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REVISTA_MUCURY_12_digital

A 12 Edição da Revista Mucury Cultural acontece com o patrocínio do BDMG Cultural. É com muita alegria que este ano celebramos as comunidades tradicionais e os povos originários, abrindo as páginas para a luta e para a festa desses povos. Sejam todos bem vindos.

A 12 Edição da Revista Mucury Cultural acontece com o patrocínio do BDMG Cultural. É com muita alegria que este ano celebramos as comunidades tradicionais e os povos originários, abrindo as páginas para a luta e para a festa desses povos. Sejam todos bem vindos.

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REVISTA MUCURY 12

1



REVISTA MUCURY

TEÓFILO OTONI - MG - NÚMERO 12 - ANO 09

http://www.mucurycultural.org


O EXPEDIENTE

DIRETORA GERAL DA ASSOCIAÇÃO

MUCURY CULTURAL:

Mariana Botelho

EDITORES:

Bruno Bento

Daniela Carvalho

Mariana Botelho

PROJETO GRÁFICO:

COMBO – Viviane Silva

Mútua Criativa – Daniela Carvalho

e Luciana Terra

CURADORIA DE IMAGENS:

Daniela Carvalho

Mariana Botelho

REALIZAÇÃO:

Associação Mucury Cultural

Licuri

Mútua Criativa

PATROCÍNIO:

BDMG Cultural


IMAGEM DO MAR

>> Vitor Bedeti

Mestre em Estudo de Linguagens pelo CEFET-MG.

Possui mestrado-sanduíche em Mídias e Artes pela

Eötvös Loránd University, na Hungria. Possui pósgraduação

em Gestão Cultural pelo Senac-SP, pósgraduação

em Jornalismo Cinematográfico pelo

Centro Universitário UNA, imersão em Psicanálise

pelo Instituto Freud, de Viena, na Áustria e graduação

em Cinema e Audiovisual pelo Centro Universitário

UNA. Tem experiência de 10 anos com ensino de artes,

com produção de figurinos, com a gestão de projetos

culturais e sociais. Analista no SESC. Experiência de

10 anos como fotógrafo e cineasta, com realização

de projetos fotográficos no Brasil e em 12 países.

Professor no departamento de Letras do CEFET-MG

nas disciplinas História da Arte. Professor de artes

no departamento de linguagens da Eötvös Loránd

University, na Hungria. Professor na FCA - Faculdade

de comunicação e artes da PUC Minas. Professor na

pós-graduação e graduação, no Centro Universitário

Estácio e coordenador do Núcleo de Comunicação –

NUCOM do Centro Universitário Estácio.

TERRITÓRIO DO BATUQUE

>> Bruno Bento

Graduado em Ciências Sociais com ênfase em

Antropologia e Arqueologia pela UFMG, e especialista

em Gestão Cultural pelo SENAC-MG. Fundador da

Associação Mucury Cultural e da Revista Mucury,

trabalha no fortalecimento e desenvolvimento

cooperativo comunitário das comunidades tradicionais

do Mucuri desde 2011. Gestor de projetos, produtor

e gestor cultural em transição ligeira para a vida de

agricultor familiar. Cuidador de umas crianças, vários

gatos e plantas.

>> Mariana Botelho

É escritora, fotógrafa, gestora e produtora cultural

e trabalha na Associação Mucury Cultural desde

2015, atualmente é Diretora Geral. Tem dois livros

publicados (um em 2010 e outro em 2015), gosta de

fotografia documental e promoveu várias formações

na área junto com as comunidades quilombolas.

Trabalha no apoio a mulheres, também junto às

comunidades no desenvolvimento cooperativo

comunitário das comunidades tradicionais do Mucuri.

Gosta de plantas e coleciona folhagens e orquídeas.

Desde 2020 está como Diretora Geral da entidade.

>> Daniela Carvalho

É artista visual, produtora e gestora da Mútua

Criativa. Possui formação em Geografia pela UFMG,

com ênfase em estudos sobre o corpo e espaço público

e estudou Dança Contemporânea e Artes Visuais

na ELA- Escola Livre de Artes Arena da Cultura.

Atualmente conclui sua pós-graduação em Gestão

Cultural no SENAC. Nos últimos anos seus trabalhos

têm sido voltados para a cultura das infâncias, suas

dimensões materiais e imateriais, onde também

se aproximou das culturas dos povos tradicionais,

através da dimensão da arte, das manifestações

culturais, do registro e do brincar. Hoje atua como

gestora, ao lado de sua companheira, na Mútua

Criativa, uma agência de criação e produtora cultural.


A ORIGEM DO POVO PATAXOOP DA ALDEIA MUÃ

MIMATXI *

>> Siwê Pataxoop

Indígena Pataxoop da aldeia Muã Mimatxi-

Itapecerica, MG. Atualmente é diretor da Escola

Estadual Indígena Pataxó Muã Mimatxi. Tem

experiência na área de educação, com ênfase em

Educação Escolar Indígena, atuando principalmente

nos seguintes temas: matrizes, interculturalidade,

escola e educação Indígena. Participa na produção

de material didático específico e diferenciado para

escolas Indígenas, produz oficinas e intercâmbios

Interculturais. Possui graduação em Formação

Intercultural para Educadores Indígenas na

Faculdade de Educação pela Universidade Federal de

Minas Gerais FIEI-FAE-UFMG. É Mestre em Educação

na Faculdade de Educação-FAE pela Universidade

Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG.

>> Saniwê Pataxoop

Indígena Pataxoop da aldeia Muã Mimatxi-

Itapecerica, MG. Professor alfabetizador de sua

aldeia na Escola Estadual Indígena Pataxó Muã

Mimatxi. Graduação em Formação Intercultural

para Educadores Indígenas pela Universidade

Federal de MinasGerais-FIEI-UFMG, mestre em

Educação na Faculdade de Educação-FAE pela

Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG.

*Edição e organização de Daniela Carvalho

AS APRENDIZAGENS DAS CRIANÇAS NA ALDEIA

MUÃ MIMATXI *

>> Saniwê Pataxoop

*Edição e organização de >> Daniela Carvalho

UM ENCONTRO NA ALDEIA-ESCOLA-FLORESTA *

>> Isael Maxakali

É doutor em Comunicação Social (Notório Saber) pela

UFMG, cineasta, professor e artista visual. Dirigiu os

filmes “Tatakox” (2007); “Xokxop pet” (2009); “Yiax Kaax

– Fim do Resguardo” (2010); “Xupapoynãg” (2011);

“Kotkuphi” (2011); “Yãmîy” (2011); “Mîmãnãm” (2011);

“Quando os yãmîy vêm dançar conosco” (2011);

“Kakxop pit hãmkoxuk xop te yũmũgãhã” (“Iniciação

dos filhos dos espíritos da terra”, 2015), “Konãgxeka:

o Dilúvio Maxakali” (2016) e “Yãmiyhex: as mulheresespírito”

(2019) e Nũhũ yãgmũ yõg hãm: essa terra

é nossa! (2020). Em 2020, venceu o Prêmio PIPA

on-line, uma das principais premiações de arte

contemporânea no Brasil.

>> Sueli Maxakali

É doutora em Letras: Estudos Literários (Notório

Saber) pela UFMG, cineasta, professora e fotógrafa.

Co-dirigiu os filmes Quando os yãmiy vêm dançar

conosco (2011), Yãmiyhex: as mulheres-espírito

(2019) e Nũhũ yãgmũ yõg hãm: essa terra é nossa!

(2020). Publicou o livro de fotografias Koxuk Xop

Imagem (Beco do Azougue Editorial, 2009), com

fotografias das mulheres maxakali sobre os rituais

e o cotidiano da Aldeia Verde. Foi professora do


Programa de Formação Transversal em Saberes

Tradicionais da UFMG, em 2016, 2017 e 2019.

>> Mestre Joelson

Assentado no Terra Vista, no sul da Bahia, com 30

anos de luta pela terra, já foi da Direção Nacional

do MST, Mestre na Agroecologia, um dos fundadores

da Teia dos Povos em 2012.

* Transcrição dos textos e apresentação de

>> Rosângela Pereira de Tugny

Cursou graduação em Piano pela Universidade

Federal de Minas Gerais (1986), DEA em Música

e Musicologia – Université François Rabelais de

Tours (1991) e doutorado em Música e Musicologia

– Université François Rabelais de Tours (1996).

Atualmente é professora associada do Departamento

de Teoria Geral da Música da Universidade Federal

de Minas Gerais. Coordenou projetos no Acervo Curt

Lange da UFMG e no Laboratório de etnomusicologia

da UFMG, desenvolvendo pesquisas sobre as práticas

musicais indígenas e com os repertórios de cantos

do povo Tikmũ’ũn – Maxakali. Publicou livros e artigos

sobre música contemporânea e etnomusicologia. Em

colaboração com especialistas indígenas, traduziu e

organizou a publicação de filmes, gravações e livros

de tradução de cantos e mitos.

DESTA TERRA, PARA ESTA TERRA *

>> Isael Maxakali

>> Sueli Maxakali

* edição e tradução de >> Roberto Romero

É doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional

(UFRJ). Membro da Associação Filmes de Quintal, é

um dos organizadores do forumdoc.bh - festival do

filme documentário e etnográfico de Belo Horizonte.

Foi assistente de direção do longa “Yãmĩyhex: as

mulheres-espírito” (Sueli e Isael Maxakali, 2019)

e co-diretor do longa Nũhũ yãgmũ yõg hãm: essa

terra é nossa! (2020).


Escutar para

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BDMG CULTURAL


É com alegria com orgulho que contribuímos com

a realização desta edição da Revista Mucury. Uma

publicação que vem com a força da natureza e da

vida em comunidade. Mais do que um convite, este

número é um chamado para a escuta profunda das

verdadeiras raízes brasileiras. Raízes estas que

brotam das águas, das florestas, da terra e dos

saberes dos povos originários e tradicionais. São

textos com memórias e conhecimentos que narram

os afetos dos coletivos que vivem e resistem no

Vale do Mucuri.

Como o percurso de um rio ou de uma trilha na

mata, as lindas imagens e escritas das próximas

páginas nos levam a conhecer e, sobretudo, refletir

sobre o pertencimento das comunidades indígenas

e quilombolas neste vasto território mineiro. Nele

a vida é comida, é conhecimento, é cultura, é ritual

e ancestral. É arte de plantar, de colher, de brincar,

de dialogar, de ensinar e de festejar com cantoria

e batuque.

“Nós indígenas, donos da terra, precisamos da

terra para sobreviver. Hoje temos vários sonhos

para essa terra. Reflorestar essa terra”, ressalta

Sueli Maxakali sobre o seu povo em um dos textos

dessa edição.

É com esse chamado de esperança de Sueli que

convidamos a todes a mergulharem atentamente

nas palavras das autoras e autores, que relatam

as experiências de ancestrais e sonham com um

futuro de abundância para os que pertencem

a este território.


Sumário

12

EDITORIAL

Bruno Bento

26

TERRITÓRIO DO BATUQUE

Bruno Bento, Mariana

Botelho e Daniela Carvalho

14

IMAGEM DO MAR

Vitor Bedeti

41

A ORIGEM DO POVO

PATAXOOP DA ALDEIA

MUÃ MIMATXI

Siwê Pataxoop e

Saniwê Pataxoop


50

AS APRENDIZAGENS

DAS CRIANÇAS NA

ALDEIA MUÃ MIMATXI

Saniwê Pataxoop

90

DESTA TERRA,

PARA ESTA TERRA

Isael Maxakali e

Sueli Maxakali

75

UM ENCONTRO NA ALDEIA-

ESCOLA-FLORESTA

Isael Maxakali, Sueli Maxakali

e Mestre Joelson


EDITORIAL

TEÓFILO OTONI, VALE DO MUCURI

Apesar de ser outono de 2022, parece vivermos um

grande inverno. Um grande inverno que acaba. Isso, no

presente, acaba.

Estamos todas, todes e todos em prontidão para amanhã e

depois de amanhã.

Esse editorial não está tão bem-humorado como os outros

dos onze números, mas está firme e decidido.

Essa revista agora, a 12, traz a grande lição que a

Associação Mucury Cultural e nós que a compomos

tivemos: o afeto, a festa, a escuta e o brincar. Aprendemos

isso na grande imersão nas comunidades tradicionais do

Mucuri nesses anos de trabalho, afeto, festas, escutas e

brincadeiras. Os festivais, as reuniões, todas as vezes

em que fomos com Cátia no mato - no Quilombo São Julião

- para buscarmos lenha, racharmos, acendermos o

forno, amassarmos o pão e o assar. Assim brifávamos a

atuação nas imersões da Casa do Batuque, ou em outros

tantos encontros.

Na cozinha de Maria, a rainha do Quilombo Santa Cruz,

comemos, bebemos e construímos o presente, e na casa

de Seu Nenenzão descobríamos a Água Limpa – Quilombo

Água Limpa. Em Ouro Verde de Minas ainda estamos com

saudades do Batuque de Dona Nêga no Quilombo Água

Preta de Cima.

12 Editorial


Mas isso não é um texto de saudades, é um texto de

valentia, braveza e movimento, estamos aqui nessa

belezura de revista tão sonhadamente impressa

para mostrar a nós, aos nossos e a vocês outros, as

belezas dessas vidas, apesar de um certo você.

Não consigo fazer discurso, sempre choro, e agora

não é diferente, engasgado, esperando que amanhã

possamos todes juntes brincar o Batuque.

Há outro verbo importante nessa revista: RETOMAR.

Desta vez nesses os povos originários se fazem

presentes com Suely Maxakali e Isael Maxakali

e Siwê Pataxoop e Saniwê Pataxoop, relatando

grandes retomadas de parte de seus territórios

erodidos pela branquitude na ganância pelo fim do

mundo. A aldeia Muã Mimatxi e a Aldeia-Escola-

Floresta são resultados dessa retomada que nos

delineiam a resistência dos povos indígenas bem

como sua generosidade em nos conduzirem para um

mundo justo, solidário e cooperativo.

Este número da Revista Mucury tornou-se realidade

por meio do Edital BDMG Cultural e a insistência da

Marcela Bertelli para que enviássemos a proposta,

aproveitando para saudar Gabriela Moulin que à

época nos acolheu tão afetuosamente, ao Chico,

à Larissa e toda a equipe do BDMG Cultural que

cuidaram tão bem de nós, além do Roberto Romero

que junto de Irislene Rocha nos orientam nas

questões relacionadas aos Maxakali.

Celebramos a chegada da Mútua Criativa com Lu

e Dani e dizer que nossa vida não é mais possível

sem vocês, nem a existência dessa revista e nem da

Associação Mucury Cultural. E finalmente Vivi, você é

nosso amor e aproveitamos agora para celebrarmos

10 anos de nossa parceria com a COMBO, lembrando

daquela primeira reunião na ED – Escola de Design

da Universidade do Estado de Minas Gerais.

Para manter meu emprego de editor dessa belezura,

lembramos ainda da atuação incansável de

Mariana Botelho, nossa Diretora Geral, na luta das

comunidades tradicionais e originárias do Vale do

Mucuri.

Finalizo aqui convidando para a imersão nessa

vivência com as comunidades que os textos e as

imagens desta edição nos oferta e para que conosco,

adiantemos essa primavera que esses povos sempre

levaram em suas existências.

GRANDE ABRAÇO.

REVISTA MUCURY 12

13


14 Imagem do mar


Imagem

do mar

VITOR BEDETI


Iniciaremos este percurso acompanhando o

trajeto de um rio, por um caminho que revela várias

naturezas, naturezas com paisagens híbridas e

silenciosas: híbridas pelo entrecruzamento de

afluentes que as compõem e silenciosas por excluir

o som aparente, o natural, e fazer ecoar tonalidades

outras entre a realidade e a imaginação. Trato o real

aqui como um acontecimento da vida, um dado fático,

um fato, mas considerando que toda realidade e o

real estão sujeitos a interpretações. Neste caso, uma

forma de vislumbrar que exige um certo tempo de

silêncio destinado à contemplação, lhe faço

este convite.

Tente imaginar um rio que corre para o mar,

atravessando quilômetros, em alguns momentos

manso, em outros feroz, por onde suas águas

passam fica um rastro de caminho que é irreversível,

se um rio seca a marcar fica, o lugar por onde ele

passa nunca mais é o mesmo, sempre há vestígios,

rupturas, fissuras, espaços sinuosos, eu gosto de

seguir esses vestígios, foi isso que me levou ao mar.

Seguir o caminho do rio sempre é uma boa opção,

inclusive quando não se pode escolher.

Eu cresci na margem de um rio, em um terreno

úmido, fecundo, dali vinha a mensagem do tempo,

a organização, vinha nossa esperança de colheita,

nosso ritual, nosso sustento, o sentido de coletivo,

família, também fluía ali, na beira. Antônio Bispo

dos Santos no livro Colonização, Quilombos Modos

e Significações (2001) narra uma experiência que

evidência a importância do rio na essência dos

coletivos, para ele;

“Nem todo mundo tinha material

de pesca. Por isso uns jogavam

tarrafas, uns mergulhavam para

desenganchar, uns colocavam os

peixes na enfieira, etc., de forma que

todos participavam. Independente da

atividade desempenhada por cada um,

no final todas as pessoas levavam peixes

para casa e a medida era que desse

para casa família comer até a próxima

pescaria. Seguindo a orientação das

mestras e mestres, ninguém podia

pescar para acumular, pois melhor

lugar para guardar os peixes é nos rios”

(BISPO. 2021, p. 63)

Foto de Mariana Botello

16

Imagem do mar


A citação de Bisco provoca um olhar

atento ao movimento que acontece na

margem, a preparação para a pesca, a

divisão dos trabalhos, o compartilhar

das histórias, a comunhão dos alimentos,

a consciência de grupo. Ele elucida

aspectos culturais, tradicionais de

povos que vivem perto das águas, é uma

paisagem, quem navega por lá vê na

margem várias redes, algumas lançadas

nas águas; tarrafas, outras formadas por

pessoas; acampamentos. O rio provoca

o ajuntamento, a reunião, a formação de

grupos, constroem caminhos é um guia, é Foto de Mariana Botello

confluência, encontro.

paralisado, foi um impacto, eu tinha certeza que

Antes de continuar nosso percurso quero dar

aquelas águas escuras continuariam indo e vindo em

ênfase para a palavra confluência que é “a lei que mim mesmo quando eu não estivesse mais ali e isso

rege a relação de convivência entre os elementos aconteceu. Agora, neste instante em que escrevo,

da natureza e nos ensina que nem tudo que se

sinto o movimento das águas tomando meu corpo

junta se mistura, ou seja, nada é igual” (BISPO. 2021, é tão real que fica fácil imaginar.

P.68), ir pelo rio em direção ao mar pensando na

diferença que há entre as águas doces e as águas A ideia que eu tenho é que a definição de mar não

salgadas é importante ajuda a respeitar o trajeto e cabe em adjetivos, descrições, características, é além,

a compreender a complexidade que forma cada uma é uma imagem, um acontecimento, um mergulho. O

dessas duas grandezas.

conceito de imagem dialética de Walter Benjamin,

do livro Passagens (2006), me ajuda a explicar

Não é fácil seguir os vestígios, passar por fissuras, o que foi para mim o encontro com o mar; “não é

se orientar em espaços sinuosos, mas seguir o rio é que o passado lança sua luz sobre o presente ou

certeiro, dá no mar. Ver o mar faz qualquer travessia que o presente lança luz sobre o passado; mas

valer a pena, lembro como se fosse agora quando vi a imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o

o mar pela primeira vez, a imagem continua ecoando agora num lampejo, formando uma constelação”.

na minha mente, um mundo negro refletindo a noite, (BENJAMIN, 2006, p. 505). A relação dialética pode

transparente e de imponente grandeza, fiquei afônico, ser compreendida como um movimento que afirma

REVISTA MUCURY 12

17


Foto de Mariana Botello

o tempo presente considerando suas dimensões

históricas e as potências interpretativas.

O cruzamento entre o que é percebido imediatamente

ao olharmos para uma paisagem e a cadência de

impressões tecidas por nossas referências culturais

é um dos pontos que sustentam o conceito de

imagem dialética, presente em Benjamin. O instante

privilegiado pela afirmação do acontecimento

presente pode resistir e se diluir em seu contexto

histórico, tudo dependerá de quem, ou o quê, observa

nesse instante. As reflexões expostas por Benjamin,

no livro Passagens (2006), a respeito das imagens

dialéticas se enveredam principalmente em uma

perspectiva política, sobretudo, valorizando a

tentativa de independência do homem em detrimento

da política. Nesse texto abordaremos o aspecto

estético e dialético da imagem, pois naturalmente,

cada imagem que compõe nosso campo de visão

possui uma trama na qual diversas informações

se entrelaçam formando sentido. Meu encontro

com o mar fez emergir essa trama, foi para mim

a imagem do mar.

A palavra constelação me parece uma boa palavra

para falar da imagem do mar, retiro ela da citação

de Benjamin e antes de continuar quero remar em

direção aos estudos dos professores Georg Otte

e Miriam Lídia Volpe, em Um olhar constelar sobre

o pensamento de Walter Benjamin (2000), eles

afirmam que;

não se trataria apenas de um conjunto

(constelação), mas de uma imagem, o que

18

Imagem do mar


significa, em primeiro lugar, que a relação

entre seus componentes, as estrelas, não seja

apenas motivada pela proximidade entre elas,

mas também pela possibilidade de significado

que lhes pode ser atribuída. (OTTE; VOLPE,

2000, p. 37).

Quando eu vi o mar pela primeira vez era noite, as

estrelas estavam nitidamente refletidas no plano

infinito de ondas, logo me veio o primeiro sentido da

palavra constelação; conjunto de estrelas, mas “a

própria escrita benjaminiana exige que se mergulhe

cada vez mais nas profundezas das palavras para

explorar ao máximo toda a sua abrangência e, a

partir daí, seu possível uso metafórico” (OTTE; VOLPE,

2000, p. 37), nesse movimento também compreendo

a imagem, que se formou no meu encontro com o

mar, como uma constelação que reverbera múltiplos

modos de significações e sentidos.

A constelação que se formou foi um universo

de tramas misteriosas e viscerais, toco elas

todas as vezes que navego na lembrança do

momento em que vi o mar pela primeira vez.

Foi um conjunto de estrelas que dançavam em

torno do sol, o sol dançando para as estrelas em

torno das nebulosas, foi o escuro da superfície

fazendo sentido também nas profundezas. Um

universo de ondas que se arrebentam na praia,

não havia o silêncio, ali o barulho se propagava

como o som de muitos tambores, várias

canções, confluências.

rios que forma os oceanos gigantescos de sentidos,

toda vez que faço isso me vejo inteiramente refletido

naquelas águas, eu me reconheci ao ver o mar, eu

também era o mar, de algum modo o mar olhou para

mim com a mesma curiosidade que eu olhava para o

mar, ele me abraçou, me conduziu, me inundou. Eu

amei amar o mar à primeira vista.

O mar é o Quilombo São Julião, Lavra dos pretos,

é o Grupo Pai João, A Casa do Batuque, A Tenda da

Farinha, são as Guardiã de plantas e versos, são as

artesãs e artesãos, é a capoeira são as mulheres e

homens, meninas e meninos é a Associação do Vale

do Mucuri, são os tambores, os bichos, a mata, a

farofa, a mão de Deus, o café, é um tanto de coisas

que não sei, mas que quero muito descobrir é uma

constelação, uma confluência.

Foi no Festival EGBE – Encontro do Quilombo São

Julião com Povos Tradicionais do Sul da Bahia

Eu gosto de desbravar esse cosmos do

encontro, eu gosto de descobrir, percorrer, os

REVISTA MUCURY 12

Foto de Mariana Botello

19


20 Título do texto que está sendo lido

Fotos de Mariana Botello


logo do tamanho do mar. Foi tão importante, acho

que todas as pessoas deveriam passar por isso.

Conhecer São Julião me fez perceber várias

características em comum com o lugar de onde eu

vim, Zona da Mata de Minas Gerais, Ponte Nova.

Eu vi no quilombo costumes, histórias, práticas,

tradições, sonoridades, marcas, muitas misturas

idênticas as que eu vivenciei e vivencio. Minha ficha

caiu, eu cresci em um quilombo, sem saber que era

um quilombo, foi ali no encontro das águas que me

dei conta de que eu também era quilombola.

(2019), que eu encontrei o quilombo São Julião

presencialmente pela primeira vez, curiosamente,

nesta mesma ocasião, também foi a primeira vez que

o quilombo viu o mar. O impacto que as mulheres

e homens quilombolas tiveram ao ver o mar pela

primeira vez, foi muito parecido com o impacto que

eu senti ao ver o quilombo pela primeira vez, por

isso achei que seria interessante relacionar esses

dois acontecimentos de modo que a confluência de

sentidos evidenciasse as semelhanças entre o mar

e o Quilombo São Julião.

O festival durou alguns dias, mas o desejo de

conhecer as profundezas motivou mergulhos intensos

e duradouros, foi um entrecruzamento de histórias.

As águas se misturavam como redemoinho, o impacto

do “aqui e agora” daquele momento fez surgir

uma constelação. Foi irreversível. Eu voltei desse

acontecimento me sentido do tamanho do quilombo,

Quando eu estava no mar vi o impacto das ondas

nas rochas, eu vi as pedras se esfarelando em areia,

eu vi esse farelo construir novos sentidos, novos

caminhos, foi assim também em mim. Me entender

como um homem quilombola provocou impactos

importantes na minha história, na minha percepção

de mundo, foi uma revolução, a roda girando e

moendo tudo, dando uma nova liga, um novo formato.

Lembro dos meus pés na farinha fina do mar

interagindo com as marcas dos pés dos quilombolas

de São Julião, eu fazia questão de pisar dentro das

pegadas, pulava de uma para outra, aquilo virou

uma coreografia. A primeira dança, em Ponte Nova,

aconteceu assim, eu amava pisar nas marcas dos

pés que ficavam no chão da casa de farinha, lembrei

dessa imagem quando eu caminhava na praia, foi

fácil lembrar, inclusive porque essa caminhada

aconteceu no momento em que comíamos farofa

feita com a farinha de mandioca da casa de farinha,

mais uma conexão com o quilombo São Julião.

O processo da farinhada é feito em etapas, “uma

REVISTA MUCURY 12

21


organização própria dos quilombos e dos povos

indígenas e que quase todas as pessoas que moram

nessas comunidades conhecem e participam” (BISPO.

2021, P.82), um ciclo muito bonito que acontece de

tempo em tempo respeitando o cultivo da mandioca.

Colher a raiz, tirar sua casca, cevar (triturar),

produzir a farinha, a tapioca

Tudo isso acontece mediante poucas

palavras... e assim se lava a massa, se colhe

a tapioca, se torra a farinha, se faz o beiju; e

assim se namora, marca noivado, e vive-se

durante um longo período, onde se faz muita

força, mas toda essa força se transforma em

festa... Na maior parte das vezes, ninguém

ganha dinheiro nesse processo. As pessoas ou

recebem parte da produção ou recebem ajuda

em outras farinhadas ou em quaisquer outras

atividades que precisarem. (BISPO. 2021, p. 84)

São muitos detalhes nesse processo, muitos

movimentos, a comunhão, a consciência de grupo, a

rede, esse entrelaçar de histórias, práticas e costumes

que estão presentes em tudo no quilombo, a assim

como diz Bispo a casa de farinha é uma estrutura

orgânico social. Eu precisaria de muitas páginas

para dizer da importância e da complexidade que há

neste espaço de confluências, falei rapidamente aqui

neste texto, mas mesmo sendo rápido, senti que seria

interessante contextualizar o valor e a relevância

deste símbolo.

Percorrer o rio, ver a margem, encontrar o

mar, encontrar o quilombo no mar, me perceber

quilombola, passar pela casa de farinha, fortalecer

minhas conexões com o quilombo e escrever este

texto foi um processo de mergulho em camadas

sensíveis, delicadas, complexas, paisagens hibridas e

silenciosas. Uma transformação, eu precisava disso

para me fortalecer, para permanecer vivo. Sou

tão grato a esse encontro!

Segundo nossas mestras e mestras do quilombo

a melhor maneira de conservar os alimentos

é guardando eles em seu lugar de origem, por

exemplo, a melhor maneira de guardas os peixes

é deixando eles nas águas e a melhor forma de

guardar a mandioca é deixando elas na terra.

Isso me faz pensar que a melhor maneira de me

tornar quilombola é voltando para meu lugar de

origem o quilombo.

Foto de Mariana Botello

22

Imagem do mar


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BISPO, Antônio da Silva. Brasilia: Editora:

INCTI, 2019

BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte:

Editora UFMG, 2007

OTTE, Georg; VOLPE, Miriam Lídia. Um olhar

constelar sobre o pensamento de Walter

Benjamin. Fragmentos, Florianópolis, n. 18,

p. 35-47, jan./jun., 2000

Fotos de Mariana Botello

23


Foto Marina Botelho

24

Imagem do mar


Foto Marina Botelho

REVISTA MUCURY 12

25


26 Território do Batuque


MATÉRIA DE CAPA

Território

do Batuque

BRUNO BENTO, MARIANA BOTELHO E DANIELA CARVALHO


O Território do Batuque é um projeto da Associação

Mucury Cultural que reúne narrativas imagéticas,

registros fotográficos de ações e manifestações

das culturas populares e dos povos tradicionais do

Mucuri, um acervo, guardador e difusor da memória.

São Julião - Mariana Botelho, 2016

28 Título do texto Território que está do sendo Batuque lido


São Julião - Mariana Botelho, 2017

REVISTA MUCURY 12

29


A ASSOCIAÇÃO MUCURY CULTURAL

A Associação Mucury Cultural atua desde 2011

junto aos povos originários e tradicionais do Vale

do Mucuri-MG e dentre seus objetivos estatutários,

destacam-se: Promoção da cultura, defesa e

conservação do patrimônio histórico e artístico,

material e imaterial, preferencialmente do Vale

do Mucuri, de suas comunidades tradicionais e

populações originárias e respectivos territórios;

Defesa, preservação e conservação do meio

ambiente e promoção do desenvolvimento sustentável

e responsável, e acesso, especialmente dos

territórios das comunidades tradicionais, das

comunidades periféricas e populações originárias;

Promoção do direitos, das memórias e do protagonismo

e das narrativas das crianças e suas respectivas

infâncias, das mulheres, das populações

originárias, da população LGBTQIAP+, dos povos

negros, dos povos quilombolas, dos povos de terreiro

e das periferias a partir de ações afirmativas e

reparativas; Promoção das políticas afirmativas

e reparativas atuando na luta contra o racismo, o

machismo, a homofobia e quaisquer manifestações

de preconceito, opressão

e violência de

quaisquer naturezas,

principalemten raciais,

de classe, de gênero

e de intolerância

religiosa; Integração de

seus beneficiários ao mercado de trabalho por meio

da promoção de cursos, oficinas e afins, de cunho

profissionalizante.

A partir do fortalecimento identitário realizado por

meio de apoio a eventos e festejos de identidade,

como Folias, Batuques, Festivais de Cultura Quilombola,

Festas de Padroeiros e outros festejos, a

associação contribui para o empoderamento das

identidades e suas manifestações, articulando

redes dos povos quilombolas, de terreiro e indígena

objetivando a garantia de direitos.

A associação possui princípios metodológicos, que

tornam-se fios condutores para suas participações e

atuações junto às comunidades:

I - A Escuta ampla e profunda definida pelo

diálogo constante e transparência radical com

suas parcerias e com o público de suas ações,

os Povos Tradicionais do Vale do Mucuri-MG;

II - O Sentido Comunitário como norteamento

das propostas e ações;

III - A atuação prioritária no âmbito da Cultura

das Infâncias, tendo como elemento chave

na intervenção comunitária a criança como

sujeito de conhecimento;

https://www.youtube.com/watch?v=1mYDQ6Apw_U

30

Território do Batuque


IV - A atuação junto às juventudes valorizando

suas relações, conhecimentos e potência;

V - A atuação junto às mulheres, sempre

buscando contribuir para seu empoderamento

individual e coletivo e a superação da condição

de opressão imposta histórica e socialmente.

https://www.youtube.com/

watch?v=E2qorzw3KXk&t=94s

O Vale do Mucuri foi a penúltima região a integrar o

território de Minas Gerais, em sua porção Nordeste,

com a constituição da Cia de Commercio e Navegação

do Mucury que culminou com o extermínio de dezenas

de povos indígenas e a introdução da população

negra como escravizados de mesma maneira com a

Cia de Estrada de Ferro Bahia e Minas. Este processo

tem como resultado uma região abarcada por 32

municípios, centenas de comunidades rurais, 52

comunidades quilombolas identificadas, 17 certificadas

pela Fundação Palmares, dois povos

indígenas em 6 comunidades. Um território marcado

pela desigualdade e baixa dinamização econômica

demonstradas por meio do IDHM 2010: Teófilo Otoni

tem 0,701 (considerado alto), ao passo que o menor

é registrado em Ataléia, 0,588.

Nesses anos, a Associação Mucury Cultural vem

acompanhando e sendo parceira de diversas comunidades

tradicionais nas mais diversas ocasiões

de afirmação das identidades e manifestação

das culturas nas festas, festejos, encontros e

celebrações. Manifestações estas ocorridas

durante festivais, como o Encontro Mineiro de

Cultura Popular (2015), o Mucuriarte (2015), os

Festivais da Cultura Quilombola de São Julião (2014,

2016, 2017, 2018 e 2021), os Encontros Das Culturas

Quilombolas do Mucuri (2017, 2018, 2019 e 2021), as

Festividades do 20 de novembro, nos Encontros das

Comunidades Quilombolas de Ouro Verde de Minas

(2018-2019), o Festival Egbé (2019), intercâmbio

entre comunidades tradicionais do Mucuri e do Sul

da Bahia. Além do registro de 5 anos acompanhando

a Festa do Senhor Bom Jesus, Folia de São Sebastião,

Folias de Reis e Batuques.

As narrativas imagéticas construídas e organizadas

por meio de um inventário vivo e em construção,

são fruto de uma relação que se baseia na elaboração

e mediação de saberes, na perspectiva da

busca pela autonomia e produção independente dos

sujeitos viventes nas comunidades e que produzem

esses saberes.

Nesse sentido, diversos projetos de formação no

âmbito audiovisual, buscando o registro e construção

da memória imagética das manifestações

políticas e culturais, foram realizados junto às

comunidades, assim como levantadas possibilidades

REVISTA MUCURY 12

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PROJETO TERRITÓRIO DO BATUQUE -

NARRATIVAS IMAGÉTICAS

de formação de áreas de interesse e habilidades,

assim como profissionalizações,

focadas na construção desses registros,

principalmente junto às juventudes.

Além disso, os processos de construção

desse acervo imagético, foi inventariado,

paralelamente, às produções artísticas, de

evidenciação dos conhe-cimentos e saberes

tradicionais e ao empoderamento de sujeitos

historicamente marginalizados e oprimidos

pelas lógicas perversas do patriarcado, racismo

e processos de opressão das manifestações

da cultura das infâncias, das mulheres, crianças

e juventudes presentes nas comunidades.

Em 2021, a Associação Mucury Cultural,

por meio da Lei Aldir Blanc, pôde trazer para

o formato virtual o desenvolvimento de uma

plataforma que abriga uma curadoria de imagens

produzidas ao longo dos últimos anos, em três

territórios do Vale do Mucuri: Ouro Verde de

Minas, comunidade quilombola de São Julião

e Teófilo Otoni.

Este acervo, disponível no sítio da organização

tem por objetivo abrigar essas narrativas

imagéticas próprias das comunidades,

construídas com elas, além de oferecer

aos visitantes, conhecer, alguns aspectos

essenciais das manifestações populares da

Coletivo de Audiovisual do Quilombo - São Julião, 2018

32

Território do Batuque


Foto Marina Botelho - Comunidade Quilombola de São Julião

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Foto Marina Botelho - Comunidade Quilombola de São Julião

34 Território do Batuque


Foto Marina Botelho - 3° festival da cultura quilombola de são julião

REVISTA MUCURY 12

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cultura, apresentadas na música, na

religiosidade, na dança, no trabalho,

na arquitetura, nos festejos, na

cultura da infância e nas culturas

alimentares.

Pretende-se, por meio dessa plataforma

- Território de Batuque, construir

um acervo vivo, móvel e coletivo, onde

as comunidades possam não somente

ter acesso, como também alimentá-lo,

por meio da vida, cultura e produção

artística das comunidades, assim

como possibilitar o alcance dessas

produções para públicos diversos,

interessados na produção e registro

dos saberes populares e suas

manifestações culturais, políticas

e territoriais.

Veja a curadoria completa do projeto

Territórios de Batuque:

https://www.mucurycultural.org/galeria

Foto Marina Botelho - Comunidade Quilombola de São Julião

36

Território do Batuque


Foto Marina Botelho - Comunidade Quilombola de São Julião

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São Julião - Mariana Botelho

38

Território do Batuque


São Julião - Mariana Botelho

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Seção aldeia

Muã Mimatxi

40 A Origem do povo Pataxoop da aldeia Muã Mimatxi


SEÇÃO ALDEIA MUÃ MIMATXI

A Origem do

povo Pataxoop

da aldeia Muã

Mimatxi

SIWÊ PATAXOOP E SANIWÊ PATAXOOP

Edição e organização de Daniela Carvalho


NOTA: Este texto foi elaborado a partir das

Dissertações de Mestrado apresentadas ao

Programa de Pós-Graduação em educação da

Universidade Federal de Minas Gerais, intituladas

como: “As Matrizes formadoras Do Currículo Na

escola Indígena Pataxó Muã Mimatxi” e “A Criança

Afina o Olhar: Vida e Infância Em Muã Mimatxi.

A história do povo Pataxoop começa há muito

tempo, no tempo do HãmMõnayxoop, que é um

tempo ancestral onde Yãmixoop Topa vivia na Terra.

Yãmixoop é o nosso Deus, que morava aqui na Terra

e vivia em sintonia com as plantas, com os animais e

com os pássaros. Ele tinha o poder de conversar com

todos, com as plantas, com os animais,a lua, o sol, o

rio e com tudo mais.

Yãmixoop viu que a Terra precisava ser habitada e

esse foi o início de tudo. Teve um determinado dia em

que ele foi para uma MikayXeka, que é uma grande

montanha, se transformou em um Mogmoka, que é

um grande pássaro, gavião, grande e forte, e viajou

para o céu. Quando ele viajou para o céu, ele bateu

as asas muito forte e cada vez mais a terra ficava

menor. E quando ele chegou lá em cima, em um lugar

bom, ele se transformou em uma grande nuvem.

E essa nuvem depois veio a se transformar em

chuva, e cada pingo de chuva que caía na Terra se

transformava em um TihiPataxoop, em um indígena

Pataxoop da nossa etnia.

E, a partir daí, começa a nossa ancestralidade. A

gente tem parentes que são plantas, parentes que

são animais e é por isso que a gente gosta de sempre

fazer esse manejo na natureza, de uma forma a

respeitar toda essa ancestralidade. E, a partir daí,

o nosso povo viveu em um grande território, que

começava no extremo sul da Bahia, ia no norte do

Espírito Santo e vinha nas montanhas de Minas,

no leste. Então esse era um território ancestral,

que o nosso povo sempre viveu. É Kanatyo nos

explica melhor esta relação do povo Pataxoop

com a natureza:

Tehêy produzido na aldeia. Imagem de arquivo pessoal.

42

A Origem do povo Pataxoop da aldeia Muã Mimatxi


Então isso é muito importante para nós, porque

a gente sabe que, na natureza, para nós, tudo

é parente. Como a gente vai entender que um

rio é parente? Que a Terra é parente? Que a

floresta é parente? Então, tudo isso a gente

considera e respeita como um parente. Por

isso que nós sempre celebramos fortemente

através dos nossos rituais. Os rituais são

muito importantes para falar de tudo, porque

o ritual fala de árvore, fala de animais, ele fala

de água, ele fala de nós mesmos, ele fala dos

nossos ancestrais. Então, os nossos rituais

são muito importantes como história também,

porque a história vem contando tudo. Através

da nossa história, nós vivemos com a Terra.

Tudo o que nós fazemos na vida é história;

veem a história com a cultura e a identidade.

Por quê? Identidade, para nós, é a gente

entender que a natureza é nossa parente, e

nós temos que saber qual é o parente. Porque

nesse tempo tradicional, ancestral, tudo foi

criado com as mesmas matérias. Que a gente

tem… A humanidade, todos são um corpo que

recebeu o que nós recebemos. Recebemos

água no corpo, recebemos inteligência,

recebemos a palavra, recebemos tudo.

Então, assim, isso é muito importante. Porque

nesse tempo da criação, no surgimento, nós

fomos formados da mesma matéria: Terra e

água. Nós fomos formados de água e Terra.

Então, todos nós temos um pouco de tudo na

natureza. Nós não somos uma coisa que não

tem na natureza; nós somos parte da natureza.

Por isso está tudo interligado. Ligando animais

com árvore, com água, com Terra, com ar,

com o calor do sol. Com tudo isso. Então

é importante essa forma de criação para

todos que vivem aqui nesse planeta. E isso é

fundamental, porque a nossa inteligência e o

nosso saber, que foi dado para nós, foi para

a gente saber lidar com a natureza. Essa

forma de respeito com a natureza, de saber

que a gente é parte dela, é muito importante.

Porque nesse tempo, foi repassado, através

de Deus, esses valores, que são importantes

e fundamentais como uma formação que a

gente segue essa orientação, que vem desde

a ancestralidade, através da tradição. Então,

tudo o que a gente sabe, que a gente tem como

valor, como esteio para a gente viver neste

mundo, nós sabemos que nós temos de seguir

essa tradição, que ela vem desde os tempos

em que surgiram o mundo. E isso paravv nós é

importante.(Depoimento KanatyoPataxoop, live

Cultura, Identidade e histórias indígenas em

22 de abril de 2021).

A nossa luta, a nossa vivência dentro desse território

sempre foi com outros povos, com outros povos

irmãos. E, na maioria das vezes, quando a gente

falava disso, a gente tinha mais sete povos irmãos

que eram da mesma família linguística os Malali,

Maconi, Cumanaxó, Cutaxó, Paname, Copoxó,

Pirichus, e a partir desse momento, a gente vivia

trocando essas experiências culturais, tradicionais e

fazendo com que a cultura rodasse nesse território.

Na verdade, essa conexão, esse respeito ao território,

respeito a todos os seres vivos, de acordo com a

cultura, ela é muito importante. Isso tudo faz parte

REVISTA MUCURY 12

43


de uma educação, faz parte de uma regra de vida

que nós temos com a natureza. Portanto, a natureza,

para nós, tem conhecimento e é viva, como alguns

animais que fazem grande parte da nossa cultura,

da nossa identidade, que transmitem conhecimento,

que marcam e trazem o tempo também de nossa

vida aqui na terra.

Tudo isso é um conhecimento, faz parte da nossa

ciência de vida. E não só a ciência, mas como uma

relação com Yãmixoop. Yãmixoop, que é a forma da

gente ter um diálogo com os sagrados. A gente tem

Yãmixoop, que representa a água, o canto, a floresta;

a Mata Atlântica é onde a gente conhece bem.

bem seu território e conhecer sua floresta, seus

rios, seus caminhos de idas e vindas, e o respeito

com que faziam o manejo na terra. Isso também

era muito importante.

Nosso povo vivia nesse território que, para percorrer,

era preciso caminhar alguns meses. Por exemplo,

caminhavam três meses, paravam seis, cinco

meses. Depois retornavam de novo, caminhavam

certo período e voltavam de novo. E muitas vezes,

quando a gente vê o livro de história, fala que os povos

indígenas eram nômades, mas isso é uma palavra

que para nós não existe. Nômade é uma pessoa sem

vínculo com a terra, com o território. A terra não

importa, a terra não tem espírito para ele. E para

nós, não. A terra faz parte da nossa vida. A gente

conhece o nosso território, conhece os pássaros,

conhece as plantas, conhece tudo o que tem nesse

território. Então isso faz parte da nossa vida, da

nossa cultura. Essa relação com a terra traz a visão

da ancestralidade Pataxoop, como nos conta Kanatyo

em seu livro Txopai e Itôhã.

Mimatxitiuhi à direita, vestido de folha; Ritual das Águas.

Fonte: Arquivo pessoal.

A resistência que os nossos povos, os nossos antigos

tiveram foi com referência a essa forma de conhecer

Antigamente, na terra, só existiam bichos

e passarinhos, macaco, caititu, veado,

tamanduá, anta, onça, capivara, cutia, paca,-

tatu, sariguê, teiu, cachichó, cagado, quati,

mutum, tururim. jacu, papagaio, aracuã,

macuco, gavião, mãe-da-lua e muitos outros

passarinhos. Naquele tempo, tudo era alegria.

Os bichos e passarinhos viviam numa grande

união. Cada raça de bicho e passarinho era

diferente, tinha seu próprio jeito de viver a vida.

Um dia, no azul do céu, formou-se uma grande

nuvem branca, que logo se transformou em

44

A Origem do povo Pataxoop da aldeia Muã Mimatxi


chuva e caiu sobre a terra. A chuva estava

terminando e o último pingo de água que caiu

se transformou em um índio. O índio pisou

na terra, começou a olhar as florestas, os

pássaros que passavam voando, a água que

caminhava com serenidade, os animais que

andavam livremente e ficou fascinado com

a beleza que estava vendo ao seu redor. Ele

trouxe consigo muitas sabedorias sobre

a terra. Conhecia a época boa de plantar,

de pescar, de caçar e as ervas boas para

fazer remédios e seus rituais. Depois de sua

chegada na terra, passou a caçar, plantar,

pescar e cuidar da natureza. A vida do índio

era muito divertida e saudável. Ele adorava

olhar o entardecer, as noites de lua e o

amanhecer. Durante o dia, o sol iluminava

seu caminho e aquecia seu corpo. Durante a

noite, a lua e as estrelas iluminavam e faziam

suas noites mais alegres e bonitas. Quando

era à tardinha, apanhava lenha, acendia uma

fogueirinha e ficava ali olhando o céu todo

estrelado. Pela madrugada, acordava e ficava

esperando clarear para receber o novo dia

que estava chegando. Quando o sol apontava

no céu, o índio começava o seu trabalho e

assim ia levando sua vida, trabalhando e

aprendendo todos os segredos da terra.Um

dia o índio estava fazendo ritual. Enxergou

uma grande chuva. Cada pingo de chuva ia

se transformava em índio. No dia marcado,

a chuva caiu. Depois que a chuva parou de

estavam por todos os lados. O índio reuniu os

outros e falou: - Olha parentes, eu cheguei aqui

muito antes de vocês, mas tenho que partir.

Os índios perguntaram: - Pra onde você vai?

O índio respondeu: - Eu tenho que ir morar lá

em cima no Itohã porque tenho que proteger

vocês. Os índios ficaram um pouco tristes, mas

depois concordaram: - Tá bom, parente, pode

seguir sua viagem, mas não se esqueça dom

nosso povo. Depois que o índio ensinou todas

as sabedorias e segredos, falou: - O meu nome

e Txopai. De repente o índio se despediu dando

um salto, e foi subindo… subindo... até que

desapareceu no azul do céu, e foi morar lá

em cima no Itohã. Daquele dia em diante,

os índios começaram sua caminhada aqui

na terra, trabalhando, caçando, pescando,

fazendo festas e, assim, surgiu a nação Pataxó.

Pataxó e água da chuva batendo na terra,

nas pedras, indo embora para o rio e o mar.

(PATAXÓ, 1997, p.21).

Para conseguir o território de MuãMimatxi, nossos

pais - KanatyoPataxoop e Dona Liça escreveram

documentos falando das dificuldades que estavam

passando e assim começou a busca por uma nova

terra, pois onde morávamos estava crescendo e

havia vários tipos de pensamentos diferentes dentro

REVISTA MUCURY 12

45


do território. Até que então conseguimos algumas

terras para serem visitadas pelos nossos pais, eles

e outros parentes visitaram algumas terras, e então

eles tiveram, nesse pedaço de chão, uma grande

alegria; aqui na terra existiam os parentes que, na

nossa cultura, fazem parte da nossa família, que são

os tokxãm. Dessa forma, decidimos que essa seria

a nossa aldeia Muã Mimatxi, pois temos esse lado

espiritual de que na natureza temos parentes que na

ancestralidade fizeram coisas para nosso povo, com

os ensinamentos que vem sendo passado para o povo

Pataxoop desde a ancestralidade.

O nosso grupo familiar chegou aqui em Muã Mimatxi

no dia 24 de março de 2006; foi um tempo de muita

alegria para nossa comunidade, por estar em um

lugar que a gente sabia que estava guardado para

nós. Foi muita alegria para nossos velhos chegar aqui,

eles estavam alegres, pois eles poderiam fazer daqui

um modelo de vida para nossos jovens e crianças.

Tudo aqui faz parte da vida da comunidade e está

ligado a todos e o que é importante para nós é saber

que eles iam ter um lugar de ensino e de vivência,

que é importante para a construção do povo. Para

nossos velhos, os mais novos são os grandes

carregadores do conhecimento, que é aprendido a

partir da infância, é aí que começa a caminhada de

uma pessoa nos conhecimentos que está em tudo: na

cultura, no coletivo, na espiritualidade, no cuidado

que a gente tem um e com o outro; a vida em grupo é

importante porque a gente aprende com a natureza

que não estamos sós, temos um coletivo e isso é o que

nossos mais velhos queriam com a nossa chegada

aqui em Muã Mimatxi.

A Aldeia Indígena Muã Mimatxi era uma terra muito

degradada, tinha muito lixo pelo território, quase não

tinha muita mata, pois as pessoas que viviam aqui

não deixavam as plantas crescer, para fazer pasto

para gado. Assim que chegamos aqui em março de

2006 foi um novo recomeço para nós que estávamos

chegando a essa terra, foi muita alegria estar

chegando aqui, foi um tempo que todos passamos

por muitas dificuldades, mas o que importava para a

gente era poder estar na terra com muito sentimento

por ela e que aqui seria nossa aldeia e que teríamos

que cuidar para que os parentes que já estavam aqui

na terra fossem ganhando força para fazer nossa

aldeia uma nova terra; a partir dali, a gente ia fazer

de MuãMimatxi o nosso rosto.

Aqui na nova terra ainda tinha alguns posseiros

que moravam e quando a gente chegou ficamos

no centroda aldeia, ficamos muito felizes com

nosso novo recomeço; então aqui tinha um galpão

que estava em estado precário, foi onde algumas

famílias ficaram. Outras famílias ficaram morando

em barracas feitas de lona mais ao centro da aldeia,

embaixo das árvores, era difícil mas todos ali estavam

felizes com todo aquele movimento de poder estar

construindo um lugar do jeito que o povo queria.

A minha aldeia MuãMimatxi tem 120 hectares de

território demarcado, ela é uma pequena aldeia que

fica situada no centro oeste mineiro, ela tem 11

famílias com 37 pessoas que vivem nela.

Por nossa aldeia ser perto da cidade, a gente

sempre tem contato com a cidade, a aldeia fica entre

o distrito de Lamounier e a cidade de Itapecerica.

46

A Origem do povo Pataxoop da aldeia Muã Mimatxi


Lamounier fica do lado da aldeia, uma distância de

um quilômetro e é onde a gente sempre vai buscar

algumas coisas que precisamos comprar; na cidade

de Itapecerica nós vamos quando precisamos

resolver outras questões, como ir ao banco, fazer

consultas mais especializadas, ou em outros eventos.

Na aldeia, as famílias trabalham em pequenos

espaços, fazendo pequenos roçados e o manejo da

terra com vários tipos de plantios, como mandioca,

milho, feijão, taioba, cana, banana, fava, feijão de

corda, abóbora e outros. Tudo que é cultivado pelas

famílias é para o sustento das famílias e a gente

tem os espaços de pequenos roçados e também

cultivamos nos quintais das casas algumas frutas

e outras plantas medicinais.

Em MuãMimatxi, tem uma pequena moita de mata

que é muito importante para a aldeia, pois é um

local onde temos variedades de plantas e que pode

ser moradia para alguns animais. Quando a gente

chegou aqui em Muã Mimatxi, quase não tinha muitos

animais e uma parte da mata era desmatada, então

começamos a fazer ritual para a terra e com o

passar do tempo, a mata começou a criar força e a

se renovar e aí foram aparecendo alguns animais.

Hoje podemos ver que a nossa aldeia já está com

o jeito de ser Pataxoop e isso é muito importante

para nós, porque a terra para nós é mãe e a gente

tem que cuidar da nossa mãe. Desde pequeno, nós

aprendemos que temos que cuidar da terra e ela

cuida da gente, pois esse é o sentimento que faz a

gente sempre ter a nossa parte de viver sempre

bem com a natureza.

As famílias ficaram muito felizes com a chegada na

nova terra e que nela podia ser feito muita coisa

desde plantações, moradias, rituais para a terra, e

o mais importante era que nossas crianças tinham a

liberdade de andar e de construir a aldeia com suas

mãos também, porque a partir da nossa chegada era

um novo começo de construção: a gente ia começar

junto com a terra e elas estavam fazendo parte

daquele movimento da formação de Muã Mimatxi.

Mesmo as famílias vivendo sem uma casa, debaixo

de barracas de lona, estávamos todos felizes por

saber que a terra estava oferecendo o que a gente

precisava para nossa vida que era a terra. As

famílias viveram debaixo das barracas de lona seis

meses, mas a gente sempre soube esperar o tempo

certo de que a terra tinha sido escolhida para ser o

nosso pedaço de chão.


Mapa da Aldeia (Acervo

da Aldeia Muã Mimatxi)

Havia pouca mata, no início, e tivemos que ficar

somente em um espaço determinado para nós,

pois havia posseiros e eles tinham acesso aos

lugares da aldeia. Assim, a gente ficou apenas no

centro da aldeia, não tínhamos espaço para plantar

e nem para fazer nossas moradias até que os

posseiros saíssem da terra.

A partir de algum tempo aqui passando por

dificuldades, alguns posseiros começaram a sair

do território; essa parte em nossas vidas foi muito

importante porque foi permitindo que algumas

famílias da nossa comunidade começassem a se

espalhar pela aldeia e assim fomos ocupando os

lugares que chamavam as famílias e cada uma foi

escolhendo seus lugares para fazer dali seu espaço

familiar. Em 2009, a União demarcou a nossa aldeia

MuãMimatxi, foi uma grande conquista para o nosso

povo Pataxoop de MuãMimatxi, porque a partir

daquele tempo a gente podia fazer com que a nossa

aldeia pudesse compartilhar as coisas da vida com a

terra, com o cuidado, e que a terra estava livre para

a gente poder fazer dela uma parte que é importante

para nós, que é andar sempre de lado a lado com

Têhêy - Feliz com a construção da Aldeia

Muã Mimatxi. Fonte: Pataxoop, 2021.

48


ela, pois ela cuida da gente e nós temos esse mesmo

cuidado com ela.

Depois da demarcação de MuãMimatxi, com as

famílias se espalhando pelos lugares, a gente

foi formando os nossos próprios jeitos de manejo

do território; fomos espalhando as plantas, os

animais começaram a aparecer na aldeia, tivemos

a liberdade de construir nossa história no nosso

território, que foi de ter uma marca que é de que a

terra faz parte da nossa vida para uma construção

de vida, que meu povo traz desde a ancestralidade.

Foto da D.Liça (Acervo da Aldeia Muã Mimatxi)

REVISTA MUCURY 12

49


SEÇÃO ALDEIA MUÃ MIMATXI

As aprendizagens

das crianças

na aldeia Muã

Mimatxi

SANIWÊ PATAXOOP

Edição e organização de Daniela Carvalho


NOTA: Este texto foi elaborado a partir da

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em educação da Universidade

Federal de Minas Gerais, intitulada como: “A Criança

Afina o Olhar: Vida e Infância Em Muã Mimatxi’’.

Kanatyo (Acervo da Aldeia Muã Mimatxi)

Tehêy O encanto da natureza. Fonte: Arquivo pessoal.

Desde o tempo ancestral, nossos velhos vivem de

mãos dadas com a terra e a natureza, esse é um

conhecimento que vem sendo passado para as

crianças e é importante para o conhecimento na

formação delas. Como diz nosso grande cacique

Kanatyo em sua canção: “é de pequeno que faz gente

grande”; com essa vivência, as crianças já crescem

com o olhar de que a natureza cuida do nosso povo.

E sempre caminhamos com a natureza, pois todo o

sustento é tirado da natureza: as frutas, as sementes,

as raízes, as folhas, as flores, a caça e é uma forma

de troca com a natureza, a gente retira apenas o

que é para uso e não em grande massa, e sempre

aprendemos que a gente só pega o que vamos usar,

não podemos ter um olhar de querer tudo de uma

vez, e desta forma é uma troca de ajuda entre nós

e a natureza, porque a gente também tem um

cuidado com a terra.

É um ensino que se aprende dentro da nossa

cultura; esse ciclo de vida é de uma forma natural,

a criança começa a entender esses princípios de

acompanhar a natureza, de se aprender com os

serres da natureza, com os fenômenos naturais,

que se aprende desde a nossa ancestralidade,

através da observação e dos ensinos dos mais velhos,

como por exemplo, que o vento é um fenômeno da

natureza considerado um jardineiro ou plantador

na terra, pois sem a gente ver, ele usa suas mãos

REVISTA MUCURY 12

51


levando e espalhando as sementes para plantar em

diferentes lugares da terra, além de pegar as folhas

e misturar na terra para dar força para as novas

plantinhas. Isso tudo são coisas que são aprendidas

na oralidade e na observação da criança e é dessa

forma que a criança afina seu modo de ver e olhar a

natureza e se faz o conhecimento vivo dentro de sua

cultura na aldeia.

Os animais que andam pelo chão e os que voam

também têm parte nessa ligação da vida da

natureza com a criança; esses seres sempre estão

reflorestando as matas com sementes de frutas e de

outras plantas que são importantes para nosso povo,

eles sempre estão levando de um lugar para o outro

e assim as crianças gostam muito, porque os animais

estão trazendo fartura para eles e uma forma de

retribuir essa ajuda é cuidando dos lugares onde eles

vivem sem desmatar; isso é uma grande troca na

vida, é um cuidando do outro. A criança desde cedo

caminha pela aldeia atrás de frutas e com esses

grandes plantadores, ela sempre continua tendo

suas alegrias nas fruteiras, é um conhecimento que

nossas crianças hoje conhecem e que veio desde lá

da nossa ancestralidade.

Aqui em Muã Mimatxi nós, desde a nossa chegada no

território, ajudamos a natureza. Quando chegamos

aqui tínhamos plantas que acompanhavam o nosso

povo e elas vieram para cá com a gente e a gente

plantou e hoje elas já estão dando frutos, sementes,

folhas, e outros. Com essa forma de ajudar a

natureza, chegaram mais animais e pássaros que

hoje são os plantadores na terra, e aqui a gente

aprende a manter essa vida de ter o coletivo com

todos os seres da natureza.

A criança, no meio da comunidade, faz este movimento

de várias maneiras. Na infância, ela é um ser que

busca o conhecimento através do seu olhar, da sua

maneira de ver a forma que a vida percorre dentro

do seu espaço familiar. Ela caminha em vários lugares

da vida da comunidade, como espaço familiar, terreiro

da casa, na mata, em outros espaços de vivência.

As nossas crianças têm um sentimento de explorar

os seus espaços de vivência, ela sempre quer ter

algumas coisas para fazer, seja em uma brincadeira,

na caminhada pela aldeia ou apenas observando

os mais velhos. A infância faz a criança viajar nas

memórias dos velhos, em suas histórias contadas de

outras infâncias, uma infância completa a outra.

Ela é livre para buscar conhecimentos de vida da sua

forma e com seu tempo, ela não aprende tudo de vez,

ela olha um homem, uma mulher, um jovem dentro

de suas atividades de vida, assim ela, como uma boa

observadora, vai praticando e aperfeiçoando suas

atividades e construção de aprendizados, mas tudo

no seu tempo; é um aprendizado de erros e acertos.

A nossa aldeia tem uma variedade de vida e mesmo

num pequeno pedaço de terra, aqui temos o que

a gente precisa para nossa vida. E a gente desde

criança aprende a acompanhar essa vida ao lado

com a terra e em Muã Mimatxi as nossas crianças,

desde cedo na sua infância, conhecem os tempos,

as belezas e as alegrias da nossa aldeia.

52

As aprendizagens das crianças na aldeia Muã Mimatxi


Criança catando fruta no pé (Acervo da Aldeia Muã Mimatxi)

Na nossa aldeia, temos nosso próprio jeito

de acompanhar os tempos da natureza e para

nós, Pataxoop de Muã Mimatxi, temos cinco tempos

na natureza ao qual nós acompanhamos e cada

um tem sua especificidade e acontecimentos. As

crianças aqui já vivem acompanhando os tempos

eles já conhecem qual é o tempo de frutas, de alguns

fenômenos da natureza; isso através da observação

e de sua maneira de ser uma pessoa que acompanha

os velhos pela aldeia. Isto é importante para nós, é

uma forma viva de se aprender na própria rotina de

vida que começa pela infância.

Vivemos em par com a natureza e a terra, nossos

rituais, pinturas, artesanatos, alimentos, diversão e

tudo que fazemos está ligado à terra e à natureza;

esse é o ensino passado para as nossas crianças:

tudo tem ligação com a nossa volta onde vivemos. A

criança vive livre no chão da aldeia e ela aprende a

usar a terra sem usura ou nojo, ela tem que aprender

que terra não suja ou faz nada ruim para ela, ela usa

a terra com gosto, com alegria, pois a terra é o que

traz fartura e vida para o nosso povo.

Desde a infância, a criança começa a vivenciar as

coisas de sua cultura, como em um ritual ela sabe

os momentos de brincar, de conversar, de aprender

a fazer uma pintura; é onde ela ouve os cantos e

começa a ter voz no meio dos velhos. Ela sempre está

ali completando os espaços dos lugares e isso é um

aprendizado que ela carrega pela vida e passa para

as crianças mais novas, um vai passando para o

outro. Tem vezes que os mais velhos nem falam com

elas, uma criança ajuda a outra nos cantos ou nas

brincadeiras, uma vai transmitindo para outra .

A criança também gosta muito de criar suas próprias

brincadeiras, ela olha algumas coisas na natureza

e com sua esperteza, ela pode transformar algum

acontecimento em música, história, pintura ou tehêy

para expressar seu olhar. Tudo que tem na terra

REVISTA MUCURY 12

53


para a criança é transformada em arte de várias

formas, é quando ela tem o poder de entrar nesse

mundo da imaginação, ela usa o olhar, o corpo, a

terra e com isso ela está afinando seu olhar de uma

forma criativa; é onde ela fica esperta, alegre e uma

formadora de conhecimentos de diversas formas de

artes em sua vida juntamente com seus parentes.

Para nós, de Muã Mimatxi, a terra é uma mãe, ela

acolhe todo tipo de vida, ela alimenta, protege e

oferece para todos o futuro. A terra é uma guardiã

de tudo e todos que nela vivem, ela guarda uma

vida dentro de si e oferece para todos, e com essa

consideração com a mãe terra, nossas crianças

aprendem a cuidar dela. Então nossas crianças

aprendem que a terra tem que ter o zelo, esse zelo

é de não maltratar os seres da natureza, não sujar

a terra com lixo, a terra tem que ser como a gente

e ela tem que ter sempre o nosso olhar e cuidado

e nossas crianças já tem no pensamento esse

sentimento com a terra.

Com isso, nossas crianças aprendem a ajudar de uma

forma livre seus pais e parentes, porque elas gostam

de estar no meio dos trabalhos, na limpeza de um

quintal de sua casa, na roça, na produção de alguma

coisa para o ritual, e assim elas vão aprendendo as os

conhecimentos e aprendizados que são importantes

para sua vida.

Aqui, a nossa aldeia não é muito grande, elas tem

um pequeno espaço, mas mesmo assim elas tem

muitos lugares de vivenciar entre elas. Cada um de

nós, em Muã Mimatxi, teve uma maneira de viver a

infância, pois cada um teve um lugar, como meus

pais eles que vieram da nossa aldeia de origem, a

aldeia Barra Velha, a infância deles foi diferente. A

minha foi em outro território, com outros ambientes e

lugares diferentes. Hoje, as nossas crianças de Muã

Mimatxi já estão acostumados com a terra daqui,

elas já conhecem as frutas nativas, as plantas que

acompanham o nosso povo que foram plantadas

pelos velhos, e esse é um manejo de vida que elas

seguem. Elas já tem em mente o cuidado que nós

temos que ter por nossa aldeia, essa é uma questão

importante para a nossa criação de vida dentro da

nossa comunidade, é onde formamos nossas crianças

com ensinos vividos pela vida delas de uma forma

livre, com apenas o olhar e a oralidade. Essa é a

maneira de reconhecer que a terra anda lado a lado

com o nosso povo e que um cuida do outro, esse é um

dos princípios da nossa aldeia: viver em harmonia

com a natureza.

As crianças aprendem que em todo lugar que nós

indígenas passamos tem plantas que fazem parte

da nossa história, tem plantas que elas começam a

conhecer desde cedo, pois as mães usam algumas

como medicina ou tempero na comida, e algumas

são conhecidas nas matas com as caminhadas pelo

território. Elas aprendem que tem as que caminham

com a família, as que nascem na terra através dos

animais e do vento, as quais são nativas daquele

lugar, e tem aquelas plantas que nós mesmo

plantamos e isso faz a criança crescer ligada ao

mundo que a natureza oferece e também a ligação

da vida com a terra, que é importante para a

nossa sobrevivência.

54

As aprendizagens das crianças na aldeia Muã Mimatxi


Elas aprendem em Muã Mimatxi que as plantas

que fazem parte do nosso dia a dia é como a gente

andar no meio das pessoas e que elas estão ali

para ajudar a gente e naquele movimento de vida, a

criança vai brincando e observando e conhecendo o

que tem à sua volta. Então, na infância tudo é ligado

para a criança, desde aprender a conhecer a planta,

aprender a colher a folha, flor, para sua mãe ela vai

fazendo daquele movimento um aprendizado. Nesse

momento ela canta, anda, olha os acontecimentos

ao redor e também aprende a pegar somente o que

é necessário. E elas já vão crescendo conhecendo

vários fatores que elas têm que aprender para sua

caminhada de vida como por exemplo as plantas de

tempero, pois quando uma mãe pede para os filhos

pegarem, eles conhecem pelo cheiro, pelo formato da

folha, pelo tamanho da planta,

e a quantidade que a sua

mãe usa no alimento. Isso é

passado na prática da vida

em um conhecimento que é

trazido para a sua formação.

o olhar não é apenas ela ver, mas tem toda uma

ligação de sentidos, pois a visão é o que mostra a

imagem para o ser e nesse olhar tem o sentir, o ouvir;

essas são formas da criança estar formando sua

afinação do olhar, como no tempo da brisa leve, ela

sente o vento brando chegando na aldeia, a começar

um friozinho leve; no tempo da seca, as crianças

começam ver as folhas das árvores cair, alguns

animais chegando ou indo para outros lugares;

quando está para começar o tempo das águas, elas

já observam que as cores começam a chegar na

natureza. Então a criança é uma gente observadora e

pesquisadora e isso faz com que a criança seja uma

parte alegre da aldeia pois seu movimento está em

todos os lugares de nossa aldeia.

Aqui em Muã Mimatxi,

nós mais adultos, sempre

passamos os ensinamentos

que nossos pais e mais

velhos nos passaram para

nossas crianças, elas já tem o

conhecimento das mudanças

dos tempos aqui da nossa

aldeia, elas tem o seu próprio

jeito de observar e nesse jeito

de ver, elas estão afinando

a sua visão de vida. O afinar

Criança ajudando os mais velhos a pegar lenha para o ritual (Acervo da Aldeia Muã Mimatxi)

REVISTA MUCURY 12

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1.1 O APRENDIZADO

COM O OLHAR

O ensino pelo olhar é mais vivido pela criança porque

o velho ele já não aprende mais dessa forma, um

velho troca experiência, enquanto a criança aprende

pelo olhar. Uma pessoa mais velha dentro da aldeia já

não tem a afinação do olhar de aprender, é como se

a cabeça já estivesse cansada e formada. A criança

está formando seus conhecimentos, suas habilidades

e isso é importante no ensino pelo olhar. A criança

indígena constrói sua experiência de vida através do

olhar para a terra. Desde a sua infância, ela afina o

olhar para ter conhecimentos, o que faz ela saber de

muitas coisas importantes para a sua ligação com a

natureza e com os outros seres.

Tem vários jeitos de se aprender com o olhar: tem o

olhar que se aprende com as outras pessoas, que

são coisas vividas desde a ancestralidade e tem o

aprendizado que se aprende com a natureza. Foi

através da afinação do olhar que alguns artefatos

foram feitos com o cipó , quando viam que ele dava

para preparar suru, jequiá, entre outros. Esta é

uma forma de experiência que é passada e se

aprende pelo olhar.

Também existem os momentos que, através do olhar,

a gente aprende desde criança que a natureza tem

os seus momentos de ficar quieta e tem que respeitar

e esperar os momentos da natureza, como os

horários que são dela descansar e que precisa

gente respeitar.

O aprendizado pelo olhar é um jeito que a criança

tem e não é do dia para a noite que se aprende, com o

olhar vem a paciência, e da paciência vem a prática.

Quando há uma fruteira em algum lugar da aldeia,

a criança começa a observar desde o florir até a

fruta vir, e ela sempre olha com paciência o tempo da

fruta madurar, é um ensino que se aprende olhando

a planta com o seu tempo que ela precisa para poder

dar o fruto e nesse movimento tem várias etapas,

que é observado pela criança, como o florir, a fruta

nascer, o crescer da fruta até ela madurar, que é

onde se pode colher a fruta para poder comer; nesse

tempo que a criança observa, ela aprende a ter

paciência e saber que a natureza tem o seu próprio

caminho de trazer as coisas para todos nós.

O fogo é um elemento importante na nossa cultura;

o fogo de brasa em uma casa Pataxoop é sempre

importante, pois ele traz o quente para a casa e

sempre nas casas é preciso ter o fogo de brasa. A

criança, quando seus pais vão pegar lenha, vê que se

pega os galhos secos e as plantas que já secaram e

tem umas plantas que ainda tem parte seca, mas

ainda está viva. então ela mostra para os pais e ela

aprende que ali ainda tem vida e que tem que esperar,

não precisa cortar. Assim, o fogo é uma forma de

ensino que a gente aprende desde criança, que a

gente somente pega da natureza o que se precisa.

Agora tem o aprender com as outras pessoas da

comunidade. Às vezes, se aprende olhando sem

fazer pergunta e quando a criança vê que aprendeu

é o momento de praticar e aperfeiçoar o que se

aprendeu. Nisso tudo, com o afinar do olhar de

uma criança e nesse praticar, é onde se aprende

56

As aprendizagens das crianças na aldeia Muã Mimatxi


brincando. A criança vê algum adulto fazendo algo e

ela vai refazer do seu jeito, com sua habilidade e cada

uma no seu aprender deixa a sua marca no fazer e

isso é importante, pois a gente conhece o que é feito

por cada uma. Então, esse aprender e refazer pelo

olhar é a marca que cada criança traz dentro do

seu conhecimento. Assim, a gente vai refazendo o

nosso olhar e a gente aprende desde criança que

a gente não inventa, é um refazer, uma marca que

vem da tradição.

há uma forma de guardar ou receber coisas da

natureza. A infância é o começo de uma vivência

que a criança não só vai aprendendo, mas também

ensina os outros com seus gestos e suas atividades

que elas fazem em seu dia a dia. Na infância, a

criança faz o seu caminho com muito aprendizado,

de acordo com o seu modo de ver a vida, que tudo

é uma forma de brincar: ela brinca aprendendo, o

seu aprendizado vem das histórias que os velhos

contam, das atividades feitas na comunidade, em um

O aprender pelo olhar é muito importante para a

gente passar o conhecimento e essas são formas de

ensinar e aprender no coletivo da vida da aldeia.

Tudo que se aprende com a natureza ou com os mais

velhos é um bem de vida, que a criança encontra o

que ela gosta de fazer em sua caminhada: ela pode

se tornar um contador de histórias, um artesão, um

conhecedor das plantas; isso aprendendo apenas

com o seu olhar.

A criança em uma comunidade indígena tem um

grande pertencimento ao coletivo da aldeia; ela está

na maioria dos espaços coletivos da comunidade. A

criança é uma parte da comunidade que está ligada

ao todo, como a terra, a natureza, o ancestral, tudo

que envolve a criança tem essa ligação para nós

povos indígenas, e com nosso próprio jeito de viver:

conhecemos a pedagogia da criança no seu meio

cultural e social de uma aldeia.

A infância é uma parte da vida que é como os tempos

da natureza, que com o passar dos tempos tem

suas mudanças e que cada completar de um tempo

Crianças brincando pela aldeia (Acervo da Aldeia Muã Mimatxi)

REVISTA MUCURY 12

57


acontecimento da natureza; então, o seu olhar está

sempre atento aos movimentos. A criança não fica

parada. Dentro de uma aldeia, o que se vê são os

pulos das crianças, os gritos em suas brincadeiras, é

o seu movimento com seus parentes nos rios, na terra,

nas fruteiras e cada lugar tem seu sentido de vida.

A criança desde a nossa ancestralidade vem

conhecendo coisas de seu povo, o bem viver é muito

importante na infância da criança, ela busca estar

sempre em movimento. Uma aldeia sem criança

não tem voz, pois os velhos já pensam na vida e em

seus trabalhos e onde tem uma criança é onde vem a

energia do falar, conversar, do contar a história lá do

passado; o conhecimento fica vivo e ligado ao povo,

por isso a infância é o tempo da vida que tudo passa

e se aprende, a criança busca por coisas que dão

sentido à sua forma de viver, como fazer de um galho

de uma árvore um lugar de fazer alegria; ali, ela pode

pular, brincar. Numa roça, o velho vai olhar suas

plantas e a criança o acompanha e ali vai olhando o

jeito que se manuseia uma enxada, como se aprende

a conversar com as plantas, todo esse movimento

está ligado ao seu bem viver.

O bem viver na infância é todo um caminho que se

faz na sua trajetória de vida, é compartilhar seus

espaços familiares com seus parentes, é fazer ritual

com sua comunidade, é ouvir e contar histórias, é

andar e fazer movimento dentro de sua aldeia. A

criança é como a natureza, ela não faz as coisas de

uma vez só, ela vai coletando aprendizados com o

tempo, não se tem conhecimento logo de uma vez.

Ela vai brincando, fazendo refazendo e buscando

o que vai ser importante para sua vida e para o seu

bem viver. O seu bem viver sempre se renova, pois

a criança sempre está ligada aos movimentos do

seu povo, se integrando do seu jeito: brincando,

escutando e com isso sempre renovando a alegria

de ser criança e cada vez mais o espírito da criança

faz seu povo trazer os conhecimentos

para a vida. Essa renovação é uma ligação

que desde os tempos ancestrais vem

caminhando com a criança, ela faz o que

ela observa no seu meio de vida, como o

artesanato, uma brincadeira, um canto; isso

tudo vem para a criança buscar dentro de si

e para sua formação em sua vida.

Crianças alegres com sua catada pela aldeia (Acervo da Aldeia Muã Mimatxi)

O bem viver na infância parte de onde a

criança começa a conhecer as coisas que

estão a sua volta, os espaços coletivos

e familiares de sua aldeia, pois é onde a

criança começa a conhecer seu espaço de

vida. Para nós, indígenas, uma criança desde

58

As aprendizagens das crianças na aldeia Muã Mimatxi


o seu nascimento, com seu olhar, vai aprendendo

o seu lado da vida com a natureza, com a família,

com a comunidade. Primeiro, tem o calor da família

com os pais, irmãos e outros parentes e com o calor

familiar vem o sorriso, os passos para andar pela

natureza e pela aldeia. Nesse tempo é a vivência

dentro da família. O bem viver começa no calor

familiar e depois vão sendo abertas janelas para

outros espaços

de vida, ela sempre está atenta aos movimentos

ao seu redor.

A criança tem um olhar diferente de uma pessoa

mais velha na comunidade. Como ela gosta de estar

em diferentes espaços, a criança em uma aldeia

é uma pessoa que leva recados ou outras tarefas

para seus pais, tudo na brincadeira. Ela faz suas

tarefas sempre brincando, é alguém que comunica

a vida do povo. Ela não tem preguiça de fazer um

mandado para um mais velho. Além de ter a rapidez,

ela faz brincando e caminhando pelo seu espaço,

porque é nas suas andadas que ela vai caminhando,

olhando, brincando e fazendo o que ela gosta, que é

se comunicar.

O bem viver na vivência da criança está ligado à ideia

do bem, tudo que a criança vive é uma ideia; nisso

ela vai buscando o seu lugar de bem viver. Toda ideia

que a criança faz e que ela se inspira é uma marca

de onde que vem sua felicidade, sua diversão, sua

liberdade de vida. A felicidade da criança está dentro

do seu convívio de vida, a partir da vivência com sua

família, seus parentes, na sua vida do dia a dia; isso é

o que faz a criança ter a ideia do bem viver.

A busca de inspiração na vida de uma criança é ter

a felicidade nas pequenas coisas, nos pequenos

espaços. Muã Mimatxi, nossa aldeia, não é grande;

então, nossas crianças buscam nos pequenos

espaços de vida uma grande alegria e conhecimento

para a vida na sua formação, que vem desde os

tempos ancestrais. A criança é o esteio de uma aldeia,

ela busca e traz o valor de vida do povo.

A criança com seu aprendizado vai memorizando em

sua mente, no seu ser de que o seu bem viver vem

da ideia de atrair, o que é o atrair? Ela sempre nos

seus movimentos tem aquele olhar diferenciado em

lugares, em práticas que a atraem para os diálogos

com um mais velho em uma história, em um plantio

vem a atração de mexer com a terra, no ritual a

atenção com os cantos, com seu jeito de ficar em

determinados lugares, então o atrair para uma

criança é poder olhar e conhecer seus valores de

vida em nossa comunidade.

No meio da comunidade, as crianças sempre estão

andando e percorrendo vários lugares da aldeia e às

vezes, no olhar de um mais velho, o que uma criança

está fazendo parece que é algo que é perigoso para

ela, mas não; aquela é uma forma que a criança busca

a liberdade. A liberdade é uma forma de bem viver

na vida da criança. Como nos fala Kanatyo, a criança

é como um pássaro que não tem fronteira; tem

fronteira, mas elas são atravessadoras de fronteiras

de espaços. É interessante perceber que a criança

tem o conhecimento de um espaço, ela quer sempre

estar buscando mais conhecimentos de vida em

espaços diferentes.

REVISTA MUCURY 12

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Crianças caminhando na mata de Muã

Mimatxi (Acervo da Aldeia Muã Mimatxi)

de uma criança. O velho, ele busca o seu bem

viver já na maturidade e a criança forma o seu

bem viver dentro do seu território, fazendo

pequenas histórias de vida nos espaços

vividos que são importantes para o bem

da sua vida.

A criança gosta de estar em todos os

lugares da aldeia o que ela gosta é de se

livre de poder caminhar, brincar, cantar,

ouvir história, de conversar e com isso ela

sempre está de olho ao seu redor e nos

acontecimentos e com esse olhar ela viaja

no pensamento e mergulha no mundo das

artes e sempre fortalece a nossa cultura.

Crianças conversando sentadas no kuxex (Acervo da Aldeia Muã Mimatxi)

E com essas fronteiras abertas pelas crianças

nos espaços, ela adquire novos olhares, conhecimentos;

tudo se aprende e tudo se ensina, a criança

compartilha essa aprendizagem de vida do seu

ambiente, do seu lugar. Então a criança é um ser

vivo do bem viver, ela sempre está atenta a tudo. Já

nós adultos não conseguimos ter o olhar vivo que

uma criança tem. O bem viver de um velho é diferente

Na aldeia, todos fazemos artesanatos as

mulheres os homens e as crianças também

começam a praticar essa arte, tem artesanatos

que são mais difíceis de fazer então

as crianças começam a olhar os mais velhos

o jeito de fazer para começar a praticar

brincando com seus irmãos ou parentes que

quando se faz o artesanato junta muitas

pessoas na hora de fazer. A criança fica a

todo momento observando o manejo e a forma que

se produz os artesanatos, e tem toda uma técnica e

tudo que ela vai aprendendo é através da pergunta,

da conversa e principalmen-te do olhar que ela

vai tendo dos mais velhos na maneira de produzir

o artesanato. Além disso ela vai brincando com as

formas de sementes, as cores, as linhas, e outros

coisas que são usadas, e para uma pessoa mais

60

As aprendizagens das crianças na aldeia Muã Mimatxi


velha começar a fazer um artesanato ela tem que

estar bem a vontade e com animação e alegria

para produzir e a criança está atenta a isso tudo

ela também faz do seu jeito e com muita alegria de

poder estar ajudando os pais mesmo que seja de

uma forma que ta sendo em aprendizado através do

brincar e pelo olhar.

Para poder trabalhar com as sementes, tem toda

uma prática, pois tem que saber o tempo certo

de colher a semente para poder tingir, ou deixar

ela natural mesmo, e na colheita das sementes,

as crianças estão presentes ajudando pegando

as vagens das sementes e juntando para depois

descascá-las para tingir, ou confeccionar colares,

pulseiras, brincos, tiaras entre outros. Nesse manejo

de vida, a criança vai aprendendo a mexer com as

sementes e com o passar dos tempos, ela mesmo

já fica de olho, observando as sementes para os

pais na hora de poder colher as sementes. Isso é

aprendido na vida livre dentro da aldeia e na vivência

com a família e a comunidade.

pelo olhar é uma maneira que a criança vivencia o

seu dia a dia na aldeia, pois a todo tempo ela está em

várias atividades dentro da comunidade e busca,

na sua observação, afinar seu olhar para ela fazer

as coisas que são passadas para a criança, e cada

um vai acompanhando a sua parte que quer fazer;

as meninas acompanham as mães e os meninos

acompanham os pais mas sempre naquele movimento

de coletividade porque tem momentos que todos

trabalham juntos.

Tem artesanato que os homens fazem que os

meninos também vão acompanhando a forma de

fazer, mas de uma forma diferente, pois tem algumas

ferramentas que as crianças não podem usar, mas

elas sempre estão ali observando os pais na hora

da produção e vão vendo como é que começa a

fazer um arco, zarabatana, lança entre outros.

Elas ajudam na hora de lixar, de fazer uma pintura,

de enfeitar e estão sempre ali do lado brincando e

observando para quando ela crescer saber fazer o

que foi passado para ela pelos pais. Então o aprender

Criança aprendendo brincando como fazer o desfiar do tabu

(Acervo da Aldeia Muã Mimatxi)

REVISTA MUCURY 12

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Aqui em Muã Mimatxi nós temos nosso próprio jeito

de viver entre nós e a natureza, aqui a gente tem

nossos rituais que são para trazer força para o nosso

povo e a natureza. A terra é a nossa mãe e oferece

tudo que precisamos e não tem usura de compartilhar,

e da terra vem todos os nossos sustentos tanto de

alimentos para nosso corpo e espiritual.

nossas crianças e jovens fossem para a escola lá

de fora, em Lamounier, mas não aceitamos essa

proposta; a gente conhecia nossos direitos de ter

uma escola específica e diferenciada. Primeiro,

ficamos vinculados à escola de Lamounier, de 2006,

quando chegamos aqui no território, até 2009, mas

todos os professores da aldeia eram indígenas. A

partir de 2009, a escola se tornou escola

indígena, já não tinha mais vínculo com a de

Lamounier, isso foi uma grande conquista

para nossa aldeia. Logo depois fomos dar

o nome para a nossa escola e o estado não

estava aceitando o nome que queríamos dar

para nossa escola, mas as lideranças não

aceitaram o jeito que o governo queria, pois

eles queriam que a nossa escola tivesse

o nome de uma pessoa como memória,

mas nós queríamos colocar o que nos

representa e em 2010 foi aceito o nome que

foi dado por nós: Escola Estadual Indígena

Pataxó Muã Mimatxi.

Criança sentada preparando fibra para artesanato

(Acervo da Aldeia Muã Mimatxi)

1.2. A APRENDIZAGEM DAS

CRIANÇAS NA ESCOLA

Quando nós chegamos em Muã Mimatxi, não tinha

escola para as nossas crianças e jovens, ficamos

sem escola, mas nossas lideranças começaram a

lutar para que em nossa aldeia pudesse ter uma

escola para eles. Foi muita luta para que nossa

escola fosse aceita pelo estado, eles queriam que

Nesse tempo, a nossa escola começou da

terra, debaixo dos pés de árvores, mas

começou com uma alegria maior, pois nós sabíamos

que nossas crianças e jovens estariam aqui vivenciando

coisas que faziam parte da sua cultura e de

vida, porque a escola ela faz parte da comunidade,

ela é coletiva com todos, ela está presente em todos

os acontecimentos da nossa aldeia.

A escola para nós não é somente estar ali dentro

das quatro paredes; escola envolve a vida do povo,

ela está em todos os lugares que a criança está: na

fruteira, no quintal, na mata, no rio, na roça. Escola é

62

As aprendizagens das crianças na aldeia Muã Mimatxi


onde se aprende coisas que são importantes para a

vida do nosso povo, isso que é o diferenciado; ela não

se separa da comunidade, essa é a escola da vida.

Em janeiro de 2010, a nossa escola teve seu nome

aprovado com a forma de representar as nossas

parentes plantas, que fazem parte da nossa cultura

e ficou sendo Escola Estadual Indígena Pataxó Muã

Mimatxi. Como diz a liderança Dona Liça “ a nossa

escola é nossa mata, nosso mangue e nosso rio”, e

é de onde a gente tira o nosso conhecimento, que é

transmitido para nosso povo.

velhos deixaram para nós e transmitir e fortalecer

cada vez mais nossa cultura.

A escola hoje traz para a criança ensinos da ancestralidade

e conhecimentos acadêmicos de fora,

na escola tem ensinamento dos dois lados: um lado

da cultura tradicional do povo Pataxoop e do outro,

o que é de fora da aldeia, que são Português, Matemática,

Ciências, Geografia, História, mas sempre

partindo do nosso conhecimento tradicional até

chegar ao de fora.

A escola vai além das quatro paredes, estamos

aprendendo a todo momento com a nossa vida pela

aldeia e as crianças têm o espaço de poder estar

nessa aula da vida; elas sempre mantém ativos os

acontecimentos da nossa aldeia, como em um plantio,

a criança vai estar ali presente e no plantar a gente

está em estudo de aprendizagem de ensino, que é

passado na prática e a criança sempre vive nesses

lugares que tem esses ensinamentos. Isso faz a

criança despertar e amadurecer sua mente com os

aprendizados passados, para ela ficar ágil e também

poder cuidar da terra e de sua família.

Hoje em Muã Mimatxi temos nossa escola, que faz

parte da vida da aldeia. A escola é comunidade e

comunidade é escola, tudo que faz parte da vida está

no conjunto escolar, nossa escola tem a sua própria

didática de ensinar. A escola na minha comunidade é

uma parte da vida do nosso povo, ela anda lado a lado

com as atividades da aldeia. A escola é onde podemos

passar os conhecimentos para nossas crianças

e jovens, a gente tem que continuar o que nossos

Criança apresentando seu trabalho feito com tehêys

(Acervo da Aldeia Muã Mimatxi)

A criança da aldeia começa a ir para a escola desde

cedo; algumas ainda não tem nem a idade de ir para

a escola, elas vão acompanhando seus irmãos

mais velhos e ficam ali no espaço escolar, olhando

e observando as coisas que ficam acontecendo

pelos espaços da escola, e aí vão começando a ter

REVISTA MUCURY 12

63


Tehêy das plantas que vivem

no chão aldeia (Acervo da

Aldeia Muã Mimatxi)

sempre andam fazendo suas brincadeiras e seus

movimentos por todos os espaços da comunidade.

Nosso ensino é feito, muitas vezes, através de músicas

produzidas na escola. A música é um acompanhante

da criança no seu ensino; em tudo ela canta: numa

fruteira, brincadeira, roça e outros. A imagem também

é uma forma da criança expressar seu olhar fazendo

seus tehêy (desenho), que é uma forma de escrita

quando ela ainda não sabe escrever.

Temos a nossa própria matemática, geografia,

ciências, história, é um constante diálogo de interculturalidade

de conhecimentos, sempre estamos com o

pé no chão da aldeia e um com o pé no chão do mundo.

Também temos nossas próprias práticas de ensinar

nossas crianças; a criança como já dito é livre e ela

tem que ter seu ensinamento de uma forma leve e

alegre, tudo de acordo com seu tempo como sua infância

é um processo de aprendizado que é de tempo.

Tehêy das plantas que vivem na cidade

(Acervo da Aldeia Muã Mimatxi)

contato com a escola. Para nós de Muã Mimatxi

a escola não é só ficar entre as quatro paredes,

ela está presente em todos os lugares da aldeia.

Aqui na aldeia, as crianças começam a caminhar

cedo com seus irmãos e primos pela aldeia, é uma

forma de aprendizagem entre eles: os mais velhos

vão tomando conta dos mais novos, e assim eles

Na escola também tem a aula intercultural, uma

prática na qual todas as turmas se juntam e todos

interagem com conhecimentos de diferentes áreas,

é como se fosse o nosso povo antigamente em uma

conversa na beira da fogueira para falar de assuntos

da comunidade. As crianças ouvem o que é falado

pelos professores, cada professor leva para sua

área de conhecimento, as crianças escrevem o que

elas entendem do valor falado nessa roda.

64

As aprendizagens das crianças na aldeia Muã Mimatxi


A aula também começa com brincadeiras, como a

do passarinho, da fruta, dos pares da natureza. A

metodologia usada pelos professores em algumas

aulas é a oralidade, falando sobre o valor que está

sendo abordado na sala de aula. Esse momento é

o momento que estamos conversando, tem textos

escritos pelos professores e depois os alunos

escrevem seus textos.

Temos muitas aulas que são feitas fora da sala de

aula. Os professores e alunos fazem uma caminhada

pela aldeia para ver o espaço, como ele está neste

tempo da seca ou chuva. A caminhada é feita nas

casas dos parentes e na mata da aldeia, nas casas

catalogamos plantas medicinais que são usadas para

fazer remédios para quem adoecer, essas plantas

são cultivadas pelas famílias da aldeia e além dessas

tem as que vivem na mata. Catalogamos as plantas

medicinais que só usamos, apenas a folha, a flor,

a asca. Também identificamos quais são as frutas

desse tempo. Esse tipo de aula de campo fica registrada

com desenhos, cartazes, fotografias, textos

e outros.

Na escola também temos uma aula de mexer com

a terra, que é o momento que os professores e os

alunos vão cuidar de uma pequena horta: eles limpam

a horta, molham as plantinhas, fazem canteiros,

plantam sementes e algumas plantas medicinais.

Uma observação importante de relatar é a interação

que os professores têm com os alunos: quando

uma criança tem curiosidade, ela pode expressar

e falar sobre o valor e tirar suas dúvidas com os

professores e os professores ajudam os alunos,

explicando e resolvendo as dúvidas.

Na escola também temos a disciplina da nossa

língua Pataxoop. Estamos fazendo o mapeamento de

nossa língua e trabalhando com frases e palavras

na língua, também estamos registrando a escrita de

palavras, os sons e como é a pronúncia das palavras.

Nossa escola ensina as crianças pelos valores dos

tempos da natureza, a gente segue os acontecimentos

dos tempos, como tempo da brisa leve, tempo do

frio, tempo das águas e outros, e assim transmitimos

coisas da vida para a criança, começando com

práticas de ensino da nossa cultura até chegar

o ensino acadêmico.

Temos também o método Alfabetizar Cantando, que

é o que usamos para alfabetizar as crianças; um

método que usa a musicalidade para que a criança

aprenda de uma forma que não a prenda em um

ensino travado; a música destrava as palavras para

as crianças, com ela, a gente pode viajar pela vida

da criança e assim fazer com que ela interaja com a

sua criação de vida. Acompanhando a música vem

o Tehêy, que é o desenho da música para mostrar o

que é que a música traz de conhecimento.

A música traz uma liberdade para a criança, uma

animação que mexe com seus sentidos, ela começa

a entender que tudo começa pela oralidade e depois

vem a escrita e com isso, na escola, começamos

a alfabetizar nossas crianças pelo método Alfabetizar

Cantando.

A criança, além de conversadora, é uma grande

observadora, o seu olhar é sempre de querer conhecer

o mundo, ela é uma coletora de conhecimentos,

REVISTA MUCURY 12

65


sempre tem uma pergunta para tudo: ela vê um

acontecimento ou atividade e já quer saber o que é.

Ela também é uma boa construtora e contadora de

histórias, ela gosta de ouvir e contar.

A aldeia Muã Mimatxi tem seu próprio jeito de ensinar

as crianças da aldeia. Na escola, as crianças sempre

têm suas aprendizagens voltadas para a cultura

do nosso povo Pataxoop; o nosso ensino começa da

nossa tradição e vai para o ensino que vem de fora,

pois a gente tem que aprender coisas da vida para

não se perder a nossa forma de aprender e ensinar

nossas crianças e jovens.

Na nossa escola temos a forma de alfabetizar nossas

crianças de uma forma que não prende a criança;

é um ensino de forma livre, é um método que os

professores usam para fazer a criança aprender

a partir da sua vivência dentro da comunidade; é o

método “Alfabetizar Cantando”, que é uma forma que

os professores da Aldeia Muã Mimatxi usam para

alfabetizar nossas crianças.

Quando era estudante do FIEI, desenvolvi meu

Percurso Acadêmico e Trabalho de Conclusão de

Curso pesquisando sobre o método Alfabetizar Cantando.

Trago, aqui, algumas reflexões construídas a

partir da pesquisa, pois nos ajuda a compreender

a infância na cultura pataxoop de Muã Mimatxi.

1.2.1. ALFABETIZAR

CANTANDO 1

O método Alfabetizar Cantando é um método educativo

em que as palavras são carregadas de sentidos

e valores. Nele, a gente traz informações para as

crianças sobre a vida, para que ela possa aprender

desde o seu ensinamento cultural até a sua aprendizagem

de vida escolar.

A escola tem que ser uma interessada do conhecimento

para a criança. Tudo que faz parte de pesquisa

pode ser trabalhado na escola. Cada um tem o seu

jeito de aprender, cada um aprende em um tempo

determinado e a música é inspiradora do ensino e

da aprendizagem; por isso que temos essa forma de

ensinar com nossas músicas, buscando fortalecer

Forma de avaliar da escola: percurso percorrido e a criança

apresentando seu tehêy (Acervo da Aldeia Muã Mimatxi)

1 O texto aqui apresentado faz parte do trabalho “Alfabetizar Cantando

da Aldeia Muã Mimatxi’’, apresentado como Trabalho final para

a conclusão do curso de Licenciatura Formação Intercultural de

Educadores Indígenas (FIEI), na área de Língua, Artes e Literatura.

66

As aprendizagens das crianças na aldeia Muã Mimatxi


as nossas crianças, não tirando o seu interesse.

O Alfabetizar Cantando traz essa habilidade de

inteligência para gente estar fazendo esse trabalho,

ele também é um trabalho intercultural, é uma forma

intercultural de se ensinar, é tudo que há entre a vida,

é tudo que está ligado ao todo da vida.

O método é um jeito de ensinar intercultural que

está ligado à questão da vida, dos conhecimentos

tradicionais. A gente tem que saber, estar pescando

e buscando temas, palavras geradoras de conhecimento;

através dessas práticas, a gente vai se

desenvolvendo e se aprofundando no conhecimento,

aos poucos. Temos que ir trabalhando devagar,

aprofundando e fazendo o conhecimento ficar mais

leve para a criança. É uma forma inovadora de

ensinar, não é uma coisa que fica fechada, que fica

presa: essa forma de ensinar é uma forma de

um livro aberto. É um livro aberto como se a gente

tivesse fazendo uma coleta, sempre estamos trazendo

coisas novas para dentro do livro, novos

conhecimentos. A gente vai fazendo essa coleta de

uma forma que possa estar sempre pesquisando

coisas novas para trazer para dentro do Alfabetizar

Cantando, que é essa forma de ensinar.

O método Alfabetizar Cantando é um jeito próprio

da criança expressar uma linguagem através da

música, a música vem falando de várias formas

de linguagens. Esse método é o principal modo

de chamar a criança para dialogar desenrolando

a língua. Ele faz com que a criança expresse seu

sentimento de uma forma mais livre, sem estar se

preocupando com a coisa escrita no papel. A música

faz com que a criança expresse sua linguagem de

criança, por isso esse método é importante.

Música para criança tem que ter a sua vida ou falar

de uma coisa que está relacionada ao mundo da

criança. A música vai carregando as imagens, as

palavras do mundo da criança e, a partir disso, vai

desenrolando a sua linguagem.

A gente sabe que a criança faz leitura da imagem

e da música. Se a gente canta uma música com a

criança do mundo dela, ela expressa aquela música

através de um desenho, de uma história. Tem música

que fala das brincadeiras, das frutas, dos animais

e dentro do método a gente pode tirar palavras

que estão no mundo dela. A gente vai pesquisando

palavras que estão dentro da sua realidade de

vida, palavras que tenham sentido para a vida da

criança. Assim, o método está encaixado dentro

da vida da criança.

Também podemos procurar palavras da vida de

um adulto através de uma história, do que está

acontecendo ao redor. Tudo isso está relacionado

na música. A gente que é adulto vê que tudo que tem

na vida da gente, tudo é poesia e a música é uma

forma alegre de expressar e falar através dela.

Esse método é uma forma própria de educar. O

principal instrumento de trabalho é a música porque

ela é como uma página de um livro que a gente pode

explorar, como palavras, maneiras de falar de uma

coisa, buscando conhecimentos na música. A questão

de educar através da música é o principal, pois ela

REVISTA MUCURY 12

67


vai amansando o conhecimento e pode trazer novos

conhecimentos, para trabalhar através da música.

Todo o trabalho desenvolvido dentro desse método é

para olhar para dentro do mundo da criança. A gente

sabe que , às vezes, o livro que vem de fora não olha

para a vida da criança indígena e esse método tem

como objetivo olhar, entrar para dentro do mundo da

criança, para trabalhar vivenciando a sua cultura.

O professor tem que buscar o trabalho de pesquisa

para trabalhar com a criança através da música.

Quando a gente está dentro desse método tudo vira

música. Se a gente vai trabalhar com uma palavra, o

nome de um animal ou de uma planta, a gente trabalha

os fragmentos, as sílabas, através da música. Hoje,

existem livros que chegam na escola, mas a gente

não usa. Assim, temos que fortalecer esse jeito de

ensinar a história e a cultura, falando da tradição

e da identidade da criança. A música faz fortalecer

essa identidade da criança.

O aprendizado tem o início, o meio e o fim. O professor

começa com uma palavra mais fácil, vai aprofundando,

trabalha com frases, com as atividades das crianças

no dia a dia, e cada vez que for desenvolvendo a

música, vai trazendo mais conhecimentos, até se

tornar um jovem e a música vai se transformando

e trazendo mais coisas para sua vida.

O método também se preocupa com a idade das

crianças. Uma criança de 5 anos, por exemplo, tem

as músicas e as brincadeiras próprias para essas

crianças, então a gente tem que ir buscando esse

ensinamento para a criança ir desenvolvendo seu

conhecimento e fazendo um aprendizado mais

interessante para a criança. A música faz com que

a criança não fique amarrada, sem desenvolver o

pensamento, ela faz com que a criança eleve seu

pensamento para dentro da música.

É importante esse método de ensinar dentro da

aldeia. Esse método é como um pé de fruta, porque

a gente vai escolhendo as frutas que estão boas no

tempo certo. Ele também faz com que a gente colete

os conhecimentos para trabalhar. A música dá essa

abertura para a gente coletar os conhecimentos

e planejar um trabalho. Para tudo tem música. A

música sempre está viajando pelas palavras

e conhecimentos.

A vida escolar dentro desse método é uma forma de

buscar integrar a vida da criança com a música.

As músicas são uma fonte de inspiração para a

criança, são a inspiração do aprendizado. É nela que

a criança aprende a habilidade de enxergar, ouvir,

sentir. A música afina o ouvido, a visão, elas trazem

imagens, fazem com que a criança aprenda com o

olhar, começando com a vida para o conhecimento

acadêmico.

Esse método de alfabetização através da música faz

com que a criança seja atraída para dentro dela,

com isso a gente vai conhecendo o que a criança

traz com ela. Desde cedo, ela traz uma leitura de

vida, uma linguagem e aí a gente vai aproveitando e

trabalhando com essas questões que estão relacionadas

com a vida dela. É a partir desse estudo que a

gente vai trabalhando com as palavras, atividades,

com os valores da vida e da cultura. A gente também

68

As aprendizagens das crianças na aldeia Muã Mimatxi


tem um estudo que começa pelos valores, o que tem

sentido para a criança é um valor para ela, a gente

tem que estar trabalhando com as coisas que têm

fundamento e valor para a criança.

Esse método tem que trabalhar com conhecimentos

que estejam dentro do mundo da criança, ele é a

base da vida da criança, da sua leitura e do seu

alfabetizar. Alfabetizar dentro desse método é falar

da nossa vida, da vida da aldeia. É isso que a escola é

diferente, ela tem uma raiz. A raiz da criança está viva

dentro do seu mundo e a gente tem que trabalhar

com a raiz cultural, fortalecer a criança para que

saiba quem ela é quando ela for jovem. Alfabetizar

Cantando é um plano de vida. Este método está ligado à

vida do povo, à ciência do povo. Ele prepara a criança

com conhecimentos que ela leva para a sua vida,

fortalecendo também a sua vida com a comunidade.

É por aí que começa o jeito próprio de ensino de Muã

Mimatxi, esse método é o começo por onde a gente

vai amansando as palavras para a criança, não

tem outra forma da gente chegar para ensinar a

criança a ler e a escrever. As pessoas pensam que

alfabetizar é apenas ler e escrever, mas também é

você ir preparando a criança para o mundo, para

viver com mais alegria, com mais dedicação com seu

aprendizado de vida. A gente sabe que a criança faz

descobertas o tempo todo. As músicas também

descobrem conhecimentos que estão escondidos.

Por meio da música, a gente vai clareando o conhecimento,

buscando dar luz ao conhecimento.

É por aí que começamos a trabalhar com as palavras.

Não são palavras sem sentido, a gente tem que

buscar palavras geradoras de conhecimentos, de

cultura. Tudo isso faz com que a gente de início

traga palavras que tenham sentimentos de alegria.

Não são palavras soltas. Se a gente for falar da fruta

de JATOBÁ, por exemplo, ela é uma fruta que tem

aqui na aldeia. Essa palavra dá para começar o

Alfabetizar Cantando: a gente trabalha perguntando

onde fica o pé de jatobá, ou que bichos passam no

pé de jatobá...

A TARDINHA

Na minha aldeia,

Tem tucano, siriema e jatobá.

Na minha aldeia,

Tem tucano, siriema e jatobá.

A tardinha siriema voa,

E canta sem parar.

A tardinha siriema voa,

E canta sem parar.

De manhã o martinho pescador,

Vai pro rio pescar,

E o paturi vai nadar,

Na água que vai pro mar.

E o paturi vai nadar,

Na água que vai pro mar.

Na minha aldeia,

Tem tucano, siriema e jatobá.

Na minha aldeia,

Tem tucano, siriema e jatobá.

A tardinha siriema voa,

E canta sem parar.

A tardinha siriema voa,

E canta sem parar.

REVISTA MUCURY 12

69


O método Alfabetizar Cantando é uma referência

para a gente. Não tem nos livros, mas através da

música, a gente vai fazendo referência a certas

coisas que têm fundamento de vida. A gente procura

músicas que tenham relação com a água, o animal,

com o trabalho da mulher, com os astros, com a terra.

Tudo isso a gente vai fazendo uma referência de

vida de estudo. Alfabetizar cantando possibilita fazer

vários tipos de registros, como desenhos, palavras,

histórias, frases, outras músicas, e faz com que a

criança seja autora da sua própria história e cultura.

O método é onde se faz a articulação do conhecimento,

através da música a gente faz a ponte entre

vários conhecimentos sem ser muito cansativo;

a música oferece os sons das palavras, ela dá a

oportunidade de trabalhar os sons com as crianças

sem ela cansar.

O ensino do método tem várias formas, como

caminhadas, rodas de conversa com os mais velhos,

rodas de conversa com outros alunos e com

professores. A gente pode trabalhar com a vida

da comunidade e com as histórias dos velhos. O

conhecimento coletivo é importante porque um

trabalho que seja de lado a lado com a comunidade

faz com que o conhecimento dialogue com o povo. O

povo tem que fazer parte desse conhecimento, é de

interesse de todos, a escola é do povo.

tem que saber preparar o jovem para esse mundo,

para ele saber lutar pelos seus direitos, defender

seus direitos. Por isso, a escola tem que estar preparada,

trabalhando com as coisas que envolvem a vida

das famílias. Primeiramente, a criança aprende pelo

gesto e pela voz a sentir o gesto e a voz da família faz

a criança ser seguidora da vida do povo.

Ensinar pela música é importante porque a

criança vai ouvir a voz do seu povo, a palavra do

seu povo, ouvir a voz da cultura, as histórias e

a tradição do seu povo. Cada povo tem sua voz,

o seu jeito de cantar, o seu jeito de expressar.

Ensinar pela música é importante nesse sentido

de ouvir a espiritualidade da voz do seu povo

porque as músicas, elas são vivas, elas carregam

a voz da cultura. Tem a música para alegrar, para

despertar, tem os cantos da religião, que podem ser

trabalhados, tem canto que a gente canta só para

A escola tem que ser a casa da comunidade. Esse

ensino de alfabetizar tem que começar pela família, a

vida na comunidade envolve um trabalho coletivo que

pode trazer um bem de vida para todos. O método

está enraizado dentro desse mundo de hoje, a gente

Criança cantando no Ritual das Águas

(Acervo da Aldeia Muã Mimatxi)

70

As aprendizagens das crianças na aldeia Muã Mimatxi


nós, tem canto da natureza, da água, da terra,

das plantas, das folhas. A música tem o poder da

comunicação, de se comunicar com os parentes,

com a natureza, com a lua, com os astros. Ela

tem um poder forte da gente trabalhar e transmitir

esse conhecimento e essa forma de comunicar.

Tudo isso é um sentido maior para a vida, para a

gente estar buscando um meio melhor de trabalhar

com a escola específica e diferenciada. A música

trabalha com o campo da felicidade que busca a

sabedoria, a inteligência, a harmonia do espírito.

Cada povo tem sua música, Pataxó tem sua

música, a nossa música de Pataxó de Muã Mimatxi

é uma música que fortalece a espiritualidade da

felicida-de, da sabedoria, da inteligência para

viver nesse mundo. Ela está enraizada dentro da

nossa alma porque ela alegra a vida, ela acalma

o espírito, ela é uma das obras mais belas do

espírito. Essa também é a mensagem que Kanatyo

Pataxó deixa para a gente.

Kanatyo com criança

e aúdio. (Acervo da

Aldeia Muã Mimatxi)

Tehêy - A vida na

minha casa

REVISTA MUCURY 12

71


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Infância: brinquedo, brincadeira e cultura.

2005 Dissertação de Mestrado. Faculdade de

Educação - UFMG, 2005.

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floresta, nem floresta sem árvore. Texto

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PATAXÓ, Kanatyo et al. O povo Pataxó e sua

história. Belo Horizonte: SEE/MEC, 1997

PATAXÓ, Kanatyo. Txopai e Itôhã. Belo

Horizonte: MEC/UNESCO/SEE, 1997.

PATAXÓ, Kanatyo. Cultura, identidade e

tradição pataxó. 2011

PATAXÓ, Kanatyo. Cultura, Identidade e

Tradição Pataxó. Entre o pensamento

tradicional dos velhos e o pensamento

contemporâneo dos jovens e das crianças.

Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Belo

Horizonte: FIEI/FAE, 2011.

PATAXÓ, Kanatyo et al. A escola pataxó Muã

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diversa/19/artigo-escola.html>.

Acesso em: 31 maio 2012.

PATAXÓ, Kanatyo et al. Calendário dos tempos

da aldeia Muã Mimatxi. Belo Horizonte,

Literaterras: FALE/UFMG, 2012.

PATAXÓ, Kanatyo at al. A nossa crença com

a Vovó Lua. Professores e alunos indígenas

da aldeia Muã Mimatxi. Belo Horizonte:

Literaterras – Fale / UFMG, 2012.

PATAXÓ, Kanatyo et al. Calendário dos tempos

da aldeia Muã Mimatxi. Professores e alunos

indígenas da aldeia Muã Mimatxi. Belo

Horizonte: Literaterras : FALE/UFMG, 2012.

72

As aprendizagens das crianças na aldeia Muã Mimatxi


PATAXÓ, Kanatyo et al. A pedagogia lente do

nosso olhar e as mãos da natureza. Povo

Pataxó da Aldeia Muã Mimatxi. Belo Horizonte:

FALE/UFMG: Núcleo Transdisciplinar de

Pesquisas Literaterras, 2013.

PATAXÓ, Saniwê Alves Braz. Alfabetizar

Cantando da Aldeia Muã Mimatxi. Trabalho de

Conclusão de Curso. FIEI, 2016 .

PATAXÓ, Kanatyo, PATAXÓ, Siwê. Pega Fruta.

Belo Horizonte: Fino Traço, 2017.

PATAXOOP, Liça. Têhei: Pescaria de

conhecimento. Fino Traço: Belo Horizonte,

2021.

TASSINARI, A. M. I.. Concepções Indígenas de

Infância no Brasil. Tellus (Campo Grande), v.

13, p.11-25, 2007.

REVISTA MUCURY 12

73


Seção aldeiaescola-floresta

74 Título do texto que está sendo lido


SEÇÃO ALDEIA-ESCOLA-FLORESTA

Um encontro

na Aldeia-Escola-

Floresta

ISAEL MAXAKALI, SUELI MAXAKALI E MESTRE JOELSON

Transcrição dos textos e apresentação: Rosângela Pereira de Tugny


APRESENTAÇÃO

No dia 9 de janeiro de 2022, quando ainda as águas

mostravam suas forças em diversos territórios do

país, um encontro se deu numa terra conhecida

como Fazenda de Itamunheque, no Município de

Teófilo Otoni, onde uma comunidade de Tikmũ’ũn e

Yãmĩyxop se instala para dedicar toda sua força a

um sonho: o sonho de transformá-la em uma Aldeia-

Escola-Floresta.

Na contramão das ações irresponsáveis dos donos

do capital que não escutam o chamado das águas,

da terra, dos ventos e dos povos que sofrem cada

vez mais com a ausência de justiça climática, na

contramão daqueles que não acreditam mais ser

possível reverter as forças que colocam em risco

a vida humana na Terra, na contramão dos que não

compreendem a necessidade da permanência

dos povos indígenas sobre os territórios, cantos

e palavras, sementes e ramas mostraram

outros caminhos.

Neste encontro, estavam Isael Maxakali, Sueli

Maxakali e Joelson Maxakali. Recentemente eles se

tornaram doutores por Notório Saber da Universidade

Federal de Minas Gerais. Isael Maxakali é doutor

em Comunicação Social pelo que vem produzindo

com seu trabalho de cinema e imagem, narrando

as histórias dos povos Tikmũ’ũn e seus aliados

Yãmĩyxop. Sueli Maxakali é doutora em Letras-

Estudos Literários pelo trabalho de tradução interlinguística,

intercultural e intersemiótica que vem

exemplarmente realizando, educando nosso mundo

com os conhecimentos dos seus ancestrais. E

Joelson Ferreira de Oliveira é Doutor em Arquitetura

e Urbanismo pelas transformações que propiciou

em grande parte da paisagem sul baiana, pelas

suas formulações teóricas que envolvem a transição

agroecológica em comunhão com a luta dos

povos ancestrais pela terra e território, pela

soberania alimentar, hídrica, epistêmica, pela autodeterminação

dos povos e defesa da Mãe-Terra.

Os saberes do cinema, da imagem, das sementes,

da floresta, da educação, da língua, das letras, da

espiritualidade, das águas, das lutas comunitárias

ali se reuniram. Sueli, Isael e Joelson respondem

aos impasses da pandemia e à catástrofe ambiental

e humanitária que vivemos firmando suas alianças

ancestrais de povos pretos e indígenas, construídas

no sonho, na escuta da Mãe-Terra, no compromisso

com a memória, mas também com as ramas, as

sementes, e os enfrentamentos que precisam fazer

para pisar na terra, tratar da terra e das nascentes.

De suas palavras emerge a filosofia viva da Aldeia-

Escola-Floresta.

76 Um encontro na Aldeia-Escola-Floresta


****

mĩm noxop yãĩ ĩy

mĩm noxop yãĩ ĩy

mĩm noxop yãĩ ĩy

mĩm noxop yãĩ ĩy

mĩm noxop yãĩ ĩy

mĩm noxop yãĩ ĩy haah

‘ĩymet yũmmi hax ha

‘ĩymet yũmmi

‘ĩymet yũmmi ĩymet yũmmi ĩymet yũmmi

‘ĩymet yũmmi hax ha

‘ĩymet yũmmi ĩymet yũmmi ĩymet yũmmi

ĩymet yũmmi hax ha

ĩymet yũmmi hax ha

‘ĩymet yũmmi hax ha

ĩymet yũmmi hox

mĩmxux yīxux koma xip haa

mõgmõg mĩmxux nãmõ

mĩmxux koma xip haa

mĩmxux koma xip

saudades da árvore comprida

saudades da árvore comprida

saudades da árvore comprida

saudades da árvore comprida

saudades da árvore comprida

saudades da árvore comprida

minha casa vejo ha ii ha aa

minha casa vejo

minha casa vejo minha casa vejo minha

casa

vejo

minha casa vejo ha ii ha aa

minha casa vejo minha casa vejo minha

casa

vejo

minha casa vejo ha ii ha aa

minha casa vejo ha ii ha aa

minha casa vejo hôi

no meio das folhas verdes, haa

o gavião-espírito dentro das folhas

no meio das folhas verdes, haa

o gavião-espírito no meio das folhas

REVISTA MUCURY 12

****

77


Autoria: Isael Maxakali

Desenho produzido na oficina de Mapeamento Afetivo, no contexto da retomada à Fazenda

de Itamunheque pela comunidade de Tikmũ’ũn e Yãmĩyxop. A oficina foi realizada pelo BDMG

Cultural. Todas as imagens estão disponíveis em www.aldeiaescolafloresta.org

PALAVRAS DE ISAEL MAXAKALI

Vou falar do nosso sonho.

O sonho da minha comunidade da Aldeia-Escola-

Floresta.

O nosso sonho não saiu agora.

Desde 2005 que estamos sonhando com a terra

Porque fui professor e dava aula para crianças.

Eu falava sobre todas as caças que não existem

mais. Só têm o nome.

78

Um encontro na Aldeia-Escola-Floresta


O nosso desenho representa todos os bichos que não

existem mais, porque acabaram todos: as

caças maiores, as onças, as antas, os jacarés, as

capivaras. E representa outros bichos que

perdemos em Água Boa, porque acabou a mata de lá.

Nós saímos de Água Boa, fizemos retomada,

pegamos nossa terra de volta. O nosso território.

Foi em 2005, no município de Santa Helena de Minas.

Mas deu muito problema com os políticos

e fazendeiros.

E viemos para Ladainha. Fui eu que escolhi o nome de

Aldeia Verde, porque, quando chegamos,

vimos a Mata Verde, fizemos reunião e escolhemos o

nome.

E nós ficamos. E nossa família cresceu bastante. Mas

a terra não cresceu. Aí não tinha espaço

para fazer casas, não tinha terra plana para arar e

plantar comida.

Aí pensamos em lutar para não desmatar a mata de

Aldeia Verde.

Temos que preservar.

Lutar para conseguir uma terra com rio e terras

baixas, com espaço para as famílias construírem

suas moradias.

Nós sofremos bastante no ano passado com essa

doença que não tem cura. Pensei que ia

matar nossos idosos, nossos pajés. Fizemos o

Encontro de Pajés para treinar os jovens dentro

da aldeia. Essa doença não é daquelas que nós

conseguimos curar. Pensei que ia matar pajés e

pessoas importantes.

Visitamos várias terras. Contei e perdi a conta. Não

achava terra. Os fazendeiros não queriam

vender, não queriam ajudar os povos indígenas.

Vimos que tinha muito preconceito. Não querem

vender terra para indígenas.

Depois fizemos a visita em Itamunheque. Fomos em 4

pessoas e depois 8 pessoas para visitar.

Temos 8 lideranças. Toda a comunidade tem o seu

grupo. Fizemos reunião grande com as

lideranças que são responsáveis por suas famílias. Aí

gostaram dessa terra, fizemos reunião e

decidimos.

Porque esta terra, o Vale do Mucuri, era nosso

território maior, não tinha limite. Mas hoje a

nossa terra é muito pequena. Temos 95 famílias

numa terra pequena e uma só pessoa ocupa

terra de mais de 100 alqueires. Um fazendeiro tem

terra grande e nós, povos indígenas, estamos

REVISTA MUCURY 12

79


sem terra.

Nosso sonho é pegar a terra e recuperar. Porque

ela precisa ser curada, precisa de tratamento.

Porque a terra é viva. Terra fala, terra olha a gente

e terra grita.

Mas o fazendeiro não escuta que a terra está

gritando e precisa de socorro.

Por isso que nós queremos reflorestar, e fazer a

Aldeia-Escola-Floresta.

O nosso sonho tem que se realizar.

O nosso sonho é pegar terra, reflorestar.

Essa terra é nossa.

Nũhũ yãgmũ yõg hãm.

Porque essa terra é nossa?

Sem a terra não tem escola diferenciada.

Sem a terra não tem saúde diferenciada.

Porque nós lutamos para conquistar a terra.

Nós realizamos nosso sonho e hoje vamos criar

muitos projetos em cima da terra. Da nossa

terra.

Porque nós chamamos Aldeia-Escola-Floresta?

Porque onde tem aldeia tudo é “sala de aula”.

Onde tem árvore e sombra é “sala de aula”. As

crianças vão cantando o nosso ritual. Imitam.

Na beira do rio elas vão brincar, cantar e escrever

na areia.

Tudo é “sala de aula” dentro da aldeia.

Todos os homens vão dentro do mato e vão cantando

dentro do mato. Vão tirando madeira e vão

cantando.

Por isso colocamos o nome Aldeia-Escola-Floresta

porque toda a aldeia é escola.

Onde tem sombra as mulheres vão se juntar e fazer

os artesanatos.

As crianças vão chegando, escutando do lado e

aprendendo também. A aldeia inteira é escola.

Onde tem barraca de ritual é uma escola verdadeira,

muito importante. Vai ter canto, história,

cultura, comida tradicional.

Nós, comunidade da Aldeia-Escola-Floresta,

queremos terra para Yãmĩyxop, para crianças, para

o futuro.

Porque nós nascemos todos junto com a floresta,

nascemos todos junto com a caça.

Essa terra é nossa mãe porque ela alimenta

todos nós.

80

Um encontro na Aldeia-Escola-Floresta


Todas as caças os nossos cantos registram.

Alguns bichos que perdemos, o canto registra.

E os desenhos também representam os animais.

Tem bichos grandes que perdemos, mas registramos

o nome. Nosso canto fala seus nomes.

Nós Maxakali somos sofredores, mas nosso Yãmĩy

nos acompanha.

Todos os dias os Yãmĩy saem comigo, com todos os

Maxakali.

Porque eu falo Aldeia-Escola-Floresta?

Se eu sair daqui, se eu for para o mato, o meu Yãmĩy

está me acompanhando, eu vou cantando

dentro do mato.

Se eu brincar no rio, outro Yãmĩy vai me acompanhar.

Eu vou imitar qualquer bicho: peixe, jacaré,

andorinha, vou fazer seus cantos.

Por isso é que chamamos Aldeia-Escola-Floresta.

Aqui, a minha casa é escola, porque estamos

passando o nosso conhecimento para os jovens

que estão aprendendo agora.

Nós somos professores. Nós estamos falando. Eles

estão escutando as falas.

Pegamos a palavra boa para esperar a nossa

memória, para não cair.

Tem que crescer. Ter o conhecimento diferente,

pegar o outro conhecimento para crescer a

Aldeia-Escola-Floresta.

Precisamos organizar essa terra onde vamos plantar

as mudas de árvores, de frutas, onde vai

ter escola, onde vai ter posto de saúde para atender

minha comunidade, onde vai ter sede para a

Funai atender minha comunidade.

Hoje fiquei muito feliz porque vocês estão aqui, meus

parentes pankararu, Joelson, Solange,

Rosângela, Roberto, Geralda, Maria Rosária, Renildo,

porque nós não estamos sozinhos, porque

vocês estão preocupados com nossa situação.

Fiquei muito feliz de receber as mudas e as ramas

de batata do Assentamento Terra Vista.

Também fiquei muito feliz de receber todos os

parentes que estão torcendo para conquistarmos

a terra.

Queria agradecer o professor Renildo que doou

bastante madeira para nós. Antes de ontem

tiramos muita madeira com chuva. Carregamos

de noite.

Não é fácil nossa situação.

Essa terra precisa de ter a mata preservada.

REVISTA MUCURY 12

81


Quando chegamos aqui em 27 de setembro a terra

estava muito seca.

Os galhos não tinham folha. Pensei que as árvores

estavam todas secando.

A terra precisa de tratamento. Nós temos que curar

a terra para a mata voltar ao normal.

E as nascentes também.

Tem 7 nascentes aqui. Perderam 5 nascentes. E tem

duas vivas. Temos que tratar. Porque a

mata faz a água para nós bebermos.

E também a nossa comida tem que ser a tradicional.

Porque criamos caixa escolar?

Temos que produzir para abastecer a escola. Porque

nossos estudantes comem alimentos de

não-indígenas e aí ficam fracos. Precisam ter

merenda com comida tradicional.

Por isso, vamos organizar completamente a Escola

da Aldeia-Escola-Floresta.

Quando cheguei na Aldeia Verde a merenda tinha

coisas que crianças não comiam e aí jogavam

dinheiro fora. Por isso, vamos plantar muita roça

aqui, plantar mandioca, feijão, arroz, banana,

batata doce, bananeira, para abastecer a escola

diferenciada.

Sempre falamos “Escola diferenciada”, mas nunca ela

se diferenciou. Mas agora vamos

diferenciar mesmo para as crianças comerem nossa

comida tradicional e não perder a nossa

cultura.

E também a bioconstrução.

Estamos preocupados com nossa escrita, nossa

letra, nossos rituais, nossa pintura, nossa

língua, mas nos esquecemos da nossa casa.

Estou preocupado que os jovens não saibam fazer

suas casas, vão fazer empréstimo para

construir alvenaria com cimento. O cimento esquenta

muito.

Mas a nossa casa tradicional é mais fresquinha.

O vento entra à noite. Quando você fica na

cidade, vai ficar com muito calor, porque tem muito

ferro, cimento, asfalto, vidro. Faz calor.

Mas a terra, assim natural, dentro do mato, é

natureza viva.

Hoje nós estamos aqui para nos organizar. Crescer.

No futuro vamos crescer a terra também. Temos

uma emenda. Vamos procurar alguém que

venda a terra para se ampliar. Todos os anos nascem

crianças e aumentam as famílias, mas a

82

Um encontro na Aldeia-Escola-Floresta


terra não cresce. Nós não podemos construir uma

casa em cima da outra. Temos que fazer a

casa no chão mesmo. Não é nossa cultura

construir prédios de apartamentos. Estamos

preservando a nossa cultura.

Todas etnias são diferentes. Topa passou a

cultura para cada um deles e passou pra nós a

religião.

Temos que segurar nossa cultura.

A nossa cultura não está morta. Está viva ainda.

Temos que fortalecer a nossa cultura. Temos

que fortalecer os pajés. Hoje temos poucos pajés.

Estou preocupado. Temos que ajudar todos

de ter saúde. Temos que cuidar dos nossos pajés.

A saúde do Estado não se preocupa com todos os

idosos. Precisam de tratamento. Minha mãe

está aqui e precisa de exames, precisa de cirurgia.

Ela não está velha. Só enxerga mal. Tem que

melhorar, fazer tratamento em todos os pajés.

Os pajés são muito importantes para nós porque

curam pessoas doentes. Passam

conhecimento para os jovens, os netos, as netas.

Passam seus rituais para os filhos. Minha

casa é grande. Tem espaço. Vai crescer mais para

receber mais gente e dar força para a Aldeia-

Escola-Floresta.

os pajés, aqui, na Aldeia Verde, na Cachoeirinha,

na Água Boa e no Pradinho. Os pajés precisam

****

REVISTA MUCURY 12

83


Autoria: Sueli Maxakali

Desenho produzido na oficina de Mapeamento Afetivo, no contexto da retomada à Fazenda

de Itamunheque pela comunidade de Tikmũ’ũn e Yãmĩyxop. A oficina foi realizada pelo BDMG

Cultural. Todas as imagens estão disponíveis em www.aldeiaescolafloresta.org

PALAVRAS DE SUELI MAXAKALI

Nosso sonho é reflorestar as nascentes.

Porque nossa mata é muito importante.

Nós falamos que a terra precisa de socorro.

Porque ali, todo o vale do Mucuri foi a região do

nosso povo Maxakali.

Hoje nossa terra tem limites. Nós não podemos

passar dos limites.

O índio não pode ir na cidade. Nós recebemos muito

preconceito.

84

Um encontro na Aldeia-Escola-Floresta


Vimos que nós precisamos ter uma terra para poder

falar: “essa terra é do nosso povo que é

antigo, é onde ele passou”.

Teófilo Otoni era região do meu povo Maxakali.

Ninguém sabe que meu povo existia antes dos

portugueses chegarem.

Quando os portugueses chegaram, meu povo já

existia, abriu os braços e os recebeu.

Hoje nós recebemos muito preconceito, muita

discriminação.

Porque acham que somos inimigos.

Nossa origem é o Vale do Mucuri, a Bahia. Fomos

perdendo terra.

Tinha o ritual que se chamava Yãmĩynãg. Ele guiava

o meu povo. Quando ia chegar algum perigo,

que iria ter morte, ele os tirava para mudar a aldeia.

Assim, quando se deslocavam, eles iam

perdendo o território.

Por isso, nosso filme fala: “Essa terra é nossa”: Nũhũ

yãgmũ yõg hãm.

Antes de nós sairmos da Aldeia Verde já tínhamos

este filme “Essa terra é nossa”.

Sempre ouvi as histórias dos velhos e dos tios

contando sobre como perdemos o território. Aqui,

em Ladainha, em Poté. Poté é palavra indígena.

Se formos contar, ficaremos até de noite. A região

toda por onde meu povo passou.

Nosso povo perdeu tudo.

E assim acabaram as matas, acabaram os peixes.

A poluição está comendo os rios, poluindo, as

doenças estão chegando, e matando os mais

velhos.

Nossos mais velhos são muito importantes.

Eles ensinam pra nós os cantos, os cantos do ritual,

levam as crianças para o kuxex.

Hoje precisamos ter uma terra histórica para meu

povo, para que quando chegar um mais novo

eu possa dizer: “essa terra tem a nossa história.

Essa terra é a história de onde passou meu povo

Maxakali”.

Porque as pessoas não querem nem vender terra

para os indígenas?

Porque dizem que nós somos problema?

Nosso povo sempre foi problema pra eles?

Porque os indígenas para eles estão lá atrás

na história.

Dizem que o índio não existe mais.

REVISTA MUCURY 12

85


Se usamos roupas sofremos preconceito.

Lá na cidade de Machacalis usaram a imagem de

um outro povo indígena, do México, para

representar a presença do nosso povo Maxakali.

Eles não nos reconhecem mais.

Morreram muitos do nosso povo. Em Santa Helena,

em Pradinho.

Visitamos várias sepulturas.

E a terra ficou pra trás. Fomos lá, vimos onde nos

tiraram da terra.

Foi muita violência contra nós.

Tivemos que sair de lá para não brigarmos entre

nós. Foi quando viemos para Aldeia Verde.

Nosso alimento é o milho, a cana, um fruto do mato.

A comida do agrotóxico mata nosso povo também.

Precisamos ter comida de verdade. Nosso

ritual precisa ter comida de verdade.

Por isso procuramos uma terra para poder

sobreviver.

Precisamos de conseguir uma terra que tenha nossa

história.

Muitos dizem: “O índio não pode morar aqui porque

é terra produtiva”.

Meu Yãmĩy é forte. Ele precisa de uma terra pra

cantar de noite e nós darmos comida todos os

dias. E nossas crianças vão aprendendo.

Por isso que pensamos: Aldeia-Escola-Floresta.

Ali nossas crianças vão aprender desde pequenas

a dar comida para nosso ritual. E é passado

dos mais velhos para nossas crianças. Quando eu

estiver mais velha, eu vou passar o meu para

a minha neta. E aí é minha neta quem vai cuidar

do ritual.

É sempre passado.

Quando o Tatakox trazem Yãmĩyhex, quando estamos

velhas, passamos para nossas crianças.

E toda a terra por onde meu povo passou também

tem tudo registrado. Tem os nomes:

katamaxit ..., todos os locais têm nomes indígenas.

Tem identificações de onde surgiu cada canto, onde

cada pessoa foi enterrada.

Nós indígenas, donos da terra, precisamos da terra

para sobreviver.

Hoje temos vários sonhos para essa terra.

Reflorestar essa terra.

Quando eu estiver velha quero ver a Aldeia-Escola-

Floresta reflorestada, com as nascentes, com

86

Um encontro na Aldeia-Escola-Floresta


a cara mesmo de uma Aldeia-Escola-Floresta.

De verdade.

Precisamos reflorestar.

Nós Maxakali temos que aprender, conhecer, para

ver como juntos vamos reflorestar a nossa

mata, para ela voltar.

Sem a mata, a nossa respiração sofre. A doença vai

chegando.

Por isso que fizemos esse canto “Mĩmnoxop yãy”,

“Triste saudade da árvore” , “Cadê minha casa

de verdade”, que o gavião canta e “Dentro da folha

verde”, o último canto que cantamos.

É isso que vai fortalecer cada um de nós.

Fizemos 3 mudanças. Não foi fácil. Sofremos

bastante. Perdemos já 3 pessoas, mais duas em

Concórdia. Já enterramos quatro pessoas. Agora

aqui na Aldeia-Escola-Floresta perdemos a

nossa velhinha, uma grande pajé, mais duas

crianças.

Mas nisso, não ficamos tristes porque daqui um

tempo o Tatakox vai trazer de volta. Aquelas

crianças que morreram, Tatakox traz Yãmĩyhex

de volta

É assim que sentimos, porque foi Yãmĩy kitok que

ensinou meu povo, para poder sair e não

perder nenhum canto.

Nenhuma memória se perdeu.

Os Yãmĩyxop ensinavam pra gente. Eles falavam:

“vocês vão fugir hoje”. A gente fugia. “Vocês

vão fugir amanhã”. A gente fugia. E nisso, eles

chegaram e saíram por aqui até chegar em

Aldeia de Água Boa, onde tem duas pedras brutas,

que foi onde o povo Maxakali se escondeu

para se livrar da morte e da violência.

Mas não perdeu o canto e não perdeu a história.

Por isso é muito importante nós podermos falar,

porque sabemos que eles estão juntos.

E sabemos que vamos fortalecer a escola diferenciada.

Ao contrário de quando chega alguma

construção dentro da nossa aldeia, com o projeto

pronto, que não fomos nós que fizemos. Por

isso queremos fazer algo que é a cara da nossa

Aldeia-Escola-Floresta.

****

REVISTA MUCURY 12

87


PALAVRAS DE MESTRE JOELSON

Estou muito feliz por estar voltando a esta

comunidade.

Me deram um nome aqui, Cati Dioé.

Estamos à disposição de vocês, para contribuir

naquilo que é possível.

Companheiros do Ceará mandaram 4 batatas para

o Assentamento Terra Vista. Nós as

plantamos, e nós trouxemos aqui as ramas das cinco

qualidades de batatas. Tenho certeza que

elas vão florescer. Trouxemos também 4 qualidades

de aipim para florir aqui nesta terra.

Estamos nos encontrando com o companheiro do

Instituto Federal do Norte de Minas e

estamos dialogando para esta parceria aumentar

cada vez mais para contribuir neste processo

da Aldeia-Escola-Floresta.

Também trazemos um convite para que um grupo

maior venha ao Terra Vista para

consolidarmos o nosso trabalho de trocas de

saberes e de sementes.

É uma alegria muito grande estar aqui.

Estou vendo que a Terra é boa. É bonita.

Juntos vamos fazer um trabalho para fortalecer

o modo de vida Maxakali.

Tudo o que queremos fortalecer não é para mudar

o modo de vida de vocês.

Estou feliz porque estive em Água Boa e no Pradinho

e acredito cada vez mais que vocês não

desistiram do seu modo de vida.

Espero que continuem assim.

Tenho certeza que a Aldeia-Escola-Floresta vai ser

uma referência para iluminar, inclusive os

incrédulos, que nunca acreditaram que podemos

restabelecer e cuidar da nossa Mãe Terra com

o maior cuidado. E a Mãe Terra vai nos oferecer

comida, abundância, floresta e tudo aquilo que

ela gosta de nos ofertar.

Estou com o espírito aqui muito feliz.

O pouquinho que tivermos vamos compartilhar com

vocês para fortalecer o modo de vida

Maxakali.

Queremos aprender muito com vocês.

Esse ensinamento de vocês, queremos levar para

nossa comunidade. Para que a gente possa

88

Um encontro na Aldeia-Escola-Floresta


junto transformar esse nosso país em festa,

trabalho e pão. Essa é nossa ideia

Que Ogum abra todos nossos caminhos.

vocês acontecerem.

Estou muito feliz de estar aqui com vocês.

Que possamos estar unidos e fortes com nosso

grande pai e que possamos fazer esse sonho de

Autoria: Cassiano Maxakali

****

Desenho produzido na oficina de Mapeamento Afetivo, no contexto da retomada à Fazenda

de Itamunheque pela comunidade de Tikmũ’ũn e Yãmĩyxop. A oficina foi realizada pelo BDMG

Cultural. Todas as imagens estão disponíveis em www.aldeiaescolafloresta.org

REVISTA MUCURY 12

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SEÇÃO ALDEIA-ESCOLA-FLORESTA

Desta terra, para

esta terra

ISAEL MAXAKALI E SUELI MAXAKALI

Edição e tradução de Roberto Romero


NOTA DO TRADUTOR: Este texto foi

originalmente publicado no verbete “Maxakali” do livro

Povos Indígenas no Brasil 2011/2016, organizado

pelo Instituto Socioambiental (ISA). Essa publicação

quinquenal é uma das fontes mais importantes e

seguras de informação sobre a situação dos mais de

300 povos indígenas que vivem atualmente no Brasil.

Os Tikmũ’ũn 1 sempre andaram por aqui, nestas

terras que vocês, brancos, chamam hoje de Vale do

Mucuri e que nós chamamos kõnãg mõg yok, “onde

corta o rio”. Éramos muitos antigamente e vivíamos

acompanhando as águas. Fazíamos uma aldeia,

caçávamos, pescávamos e dançávamos com os

yãmiyxop [espíritos] e depois de um tempo os mais

velhos se reuniam e decidiam se mudar. Antigamente

não havia brancos aqui. Quando os primeiros brancos

chegaram, eram muito bravos. Mataram muitos

Tikmũ’ũn e trouxeram doenças também. Os “padres

de roupa vermelha” 2 [ãmãnex xax ãta] traziam panos

para os Tikmũ’ũn, que espalhavam sarampo e

varíola. Quando um adoecia, todos se separavam,

com medo, e fugiam para o mato. Foi assim mesmo

que aconteceu aqui perto, em Itambacuri (MG).

Os Tikmũ’ũn partiram, subiram até o Vale do

Jequitinhonha, onde hoje fica Araçuaí (MG). Outros

vieram do sul da Bahia e fugiram para Minas Gerais,

assim como fizeram os Yimkoxeka 3 que foram subindo

do Espírito Santo até chegarem em Teófilo Otoni

(MG). E quando se encontravam, os Tikmũ’ũn e os

Yimkoxeka brigavam.

Mas havia o espírito de uma criança, yãmiy nãg,

que sempre nos avisava quando alguma ameaça

1 [N.t.] Mais conhecidos como Maxakali, os Tikmũ’ũn são cerca de

2.000 pessoas vivendo em três terras indígenas no Vale do Mucuri,

nordeste de Minas Gerais.

2 [N.t.] Provável referência aos padres capuchinhos, responsáveis

pela implantação das missões em toda a região do Vale do Mucuri

entre os séculos XIX e XX.

3 [N.t.] Yimkoxeka ou “orelhas grandes” é como os Tikmũ’ũn se

referem aos seus vizinhos tradicionais, os povos Borun, como os

Krenak que vivem hoje nas margens do Rio Doce.

REVISTA MUCURY 12

91


como os brancos ou os botocudos se aproximava.

À noite, ele vinha e batia nas madeiras da casa do

seu pai tok tok tok tok e avisava: “Pai! Pai! Vocês

devem partir! Leve os Tikmũ’ũn para longe daqui!

Escondam-se! Os brancos estão vindo te matar!”. E

então os Tikmũ’ũn fugiam outra vez. Por fim, chegamos

onde hoje ficam as aldeias de Água Boa (Santa

Helena de Minas, MG) e Pradinho (Bertópolis, MG)

e nos escondemos debaixo de uma pedra bem alta,

que chamamos mikax kaka, “debaixo da pedra”.

Mas os brancos então já estavam por toda parte e

nos perseguiam, querendo nos matar. Quando os

brancos se aproximavam ou os Tikmũ’ũn ouviam

passar um avião, corriam para dentro de uma gruta

em Água Boa, onde viviam vários morcegos, e esperavam

os brancos passarem. Os brancos iam

embora, pensando que tinham acabado com todos,

mas eles estavam lá, escondidos. Com o tempo, não

teve mais jeito e eles tiveram que se envolver com os

brancos. Os brancos traziam cachaça, tecidos, facas,

foices e distribuíam entre eles. Naquele tempo, os

Tikmũ’ũn não sabiam das coisas. Os brancos traziam

uma faca e eles trocavam por terra, traziam um boi,

e eles trocavam por terra, traziam cachaça, e eles

trocavam... Os brancos tiravam fotos dos homens e

das mulheres e mostravam para eles dizendo: “Aqui

está a alma [koxuk] de vocês! Se vocês não forem

embora daqui, vamos destruir vocês todos!”. E os

Tikmũ’ũn, com medo de perderem seus yãmiyxop

[espíritos], fugiam. Assim os fazendeiros foram tomando

as nossas terras e derrubando toda a mata.

Nós mesmos, quando crescemos em Água Boa, vimos

com nossos próprios olhos a mata grande. Mas com

o tempo os fazendeiros derrubaram tudo e a floresta

virou capim. Nós, Tikmũ’ũn, tivemos que escolher: ou

perdíamos a terra ou perdíamos a língua. Preferimos

perder a terra do que perder a língua. Porque a

língua pertence à nossa alma, é nossa identidade,

é nosso canto. E os cantos fazem parte da nossa

vida cotidiana e da nossa cura.

Hoje, a terra onde vivemos é pequenininha. Os brancos

tomaram tudo. A terra, as águas, o céu, o sol e o

92 Desta terra, para esta terra


vento hoje estão doentes. Por que estão doentes?

Porque a mata acabou, os rios secaram e as nossas

águas adoeceram. O corpo da terra está quente.

Plantamos sementes e mudas, mas elas não crescem

mais como antes. A terra está quente por dentro e

por isso as sementes se queimam antes de brotar.

Mesmo se molharmos, não crescem tão rápido como

crescem com a água da chuva. A mata hoje está

fraca. Não há mais árvores altas e fortes como as

que viviam aqui antigamente. A chuva e os ventos

estão com raiva e não querem mais cair ou soprar

por aqui. Por isso a terra está tão quente. Quando a

água dos lagos evapora, se transforma em nuvens

vermelhas, que também estão doentes e esquentam

a terra. Chove forte, mas a chuva que cai hoje em

dia adoece as nossas crianças. Antigamente, nossas

crianças não adoeciam como hoje porque havia

muita mata e muita sombra. Mas hoje, quando chove

ou venta, elas começam a tossir, a gripar e a queixar

dor de garganta, dor de cabeça... Antigamente, não

sofriam nada disso. Mas os brancos chegaram e

derrubaram toda a mata, poluíram os rios, construíram

usinas hidrelétricas e acabaram com os

peixes. Nossos avós viviam até os cem anos. Mas

nós não chegaremos nesta idade, porque hoje temos

doenças que não conhecíamos e já não comemos

mais como antigamente.

Ainda assim, os Tikmũ’ũn sabem curar esta terra.

Nós podemos trazer de volta a mata, as frutas e os

bichos. Quando chegamos aqui, em Aldeia Verde

(Ladainha-MG), a mata era pequena. Os fazendeiros

que viviam aqui tinham queimado tudo para fazer

carvão e por toda parte só víamos braquiária. Depois

que chegamos, a mata voltou a crescer, mas mesmo

assim a terra é muito pequena. Os brancos têm

poucos filhos hoje em dia, mas nós não. Nós temos

muitos filhos e um dia na nossa terra não caberá

mais tanta gente. Ou vamos todos virar brancos e

morar em casas compridas de cimento como nas

cidades? Nós morando embaixo, nossos filhos no

andar de cima, nossos netos e os filhos dos nossos

netos em cima deles? E como os yãmiyxop [espíritos]

vão fazer para buscar comida nestas casas? Vamos

ter que descer de elevador para levar comida para

REVISTA MUCURY 12

93


eles? Ou amarrar um cipó bem comprido para que

eles subam, como macacos, buscando comida? Não

vai dar!

Por isso pedimos para o governo aumentar as

nossas terras. Mas nós, os Tikmũ’ũn, somos muito

desprezados. Os governos não reconhecem que

somos indígenas vivendo em Minas Gerais e que temos

ainda a nossa cultura viva. Todos os presidentes que

assumem não reconhecem a existência do nosso

povo e da nossa cultura forte, que aqui também nós

temos as nossas madeiras vivas, que são gente, e

que precisamos criar os seus filhos para continuar

existindo os remédios da mata e a água que faz as

nossas crianças crescerem fortes como as árvores.

Hoje os pajés Tikmu’un estão muito cansados e

tristes. Por que vocês acham que eles estão se

matando? Estão se matando para não terem que

continuar assistindo a tudo de ruim que acontece por

aqui. Os yãmiyxop já não têm mais onde caçar, banhar

ou o que comer. As matas e os rios acabaram. Daí

a preocupação que não sai da cabeça deles. Por

isso, muitas vezes, os pajés preferem se matar.

Eles pensam assim: “Eu vou me matar! Eu vou viver

com os yãmiyxop e de lá vou cuidar dos Tikmu’un!”.

E assim eles fazem. Morrem, mas continuam aqui,

94

Desta terra, para esta terra


entre nós, caminhando pela mata com os yãmiyxop.

Aqui, os yãmiyxop já não podem caminhar como

faziam antigamente. Os cantos já não surgem mais.

Os fazendeiros nos cercaram. Por onde a gente

anda, vemos cercas e placas dizendo “proibido

caçar”, “proibido pescar”, “proibido atravessar”. Os

fazendeiros são todos onças. Não podemos continuar

vivendo assim!

Os desenhos desse texto são de autoria de Cassiano

Maxakali

Desenhos produzidos na oficina de Mapeamento Afetivo,

no contexto da retomada à Fazenda de Itamunheque pela

comunidade de Tikmũ’ũn e Yãmĩyxop. A oficina foi realizada

pelo BDMG Cultural. Todas as imagens estão disponíveis

em www.aldeiaescolafloresta.org

REVISTA MUCURY 12

95


96 Título do texto que está sendo lido


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