o pai nunca mais mudara de lugar.

Mas não havia revólver. Será que o idoso ladrão disfarçado de seu

tio já tinha se apoderado dele antes?

Num repente, se lembra de que o solicitado revólver fora enterrado

junto de seu pai.

90


Maus Poemas

De maus poemas — como este —

se enche a vida.

Há espaço pra cerveja,

pro cinema, pra punheta

e pra maus poemas.

Os maus poemas

e os beijos sem nome

têm prazo de validade.

São ocos, necessários,

eles,

os maus poemas.

91


envio cedo as palavras para não ser tarde para as obras:

quando te vi sozinha, segui com as minhas manobras,

te sonhei e te servi; quando te tive, te perdi.

erro por te chamar de dona, minha, lixa ou rubi?

mostro como teu nome circula em mim: engano ledo.

quando tentei te transcrever, o papel cortou meu dedo.

deixo manchado de sangue meu poema, não meu dia.

não te encontrei no dicionário, e “karma” não servia.

quando vivias em outras bocas, eu não cria em ti.

ouvia falarem, via te amarem, não te via em si.

mas, com minhas mãos nessa cintura, a vontade veio

de te falar, te consumir, te consumar sem receio.

e em teu seio fomentei nosso relacionamento.

minha insônia é teu cheiro; até hoje és meu complemento.

amônia ou brigadeiro, começas todos meus capítulos.

versos nunca te explicam, esse direito é só dos títulos.

92


M

Ele me disse:

segura!

E eu

não obedeci.

F O

OSegura não é mais uma ordem.

Segura não é mais verbo

imperativo.

Segura, agora, é definição.

adjetivo.

Ele me disse, mais uma vez:

segura!

R L

93


O choro, o corpo, a vontade, a voz

E eu soltei qualquer fardo

ou corrente.

Ele gritou:

segura!

G

I A94

E eu, tranquilamente,

sussurrei:

segura eu sou.


TERCEIRO

ÓDIO AO

MUNDO

95


Em meu horizonte brilha em pedra a ponte sobre o metal

Água cinza, nuvem prata,

Cocaína corroendo minha carne,

Sabor de língua, beijo e pelos sobre mim.

De descer ao sul do trópico eu nasci errado,

E da vontade de subir o monte, descobrimos que no fim

Estamos todos iguais.

Sina torta, essa de viver em pontes sobre abismos

De cruzar de carro o caminho do mar

Envolto em toda fumaça que podemos conceber.

Aos 25 anos eu já me estou dissolvido

E minhas vontades morrem no limite da sociedade que eu sou,

Esbarram na moldura flexível em que pinto o quadro-eu.

Nesta noite de não sermos nada,

Neste terceiro mundo que já me foi muito cruel

Vem-me a vida sem moral,

A existência que de si não se declara.

96


Que sabe a vida da Times Square?

E que sabe da vida a ponte Rio Niterói?

Que sabe a dicotiledônea do resto que lhe cerceia?

O bom da vida é que ela não julga,

A miséria é que estamos acordados.

Estamos acordados na luta de classes

E vivendo imersos na consciência histórica,

No saber que acima de mim os homens reinam

E que abaixo de mim sou senhor de escravos.

A treva da vida é que sem Deus

Nossa única justificativa se tornou matar aos outros.

E que nesse trópico decadente, ao sul do mar do sul,

Onde São Paulo não é Atenas

E o Rio me afoga em lama turva,

Só escrevo uma ode

Como outra maneira de odiar.

Eis o meu lugar elevado em meio à decadência universal

97


s.m. (relacionar + mento → lat. relatione)

1- Ligação de amizade, afetiva, profissional, etc., condicionada por uma

série de atitudes recíprocas; relação.

2- Ato ou efeito de relacionar (-se).

3- Capacidade de comunicação.

98


Parte 1: Ian

Para a tela do celular, sorrio

São meia noite e vinte e dois

Meu corpo treme, mas não faz frio

Dormir? Isso fica pra depois

Conheci Isa, moça elegante,

Num app de relacionamentos

Em dois dias de conversa incessante

Dominou todos os meus pensamentos

Dada a má fama do aplicativo

Tão cedo o baixei, fiquei receoso

De desenvolver sentimento afetivo

Por membro com perfil enganoso

Com Isa logo estabeleci diálogo

Certamente seu perfil é original:

Detentora de um gosto ao meu análogo,

Seis fotos e uma descrição legal

Nós conversávamos sobre tudo

Como conhecidos de longa data

Moça repleta de conteúdo

Fora o jeito meigo como ela me trata

Até mudei o plano de fundo

Da nossa conversa virtual

Para sempre embelezar meu mundo

Isa, com seu olhar fenomenal

99


Foi no final deste segundo dia

Que tomei importante decisão

E em um ato de pura ousadia

Abri-lhe todo o meu coração

“Ianzito”, “fofo”, “amor” e “lindo”

Frutos de nossa intimidade

Vocativos meus dela advindos

Já compunham a nossa normalidade

As três palavrinhas famigeradas

“Eu amo você”, então digitei

Temendo a resposta de minha amada

Por quem em tão pouco tempo me apaixonei

Tratando-se de sentimento tão belo

Digitá-lo é, de fato, deprimente

Não enviei um áudio em apoio à Isabela

Que me disse estar bem doente

Após segundos de nervosismo aflitivo

Isa responde da melhor maneira

Também tinha receio do aplicativo

Mas sua recíproca é verdadeira

Agora que já nos declaramos

Todo aquele frio ficou bem quente

Sensação nova em meus dezoito anos

Não o amor, e sim ter pretendentes.

100


Parte 2: Isa

Eu sou o César, um homem qualquer

Divorciado e pai de dois filhos

Cujas guardas são de minha ex-mulher

E a minha história eu compartilho

Eu não trabalho, desempregado

Sei que pareço um homem banal

Porém nada tenho de fracassado

Tratando-se do mundo digital

Barriga de chopp e calvície avançada

Não possuo especiais adendos

Jamais consegui namoradas

Em plataformas de relacionamento

Cansado de tanto descaso

Ao meu aspecto físico antiquado

Num tedioso dia, criei por acaso

No app, um perfil falsificado

Com seis fotos de moça aleatória

E descrição feita com cautela

Do primeiro nome que veio à memória

Nasceu Isa, ou se preferir, Isabela

O meu sucesso foi imediato

Todo mundo gostou de mim

Eu me senti um flertador nato

A vida, afinal, não era tão ruim

101


Temia que o sucesso fosse efêmero

Por isso eu precisava ser pragmático

Caso eu errasse a colocação de gênero

Era só culpar o corretor automático

A Isa (ou eu) acumulou (ou acumulamos)

Dezessete crushes em apenas dois meses

Sendo o critério de crush que decidimos

Falar com a pessoa várias vezes

Certos momentos me pego pensando

Em como alguns caras são bonitos

Mentira, devo estar delirando

A Isa é só um perfil maldito

O crush dezoito apareceu, então

Ian, de amor muito necessitado

Bastou um pouquinho de atenção

Para ele ficar apaixonado

Garoto deveras carente

Seu desejo por áudios era um entrave

Tive que inventar que estava doente

Para não mandar meu vozeirão grave

Em dois dias Ian se declarou

Mais um nome em nossa lista comprida

Isa ou César? Já nem sei quem sou

Nem o que estou fazendo com a minha vida...

102


P

M

D

D

O

O

I

A

E

A

S

S

103


o corpo sente o pesar dos ciclos

repetindo-se através dos tempos

sente o passar de todos momentos

sente o remoer dos acontecimentos

o corpo, esse é o que mais sente

sente frio, sente sede, sente dor

ressoa no outono o ar empoeirado

revive as canções de amor

ele sabe, o corpo, quando terminou

mesmo que, desavisada, eu ignorei

os sinais que o corpo mesmo revelou

esqueça da poesia que eu escrevi

de mim mesma, me desfaça por aí

104


porque ao menos eu tento reerguer

a memória do nosso passado e da

nostalgia que nos consumiu durante

anos e anos. Por favor, deixe-me saber

se você vaga por aqui, pois a vida

tem roído minhas unhas desde que

não tive tempo nem pra me despedir.

desapodera de mim, que o corpo sente,

sente frio, o corpo sente a garganta secar

alérgica dos álbuns que os seus dedos

gélidos me propõem agora relembrar

não me reprova, pois ainda sou corpo

sete palmos de angústia desço de novo

desapodera de mim, pois me enfraqueço

e não vou durar.

105


RE

MEN

DOS

106


Fico imaginando como deve ser

Costurar o céu, ponto por ponto,

Reunir novelos, histórias e contos

Num cenário perfeito

Onde os sonhos também têm direito

De revirar os medos e os próprios defeitos,

Sendo a aquarela dos olhos que traçam

O amanhã remendado ao som de uma prece.

Delicada minúcia entre fios de areia,

Emendas infindas sob o olhar inocente.

Mortal como todos, cansa-se ao poente,

Adormecendo na mesma carreira,

Tecendo com dedos já desatentos

O cobertor do mundo em seu repousar.

E na imperfeição desse momento,

Por entre pontos desses remendos,

Surgem divinos brotos de luz

Nessa costura divina da noite

Que guia a esperança em mim.

Pois, afinal, isso tudo me diz

Que atrás deste tecido,

Onde minhas histórias fazem sentido,

Reside o teu sorriso feliz

Que concede o brilho

E esses pontos produz.

Assim, nesses novelos do céu,

Vou te seguindo distante de ti.

107


D

Ruí os

108


Mais um dia de chuva, chuva intermitente. Uma hora, torrencial feito

baldes d’água caindo do céu, outra hora um chuvisquinho miúdo, miúdo.

Apoiando-se na janela aberta do quarto escuro, Tânia fumava um cigarro

e escutava a água batendo no telhado. Sem aroma de terra molhada no

ar. Em volta tudo concreto, concreto duro, cinzento e triste. Também, o

que ela queria? Os cidadãos da urbe não tinham esse direito, tinham?

O perfume da terra molhada, das flores, do mato? Não, não, nem pensar.

Só ao ar poluído e ao fedor do esgoto é que tinham direito. Afinal, não

tinham escolhido isso para eles mesmos? Ela suspirava entre uma tragada

e outra. No entanto, não eram nem os cheiros que a incomodavam tanto,

e sim os barulhos.

Do que mais sentia falta era da quietude do interior, do céu pipocado

de estrelas à noite no sítio, do cricrilar dos grilos, das mariposas se

debatendo na lâmpada pendurada fora de casa. Já aqui na grande cidade

com nome de santo (mas que de santa não tem nada), a jovem moça

tinha de dormir com tampões nos ouvidos. Não bastasse o barulho dos

carros, das buzinas ensurdecedoras, da música alta da rua, os vizinhos do

apartamento ao lado viviam aos berros, fazendo um bafafá enquanto brigavam,

quase que diariamente. Havia perdido as contas de quantas vezes

tinha ido bater à porta deles. Nada se resolvia e as brigas entre o casal continuavam

cada vez mais intensas, um quebra-quebra de utensílios domésticos

sem parar, sempre perto da hora do jantar. Mas hoje, particularmente hoje,

uma trégua havia se estabelecido, e então Tânia podia ouvir a chuva com

tranquilidade.

Terminou o cigarro e apagou a bituca num cinzeiro preto. Precisava

parar com aquele vício, pensou. Ficou mais um tempo olhando para a chuva,

refletindo sobre a vida. Os ouvidos atentos. Pelo quarto, uma porção

de coisas se espalhavam: roupas sujas, copos e garrafas longneck de cerveja.

Sobre a escrivaninha, pilhas e mais pilhas de papéis velhos, contas vencidas

e notas fiscais amassadas. Precisava também dar fim naquilo tudo e

arrumar o quarto, mas continuava protelando tudo o que era importante.

Precisava estudar mais para a faculdade, precisava arranjar um emprego

melhor, precisava sair mais de casa, precisava de tantas coisas, tantas, tantas,

tantas.

109


– Que bagunça! — disse consigo mesma, quase num sussurro.

Do meio do quarto, ficou olhando em volta. Não sabia nem por

onde começar. Percebeu, então, que havia esfriado e pegou, do guarda-

-roupa de portas que rangiam terrivelmente, uma blusa de lã verde-musgo,

a qual vestiu por cima da camiseta branca encardida que já estava

usando. Calçou os chinelos havaianas e foi para a cozinha. Os pés se

arrastando. Passando pela sala, avistou a amiga com quem dividia o apartamento,

Marina, toda esparramada no sofá dormindo. Na velha TV de

tubo, um filme de ação hollywoodiano com muitas explosões estava passando.

Perguntou-se como é que Marina conseguia dormir com tanto

barulho. Era um mistério. Prosseguiu para o outro cômodo.

Abriu a geladeira, uma única cebola jogada na última prateleira.

Suspiro. Então vasculhou os armários em busca de alguma coisa. Evitava

ao máximo fazer qualquer estardalhaço. E isso não era nem por preocupação

de acordar sua amiga, mas preocupação consigo mesma. Encontrou

um pacote de bolacha de gergelim Piraquê. “Sorte!”, pensou. Pôs água

pra ferver e decidiu acender mais um cigarro enquanto esperava a fervura

subir. Ficou andando de um lado para o outro. Sem querer, esbarrou num

copo que estava na beirada da pia e ele se espatifou no chão, fazendo um

barulho estridente. “Merda”, pensou. Pousou o cigarro num pires que

estava próximo e foi buscar vassoura e pá.

Quando havia recolhido todos os cacos, seus ouvidos detectaram

que a água na leiteira já borbulhava. Apagou o fogo e passou um café.

Pegou a caneca e se sentou à mesa de madeira toda estropiada, ora bebericando

o negro líquido, ora dando mordidas na bolacha. O relógio na

parede indicava oito e quinze da noite. O ponteiro dos segundos corria

ruidoso. A cozinha também estava uma bagunça completa. A louça se

acumulando monstruosamente na pia. Em meio ao ruído da chuva lá

fora, os ouvidos sensíveis de Tânia também identificavam o som de gotas

pingando da torneira sobre uma tampa de panela. Aquilo a incomodava

profundamente. Levantou-se e tentou fechar o máximo possível aquela

torneira. O estampido parou. Ficou satisfeita com isso e deu continuidade

à sua “janta”. Então, do outro lado do apartamento, ela ouviu o celular

110


tocando. Só engoliu o café e saiu correndo para lá.

Chegou esbaforida no quarto e, quando estava prestes a atender,

o toque parou. Pegou o celular da escrivaninha e deitou-se na cama de

solteiro. Na tela, um aviso de ligação perdida de um número bem conhecido.

Ficou pensativa olhando para a tela brilhante por alguns segundos.

Então o celular vibrou e três mensagens chegaram. Elas diziam: “Oi, T.!

Eu sei que vc tá aí! Fala comigo, pfv!”. Não sabia o que responder.

Desligou o aparelho e o enfiou debaixo do travesseiro. Fechou os

olhos. Um turbilhão de pensamentos em sua mente. Não sentia um pingo

de sono. Aliás, estava muito cedo ainda para dormir, não estava? Deitada de

costas e de braços cruzados sob a cabeça, ficou ouvindo o som da chuva

e as buzinas longínquas dos carros. E, de repente, também o ronco alto

da amiga vindo da sala, as explosões do filme passando na televisão, os

trovões, o tic-tac de um relógio próximo, pessoas conversando em algum

canto da rua, cães uivando perdidos por aí, o samba alto do boteco da

esquina, o próprio bater do coração aflito. Todos os sons e ruídos vindos

de uma vez. Estava ficando louca? No escuro, tateou desesperada o

criado-mudo ao lado em busca dos seus tampões auriculares. Fora o seu

maior erro ter vindo para a metrópole? Não, não era isso. Era? Só queria

paz, um pouco de paz consigo mesma. Estava tão cansada de tudo…

Por fim, encontrou os seus tampões miraculosos. E, como em uma

espécie de ritual, a cabeça ligeiramente levantada, colocou-os com o devido

cuidado, primeiro no ouvido esquerdo, depois no direito. E, então, silêncio.

O mais profundo silêncio.

111


Mi

menor

Três em

canções

Com cuidado para não derrubar nenhum gole d’água, Mitsuo se sentou,

enxugando o suor que escorria pelas têmporas. A dor nas costas e o cansaço

apegado ao corpo não o impediram de erguer o olhar: em breve, não

se veria ali a terra, coberta que estaria por um manto verde a se estender

de rio a rio; flores despontariam, como raios de sol que desabrocham

através de um céu cinzento; haveria calor, comida, festas. Mas, assim como

os dias secos e curtos de agora, também a próxima estação passaria; quase

nada, afinal, era igual à neve no topo de montanhas, sempre aninhada

junto das nuvens, brancuras a se confundir. Mitsuo sabia que tanto ele

quanto a futura vegetação perderiam o viço, com a diferença de que

ela, pelo menos, o recuperaria com renovado vigor na estação seguinte.

Ele tomou outro gole d’água, a sede já um pouco aplacada; por descuido,

um filete gelado caiu e percorreu-lhe o pescoço e o peito. Então se levantou

e voltou a trabalhar a terra. Até o sol se pôr, não ergueu mais o olhar.

***

Ao ouvir a chave se batendo contra a fechadura, dona Mirtes abaixou

o volume da TV e ficou prestando atenção, como costumava fazer.

Conhecia a tremedeira, o barulho dos sapatos à procura de apoio, os

palavrões sussurrados (ele nunca se lembrava de que ela o esperava acor-

112


dada). Com os olhos fechados, dona Mirtes fez suas orações, enquanto

a porta se abria. Ele entrou, ela não resistiu; levantou-se para ajudá-lo,

ouviu enquanto ele negava o óbvio, que não precisava de ninguém, podia

se virar sozinho, que besteira. Dona Mirtes o ajudou a cambalear até a

cama, a se desviar do balde (que ficava no lugar do antigo criado-mudo)

e a se deitar de bruços. Ela levou-lhe um copo d’água antes de voltar para

a televisão. Dona Mirtes ficava feliz que, por coincidência ou hábito, a

chegada dele não interrompia o último bloco da novela.

***

Sentada na primeira fileira, Milena assistia atentamente ao último

ensaio-geral. Em algumas horas, o auditório da escola se encheria de pais,

tios, primos e avós, que se sentariam ao lado dela para prestigiar seus alunos

e a adaptação deles da Odisseia. A ansiedade da professora procurava

brechas e frestas para se desprender, partes do corpo que lhe servissem

de veículo: ela dobrava e amassava com insistência um dos convites para

a peça; depois, estalava os dedos; aí voltava a amassar o papel. No palco,

Ulisses (de doze anos) contava a seu pai, Laertes (também na sexta série),

um resumo de suas aventuras. Devia ser a décima ou vigésima vez

que Milena via a cena, sem contar as montagens de outras turmas — ano

após ano, seus alunos pareciam sempre se encantar com mitologia grega

e sempre escolhiam a Odisseia como peça de novembro, assim como ela

sempre ficava ansiosa com a reação das famílias à peça. Lembrou-se das

diferentes versões de Homero que havia supervisionado: uma indígena,

outra em São Paulo –ambientada no horário do rush–, outra no espaço…

Crianças que se revezavam na pele de Ulisses, como as diversas vozes que

contaram sua história ao longo dos séculos, os múltiplos leitores que decoraram

os versos edições afora, os tantos atores que o encarnaram em diferentes

filmes, vídeos, fitas e palcos. E, conforme sua imaginação atravessava

tantas adaptações, ela guardou o convite na bolsa. Entrelaçando os dedos,

sorriu e soprou para o Ulisses da vez uma fala que ele havia esquecido.

113



Nadine morava sozinha e isso a aprazia; isso quer dizer que até mesmo

Ezequiel, sua atual e duradoura paixonite, não era o bastante para fazê-la

querer mudar tal situação. Agora, diante da porta da sua quitinete, ela

buscava com os dedos roliços as chaves para poder entrar em casa e repousar

em paz depois do expediente, antes que desse de cara com algum

conhecido.

Era um dia quente, e Nadine havia acabado de descer de um ônibus

lotado, no qual ela viera espremida, segurando nas hastes verticais, já que

as horizontais eram altas demais para ela. Por essa razão, ela agora estava

suando na testa, nas axilas, nas costas e no desproporcional nariz. As mãos

encharcadas de transpiração, assim como o resto do corpo, ergueram da

bolsa um objeto brilhante que se encaixava perfeitamente na fechadura.

– Com licença – disse para a porta e entrou.

Sua porta era alta e exibia um ar de superioridade para Nadine

que poucos conseguiam: nunca respondia aos cumprimentos da moça e

tampouco dispensava os agradecimentos dela quando passava. Tinha uma

bela tonalidade em mogno que causava um pouco de inveja em Nadine

e linhas paralelas estéticas no batente contrastantes às curvas do corpo da

moça. Ela só tinha um defeito: era caolha.

– Obrigada! – agradeceu Nadine, fechando a porta enquanto olhava

diretamente para seu único olho, repleto de constância e sabedoria.

Ela era a maior conselheira de Nadine e, mesmo silenciosa, sempre apresentava

seu ponto de vista quando alguém queria entrar, para que então

ela pudesse decidir se ia atender ou fingir estar dormindo.

Após entrar, Nadine observou que sua quitinete estava do mesmo

jeito que ela havia deixado antes de ir trabalhar. Logo de frente da porta,

ao fundo, sua cama estava mal arrumada, como sempre. Do lado, sua

escrivaninha, ao contrário, impecavelmente organizada, com um computador

sobre ela. Na parede contrária, o guarda-roupa permanecia costumeiramente

fechado e acompanhado de uma mala verde musgo coberta

por roupas amarrotadas. Por último, no meio do cômodo ficava parado

um ventilador empoeirado e mirrado, provavelmente desprovido de tecnologias

de ponta.

115


A moça caminhou até a cama, se despiu e caiu sobre ela. Quando

fazia isso no final do dia, só algo muito importante a fazia sair do lugar.

Algo como se esquecer de ligar o ventilador. Assim, esticando a perna

com esforço para não perder o equilíbrio, Nadine apertou o botão do

meio do aparelho, que passou a gerar uma corrente de vento de baixa

intensidade e alta sonoridade.

– Será que vai fazer frio nesta semana?

O ventilador cansado girava sua cabeça de um lado para o outro,

soprando a resposta negativa:

– Não.

– Como você sabe? Eu li na previsão do tempo do jornal que vão

ter pancadas de chuva amanhã – respondeu Nadine, com propriedade, se

sentando sobre a cama e se abanando com as mãos, talvez por estar insatisfeita

com o serviço do ventilador ou para provocá-lo por ter respondido

discordando dela. – Quer dizer, eles costumam acertar...

– Não.

– Costumam, sim. A meteorologia é uma ciência exata que...

– Não.

– Você sempre me responde negativamente, ventilador. Não conhece

outra palavra?

Dessa vez ele não respondeu, e não precisou. Seu movimento para

a esquerda e para a direita era bastante autoexplicativo, o que fez a moça

sorrir empaticamente. Ela conhecia muito bem o companheiro ranzinza

que tinha. Desde que o recebeu usado da sua avó, quando se mudou sazonalmente

– de dezembro a fevereiro –, era seu melhor amigo naquele

cubículo. O aparelho senil aparentava a idade que tinha, mesmo com as

tentativas da moça para amenizar isso, como uma demão de tinta para as

raízes de ferrugem ou mesmo uma prótese de hélices que ele naturalmente

havia perdido com o tempo.

Conformada com as respostas do ventilador e com a condição climática

que aparentemente não mudaria, a moça se levantou e foi em

direção ao banheiro, o qual se situava próximo da cama, para tomar banho.

Após alguns minutos fechada lá dentro, ao som da água caindo do

116


chuveiro, ela saiu, acompanhada de uma nuvem de vapor.

Coberta apenas com a toalha de banho, ela caminhou até a cama e

arremessou sua roupa íntima na pilha de roupas em cima da mala verde

musgo ao lado do guarda-roupa.

– Ai! Que diabos?

– Desculpe...

– Mas o que é isso...? – respondeu a mala, com certa impaciência.

Ela era relativamente grande, mas era mais alta do que espessa. Tinha um

bom acabamento, mas não era das mais finas do mercado. Além disso, suas

rodinhas estavam bastante gastas; mas, mesmo assim, era considerada uma

senhora enxuta. – Ah, não, outra calcinha suja não!

– Ora, você queria que estivesse limpa?

– Eu prefiro, né, do tipo quando você volta da casa da sua mãe...

– Então você fica reparando nas minhas roupas quando viajo?

– É lógico – respondeu a mala, com deboche. – Todas as malas

fazem isso...

Nadine riu, um tanto pasma. Foi em direção à mala, pegou as roupas

que estavam amontoadas nela à la Carmen Miranda e as jogou na

máquina de lavar.

– Para nós, malas de viagem, o que se carrega dentro de si é mais

importante do que nossa aparência exterior.

– É mais ou menos isso para a gente também, mas a maioria das

pessoas não leva a sério – respondeu Nadine, resignada, pensando no rostinho

perfeito de Ezequiel. – Bem, pelo menos parecem interessantes as

conversas de vocês nas viagens.

– Jamé! Um bando de nécessaires ranhentas fugindo das suas mães e

causando um caos no bagageiro, um grupinho aqui ou ali mais jovem de

malas de plástico estampadas em pop art reclamando que estão gordas...

Dispenso comentários. Não se fazem mais viagens como antes.

– Nossa! Por um momento achei que vocês fossem mais comportadas

– disse a moça, contendo um riso. – Agora eu sei por que tudo

chega numa bagunça...

117


– Não nos culpe por sua falta de organização, querida – pigarreou

com sarcasmo. – Mas, de qualquer forma, nem todos os objetos são o que

parecem.

– Como assim?

– As toalhas de banho, por exemplo, detestam se aventurar por entre

a anatomia humana. No entanto, elas são as maiores inventoras entre

nós, pois têm acesso às melhores ideias durante o banho das pessoas... –

disse a mala, enquanto Nadine se mostrava interessada. – Tem também as

xícaras, que sabem mais da arte de flertar do que um simples “posso pegar

um xícara de açúcar?” pode dizer.

– Não acredito!

– É, pode crer... As malas podem saber muito sobre o que é importante

na vida das pessoas, o que elas mais carregam consigo. Mas nós

infelizmente só temos olhos para suas roupas, sapatos, cosméticos... Aí

acabamos nos tornando muito superficiais, sabe?

– Eu sinto muito.

A mala assentiu como se não ligasse muito para isso.

– Hum... E as portas? – continuou Nadine, caminhando em direção

à entrada com curiosidade, nas pontas dos pés, como se temesse que

sua conselheira caolha fosse sair do lugar. – Elas não têm nada a dizer?

A moça então parou próxima da porta esbelta, que continuava sem

dizer sequer uma palavra. Com os pés, empurrou para o lado um caixote

de uvas vazio, que ela pegara numa feira, deixando-o bem embaixo do

olho mágico. Nadine era baixa demais para consultar o dispositivo e por

isso precisava subir em cima do caixote para manter seu olhar numa altura

digna do olhar da porta.

– Ah, essas daí acham que são cheias de sabedoria porque quando

se abrem são sinônimo de oportunidades... – disse a mala verde musgo,

intrometendo-se. – Mas só sabem mesmo é ranger...

– Psiu – disse Nadine. – Quero ouvir o que ela tem a dizer.

– Nadine! – disse uma voz grave vinda da porta.

A moça quase caiu para trás, segurando com força a toalha que a

cobria, para não se despir. Com espanto, ela foi se aproximando da porta,

118


imaginando de onde exatamente o som tinha saído.

– Eu achei que sua voz fosse mais feminina...

toc! toc! toc!

– Ah! – murmurou Nadine, subindo rapidamente no caixote e

olhando pelo olho mágico. Ela viu uma barba bastante escura e falha,

olhos verdes e um nariz romano que estava no limite para ser considerado

ossudo, todos esses dispostos num rosto de expressão distante que

pertencia a Ezequiel.

Com um rangido em resposta às indagações anteriores de Nadine,

a porta se abriu e ela pôde finalmente ver o rapaz de corpo inteiro.

– Olá, Ezequiel.

– Nadine. Escuta, por que você disse aquilo?

– Ah, não era nada... – disse ela, surgindo um rubor em suas bochechas

pálidas. Ainda não havia se lembrado de que só estava vestida com

uma toalha. – Deixa pra lá. Em que posso ajudar?

– Eu só vim aqui pra te ver, mesmo – respondeu, olhando para ela.

Deixou de mirar em seu rosto e passou pelo corpo coberto pela toalha,

até chegar às pernas nuas da moça. Houve um estalo quando se deram

conta.

– Putz, que vergonha! – disse ela, escondendo o corpo atrás da

porta.

– É brincadeira. Será que eu, er... – disse ele mostrando o objeto

que estava em suas mãos, o qual ela sequer tinha notado. – Posso pegar

uma xícara de açúcar?

Com um olhar discreto aos companheiros de quarto, Nadine notou

uma inquietação da mala verde musgo. Ao contrário do seu amigo

ventilador, Nadine sorriu e acenou positivamente.

119


A equipe

Coordenação geral

Victória A. M. Gerace

Gabriela Almeida Mendizabal

Editorial e revisão

Victória A. M. Gerace (coordenação)

Elisa Kemil Casotti (coordenação)

Eduarda Figueiredo Ribeiro

Érika Tamashiro

Gabriela Almeida Mendizabal

Gabriela Barbugian Azevedo

Giovanna Romera Rossi

Heloísa Fernandes Muriano

Júlia Gretz

Karen Kuniyoshi Nakaoka

Larissa Prada

Letícia Yumie Iasukawati

Maria Beatriz Rosa

Mariana Lari Canina

Michelle Mayumi Oshiro

Nathália Caixeta Francisco

Pedro Tajiki Salles

Thaísa Carvalho de Oliveira

120


Divulgação e redes

Marina Fortes (coordenação)

Victória A. M. Gerace (coordenação)

Elisa Kemil Casotti

Gabriela Almeida Mendizabal

Heloísa Fernandes Muriano

Letícia Shine

Mariana Lari Canina

Nathália Caixeta Francisco

Arte

Camila Lie (coordenação)

Rafaella Carrilho (coordenação)

Elisa Kemil Casotti

Giovanna Romera Rossi

Heloísa Fernandes Muriano

Letícia Shine

Mariana Lari Canina

Nathália Caixeta Francisco

Capa

Camila Lie

Rafaella Carrilho

Apoio

Com-Arte JR.

Orientação

Prof. Dr. Thiago Mio Salla

121



O curso de Editoração, oferecido

na ECA-USP desde 1972,

une a tradição acadêmica,

literária e editorial às inovações

constantes das áreas de comunicação

e de design. Para além

dos livros impressos, contempla

a edição de revistas, ebooks e

outros meios de comunicação.

A Originais Reprovados é

uma revista literária produzida

anualmente pelos alunos do

curso de Editoração da Escola

de Comunicações e Artes e

conta com textos escritos por

estudantes de toda Universidade

de São Paulo e com o

apoio da Com-Arte Jr.

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