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Sentinela Impresso

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Grande Entrevista

E por isso respondendo diretamente

à pergunta, eu acho

que o jornalismo de investigação

é muito necessário, mas não

é reconhecido como deveria.

O caso do desaparecimento

da Maddie McCann

é um dos acontecimentos

mais mediáticos da história

do jornalismo em Portugal.

Na época este tema era

uma constante em todos

os órgãos de comunicação.

Uma vez que acompanhou

sempre muito de perto todo

este processo, foi necessário

algum controlo emocional

acrescido durante a investigação?

E se alterou em

alguma coisa a visão que

tinha acerca da sua profissão?

O caso Madeleine McCann

é o início do meu processo

de querer rumar para o jornalismo

de investigação. Foi aí

que eu percebi aquilo que eu

realmente queria fazer, e estávamos

em 2007, era jornalismo

de investigação. Até aí

eu tinha passado por editorias

como Política, Sociedade, mas

não estava ainda plenamente

focada naquilo que viria a ser

o meu futuro, e que é o meu

presente. Já passaram quinze

anos. Era tanto trabalho, tanto

trabalho, tanto trabalho,

que não há tempo sequer para

pensar nas emoções. Há os

momentos de confronto com

o casal, e esses momentos são

duros, emocionalmente duros

Quase não há

tempo para sentir.

Há tempo para

pensar, há tempo

para agir”

Se mudou a minha visão do

jornalismo? Mudou no sentido

em que, pela primeira vez na

minha vida, eu me sentia enganada

por uma fonte que eu

tinha como credível. E a partir

daí eu comecei a ser muito

mais exigente comigo própria,

com as minhas fontes, com os

documentos que me dão a ver,

e deixei de fazer o que quer

que seja por confiança absoluta

e cega nas fontes, porque

esse é um dos maiores riscos

que o jornalista corre. É chegar

a um ponto em que está

tão seguro que a fonte é, como

dizem os ingleses, “reliable”,

credível, que deixam quase

de exigir a essa fonte, até por

um certo embaraço, porque se

confia bastante na fonte, de pedir

documentação que confirme

aquilo que ela está a dizer.

Isso acabou por me acontecer.

Já me abordaram e perguntaram:

estás arrependida? Não,

não estou arrependida, porque

eu não me posso arrepender

de algo que eu não sabia na

altura. Foi algo que eu só descobri

um ano depois, e quando

descobri um ano depois, não

tive a menor hesitação porque

o meu compromisso é com

o público. É para ele que eu

trabalho. Eu não trabalho para

fontes, trabalho para as pessoas

que nos ouvem e que nos

seguem, e não tive problema

nem pudor nenhum, nem teria

nunca de dizer aquilo que eu

disse no passado, ou seja, de

que havia provas consistentes

de que poderia haver sangue

de Madeleine McCann no

apartamento e no carro, não é

verdade. E a partir daí mudei.

Não é a minha visão de jornalismo,

a visão de jornalismo é

a mesma. Tornou-se mais exigente

o exercício da profissão.

O que se tornou diferente em

mim foi a minha apreciação

sobre o caso. Eu até aquele

momento, até ler todos os

documentos que estavam no

caso, que estavam em segredo

de justiça, e que de repente ao

ser arquivado é aberto, “open

files”, descobrem-se as verdades,

e a descoberta dessa

verdade para mim foi muito

angustiante. Foi a perceção

de que metade das coisas que

nós tínhamos tomado como

reais eram meras manobras de

distração de uma polícia judiciária

que estava em completo

devaneio, sem saber o que dizer

ao mundo, apenas porque

não sabia nada do que tinha

acontecido, e continuou sem

saber nada do que aconteceu.

Isso é que é constrangedor. É

termos que lidar com o facto

de agora ser uma polícia alemã,

que efetivamente vem

dizer que sabe o que é que

aconteceu, quando nós não

descobrimos o que aconteceu.

A Sandra escreveu um

post em 2020, ainda sobre o

caso dos McCann, que continha

a seguinte expressão:

«Li todos os ficheiros. Todos

os relatos. E durante todos

estes anos ouvi os maiores

disparates sobre o que vi

acontecer com os meus próprios

olhos. Vi, incrédula,

como é fácil proliferarem

mentiras apenas em ordem

de justificar a tese de um

inspetor afastado por ter

dito em público o que nunca

conseguiu provar na justiça.

Mas em público, só podemos

falar o que podemos

provar. E isto é válido para

todos». Posto isto, o que é

que lhe dá mais comichão

no jornalismo em Portugal?

Comichão é uma palavra

engraçada até, mas é algo que

me causa muita urticária, a

forma leviana com que se faz

jornalismo, muitas vezes. E

foi por isso que eu escrevi esse

post. Não é que eu tenha nenhuma

sobranceria e acho que

saiba mais do que qualquer

outro meu colega, mas porque

vejo muitos a fazerem aquilo

que eu acho que é a antítese

do que nós temos obrigação de

fazer, que é o de verificar, ter

a certeza absoluta dos factos,

e para isso é preciso fazer um

trabalho árduo, que eu também

reconheço que na altura

em que os ficheiros estavam

fechados e nós não tínhamos

outra qualquer forma de saber

a informação, só me limitei

a cruzar as informações dos

McCann com as informações

que obtinha via policial, sendo

que estava perfeitamente

consciente que as informações

via policial eram informações

que violavam elas próprias, o

segredo de justiça. Mas nós

somos pagos, e servimos o

público para darmos todos os

segredos. Eu, sempre que me

falam em segredo de justiça,

para mim o segredo de justiça

é algo que não tem de existir.

Desde que eu descubro algo

que é relevante, o que a mim

me interessa é se a informação

é verdadeira, se tem interesse

público, e se for verdadeira e

tiver interesse público, eu vou

publicá-la. No caso McCann o

que aconteceu é que a informação,

à data dos factos em que

foi reportada por mim e por

tantos outros, era verdadeira

e tinha muito interesse público.

Passado um ano, quando

os ficheiros são libertados e

de acesso público, afinal não

eram aquilo que nos tinham

dito. E por isso eu ter escrito

o que escrevi, que corroboro

e voltaria a escrever de novo.

Esteve na RTP durante 22

anos, o que é que a fez mudar

para a CMTV e, menos

de um ano depois, para a

TVI?

Eu sou uma mulher que

só sabe viver feliz. E entendo

que a vida é uma passagem

demasiado curta para que

nós teimamos em fazer aquilo

que não nos deixa felizes.

E portanto entendi, 22 anos

depois, que a RTP já não me

fazia feliz, ainda que tenha

deixado lá os meus melhores

amigos, e foi um processo

muito duro, o mais duro que

eu já passei. A minha despedida

da RTP é algo que eu falo

aqui brevemente porque senão

começo a chorar. A RTP

foi a minha casa, a minha família

durante muitos largos

anos. Foi lá que eu passei

muitos Natais, muitas Passagens

de Ano, muitas Páscoas

e, quando algum de vocês tiver

oportunidade de perceber

o que isso é, percebem rapidamente

que o jornalista que

é devoto à profissão como eu

sou, passa muito mais tempo

a trabalhar do que em casa.

Fotografia: Getty Images

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