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Editorial Opinião

Está tudo bem?

CRÓNICA

Luís Guedes

Há coisas no ser humano

que, realmente, me fazem

valorizar, cada vez mais, a

minha cadela. Tudo bem que

a Fibi não é particularmente

inteligente. Tem medo da

sombra. De vassouras. Apresenta

muitas dificuldades em

abrir portas já semiabertas.

Para o meu pequeno canídeo,

tudo é um desafio, na verdade.

Apesar da sua inoperância

em muitos aspetos da vida

quotidiana, a Fibi é uma amiga

que eu valorizo. Não só por

me fazer companhia em noites

de Liga dos Campeões, mas

principalmente porque nunca

me pergunta se está tudo bem.

- Espera, mas está tudo

bem? - questionam vocês.

E é aí que eu respondo:

tudo o quê, meus amigos?

Não é? Porque é que permitimos,

enquanto sociedade,

que uma das primeiras falas

presentes em qualquer diálogo

seja do mais intrusivo

que existe? É que quando me

perguntam sobre tudo, obrigam-me

a pensar, lá está, em

tudo. Na minha vida amorosa,

na minha carreira, na minha

família, na seleção nacional.

E é assim, eu confesso que

estou um bocadinho farto do

William Carvalho. Portanto,

não, Patrícia. Não está tudo

bem. Acho que há soluções

bastante melhores, para te ser

muito sincero. No entanto,

constato que não estás muito

interessada nesta visão que eu

tenho de jogar com o Renato

Sanches a trinco. Se calhar, esperavas

um mero, um simples,

um mísero “tá tudo”. Também

te posso presentear com um

“vai-se andando”, que, no

fundo, é o mesmo que responder

“alicate”. Em termos de

conteúdo, de pertinência, de

suminho… ambos são zero.

Que parvos somos, não é?

Incluo-me, atenção! É giro

reparar que tudo isto é uma

espécie de espetáculo non-stop

de ilusionismo. Andamos

a enganar-nos uns aos outros

e gostamos de ser enganados,

quer-me parecer, sem qualquer

tipo de ironia! Com tudo o que

isso tem de bom e de mau. O

que seria sermos honestos?

Que tragédia! Imaginem, a

caminho do metropolitano,

retribuir a pergunta à Patrícia

e receber algo deste género.

- Olha, Luís, sabes… ultimamente,

tenho sentido que

o meu namorado já não me

deseja tanto como outrora. E

não me perguntes porquê, mas

aquela Paula dos Recursos

Humanos deve querer molho.

No que toca a família, nada a

dizer. Aliás, algo a dizer. Sabes

o meu irmão mais novo?

O Ruizinho? Quer dizer, o

Rui… está um matulão! Há

dias, apanhei-o trancado na

casa de banho com um poster

da Sónia Araújo! Ele sempre

quis muito ser apresentador.

Mas olha, no trabalho, tudo

mal. Farto do meu chefe. Há

dias, apanhou-me no TikTok

e perguntou se era para isso

que lhe pagava. É assim, claro

que não, mas quer dizer, saúde

mental, não é? Fazer pausas é

muito importante em contexto

laboral! Enfim, e contigo?

É assim, comigo, se calhar,

depois de tanta informação,

preciso de um momento de recobro.

Como nas vacinas, sabem?

Para processar a injeção.

Posto isto, proponho-me a ser

a voz dos oprimidos. Daqueles

que, diariamente, lutam contra

estes seres humanos que,

tal como nós, respiram, mas

ao contrário de nós, fazem

perguntas vagas, esperando

respostas igualmente vagas.

Comecemos por algo que

não nos dê sensação de início

de conversa. Deixemos o “então,

está tudo bem?” e passemos,

quiçá, a um “olha, gostas

de pão?”. Desprovido de sentido?

Sim, mas e se vos dissesse

que tenho um amigo que já

foi bem-sucedido em termos

amorosos com esta primeira

abordagem? Provavelmente,

achariam que estava a mentir.

O que é compreensível.

O mais engraçado no meio

disto tudo é que não estou.

Já não o vejo há algum

tempo, tenho de lhe perguntar

como é que está.

Ilustração: Margarida Antunes

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