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Revista Dr Plinio 296

Novembro de 2022

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Publicação Mensal<br />

Vol. XXV - Nº <strong>296</strong> Novembro de 2022<br />

Unindo o Céu à Terra


Extraordinário alpinismo<br />

Bart Prins (CC3.0)<br />

Montanhas Nevadas<br />

do Tirol, Áustria<br />

V<br />

encer os montes, que linda proeza! Sim, um homem é capaz de ser valente para<br />

galgar montanhas, mas não em face de uma opção em sua vida ou de um raciocínio<br />

com a firmeza e a clareza com que o faz o católico quando se põe na escola de<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />

O grande cume a galgar, o extraordinário alpinismo a empreender está dentro de nós. A<br />

beleza de nossa vida consiste em termos em nosso interior imensas montanhas magnificamente<br />

nevadas, dos flancos das quais pendem abismos terríveis; devemos ser os alpinistas<br />

de nós mesmos. Ao sermos criados, Deus teve um desígnio para cada um de nós, com vistas<br />

a que alcançássemos um grau de virtude e ocupássemos no Céu um determinado trono.<br />

O verdadeiro alpinismo é galgar de virtude em virtude até conquistarmos esse trono e<br />

aí cantar as glórias de Deus por toda a eternidade!<br />

(Extraído de conferência de 3/5/1986)


Sumário<br />

Publicação Mensal<br />

Vol. XXV - Nº <strong>296</strong> Novembro de 2022<br />

Vol. XXV - Nº <strong>296</strong> Novembro de 2022<br />

Unindo o Céu à Terra<br />

Na capa,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, em seu<br />

apartamento, em<br />

julho de 1983<br />

Foto: Arquivo <strong>Revista</strong><br />

As matérias extraídas<br />

de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

— designadas por “conferências” —<br />

são adaptadas para a linguagem<br />

escrita, sem revisão do autor<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

ISSN - 2595-1599<br />

CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />

INSC. - 115.227.674.110<br />

Diretor:<br />

Roberto Kasuo Takayanagi<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Virgílio Rodrigues, 66 - Tremembé<br />

02372-020 São Paulo - SP<br />

E-mail: editoraretornarei@gmail.com<br />

Impressão e acabamento:<br />

Northgraph Gráfica e Editora Ltda.<br />

Rua Enéias Luís Carlos Barbanti, 423<br />

02911-000 - São Paulo - SP<br />

Tel: (11) 3932-1955<br />

Preços da<br />

assinatura anual<br />

Comum............... R$ 200,00<br />

Colaborador........... R$ 300,00<br />

Propulsor.............. R$ 500,00<br />

Grande Propulsor....... R$ 700,00<br />

Exemplar avulso........ R$ 18,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

editoraretornarei@gmail.com<br />

Segunda página<br />

2 Extraordinário alpinismo<br />

Editorial<br />

4 Instaurando uma<br />

Cristandade cœliforme<br />

Piedade pliniana<br />

5 As virgens fiéis e<br />

as virgens loucas<br />

Dona Lucilia<br />

6 Suave fim de<br />

Dona Lucilia<br />

Reflexões teológicas<br />

8 O mais empolgante<br />

espetáculo da História<br />

Eco fidelíssimo da Igreja<br />

14 Realidade inevitável<br />

da morte<br />

Calendário dos Santos<br />

24 Santos de Novembro<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

26 Nada se perde na Igreja<br />

Hagiografia<br />

30 Só ama o bem quem<br />

odeia o mal<br />

Apóstolo do pulchrum<br />

33 O mais belo dos<br />

panoramas<br />

Última página<br />

36 Perfeita harmonia<br />

3


Editorial<br />

Instaurando uma Cristandade cœliforme<br />

N<br />

o universo por nós conhecido e com o qual temos um contato contínuo – portanto, não incluindo<br />

os Anjos, os quais não fazem parte do nosso universo visível – o que existe de mais elevado<br />

é a alma humana.<br />

A experiência mostra que quando temos amigos em quem podemos confiar inteiramente, aos quais estamos<br />

vinculados por uma afinidade de alma completa, quer pela identidade de doutrinas e de convicções,<br />

quer por uma harmonia das semelhanças e dissemelhanças psicológicas que tornam o convívio agradável,<br />

interessante e variado, sobretudo afinidade no serviço a princípios mais altos, ficam postas as condições<br />

ideais para termos um convívio de alma muito grande, no qual encontramos o que mais aprazível pode haver<br />

para a natureza humana.<br />

Por certo, pode-se dizer que um convívio assim é muito raro. Mas, quando ele se realiza, realmente é o<br />

maior deleite possível nesta Terra.<br />

O modo pelo qual se imagina o Céu é correntemente muito influenciado por imagens de Santos no<br />

estilo sulpiciano, com isto de curioso: parecem apresentar almas sem características psicológicas próprias.<br />

Assim, seja Santa Dorotéia, Santa Hildegarda ou Santa Teresa, são representadas com a mesma<br />

ausência de personalidade.<br />

Isso nos leva a perguntar qual é o relacionamento dessas pessoas no Céu, e tem-se a impressão de uma<br />

sensaboria completa, pois vários dos requisitos de um convívio humano perfeito não existem, o que contribui<br />

para apresentar do Paraíso uma imagem pouco atraente.<br />

Podemos imaginar o convívio de almas afins no Paraíso, talvez entre pessoas de séculos diferentes, mas<br />

modeladas pela providência de Deus muito mais para formar um grupo no Céu do que em função de sua<br />

existência na Terra.<br />

Essas pessoas, convivendo entre si, possuem uma felicidade na ordem do criado a mais completa possível.<br />

Mas ainda mais perfeita por estarem gozando da visão beatífica e comentarem o que estão contemplando<br />

de Deus, o Divino Panorama, que Se faz ver de maneiras infinitamente variadas por almas afins, as<br />

quais sentem do mesmo modo. Com isso, elas gozam de uma felicidade inimaginável. Assim, o ideal da felicidade<br />

da Terra se realiza no Céu de um modo fantástico, maravilhoso!<br />

Na Idade Média o que houve foi algo muito inferior ao Céu empíreo, mas nesta ordem. As almas tinham<br />

essa consonância profunda, essa virtude, a Fé as unia verdadeiramente, elas se amavam, não só por<br />

cima dos limites que as dividiam no campo social, mas até por causa desses limites: cada fronteira social<br />

era um título para o amor, e não para o ódio.<br />

Tudo isso ganha muito mais relevo se considerado à luz do que São Luís Grignion de Montfort diz a respeito<br />

do Reino de Maria, onde as almas santas, comparadas às dos séculos anteriores, serão como cedros<br />

do Líbano em comparação com arbustos. Portanto, o convívio, a densidade e a realidade da Cristandade<br />

vão ser muito maiores do que foram na Idade Média, pois haverá uma presença da graça nas almas especialmente<br />

própria a constituir uma sociedade mais parecida possível com o Céu empíreo.<br />

Para isto estamos trabalhando: em oposição à Revolução “sataniforme” ou “inferiforme” – moldada segundo<br />

satanás ou os infernos –, instaurar uma Cristandade “cœliforme”. Isso abrange os nossos ideais e os<br />

realiza por inteiro. Para lá caminha o élan de nossas almas! *<br />

* Cf. Conferência de 21/5/1989.<br />

Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />

de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />

na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />

outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


Piedade pliniana<br />

Luis C.R. Abreu<br />

As virgens fiéis e as<br />

virgens loucas<br />

As virgens loucas não se prepararam. As fiéis, sim. Desde quando estavam preparadas?<br />

A Parábola não o diz. Suponhamos que algumas o estivessem desde<br />

o primeiro instante e se foram quintessenciando até a chegada do Esposo. Oh,<br />

bem-aventuradas!<br />

Algumas, de outro lado, se atrasaram? Certamente. Como, então, estavam prontas<br />

quando o Esposo chegou? A misericórdia baixou sobre elas; e porque estavam humilhadas<br />

e arrependidas, o azeite se renovou em suas lâmpadas.<br />

Nossa Senhora dos humilhados e contritos!<br />

Nossa Senhora dos confiantes filiais!<br />

Nossa Senhora, Mãe de Misericórdia!<br />

Rogai por nós!<br />

(Anotações de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>. Domingo da Paixão de 1981)<br />

5


Dona Lucilia<br />

Fotos: Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Quando <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> ainda convalescia<br />

da crise de diabetes, mais uma dor<br />

veio assomar-se em seu horizonte:<br />

a separação de sua extremosa<br />

mãe, Dona Lucilia. Às vésperas<br />

de completar 92 anos, ela faleceu<br />

suave e serenamente, após traçar<br />

em si um grande Sinal da Cruz.<br />

A<br />

morte de Dona Lucilia passou-se<br />

assim:<br />

Os últimos momentos<br />

Estava com mamãe almoçando na<br />

sala de jantar de nosso apartamento.<br />

Ainda me encontrava em vias de<br />

completar o restabelecimento da crise<br />

de diabetes, e ela, muito idosa, com<br />

quase 92 anos, já não apresentava inteira<br />

lucidez. Conversávamos a sós,<br />

tocando uma prosa como era possível,<br />

bem devagarzinho; ela se entretinha,<br />

olhava-me fixamente e procurava<br />

acompanhar o que eu dizia.<br />

Neste jantar, na tranquilidade da<br />

casa, a morte se apresentou. Horas<br />

tantas, ela começou a sentir-se incomodada,<br />

com a sensação de haver, em<br />

torno do pescoço, algodões que lhe tiravam<br />

o ar e queria que alguém os<br />

Quarto de Dona Lucilia<br />

6


emovesse. Na verdade, não havia algodões.<br />

Percebi imediatamente tratar-se<br />

de algo grave, embora o médico<br />

a tivesse examinado recentemente<br />

e achado que o coração estivesse em<br />

condições normais para aquela idade.<br />

Chamei logo uma espécie de enfermeira<br />

ou dama de companhia<br />

que a acompanhava. Esta senhora<br />

ajudou-me a pô-la na cadeira de<br />

rodas, e, conduzindo-a ao quarto,<br />

auxiliou-a a deitar-se. Começava o<br />

fim da vida de mamãe…<br />

Convocamos imediatamente o médico,<br />

o qual, analisando a situação,<br />

sussurrou-me: “Ela chegou<br />

ao fim; de repente o<br />

coração ficou em condições<br />

péssimas… com 92<br />

anos! O senhor precisa<br />

preparar-se para o que vai<br />

acontecer.”<br />

Minha mãe estava com<br />

uma crise cardíaca fortíssima<br />

e falta de respiração.<br />

Passei o resto do dia junto à cama<br />

dela, rezando, conversando, procurando<br />

consolá-la, apesar do tormento que<br />

sentia ao vê-la padecer falta de ar. No<br />

meio daquela asfixia, ela mantinha-se<br />

numa calma que me deixava pasmo!<br />

Ela olhava sempre para a frente, numa<br />

admirável resolução. Notava que<br />

ela tinha consciência de estar morrendo<br />

e via a morte chegar; mas, via também<br />

que o Céu se aproximava.<br />

À noite, ela acabou se recompondo<br />

um pouco, e eu ainda muito<br />

e muito débil, fui recolher-me para<br />

descansar.<br />

Glorioso Sinal da Cruz<br />

Aspectos da fazenda em Amparo<br />

Na manhã seguinte, assim que me<br />

despertei, perguntei por ela. Avisaram-me<br />

que o médico tinha passado<br />

a noite assistindo-a e que ela ia se<br />

aguentando. Tomei o café da manhã,<br />

li um pouquinho o jornal, com a intenção<br />

de logo depois ir vê-la, quando me<br />

informaram que ela estava in extremis.<br />

Ainda naquele tempo eu andava<br />

com uma espécie de muletas. Levantei-me<br />

como pude e fui para o quarto<br />

dela, contíguo ao meu. Quando<br />

cheguei, o doutor me disse: “Ela<br />

morreu.”<br />

O médico explicou que, de súbito,<br />

o coração dela baqueou e ela sentiu<br />

que vinha a morte. Ela sabia que<br />

eu ainda estava muito doente e teve<br />

tanta delicadeza, que não me mandou<br />

chamar. Como médico, ele não<br />

pôde conter-lhe a vida, e ela faleceu.<br />

Antes de morrer, ela fez um grande e<br />

resoluto Nome do Padre, de cima da<br />

cabeça até abaixo, no peito e, com o<br />

glorioso Sinal da Cruz, ela morreu.<br />

Eu entrei… que pude fazer? Não<br />

sei há quantas décadas eu não chorava.<br />

Nessa ocasião chorei copiosamente,<br />

caudalosamente…! Depois<br />

fui para o meu quarto, fiz a toilette,<br />

preparei-me para ficar fazendo<br />

guarda ao corpo enquanto estivesse<br />

em casa e, depois, acompanhá-la ao<br />

cemitério.<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na Missa de<br />

sétimo dia de Dona Lucilia,<br />

em 27 de abril de 1968<br />

Enfrentando a<br />

morte da mãe<br />

Quando me preparava,<br />

a tristeza de repente sumiu<br />

de minha alma e tive uma<br />

tranquilidade, uma serenidade<br />

extraordinárias, apesar<br />

da dor.<br />

Fui ao salãozinho cor-de-<br />

-rosa de casa, onde estava<br />

exposto o corpo. Começaram a chegar<br />

pessoas da família e relações.<br />

Mais tarde ela foi enterrada.<br />

Acompanhei o féretro até a porta<br />

do Cemitério da Consolação, não<br />

desci para acompanhar o corpo, porque<br />

minhas condições não permitiam<br />

por causa da amputação. Dei o<br />

giro com o automóvel e voltei para<br />

casa.<br />

Entrei… Era a primeira vez que<br />

eu encontrava a casa sem a dona.<br />

O que pude fazer? Deitar-me, rezar,<br />

adormecer… A vida continuou.<br />

Na manhã seguinte fui à fazenda<br />

do Êremo do Amparo de Nossa Senhora.<br />

Até então ainda não tinha saído<br />

de São Paulo andando de muletas.<br />

De lá voltei só para a Missa de<br />

sétimo dia.<br />

v<br />

(Extraído de conferência de<br />

11/8/1984)<br />

7


Reflexões teológicas<br />

Flávio Lourenço<br />

O mais empolgante<br />

espetáculo da História<br />

Ressurreição dos mortos<br />

Igreja de Santa Maria,<br />

Tarrasa, Espanha<br />

No Juízo Final, todos os homens já estarão mortos e<br />

individualmente julgados, exceto um punhado de eleitos,<br />

especialmente amados por Nossa Senhora. Estes terão sofrido<br />

tanto que Deus os dispensará de morrer no fim do mundo e<br />

testemunharão o espetáculo mais empolgante de toda a História.<br />

Qual o sentido mais profundo<br />

do Juízo Final? Através dessa<br />

pergunta poderemos compreender<br />

melhor como devemos representá-lo<br />

aos nossos olhos.<br />

Todos estarão julgados<br />

Sem dúvida, o Juízo Final será o<br />

acontecimento mais entusiasmante da<br />

História, a se equiparar apenas com as<br />

cenas da vida de Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo. Nele se dará a ressurreição dos<br />

mortos e isso tem um sentido especial.<br />

O Cordeiro de Deus quis morrer<br />

e morreu. Nossa Senhora teve uma<br />

morte que a Igreja, com a sua linguagem<br />

incomparável, chama de dormição<br />

da Bem-aventurada Virgem Maria,<br />

pois foi tão leve que se deu como<br />

um ligeiro sono.<br />

Todos os homens já terão morrido<br />

na ocasião do Juízo Final, exceto<br />

um grupo pequeno de homens<br />

especialmente amados por<br />

Nossa Senhora, os quais terão sofrido<br />

tanto, que Deus os dispensará<br />

de morrer. Estes assistirão ao<br />

fim e ao recomeço de todas as coisas,<br />

e terão diante de si os espetáculos<br />

mais empolgantes de toda a<br />

História.<br />

As pessoas de todas as épocas históricas,<br />

exceto esse punhadinho final<br />

de eleitos, já terão sido julgadas em<br />

seu juízo particular e, portanto, já terão<br />

seus destinos fixados. Esses últimos<br />

que não morrerão estarão confirmados<br />

em graça e não poderão<br />

mais pecar.<br />

8


Justiça completa para os<br />

corpos e para as almas<br />

Quando o homem morre, seu cadáver<br />

padece a desagregação e se decompõe.<br />

Por causa deste fim inevitável,<br />

o corpo acaba não sofrendo todos<br />

os castigos que mereceu, por ter sido<br />

instrumento para o pecado, nem recebe<br />

todos os gáudios e alegrias, por<br />

ter favorecido a prática da virtude.<br />

Portanto, é necessário que haja a ressurreição<br />

para que o corpo se associe<br />

ao destino eterno da alma. Assim, os<br />

bem-aventurados estarão com seus<br />

corpos gozando da felicidade eterna<br />

no Céu; os réprobos sofrerão tormentos<br />

corporais indescritíveis no Inferno,<br />

por toda a eternidade.<br />

É preciso que se queimem o corpo<br />

que gozou do prazer infame da impureza,<br />

a língua que serviu de instrumento<br />

à mentira e à calúnia, os olhos<br />

que serviram para dardejar ódio,<br />

mentir e lisonjear ou para ver coisas<br />

impuras, os ouvidos que se deleitaram<br />

em ouvir doutrinas falsas, músicas<br />

lascivas ou imoderados elogios<br />

sobre si próprio. Não haverá parcela<br />

do corpo do réprobo que não estará<br />

inundada de dor eternamente.<br />

O corpo dos bem-aventurados, porém,<br />

estarão inundados de felicidade<br />

e bem-estar. O corpo, portanto, deverá<br />

ser premiado ou castigado.<br />

Determinados homens praticaram<br />

pecados ocultos; outros, cometeram<br />

pecados escandalosos, que se tornaram<br />

conhecidos e levaram muita gente para<br />

o Inferno. Todos serão castigados.<br />

Também, e principalmente, as virtudes<br />

praticadas, às vezes às ocultas,<br />

serão premiadas. Quantos atos de<br />

abnegação que ninguém conheceu,<br />

quantas provas de fidelidade, heroísmo<br />

ou bondade que os homens viram<br />

e não apreciaram, ou não presenciaram,<br />

mas os Anjos do Céu admiraram<br />

e, voltando-se a Nossa Senhora,<br />

disseram: “Mãe nossa, recompensai-o<br />

ainda mais!”<br />

Quanto juízo errado os homens fazem<br />

uns sobre os outros, quanta amizade,<br />

indiferença ou ódio imerecidos.<br />

É preciso que haja um ato pelo<br />

qual, na presença de Deus ofendido<br />

ou glorificado, e de toda a humanidade,<br />

pública e oficialmente, se proclame<br />

a História do mundo e se passem<br />

todos os atos de virtude, como<br />

também todos os pecados. E na aclamação<br />

dos Anjos e dos bem-aventurados<br />

serão proclamados os méritos<br />

de cada um, até da pessoa mais modesta.<br />

Dos maiores pecadores ou dos<br />

mais modestos, serão enxovalhados<br />

os defeitos. Será feita a justiça diante<br />

de todos.<br />

Esplendorosa solenidade<br />

e a mais terrível rejeição<br />

Há algo ainda mais terrível. Assim<br />

como o homem abandonado por sua<br />

própria mãe está no maior dos abandonos,<br />

assim Nossa Senhora olhará<br />

para os condenados gelidamente ou,<br />

pior, com repulsa… O olhar indignado<br />

de Maria, como se pode conceber?!<br />

Voltando-se para alguém, Ela<br />

dirá: “Ofendeste meu Filho! Rejeito-te!<br />

Recuso-te! No meu coração<br />

não há espaço para ti! Houve espaço,<br />

mas tu o recusaste e meu coração<br />

se abriu para outros. O lugar que te<br />

era destinado foi dado a outros! Vai<br />

para o castigo eterno!”<br />

É preciso que esse Juízo se realize<br />

para que a justiça seja completa.<br />

E, por esta razão, para que se revele<br />

aos olhos de todos o valor dos méritos<br />

e a abominação dos pecados,<br />

será necessário que todos os atos e<br />

tudo o que se passar relativo ao fim<br />

do mundo seja revestido da mais esplendorosa<br />

solenidade. Por quê?<br />

Porque a solenidade realça tudo: na<br />

alegria, leva-a ao seu apogeu; na severidade,<br />

esmaga e atormenta ainda<br />

mais quem deve ser torturado.<br />

Flávio Lourenço<br />

Diante de Deus<br />

ofendido e glorificado<br />

Dormição da Santíssima Virgem - Museu de Belas Artes, Valência<br />

9


Reflexões teológicas<br />

No dia do Juízo,<br />

sensação semelhante<br />

à de uma expedição<br />

à Antártida<br />

Flávio Lourenço<br />

Admitidas como hipóteses<br />

por Doutores e Santos,<br />

não devemos nos espantar<br />

diante destas cenas grandiosas<br />

que a Fé nos faz entrever,<br />

e que nos dão uma<br />

ideia do fim do mundo.<br />

Lembro-me de ter tido<br />

uma ideia sobre este assunto<br />

lendo numa revista chamada<br />

“Geographic Magazine”<br />

a história de uma expedição<br />

para o Polo Antártico,<br />

a qual passou por lugares<br />

que nunca, segundo tudo<br />

leva a crer, nenhum homem<br />

tinha estado.<br />

Ali encontraram a solidão<br />

da natureza. Tudo gelado,<br />

branco, na aparência<br />

sem vida. O branco é uma<br />

cor admirável em certas circunstâncias,<br />

mas horrível em outras;<br />

numa sala de operações de hospital,<br />

por exemplo. Uma superfície branca<br />

para a qual se olha e só há gelo a perder<br />

de vista, é desoladora.<br />

Certo dia, os que participavam da<br />

expedição olharam para o chão e viram<br />

uma camada de gelo transparente,<br />

através da qual vislumbraram<br />

cardumes enormes de camarões róseos<br />

que circulavam por debaixo naquele<br />

mar.<br />

Tive a impressão de que eles sozinhos,<br />

naquele lugar onde homem<br />

nenhum tinha pisado, deveriam se<br />

sentir como que andando na mão<br />

de Deus, porque aquilo estava intacto<br />

como quando Ele criou. Nenhum<br />

homem havia pecado ali, nem praticado<br />

atos de virtude. Naquele espaço<br />

de terra pairava apenas o olhar e<br />

a providência divina.<br />

O silêncio, a solidão, a noção de<br />

que a vida humana e até a vida ani-<br />

Inferno - Museu de Belas Artes, Valência<br />

mal não existem naquele lugar, causam,<br />

naturalmente uma impressão<br />

tremenda.<br />

Ora, sensação semelhante teremos<br />

no dia em que ressuscitarmos. Quando<br />

os últimos homens bons tiverem<br />

bebido a sua última gota de fel da taça<br />

desmedidamente grande, quando<br />

o último ato da História dos homens<br />

tiver terminado, chegará o momento<br />

no qual o Juiz divino virá para julgar.<br />

Um quadro representando<br />

o fim do mundo<br />

Há um quadro famoso que representa<br />

uma cena minutos antes de começar<br />

o fim do mundo: a terra desolada,<br />

um grupo pequeno de homens rezando<br />

em torno de um padre que está<br />

celebrando a Missa. No Céu, Deus,<br />

Nossa Senhora, os Anjos e os Bem-<br />

-aventurados, todos esperam a Missa<br />

concluir para encerrar a História.<br />

Eu acho a concepção<br />

magnífica. A Missa é a renovação<br />

incruenta do Santo<br />

Sacrifício do Calvário.<br />

Assim, é esplendoroso, é<br />

magnífico que a Providência<br />

espere a última Missa<br />

terminar para que a História<br />

do mundo seja declarada<br />

encerrada. Eu considero<br />

isto extraordinário!<br />

Em certo momento, os<br />

homens percebem que algo<br />

de grandioso vai se passar:<br />

a natureza inteira se desestabiliza,<br />

desengonça e uma<br />

enorme modificação se prepara<br />

em torno deles. Ventos<br />

estranhos sopram, não é<br />

apenas uma tempestade ou<br />

um terremoto, é algo mais<br />

sutil e imponderável.<br />

Eles sentem que presenças<br />

magníficas e impalpáveis<br />

percorrem como luzes<br />

misteriosas este mundo no<br />

qual o Sol já terá se obscurecido,<br />

a Lua já não se fará<br />

mais ver, as luzes do céu terão se<br />

desbotado.<br />

Ao clamor de uma<br />

voz prodigiosa<br />

De repente, dentro do silêncio geral,<br />

uma voz, cujo timbre se compara a um<br />

toque de trombeta admirável e potentíssimo,<br />

se faz ouvir: “Ressuscitai!” Segundo<br />

certos autores, esta ordem será<br />

dada por um Arcanjo. Outros sustentam<br />

que será o próprio Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo quem bradará, com doçuras<br />

inefáveis e severidades infinitas, reboando<br />

por toda parte e dizendo.<br />

Surpresas que<br />

fazem rejubilar<br />

Podemos conjecturar que, entre<br />

o momento da ressurreição e a vinda<br />

de Nosso Senhor Jesus Cristo, haja<br />

alguns instantes de agradáveis ou<br />

10


desagradáveis surpresas. Talvez, dois<br />

Bem-aventurados se cumprimentem,<br />

e um diga ao outro: “Salvei-me!”<br />

Ambos olham um terceiro e comprovam<br />

que foi condenado…<br />

E assim se darão sucessivos inesperados:<br />

“Aquele que eu imaginava tão<br />

bom, não se salvou…” Ou: “O outro<br />

por quem eu tinha tal desinteresse, superou-me<br />

em perfeição! Como fiquei<br />

pequeno em relação a ele. Meu Deus,<br />

que extraordinário! Ele está maravilhoso!<br />

Julgava-o um ignorante, mas<br />

vejo que se encontra em um patamar<br />

superior, contemplando a Deus e conhecendo-O<br />

insondavelmente mais do<br />

que eu. De fato, só tem importância<br />

saber sobre Ele e amá-Lo.”<br />

“Sobre aquele outro incide uma<br />

luz especial. Ele é dos prediletíssimos!<br />

Há nele um brilho incomparável.<br />

O que será? Ah... estou percebendo!<br />

Ele foi devotíssimo de Nossa<br />

Senhora e trabalhou para, de todas as<br />

formas e por todas as partes, difundir<br />

a devoção a Maria; Ela o tomou para<br />

o seu amor particular!<br />

“Como Nossa Senhora<br />

é a Medianeira de todas<br />

as Graças, quem está<br />

mais perto d’Ela está mais<br />

perto de Deus, pois não<br />

há outro modo de aproximar-se<br />

d’Ele a não ser por<br />

meio d’Ela. Logo, aquele<br />

que tanto A amou, está a<br />

uma proximidade indescritível<br />

de Deus!”<br />

O cortejo mais<br />

belo da História<br />

Em determinado momento,<br />

tudo se põe em<br />

ordem, os céus ficam cada<br />

vez mais esplendorosos,<br />

iluminados; a abóbada<br />

celeste, tão azul,<br />

começa a apresentar fissuras<br />

– as quais imagino<br />

em forma de ogivas –,<br />

de onde surgem luzes e<br />

começam a baixar cânticos. É chegada<br />

a hora escolhida pela Providência<br />

para o julgamento final. Desce, por<br />

fim, o Filho de Deus!<br />

Neste ponto, São Tomás de Aquino<br />

põe um problema interessantíssimo,<br />

rebatendo uma mentalidade errada<br />

que julga o cerimonial uma manifestação<br />

de frivolidade de espírito: a<br />

distância que há entre o Céu e a Terra<br />

é enorme. Ora, sabemos que o nosso<br />

Rei vem nos julgar. O que conviria,<br />

então? Que os homens fossem ao<br />

seu encontro e Ele aparecesse acompanhado<br />

de sua Mãe Santíssima e de<br />

seus Anjos? Ou, pelo contrário, conviria<br />

que O esperassem na Terra, reverentes,<br />

entusiasmados, transidos de<br />

devoção, mas ao mesmo tempo imobilizados<br />

pelo respeito? Deus descerá<br />

ou os homens subirão até Ele? São Tomás<br />

resolve o caso lindissimamente.<br />

Enquanto Nosso Senhor estiver<br />

baixando, o cortejo enorme dos justos,<br />

segundo a virtude que praticaram,<br />

começará também a se elevar;<br />

Juízo Universal - Catedral de Burgos<br />

e do chão, protestarão e se contorcerão<br />

os condenados.<br />

Como deve ser belo e inenarrável<br />

o encontro entre os justos ressurrectos<br />

e Nosso Senhor Jesus Cristo!<br />

Alguns dos homens que viverem<br />

no fim do mundo, presume-se que<br />

não passarão pela morte; aliás, imagino-os<br />

como sendo os mais devotos<br />

de Nossa Senhora que tenha havido<br />

ao longo da História. Tudo isto não é<br />

senão imaginação, mas pode-se conceber<br />

que tais homens estejam no<br />

centro deste cortejo, pois foram os<br />

que sofreram e beberam as últimas<br />

gotas de fel da História, choraram<br />

as últimas lágrimas que os olhos humanos<br />

eram chamados a chorar, deram<br />

os últimos gemidos que de peitos<br />

humanos deveriam se evolar para<br />

Deus. Levantam-se como heróis!<br />

Ora, eu ao menos não consigo<br />

imaginar qual seria a cerimônia deste<br />

encontro no Céu, como Nosso Senhor<br />

olharia para cada um e vice-<br />

-versa. Porque terminada a História<br />

do mundo, está concluída<br />

a História da salvação<br />

dos homens. Os<br />

tronos que os demônios<br />

deixaram vazios no Céu<br />

estarão preenchidos, a<br />

obra divina estará completa<br />

e o que Deus tinha<br />

em vista quando criou<br />

tudo, por fim, ter-se-á<br />

realizado.<br />

Daí por diante, Deus<br />

contemplará em paz<br />

a sua obra com aquela<br />

grandeza e majestade<br />

que a Bíblia nos diz,<br />

no Gênesis, que terminada<br />

a obra da Criação,<br />

no sétimo dia Deus descansou<br />

(cf. Gn 2, 3). Assim<br />

também Ele olhará<br />

o fim a História e, por<br />

assim dizer, começará o<br />

grande repouso d’Ele.<br />

Que festa! Que provas<br />

de amor! Que ma-<br />

Flávio Lourenço<br />

11


Reflexões teológicas<br />

Flávio Lourenço<br />

nifestações! Que sorrisos e que bênçãos<br />

de Nossa Senhora!<br />

Maria Santíssima e os homens-<br />

-lei estarão ao lado do Juiz<br />

Não basta sofrer muito para alguém<br />

ser premiado. É preciso ter sofrido<br />

com uma grande generosidade<br />

de alma. Ora, no Antigo Testamento,<br />

o profeta-rei gemeu de um<br />

gemido profético, prenunciando o<br />

Redentor: “Nada há de intacto nos<br />

meus ossos. Não há parte sã em minha<br />

carne” (Sl 37, 4.7).<br />

Machucaram-no inteiro! Ninguém<br />

jamais resplandeceu na generosidade<br />

do sofrimento como Ele; pois bem,<br />

este será o esplendor do Homem-<br />

-Deus no fim do mundo.<br />

E como Se apresentará Nossa Senhora?<br />

Ela é a Rainha dos Mártires,<br />

no entanto, mártir Ela não foi, porque<br />

Nosso Senhor quis provar seu amor para<br />

com Ela desta forma: Ele sofreu tudo,<br />

mas não permitiu que tocassem em<br />

sua Mãe! Como, então, Ela é a Rainha<br />

dos Mártires? Porque padeceu por nós,<br />

em sua alma, dores verdadeiramente<br />

inenarráveis, e numa alma como a<br />

d’Ela, tais dores supõem sofrimentos<br />

muito maiores que os corporais.<br />

Pois bem, nós veremos, talvez,<br />

através de seu peito virginal e materno,<br />

o seu Sapiencial e Imaculado Coração,<br />

cujas pulsações fazem recordar<br />

a dor sofrida no alto do Calvário,<br />

mas também as alegrias na Páscoa<br />

da Ressurreição.<br />

Por fim, Nosso Senhor descerá à<br />

Terra e, junto a Ele, estarão uns homens<br />

misteriosos sentados em tronos<br />

à sua direita e esquerda. Estes serão<br />

os cojuízes que São Tomás chama de<br />

homens-lei, pois sua presença lembra<br />

e serve de lei para os outros.<br />

Haverá um silêncio enorme, até<br />

os cânticos cessarão. Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo, depois de passar em revista<br />

as virtudes e os defeitos de todos,<br />

concluirá como Juiz Onipotente,<br />

Onisciente, desejoso de aplicar<br />

o seu decreto eterno. Manda vir para<br />

a sua direita os justos, a quem Ele<br />

amou, e os ímpios, manda-os para<br />

o Inferno! Assim o Juízo Universal<br />

completará o Juízo Particular.<br />

A Terra, um lugar<br />

de peregrinação<br />

Santas no Céu - Mosteiro de San Cugat, Espanha<br />

Organizar-se-á o cortejo ascensional<br />

rumo ao Céu e, finalmente, os<br />

Anjos conduzirão os justos para junto<br />

de Deus. E o que acontecerá com<br />

a Terra? Como, do Céu, os homens,<br />

os Anjos e o próprio Deus irão considerá-la?<br />

Ela será vista como um lugar<br />

de peregrinação.<br />

Imaginemos, por exemplo, que do<br />

alto de um avião, estivéssemos sobrevoando<br />

a Terra Santa, e um perito em<br />

história das Cruzadas ou em História<br />

Sagrada nos dissesse: “Estão vendo?<br />

Esse é o Monte Carmelo. Ali Elias recebeu<br />

a primeira profecia sobre Nossa<br />

Senhora. A nuvenzinha, que depois se<br />

tornou imensa e fez chover a água regeneradora,<br />

previa a Virgem Maria de<br />

quem nasceria o manancial de graças<br />

que é Nosso Senhor Jesus Cristo.”<br />

“Mais adiante está o lugar onde<br />

Elias matou os quatrocentos sacerdotes<br />

de Baal. Mais além, encontra-se o<br />

palácio do Rei Acab e da Rainha Jezabel,<br />

por cuja perseguição o profeta<br />

teve de fugir ao deserto. Ali foi a praia<br />

onde a baleia aportou e ejetou Jonas,<br />

que saiu lá de dentro cambaleando…”<br />

O suposto guia acentuaria, sobretudo,<br />

os passos do Divino Mestre: “Ali,<br />

Nosso Senhor disse tal passagem que<br />

consta no Evangelho, mais adiante, realizou<br />

tal cura. Aquele foi o Pretório<br />

de Pilatos, onde se proclamou o Ecce<br />

Homo e onde houve a flagelação. Ali o<br />

Redentor caiu a primeira<br />

vez, naquele outro lugar,<br />

a segunda; lá caiu pela<br />

terceira vez. O lugar exato<br />

onde Ele foi crucificado<br />

está ali…”<br />

“Mais adiante, Godofredo<br />

de Bouillon teve<br />

uma grande provação,<br />

a ponto de se pôr de joelhos,<br />

chorar e rezar. Mas<br />

empunhou a espada e foi<br />

para frente! Aquele é o<br />

itinerário dele, vejam!<br />

Esse foi o ponto da muralha<br />

de Jerusalém por<br />

onde ele entrou…”<br />

Assim veríamos toda<br />

história das Cruzadas:<br />

“Naquele ponto vocês<br />

12


Samuel Holanda<br />

Santo Elias - Catedral de Autun, França<br />

verão, no Egito, onde foi a prisão de<br />

São Luís IX. Daqui a poucos minutos<br />

estaremos voando sobre Túnis, e ali<br />

poderão ver onde São Luís morreu,<br />

deitado no chão, em sinal de humildade,<br />

com tifo, sofrendo e se recriminando<br />

a si mesmo, por se achar o culpado<br />

de a Cruzada não ter tido bom<br />

êxito. Mas os Anjos não pensavam<br />

como ele; apenas o Rei santo morreu,<br />

veio uma miríade celeste colher sua<br />

alma para levá-la ao Céu!”<br />

Esses lugares começam a brilhar a<br />

nossos olhos. Os Anjos cantam sinfonias<br />

e visitam constantemente estes<br />

locais, sem precisarem abster-se<br />

da visão beatífica. Como nós gostaríamos<br />

de ver tudo isto!<br />

A história do Inferno também continuará:<br />

os Anjos darão ordens às<br />

substâncias impuras, fétidas e desagradáveis<br />

que restarem sobre a Terra para<br />

serem lançadas no Inferno e assim<br />

atormentar ainda mais os réprobos.<br />

É a lata de lixo do mundo e da História.<br />

Vai tudo lá para dentro e se tampa<br />

aquela porta para todo<br />

o sempre. Acabou!<br />

Um incêndio purificador<br />

percorrerá toda<br />

a Terra e consumirá tudo<br />

quanto estiver vivo,<br />

segundo alguns teólogos.<br />

Outros, pelo contrário,<br />

admitem que<br />

pelo menos a natureza<br />

vegetal continuará.<br />

É uma coisa discutível.<br />

Eu tenho uma certa<br />

simpatia pela ideia de<br />

que a natureza vegetal<br />

continue, me parece<br />

mais razoável, embora<br />

seja uma opinião<br />

pessoal. Não há uma<br />

doutrina definida pela<br />

Igreja a este respeito.<br />

O Céu empíreo<br />

e suas eternas<br />

delícias<br />

Só isto acontecerá<br />

com os homens? A<br />

Doutrina Católica nos<br />

ensina aquilo que a Ciência<br />

também afirma:<br />

o corpo do homem<br />

tem de ocupar um lugar.<br />

Não há corpo nem<br />

matéria que subsista<br />

fora de um determinado<br />

local.<br />

Por outro lado, o<br />

corpo humano que foi<br />

instrumento para praticar<br />

a virtude deve estar<br />

inundado de bem-<br />

-estar, assim como a<br />

alma está inundada de<br />

alegria ao ver a Deus.<br />

Como é que o corpo<br />

do homem vai ter essa<br />

alegria?<br />

Há uma parte do<br />

Paraíso que é chamada<br />

Céu empíreo. Ali,<br />

todos os homens que<br />

se salvarem terão os corpos num<br />

bem-estar e numa alegria extraordinária,<br />

numa natureza fabulosa.<br />

De maneira que é um lugar físico e<br />

imenso.<br />

Segundo algumas revelações, o Céu<br />

empíreo é formado por lugares maravilhosos,<br />

palácios e cidades lindíssimas,<br />

todas feitas de pedras preciosas,<br />

com um ar magnífico; tudo capaz de<br />

inundar o homem de gáudio. E conforme<br />

o homem vai vendo coisas novas<br />

em Deus, o Céu empíreo vai fazendo<br />

um comentário para o corpo.<br />

Os Anjos, por sua vez, utilizando-se<br />

da matéria do Céu empíreo como um<br />

músico poderia servir-se de um instrumento<br />

para tocar belas melodias, produzirão<br />

sons, cores, aromas diversos,<br />

fazendo-se conhecer por este meio.<br />

Assim conversaremos com os Anjos<br />

nesse lugar iluminado de glória. v<br />

(Extraído de conferência de<br />

19/1/1983)<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1983<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

13


Eco fidelíssimo da Igreja<br />

Flávio Lourenço<br />

Realidade<br />

inevitável<br />

da morte<br />

Morte de Francisco I<br />

Igreja de Santiago,<br />

Amberes, Bélgica<br />

Nada tão incerto para o homem<br />

quanto o dia de sua morte; nada mais<br />

certo para ele do que a certeza de que<br />

morrerá. Na intenção de beneficiar<br />

seus filhos espirituais e conferir-lhes<br />

uma impostação sobrenatural acerca<br />

do assunto, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> expõe algumas<br />

verdades e fatos que envolvem este<br />

acontecimento misterioso e temível.<br />

14


Qual o proveito de se fazer uma<br />

reflexão sobre a morte? A utilidade,<br />

muitas pessoas negarão.<br />

Dirão que considerar tal assunto<br />

pode tornar os nervos tensos, produzir<br />

desequilíbrio nas almas, trazer<br />

tristeza e desassossego. E que, portanto,<br />

é inteiramente desaconselhável,<br />

ainda mais para pessoas jovens.<br />

Será bem verdade isto?<br />

Ilusão de se obter uma<br />

felicidade terrena<br />

Se assim o fosse, Deus não seria<br />

Deus ou, ao menos, teria cometido<br />

um erro. Porque Ele<br />

– que com sabedoria perfeita<br />

criou o universo de tal modo<br />

que o homem não se cansa<br />

de estudá-lo e de se encantar<br />

por ele –, quis colocar sinais da<br />

morte por toda a parte. Pôs a<br />

doença, a luta, o sofrimento.<br />

Em consequência do pecado<br />

original, o homem se depara<br />

com toda sorte de dificuldades.<br />

A todo momento ouvimos<br />

falar de pessoas que se<br />

suicidam, que preferem atirarse<br />

no abismo sombrio da morte<br />

a aguentar a vida, de tal maneira<br />

ela lhes é pesada.<br />

A existência humana se apresenta<br />

cheia de dor, tendendo,<br />

de fato, para a morte. Uma vida<br />

difícil e dura, a respeito da qual<br />

a educação moderna mente ao<br />

jovem e depois ao adulto e até<br />

ao velho, tanto quanto ela pode.<br />

O homem criado na atmosfera<br />

moderna é posto na ilusão<br />

de que a felicidade nesta Terra<br />

é uma coisa obtenível: cria-se<br />

o mito do indivíduo jeitoso e<br />

sortudo, que nasceu bem constituído,<br />

bem-dotado, que consegue<br />

por meio de jeitinhos<br />

ou jeitões o necessário para se<br />

tornar feliz.<br />

É a classe dos homens “vacinados”<br />

contra o infortúnio.<br />

A doença e a morte não os colhem, a<br />

pobreza não lhes arma ciladas; a eles<br />

a calúnia não dá punhaladas pelas<br />

costas, a incompreensão dos outros<br />

não os obriga a andar jardas dentro<br />

do isolamento e da melancolia. Nada<br />

lhes acontecerá, eles serão uns felizes.<br />

No remotíssimo tempo de minha<br />

infância, toda a atmosfera que cercava<br />

uma criança dava-lhe a ideia<br />

de um caminho para a felicidade: os<br />

quartos infantis eram empapelados<br />

com cores alegres, as camas tinham<br />

um laqueado claro e as mesinhas<br />

Anjo da Guarda - Catedral de Prato, Itália<br />

eram cobertas com tampos de vidro,<br />

por cima de tecidos ornados com flores<br />

e passarinhos. Havia quadrinhos<br />

representando meninos brincando<br />

numa natureza maravilhosa, revistas<br />

mostrando automóveis, aviões, castelos,<br />

passeios e diversões, e tudo parecia<br />

dizer à criança: “Serás feliz, serás<br />

feliz, serás feliz…!”<br />

Em certo momento, porém, começaram<br />

as surpresas desagradáveis.<br />

E essas foram caindo, na minha<br />

infância “rósea e azul-claro”, como<br />

tiros de bombarda!<br />

Flávio Lourenço<br />

Decreto da morte na<br />

ponta do termômetro<br />

Por ocasião de uma doença<br />

que me causava febres altas tive<br />

de ficar de cama, e li um livrinho<br />

muito ilustrado e bonitinho,<br />

contando a história de um<br />

menino de minha idade que havia<br />

morrido. Um anjo tomava a<br />

alma dele no hospital e levava-<br />

-a para o lugar onde ela ficaria<br />

para sempre: um céu meio pagão<br />

e estranho, e não o Céu definidamente<br />

verdadeiro, anunciado<br />

pela Igreja Católica.<br />

Esse menino, levado pelo<br />

anjo, sobrevoava a cidadezinha<br />

onde tinha nascido e a<br />

casa onde havia morado; via a<br />

própria mãe, o quarto com os<br />

brinquedos e um pequeno tanque<br />

com um patinho que havia<br />

sido dele; o cachorrinho do vizinho,<br />

o carrinho do padeiro e<br />

a árvore onde ele brincava, da<br />

qual ainda pendiam algumas<br />

frutas que ele não tivera tempo<br />

de colher… Enfim, todas<br />

as coisas da vida, das quais ele<br />

se destacava, iam ficando cada<br />

vez mais longe e ele partia para<br />

o desconhecido.<br />

A minha doença era tão insignificante<br />

que mamãe me<br />

deixou ler esse livro durante a<br />

convalescença.<br />

15


Eco fidelíssimo da Igreja<br />

Edgard Martins (CC3.0)<br />

to de Deus, pois eu sou uma pessoa<br />

insignificante, da qual Ele pode dispor<br />

como quiser! Isso está na ordem<br />

das coisas e, se Ele deseja que assim<br />

aconteça, tenho de me adaptar de<br />

qualquer maneira.”<br />

A febre continuava altíssima e<br />

eu me perguntava: “Então, vou para<br />

junto de Deus? É o que não sei…<br />

Sou bastante bom para ser acolhido<br />

por Ele? Como é isto? Para onde<br />

vou? Que apuro! Será que essa febre<br />

não desce?” Em certo momento<br />

a febre baixou. Esqueci-me do menino<br />

da história e a ideia da morte ficou<br />

de lado.<br />

Problemas que as crianças às vezes<br />

se põem: “Vale a pena viver, vale<br />

a pena ser como esses que estão aí?<br />

Por que viver e atravessar tudo isto?<br />

Não valeria a pena morrer?” Por esses<br />

problemas todos passam. Começa<br />

a vida e ela é uma batalha!<br />

Menino afogado<br />

no Rio Tietê<br />

Havia em São Paulo um rapaz de<br />

quinze ou dezesseis anos, a quem eu<br />

conhecia. Sendo bastante perito em<br />

natação, pertencia ao Clube Tietê,<br />

localizado à beira do rio de mesmo<br />

Clube de Regatas Tietê no início do século XX<br />

Mas eu tinha uma noção infantil<br />

de que, à medida que a febre subisse,<br />

ela poderia chegar a um ponto em<br />

que eu morreria. Então, eu me sentia<br />

a poucos passos da morte e observava<br />

o termômetro para ver se chegava<br />

a hora. Para mim, o decreto da<br />

morte estava na ponta do termômetro…<br />

São sustos da infância. Quando<br />

a febre subia a 38 ou 39, eu, pensando<br />

que as pessoas não aguentam<br />

mais de 41 graus, dizia: “Estou a dois<br />

passos, a dois graus… Vai acontecer<br />

comigo o que se deu com aquele<br />

menino! E se algum Anjo me leva,<br />

começa a sobrevoar a Alameda Barão<br />

de Limeira e eu vejo isto e aquilo…?”<br />

Isso para mim era lancinante! Antes<br />

de tudo pela ideia de deixar mamãe.<br />

Se me dissessem que ela iria<br />

comigo para o Céu, eu nem olhava<br />

mais para baixo, mas… e se ela não<br />

fosse? Como me arranjaria no Céu<br />

sem ela? A ideia da morte me causava<br />

medo.<br />

Era uma catástrofe e um desastre.<br />

Eu tinha enorme vontade de<br />

não morrer e ficava muito angustiado<br />

pensando no tal livrinho, mas<br />

sem a menor revolta ou inconformidade,<br />

pois pensava: “É um direinome,<br />

o qual era muito limpo naqueles<br />

remotos tempos.<br />

Certo dia, uma pessoa veio me<br />

dar uma notícia:<br />

— Você sabe que fulano morreu?<br />

Perguntei:<br />

— Mas, como?<br />

— Ele estava em perfeita saúde<br />

e, no sábado à tarde, foi nadar no<br />

Clube Tietê. Subiu a um trampolim,<br />

brincando com os amigos, lançou-se<br />

de cima e afundou diretamente. Todos<br />

pensaram que havia mergulhado<br />

em boa forma e, como demorava em<br />

sair, houve brincadeiras gerais: “Que<br />

fôlego ele tem!”<br />

Mas, ao cabo de alguns minutos,<br />

uma vez que não aparecia, avisaram<br />

a direção do clube. Mandaram então<br />

nadadores procurarem pelo rapaz,<br />

e logo ele foi trazido à tona: era um<br />

cadáver.<br />

Talvez tenha batido com a cabeça<br />

no fundo do rio. A família notou que<br />

ele tardava a chegar para o jantar e,<br />

de repente, recebeu um telefonema:<br />

ele morreu! O corpo foi levado a um<br />

necrotério para ser examinado e, assim,<br />

verificar a causa da sua morte.<br />

Exclamei:<br />

— Então, os jovens também morrem!<br />

— Oh, sim! Como qualquer um…<br />

Meu interlocutor, pessoa de bastante<br />

idade, deu um bocejo e um<br />

olhar malicioso, como quem dizia:<br />

“Você pensa que a morte não o atingirá?<br />

Ela está mais perto de mim,<br />

mas você também será alcançado pelas<br />

garras dela, de um momento para<br />

outro…”<br />

Pensei: “A ideia de que eu posso<br />

morrer a qualquer instante consola<br />

esse homem, o qual sempre afirma<br />

querer-me bem… Percebo que<br />

ele tem alegria em olhar para mim e<br />

notar que, na minha curta idade, já<br />

estou sentindo o roçar dos dedos da<br />

morte!”<br />

Por relações de sociedade, tive de<br />

comparecer ao velório. Vi o jovem<br />

esticado, com o queixo preso por um<br />

16


pano e os pés amarrados<br />

por uma fita. O lustre<br />

da sala estava coberto<br />

com um crepe preto e<br />

a mãe dele chorava. Refleti:<br />

“E se isso acontecesse<br />

comigo…? Se fosse<br />

minha mãe a que estivesse<br />

aqui, chorando?<br />

Eu posso morrer!”<br />

Flávio Lourenço<br />

Morte de um<br />

amigo<br />

Pouco tempo depois,<br />

num período de férias,<br />

recebi a notícia de que<br />

um outro menino morrera<br />

de modo trágico.<br />

Eu estava brincando sozinho no<br />

jardim quando vi minha mãe descer<br />

as escadas externas da casa e dirigir-<br />

-se para mim com olhar de piedade,<br />

bondade e muita pena, querendo me<br />

agradar especialmente. Fui logo para<br />

junto dela e, então, com o cuidado<br />

de quem iria contar-me algo que poderia<br />

me contristar, disse-me:<br />

— Meu filho, você vai passar por<br />

uma situação que ainda não conhece.<br />

Permaneci em silêncio e ela continuou:<br />

— Sabe quem está mal à morte?<br />

Pensei tratar-se de alguém da geração<br />

dela e disse, com certa indiferença:<br />

— Não.<br />

— Lembra-se de tal menino assim,<br />

seu amigo?<br />

Era um colega do São Luís, de minha<br />

idade, aproximadamente.<br />

Respondi:<br />

— Lembro-me.<br />

— Ele está desenganado pelos<br />

médicos e vai morrer.<br />

— Mas, como? O que aconteceu?<br />

— Ele brincava em casa, com vários<br />

amigos entre os quais um primo, um<br />

tanto desequilibrado. A brincadeira se<br />

transformou em briga e esse primo, tomando<br />

uma tesourinha de unhas que<br />

encontrara sobre um móvel, investiu<br />

Os afogados - Museu de Belas Artes de Arras, França<br />

contra ele e cravou-lhe uma das pontas<br />

perto da arcada de um dos olhos.<br />

Apesar de ser muito profundo, esse ferimento<br />

não seria nada, mas acontece<br />

que, evidentemente, a tesoura não estava<br />

desinfetada e o resultado foi uma<br />

infecção pavorosa, cujo alastramento<br />

os remédios não puderam conter. Você<br />

reze por ele.<br />

Naquele tempo os antibióticos<br />

ainda não estavam tão desenvolvidos.<br />

Os médicos davam o menino<br />

por perdido, pois o organismo dele<br />

estava reagindo mal, com febre alta<br />

e delírios…<br />

Mamãe também me disse:<br />

— É a primeira vez que morre<br />

uma pessoa próxima de você. Então,<br />

é preciso que se prepare para sentir<br />

os reflexos da morte.<br />

Ela me falava com muito carinho,<br />

mas, naturalmente, a ideia da morte<br />

me impressionou e vieram-me ao espírito<br />

as seguintes perguntas: “E eu,<br />

que por todo lugar encontro antipatias,<br />

não posso de repente receber<br />

uma tesourada em cada olho? O que<br />

pode me acontecer? Morrer! Que<br />

horror! A morte pode me agarrar de<br />

um momento para outro! E aonde<br />

me levará?!”<br />

Quando nos esquecemos da morte,<br />

de vez em quando ela faz soar<br />

uma clarinada aos nossos ouvidos.<br />

Clarinada fúnebre que parece mais<br />

um riso de caveira do que um toque<br />

de clarim, como quem diz: “Eu estou<br />

aqui. Se eu não te pegar agora, fica<br />

conhecendo como é minha cara e como<br />

é o meu riso, porque mais tarde<br />

eu te pego. Um dia… ahahah!… eu<br />

te pegarei!”<br />

É incontestável! Um dia ela nos<br />

pegará.<br />

Na doença de crupe,<br />

primeira visita da morte<br />

Eu recebi, por enquanto, três visitas<br />

da morte.<br />

Na primeira eu tinha nove, dez<br />

anos, e ela ainda não visitara alguém<br />

mais próximo para eu ver outrem falecer;<br />

ela visitou-me a mim. Tive, então,<br />

uma primeira ideia de como é o<br />

estado do homem que vai morrer.<br />

Certa manhã, lembro-me de ter<br />

despertado fraquíssimo, quase sem<br />

forças para sentar-me na cama. Imediatamente<br />

chamei mamãe e, quando<br />

ela veio, eu disse com a voz embargada:<br />

— Meu bem, não me levanto agora,<br />

pois estou me sentindo muito<br />

mal.<br />

— O que você sente, meu filho?<br />

17


Eco fidelíssimo da Igreja<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

— Uma dor de garganta<br />

horrorosa.<br />

Ela fez-me abrir a boca e<br />

notou uma inflamação medonha<br />

em minha garganta, mas<br />

não me disse nada. Apenas<br />

mandou alguém me lavar e<br />

conduzir-me de volta à cama.<br />

Uma criada veio depois trazer-me<br />

o café da manhã, pois,<br />

graças a Deus, o apetite nunca<br />

me faltou e, mesmo nessa<br />

situação, para comer eu estava<br />

a postos! Mas sentia-me<br />

tão mal que quase me arrastava…<br />

Mamãe, então, fez trazer<br />

o brinquedo das “grandes<br />

circunstâncias” para me distrair<br />

e colocou-o sobre a minha<br />

cama: a grande caixa representando<br />

uma aldeia francesa<br />

para ser composta pelas<br />

crianças. E disse:<br />

— Vá brincando aqui enquanto<br />

eu chamo o médico.<br />

Sentei-me e já não estava<br />

pensando muito na doença,<br />

embora eu respirasse miseravelmente<br />

mal. Em determinado<br />

momento, tive a sensação de<br />

um vazio que me invadia; percebi estar,<br />

de repente, privado da força necessária<br />

para permanecer sentado e tentei<br />

de todo jeito segurar-me em algo para<br />

não cair de costas e não me entregar à<br />

doença. Agarrei-me às grades da cama<br />

nos dois lados, julgando poder resistir,<br />

mas senti que os meus braços também<br />

se deixavam tomar por esse misterioso<br />

vazio. Minhas mãos se abriram e eu caí<br />

sobre o travesseiro, gritando:<br />

— Mamãe! Mamãe!<br />

Ela veio correndo e daí a pouco<br />

estava o <strong>Dr</strong>. Murtinho Nobre em<br />

meu quarto. Examinou-me, não comentou<br />

nada diante de mim, saiu do<br />

quarto com mamãe e explicou:<br />

— Dona Lucilia, o <strong>Plinio</strong> está com<br />

crupe – ou angina diftérica – e pode<br />

morrer…<br />

Tratava-se de uma infecção frequente<br />

em crianças, a qual faz a garganta<br />

inchar de tal maneira que acaba<br />

obstruindo a respiração e o doente<br />

morre por asfixia. Minha mãe ficou<br />

transida de susto! A sua primeira providência<br />

foi manter-me deitado na cama<br />

por tempo indefinido e a segunda<br />

consistiu em proibir as outras crianças<br />

da família de entrarem no meu quarto,<br />

pois a doença era contagiosa e ameaçava<br />

propagar-se entre elas.<br />

Mamãe poderia perfeitamente<br />

contratar uma enfermeira para tratar<br />

de mim, pois, sendo muito doente<br />

do fígado, se ela contraísse a<br />

crupe certamente morreria; mas ela<br />

nem quis saber de enfermeira, do começo<br />

até o fim do tratamento!<br />

Eu ouvi no quarto contíguo uma<br />

discussão muito viva entre mamãe e<br />

minhas tias, a respeito do meu estado<br />

de saúde. Naquele tempo as famílias<br />

eram muito unidas e, quando al-<br />

guém adoecia, compareciam<br />

as irmãs, as cunhadas e outros<br />

membros da família. Uma das<br />

minhas tias tinha um cunhado<br />

– que, aliás, morreu quando<br />

eu era ainda pequeno – professor<br />

na Faculdade de Medicina<br />

e ótimo otorrino. Ela então<br />

disse:<br />

— Olhe, a opinião de meu<br />

cunhado é que o <strong>Plinio</strong> tem<br />

de ser operado!<br />

Mamãe, que não desejava<br />

a operação, perguntou:<br />

— Por quê?<br />

— Esse Murtinho é um<br />

charlatão, pois a homeopatia<br />

é charlatanismo e seria ridículo<br />

querer curar o <strong>Plinio</strong> por<br />

meio dela. Se você não chamar<br />

o meu cunhado, o seu<br />

menino vai morrer!<br />

— Vou ver. Agradeça ao<br />

seu cunhado pela opinião e<br />

pela cortesia.<br />

Ouvindo a conversa delas,<br />

eu pensava: “Não quero essa<br />

operação dolorida, mas… e se<br />

eu morrer de repente? Não vale<br />

mais a pena aguentar a dor?<br />

Vamos ver o que eles resolvem…”<br />

E permanecia na expectativa de<br />

ver entrar alguém com um boticão<br />

para me cortar a garganta… Mamãe<br />

hesitou, pois percebeu o fundamento<br />

do raciocínio da minha tia: para<br />

tratar uma dorzinha de garganta a<br />

homeopatia estava bem, mas diante<br />

de uma doença violentíssima, que<br />

podia matar-me de uma hora para<br />

outra, não parecia melhor chamar<br />

um médico que resolvesse o caso<br />

pela cirurgia? Certamente rezou e<br />

depois telefonou ao médico, dizendo:<br />

— <strong>Dr</strong>. Murtinho, eu tenho muito<br />

medo e confesso com franqueza:<br />

embora eu deposite no senhor e na<br />

homeopatia a confiança que o senhor<br />

conhece, está em jogo a vida<br />

de meu filho. Estou sofrendo toda<br />

a pressão da família para chamar o<br />

18


médico alopata. O que o senhor me<br />

diz a esse respeito?<br />

— A senhora dê ao <strong>Plinio</strong> tais medicamentos<br />

e não se assuste: a febre<br />

ainda vai subir e, se o remédio fizer<br />

efeito, ele, em certo momento, expelirá<br />

da garganta uma membrana infeccionada<br />

e estará curado. Pouco<br />

antes das três horas da tarde, a senhora<br />

esteja com uma toalha no colo<br />

para receber essa membrana.<br />

Depois mande imediatamente uma<br />

das criadas levar esse pano à horta e<br />

enterrá-lo bem fundo. É necessário<br />

ter o buraco já pronto, pois trata-se de<br />

algo muito contagioso e, se a senhora<br />

o puser em qualquer outro lugar da<br />

casa, contaminará alguém! Se até as<br />

três horas ele não expelir a membrana,<br />

a senhora pode chamar o médico<br />

alopata que desejar. Este fará uma<br />

operação doloridíssima e perigosa<br />

na garganta do menino e não é<br />

garantido que ele se salve. A senhora<br />

é mãe dele e fará o que desejar.<br />

Eu lhe sugiro esperar até<br />

essa hora.<br />

Ela, então, mandou abrir<br />

uma espécie de pequeno “túmulo”<br />

para esse efeito no quintal da<br />

casa, entre as couves e os pés de<br />

milho. Tudo isso aconteceu de manhã;<br />

eu não ouvira a conversa, mas<br />

apenas percebi que mamãe resolvera<br />

tratar-me pela homeopatia. Ela<br />

entrava no quarto andando na ponta<br />

dos pés, com um sorriso de afeto,<br />

tendo um copo na mão e dizendo:<br />

— Meu filhinho, chegou a hora<br />

de tomar o remédio.<br />

E começava, então, a dar-me certos<br />

medicamentos em gotinhas e pequenas<br />

pastilhas, um dos quais, recordo,<br />

chamado tarantula cubensis<br />

– ao que parece, extraído de alguma<br />

aranha – e eu pensava: “Mas isto<br />

aqui é tão insignificante que nem<br />

é remédio! Eu vou piorar cada vez<br />

mais!” Entretanto, como eu depositava<br />

em mamãe uma confiança total,<br />

concluía: “Bom, se ela quer, vou tomá-lo!”<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Ela sabia que eu sentia dor ao ingerir,<br />

mas fazia aquilo entrar na minha<br />

garganta de tal modo que a suavidade<br />

de seu trato compensava o<br />

meu sofrimento físico. Sempre observador,<br />

apesar da febre, da dificuldade<br />

de engolir e da fraqueza levada até a<br />

evanescência, eu não deixava de sentir<br />

a atitude dela: a benquerença, a<br />

compaixão e a pena, pois minha aflição<br />

era assumida por ela inteiramente,<br />

dando-me a entender o seguinte:<br />

“Vamos atravessar isto juntos.” Ela<br />

sofreu muito mais do que eu, na previsão<br />

do que poderia acontecer.<br />

Tanto quanto isso possa ser explícito<br />

na mente de uma criança, em<br />

que as analogias são ao mesmo tempo<br />

vivazes e imprecisas, eu pensava<br />

confusamente: “Ela é para mim o<br />

que essa água fresca está sendo para<br />

a minha doença: um refrigério. Eu<br />

me sinto inteiramente refrigerado<br />

na companhia dela. Se mamãe for a<br />

minha advogada no juízo de Deus,<br />

estou arranjado!”<br />

Terrível sensação de morte<br />

O médico me encorajava a comer<br />

e a dormir o mais possível, para meu<br />

organismo resistir; mas eu acordei<br />

da sesta pior do que nunca! Comecei<br />

então a mostrar os sintomas de uma<br />

situação grave: não tinha coragem<br />

de me mexer, não havia posição em<br />

que me acomodasse e, às vezes, nem<br />

sabia mais quem eu era… Talvez fossem<br />

os temíveis 41 graus daquela febre<br />

que se apoderava de mim.<br />

Aproximadamente às três horas<br />

da tarde, perdi o contato com o<br />

mundo exterior e parecia-me haver<br />

caído no caos. Então tive a sensação<br />

da morte: comecei a espernear pela<br />

impossibilidade de respirar, com estertores<br />

em todo o corpo e tendo a<br />

ideia de que o fim havia chegado.<br />

Quis falar e gritar por mamãe,<br />

mas não consegui. Ela, apavorada,<br />

permanecia perto de mim.<br />

Em certo momento, dei sinais<br />

de querer expelir alguma<br />

coisa e ejetei, então, a tal membrana<br />

numa toalha de rosto colocada<br />

sobre o colo de mamãe.<br />

Ela ficou contentíssima!<br />

A criada jogou a toalha no local<br />

indicado e cobriu-a com terra,<br />

para os micróbios lá se arranjarem<br />

<strong>Dr</strong>. Antonio Murtinho<br />

de Sousa Nobre<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

19


Eco fidelíssimo da Igreja<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

como pudessem! Graças a Deus,<br />

nem mamãe nem ela foram contagiadas<br />

em nada.<br />

Depois de ter ajudado a me recompor<br />

um tanto, mamãe telefonou<br />

ao médico:<br />

— <strong>Dr</strong>. Murtinho!<br />

— É Dona Lucilia, não é?<br />

— Sim!<br />

— Não precisa dizer mais nada,<br />

pois a sua voz alegre já me diz tudo:<br />

a senhora está contente porque<br />

o <strong>Plinio</strong> expeliu a membrana. Agora<br />

não há mais perigo. Conserve o menino<br />

na cama por mais dois ou três<br />

dias, vá alimentando-o e o assunto<br />

está resolvido.<br />

Muito lentamente, eu senti a vida<br />

voltando: olhava para os bordos da<br />

cama, comecei a me mover, mas ainda<br />

não conseguia me sentar. Nem de<br />

longe pensava na caixa com a minha<br />

aldeia francesa! Como era fundo o<br />

“poço” no qual eu havia entrado!<br />

Que coisa terrível! À noite, já me<br />

encontrava melhor e muito alegre,<br />

pois não iria daquela vez para o Céu;<br />

pelo contrário, continuava com mamãe!<br />

No terceiro dia, já estava restabelecido<br />

e em liberdade.<br />

Quadro grave, crise<br />

de diabetes<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na década de 1960<br />

Joguei-me na batalha da vida e<br />

não pensei mais na possibilidade de<br />

morrer. Quando eu tinha 59 anos,<br />

entretanto, a morte visitou-me mais<br />

uma vez…<br />

Era o ano de 1967. Eu fui sentindo<br />

a desordem invadir meu organismo,<br />

a febre que subia, mas sentia<br />

também certa resistência; dentro<br />

de mim estava uma luta intensa… os<br />

médicos examinaram-me e diagnosticaram<br />

imediatamente um quadro<br />

grave de diabetes, com a glicose cinco<br />

vezes acima do normal.<br />

Resolveram chamar um cirurgião<br />

de certa fama, perito em pé diabético:<br />

<strong>Dr</strong>. Abid Bouabci. Depois de<br />

examinar-me, ele me disse:<br />

— Doutor <strong>Plinio</strong>, é necessidade<br />

urgente uma intervenção cirúrgica<br />

no hospital.<br />

E eu estava tão enfraquecido e<br />

tão desordenado, que eu não imaginei<br />

o que é que pudesse ser. E disse:<br />

— Bem, então vamos ao hospital.<br />

Dirigi-me ao Hospital Sírio Libanês,<br />

fui conduzido à sala de opera-<br />

ções; dormi, e quando acordei, estava<br />

no quarto, sentindo-me aliviado,<br />

mas ao mesmo tempo percebendo<br />

que a situação era séria e o resultado<br />

incerto. A cada momento passava<br />

um médico ou um enfermeiro para<br />

certificar como eu estava. Só dias depois<br />

soube do ocorrido: tinham amputado<br />

quatro artelhos.<br />

Com o passar do tempo recuperei-me,<br />

estou vivo e desde então tenho<br />

trabalhado bem. No entanto,<br />

sei que depois da operação uma parte<br />

de meu ser já caiu na morte; vejo<br />

também que pelo progresso da idade<br />

a morte acerca-se de mim. Assim<br />

é a vida!<br />

Como uma ave de rapina…<br />

No início do ano de 1975, depois<br />

de ter uma última conversa com um<br />

membro do Grupo, tomei um lindo<br />

automóvel Mercedes-Benz de cor<br />

bordeaux.<br />

Sentei-me no banco dianteiro e tive<br />

um estranho pressentimento: “De<br />

repente há uma trombada e eu morro<br />

por estar aqui na frente… Vou<br />

dormir e, quem sabe se acordarei<br />

ferido ou, talvez, diante do juízo de<br />

Deus?”<br />

Mas depois pensei: “Não se deve<br />

dar importância a essas impressões!”<br />

Sentei-me, rezei e adormeci.<br />

Quando acordei, estava num hospital,<br />

depois de um terrível desastre.<br />

Muitos veículos passaram pelo local<br />

do acidente, mas ninguém se ofereceu<br />

para socorrer-me. Eu estava privado<br />

dos sentidos, com um trauma<br />

medonho na cabeça, o qual privava-<br />

-me da noção íntegra e clara da realidade;<br />

não sabia o que tinha acontecido,<br />

padecia tremendas dores, sentia-me<br />

atordoado, fora de mim!<br />

Soube depois que a uma das pessoas<br />

que passaram por lá pediu-se<br />

ajuda, e ela fez o comentário – quero<br />

supor que não me conhecia: “Deixem<br />

este velhinho. Ele já está praticamente<br />

morto e vocês estão tomando<br />

trabalho para salvá-lo. Chamem<br />

20


Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Automóvel de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

após o desastre em 3<br />

de fevereiro de 1975<br />

te morta na rua; outros terão estado<br />

mal à morte e ela quiçá terá passado<br />

seus “dedos” frios pela fronte.<br />

Por mais jovens que sejam, isto<br />

é assim!<br />

Ora, por que Deus dispôs que a<br />

morte se nos apresentasse deste modo?<br />

Teria Ele feito apenas para nos<br />

castigar? Mas castigar pelo quê?<br />

Tomemos uma criança de seus<br />

seis, sete, oito, dez anos, como era<br />

eu quando tive crupe. Tenho a certeza<br />

de não haver cometido nenhum<br />

pecado mortal até então. Assim,<br />

a troco do que um castigo daqueles?<br />

Há uma resposta que satisfaz<br />

completamente e tem sua raiz na<br />

própria natureza humana. Todos os<br />

homens morrem. Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo, Homem-Deus, morreu.<br />

Nossa Senhora – a Virgem Imaculada!<br />

– concebida sem pecado original,<br />

quis passar pelas dores da morte.<br />

Por que então eu não hei de morrer?<br />

Se há algo de que estou certo é<br />

que morrerei.<br />

Alguém dirá: “Mas Elias, que foi<br />

arrebatado num carro de fogo, não<br />

escapou da morte?” Não! Ele vive<br />

há três mil anos, presumivelmente<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

uma empresa funerária, que ela resolve<br />

o caso!”<br />

Uma das mais antigas recordações<br />

que tenho desse fato é de ser<br />

transportado do Hospital de Jundiaí<br />

ao Hospital Santa Catarina, em São<br />

Paulo.<br />

É terrível a impressão que temos<br />

quando nos esfregamos na morte.<br />

Ela desaba sobre nós inopinadamente,<br />

como um abutre e, de repente,<br />

nos colhe! É como uma ave de rapina<br />

que começa a esvoaçar e lentamente<br />

vem descendo sobre nós,<br />

cuja bicada nos liquida. Nós a vemos<br />

aproximar-se… “morremos” mil vezes<br />

com medo de morrer, e a “ave”<br />

sobe de novo. Quando volta a baixar,<br />

não sabemos o que escolher: que ela<br />

acabe com esta tortura ou sobrevoe<br />

novamente e tenhamos mais uns meses,<br />

um ano de vida… É este o tormento<br />

em que se encontra o homem<br />

nesta Terra.<br />

Única certeza: todos<br />

morreremos<br />

Eu quis fazer essas descrições<br />

porque sei que muitos rasparam pela<br />

morte; perderam pai, mãe, irmão,<br />

parentes. Quase todos já perderam<br />

colegas, amigos. Alguns viram gen-<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante o período<br />

de sua convalescença,<br />

após o desastre de 3<br />

de fevereiro de 1975<br />

ao lado de Enoc. No entanto, ele há<br />

de morrer. Apenas a espera dele é<br />

mais longa do que a nossa, mas muito<br />

mais feliz, porque ele está confirmado<br />

em graça e, morrendo, tem a<br />

certeza apaziguadora de ir para o<br />

Céu! Mas, aquela sombra o acompanha:<br />

um dia morrerá!<br />

A morte, maior moralizadora<br />

para o homem<br />

Todos os homens sabem que podem<br />

vir a falecer a qualquer mo-<br />

21


Eco fidelíssimo da Igreja<br />

Flávio Lourenço<br />

mento, muitos conhecem pela Doutrina<br />

Católica e acreditam que podem<br />

condenar-se ao Inferno e, apesar<br />

disso, não mudam de vida. Quanta<br />

gente poderia converter-se pensando<br />

na morte!<br />

São Francisco de Borja era um<br />

Grande de Espanha. Ele era nobre,<br />

Duque de Gândia, lugar no qual era<br />

considerado como um pequeno rei.<br />

Era um personagem muito importante<br />

da corte do Imperador Carlos<br />

V, Rei da Espanha, e tinha muito<br />

boa amizade com a Imperatriz Isabel,<br />

primeira-dama da Cristandade<br />

como o Imperador do Sacro Império<br />

Romano Alemão era o primeiro<br />

gentil-homem da Cristandade.<br />

De repente, São Francisco recebe<br />

a notícia de que a Imperatriz havia<br />

morrido. Ele, como fidalgo, tinha<br />

funções a desempenhar nas exéquias;<br />

pôs-se de luto e foi prestar homenagens<br />

à falecida.<br />

Vendo a Imperatriz deitada, morta,<br />

percebeu a impotência daquela a<br />

O avaro e a morte - Museu Quiñones<br />

de León, Vigo, Espanha<br />

quem ele, há pouco, fazia<br />

reverências no fastígio<br />

da grandeza. Resultado,<br />

ele compreendeu<br />

de tal maneira<br />

que todas as coisas do<br />

mundo eram vãs, que<br />

se converteu, abandonou<br />

tudo e entrou para<br />

a Companhia de Jesus,<br />

sendo um dos grandes<br />

Santos desta Ordem.<br />

Ele foi o terceiro sucessor<br />

de Santo Inácio, tão<br />

completa foi a sua conversão.<br />

Esse é o bem que a<br />

morte fez a tantos homens<br />

ao longo da História.<br />

Deus quis tornar presentes<br />

para nós algumas<br />

grandes verdades. Umas<br />

são as que nos enchem<br />

de gáudio: o Céu, a visão<br />

de Deus. Outras são<br />

verdades terríveis que<br />

nos enchem de pânico: a<br />

morte e o Inferno.<br />

A maior parte dos<br />

homens não são sensíveis<br />

à pregação das verdades<br />

celestes, às grandes<br />

esperanças que nos<br />

aguardam; eles são sensíveis<br />

ao terror da morte,<br />

do Inferno. O número<br />

de almas condenadas<br />

seria talvez muito<br />

maior se não fosse o<br />

espetáculo da morte. A<br />

morte é a maior moralizadora.<br />

Quem tem a certeza<br />

de que dormirá hoje<br />

no horário de costume?<br />

Qualquer coisa pode<br />

suceder: está andando<br />

de automóvel para casa,<br />

é um disparo de um<br />

revólver na mão de um<br />

sujeito qualquer que o<br />

Inferno - Museus Reais de Belas Artes, Bruxelas<br />

atinge, e ele cai morto, e não teve<br />

tempo de nada.<br />

Como a morte faz bem! Como ela<br />

é amiga e como conduz para a salvação!<br />

“Um beijo vale bem<br />

o Inferno!”<br />

Há homens que, paradoxalmente,<br />

perderam o medo da morte. Pecam<br />

livremente. Até quando estão desenganados<br />

pelos médicos, ainda enfrentam<br />

a morte pecando e blasfemando.<br />

Por quê? São filhos do Inferno!<br />

Santo Afonso Maria de Ligório<br />

conta, num de seus livros, um caso<br />

acontecido nas bandas onde ele viveu,<br />

pelo Sul da Itália, o antigo Reino<br />

de Nápoles.<br />

Um padre foi atender um homem<br />

que estava em articulo mortis. Conforme<br />

manda a Igreja, antes de o sacerdote<br />

dar a absolvição, exigiu do<br />

moribundo que despedisse sua concubina<br />

e que esta saísse da casa com<br />

Flávio Lourenço<br />

22


Arquivo <strong>Revista</strong><br />

tudo quanto lhe pertencesse. Ela,<br />

obrigada, saiu, e o padre, pôde absolvê-lo.<br />

Ora, o próprio padre contou que o<br />

moribundo não encontrou nada melhor<br />

para fazer do que mandar chamar<br />

novamente a concubina para casa.<br />

O homem, agonizando, ao vê-la,<br />

chamou-a : “Venha cá e me dê um<br />

beijo! Um beijo vale bem o Inferno!”<br />

É assim a maldade humana… Por<br />

isso, faz um bem extraordinário pensar<br />

a respeito dessas verdades.<br />

“Clericorum sors<br />

subitanea mors”<br />

Assisti a muitas mortes e tive a preocupação<br />

de aproveitá-las para minha<br />

vida espiritual. Lembrem-se também<br />

das mortes que presenciaram. E<br />

quando a tentação lhes induzir ao pecado,<br />

pensem: “Eu posso cair morto<br />

de um momento para outro.”<br />

Ninguém morre sem que tenha sido<br />

da vontade de Deus. Nosso Senhor<br />

disse no Evangelho que nenhum<br />

pássaro morre, nem um fio<br />

de cabelo cai de nossa cabeça, sem<br />

que Ele o tenha consentido. Se com<br />

um mísero passarinho é assim, tanto<br />

mais com um homem.<br />

Nós não morreremos a não ser<br />

quando Deus determinar, no momento<br />

em que Ele julgue que nossas<br />

contas estão encerradas.<br />

Às vezes, quando uma pessoa<br />

muito eleita peca, Deus pode intervir<br />

de um momento para outro. Acabou-se!<br />

Tira-lhe a vida repentinamente<br />

como quem diz: “Já fiz tanto,<br />

tanto, tanto por ti… tu pecaste<br />

de novo. Encerradas as contas! Vem<br />

prestá-las aqui!”<br />

E o homem, que é tão fraco, morre<br />

por uma causa mínima. De repente,<br />

ele está passeando no jardim,<br />

uma aranha o pica. Ele está picado<br />

de morte. O médico não percebe,<br />

trata de outra coisa; dali a 24 horas<br />

ele está na cova.<br />

Assim é o homem… E assim são,<br />

às vezes, as contas de Deus.<br />

Eu termino mencionando uma<br />

frase latina: “Clericorum sors subitanea<br />

mors: a sorte dos clérigos é a<br />

morte repentina”. Parece que a opinião<br />

geral confirma isso. Os padres<br />

morrem de repente. Não será, muitas<br />

vezes, porque o padre abusou,<br />

abusou?<br />

Se assim é com um sacerdote, por<br />

que não será com aqueles que a Santíssima<br />

Virgem chama tão especialmente<br />

para servi-La? Ela, que solicitamente<br />

escolheu-nos dos lugares mais<br />

inopinados para trazer-nos amorosamente<br />

para junto d’Ela? Se o indivíduo<br />

leva o pecado a um certo ponto,<br />

pode ser que Nossa Senhora diga em<br />

dado momento: “Acabou-se!”<br />

Que desafio tremendo nós pecarmos<br />

depois de termos recebido tanto.<br />

Que horror! E como é salutar<br />

pensar nisso!<br />

Temor, caminho para o amor<br />

Alguém me dirá: “Mas, Doutor<br />

<strong>Plinio</strong>, eu fico perturbado.”<br />

Eu respondo: “Eu prefiro, meu<br />

filho, que você se perturbe agora<br />

na vida e salve sua alma, a que você<br />

leve uma vida tranquila e depois<br />

se perca.”<br />

Um conhecido disse-me numa<br />

ocasião: “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, por que o senhor<br />

em vez de procurar encaminhar<br />

as almas pela via do temor, não<br />

procura encaminhá-las pela via do<br />

amor? Fale da bondade de Deus, do<br />

Céu que espera todos os homens…”<br />

Há casos em que isso é assim, porque<br />

Deus tem suas vias. No entanto,<br />

fico na dúvida de que esta seja a regra<br />

geral para os homens deste século.<br />

Quiçá, em geral, em todas as épocas<br />

da História, o princípio não seja<br />

aquele que São Bento pôs no início<br />

dos estatutos da Ordem beneditina,<br />

uma frase da Escritura: “Vinde,<br />

filhos, e eu vos ensinarei o temor de<br />

Deus”?<br />

O temor é o caminho para o<br />

amor. Há um grandíssimo número<br />

de pessoas que não começam a amar<br />

a não ser depois de terem começado<br />

a temer.<br />

Portanto, eu que já fiz várias conferências<br />

sobre o Céu, inclusive o<br />

Céu empíreo, matéria verdadeiramente<br />

maravilhosa, faço esta com a<br />

qual estou certo de ter concorrido<br />

para o bem de todos. v<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1984<br />

(Extraído de conferência de<br />

11/8/1984)<br />

23


Flávio Lourenço<br />

C<br />

alendário<br />

Santa Modesta<br />

1. São Vigor, bispo (†c. 538). Foi<br />

discípulo de São Vedasto e bispo de<br />

Bayeux, França.<br />

Beato Amadeu, religioso (†1482).<br />

Ingressou na Ordem dos Frades Menores.<br />

Fundou numerosos conventos,<br />

falecendo em Milão.<br />

2. Comemoração de Todos os Fiéis<br />

Defuntos.<br />

3. Santo Ermengol (ou Ermengaudo),<br />

bispo (†1035). Como bispo de<br />

Urgel, Espanha, dedicou-se a restabelecer<br />

a Igreja nas terras resgatadas<br />

dos sarracenos.<br />

Santa Odrada, virgem (†c. s. XI).<br />

Distinguiu-se desde pequena por sua<br />

piedade e bondade; ainda muito jovem<br />

consagrou sua castidade a Deus.<br />

4. Santa Modesta, abadessa (†680).<br />

Consagrada a Deus desde a infância,<br />

foi a primeira abadessa do Mosteiro<br />

de Santa Maria ad Horreum, em Tréveris,<br />

Alemanha. Foi grande amiga de<br />

Santa Gertrudes de Nivelles.<br />

São Félix de Valois, religioso<br />

(†1212). Companheiro de São João<br />

da Mata e cofundador dos Trinitários.<br />

dos Santos – ––––––<br />

5. Santa Bertila, abadessa (†s. VI).<br />

Pertencia a uma família nobre de<br />

Soissons; na adolescência decidiu<br />

abraçar a vida religiosa, vencendo a<br />

firme oposição paterna. Governou o<br />

Mosteiro de Chelles, edificando a todos<br />

por sua piedade. Atraiu muitas jovens<br />

para sua comunidade.<br />

6. Solenidade de Todos os Santos.<br />

(no Brasil, transferida do dia 1º).<br />

São Leonardo, ermitão (†559).<br />

7. São Prosdócimo, bispo (†100).<br />

Primeiro Bispo de Pádua.<br />

São Lázaro, estilita (†1054). Viveu<br />

sobre uma coluna no Monte Galésio,<br />

alimentando-se somente de pão e água.<br />

8. Beata Maria Crucificada (Isabel<br />

Maria Satellico), abadessa (†1745).<br />

Pertencia à Ordem das Clarissas, possuía<br />

profunda contemplação do mistério<br />

da Cruz e foi favorecida com carismas<br />

místicos.<br />

9. Dedicação da Basílica de Latrão<br />

(s. IV). Construída pelo imperador<br />

Constantino como sede dos bispos<br />

de Roma.<br />

10. São Baudelino, ermitão (†s. VIII).<br />

11. São Mennas, mártir (†295). Era<br />

militar egípcio e morreu confessando<br />

a Fé cristã.<br />

São Bertuíno, bispo e abade (†698).<br />

12. São Nilo, abade (†340). Foi discípulo<br />

de São João Crisóstomo.<br />

13. XXXIII Domingo do Tempo<br />

Comum.<br />

Santa Agostina (Lívia) Pietrantoni,<br />

virgem (†1894). Religiosa da Congregação<br />

das Irmãs da Caridade, morreu<br />

no hospital onde cuidava de tuberculosos,<br />

apunhalada por um enfermo.<br />

14. Santo Hipácio, bispo e mártir<br />

(†325). Morreu lapidado por hereges<br />

novacianos.<br />

Beata Maria Merket, virgem (†1872).<br />

Nascida na Prússia, foi cofundadora<br />

das religiosas de Santa Isabel, dedicadas<br />

ao cuidado dos doentes abandonados<br />

em suas próprias residências.<br />

15. Beato Hugo Faringdon (Cook),<br />

mártir (†1539). Abade beneditino, foi<br />

enforcado e esquartejado juntamente<br />

com dois presbíteros por se oporem<br />

a Henrique VIII, da Inglaterra,<br />

o qual tentava apropriar-se da autoridade<br />

da Igreja.<br />

16. Santo Agostinho e Santa Felicidade,<br />

mártires (†c. 250). Segundo a tradição,<br />

sofreram o martírio no tempo do<br />

Imperador Décio, em Cápua, Itália.<br />

17. São Gregório de Tours, bispo<br />

(†594). Visitou Venâncio Fortunato e<br />

Santa Radegunda em Poitiers, cujos<br />

funerais presidiu, em 587. Participou<br />

de vários concílios, escreveu inúmeras<br />

obras, entre as quais a História dos<br />

Francos.<br />

Santa Lucrécia<br />

Flávio Lourenço<br />

24


–––––––––––––– * Novembro * ––––<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

Beato Ludovico Roque Gientyngier<br />

18. Dedicação das Basílicas de São<br />

Pedro e São Paulo (1626; 1854).<br />

Santa Filipina Rosa Duchesne, virgem<br />

(†1852). Religiosa da Sociedade<br />

do Sagrado Coração, fundada por<br />

Santa Madalena Sofia Barat.<br />

19. Beato Eliseu García García,<br />

religioso e mártir (†1936). Salesiano<br />

martirizado no tempo da perseguição<br />

religiosa na Espanha.<br />

20. Solenidade de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo, Rei do Universo.<br />

21. Apresentação de Nossa Senhora.<br />

Beata Maria de Jesus Bom Pastor<br />

(Francisca de Siedliska), virgem<br />

(†1902). Fundadora do Instituto das<br />

Irmãs da Santa Família de Nazaré.<br />

22. Santa Cecília, virgem e mártir<br />

(†s. II-III).<br />

São Filêmon, mártir (†s. I). Discípulo<br />

de São Paulo, foi exortado pelo<br />

Apóstolo a receber Onésimo, um escravo<br />

fugitivo.<br />

23. Santa Mustiola, mártir (†s. III).<br />

Fazia parte da comunidade cristã de<br />

Chiusi, na Toscana, Itália. Entregou a<br />

vida em defesa da Fé.<br />

Santa Lucrécia, mártir (†306). Seu<br />

martírio deu-se durante a perseguição<br />

de Diocleciano.<br />

24. São Protásio, bispo (†352). Participou<br />

do Concílio de Sárdica e defendeu<br />

Santo Atanásio e a doutrina nicena<br />

diante do Imperador Constante.<br />

Santa Flora e Santa Maria, virgens<br />

e mártires (†856). Durante a perseguição<br />

muçulmana desencadeada em<br />

Córdoba, Espanha, foram encarceradas<br />

com Santo Eulógio e depois mortas<br />

a espada.<br />

São Bertuíno<br />

25. Santa Catarina de Alexandria,<br />

virgem e mártir (†s. inc.).<br />

Beato Jacinto Serrano López,<br />

mártir (†1936). Dominicano, fuzilado<br />

na perseguição contra a Igreja, durante<br />

a Guerra Civil Espanhola.<br />

26. Beato Humilde (Lucas Antonio)<br />

Pirozzo, religioso (†1637). Pertencia<br />

à Ordem dos Frades Menores,<br />

tornou-se célebre por seu espírito de<br />

profecia e frequentes êxtases.<br />

27. I Domingo do Advento.<br />

Samuel Holanda<br />

Nossa Senhora das Graças. Em<br />

1830, a Santíssima Virgem pediu a<br />

Santa Catarina Labouré que fosse<br />

cunhada uma medalha conforme a visão<br />

tida pela religiosa. Devido às inúmeras<br />

curas operadas através dessa<br />

medalha, ela ficou conhecida com o<br />

nome de Milagrosa.<br />

Santa Bilhildis, virgem (†710).<br />

28. Beato Juan Jesús (Mariano)<br />

Andradas Gonzalo, presbítero e mártir,<br />

e companheiros (†1936). Religiosos<br />

da Ordem de São João de Deus,<br />

martirizados durante a perseguição<br />

contra a Fé, na Espanha.<br />

29. São Filomeno de Ancira, mártir<br />

(†s. III). Oriundo de Licaônia, por<br />

confessar a Fé cristã, foi martirizado<br />

na perseguição ocorrida durante o<br />

império de Aureliano.<br />

Santa Iluminada, virgem (†320).<br />

30. Santo André, Apóstolo (†s. I).<br />

Beato Ludovico Roque Gientyngier,<br />

presbítero e mártir (†1941). Durante<br />

a ocupação nazista na Polônia,<br />

foi enviado ao campo de concentração<br />

de Dachau, onde posteriormente<br />

sofreu o martírio.<br />

Beata Maria Merket<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

25


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

Flávio Lourenço<br />

Nada se perde<br />

na Igreja<br />

Peregrinação - Museu de<br />

Belas Artes, Arras, França<br />

Todo desejo piedoso, pensamento bom, qualquer<br />

obra de caridade feita por amor a Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo reverte em bem para todo o corpo da Igreja. Os<br />

tesouros da Santa Igreja revelam o entrelaçamento<br />

insondável entre a justiça e a misericórdia de Deus.<br />

Estamos próximos do dia de Finados,<br />

por isso é adequada a<br />

leitura de uma ficha de Catarina<br />

Emmerich retirada das “Visões<br />

e Revelações Completas” 1 .<br />

Visão das penas<br />

do Purgatório<br />

Esta noite pedi muito pelas almas<br />

benditas e vi as numerosas e miseráveis<br />

penas que elas padecem e a incompreensível<br />

misericórdia de Deus.<br />

Vi a infinita justiça de Deus e a sua<br />

misericórdia e compreendi que não há<br />

coisa alguma verdadeiramente boa no<br />

homem que não lhe seja útil. Vi o bem<br />

e o mal passando de pais a filhos converter-se<br />

em salvação e felicidade pela<br />

vontade e cooperação destes. Vi socorrer<br />

de um modo admirável as almas<br />

com os tesouros da Igreja, com a caridade<br />

dos seus membros.<br />

Vi muitos estados de purificação,<br />

em particular vi castigados aqueles<br />

sacerdotes afeiçoados às suas co-<br />

modidades e ao sossego e que dizem:<br />

“Com um lugarzinho no Céu estou<br />

satisfeito, eu rezo, digo Missa, etc.”<br />

Estes sentirão indizíveis tormentos<br />

e vivíssimos desejos de boas obras e<br />

verão a sua frente todas as almas a<br />

quem privaram de seu auxílio, e terão<br />

que sofrer um horrível desejo de<br />

socorrê-las. Toda a negligência se<br />

converterá em tormento para a alma,<br />

sua quietude em impaciência,<br />

sua inércia em cadeias. E estes castigos<br />

não são já invenções, mas proce-<br />

26


Flávio Lourenço<br />

dem clara e admiravelmente do pecado,<br />

como a enfermidade da causa<br />

que a produz.<br />

Sempre vi que nada se perde de<br />

quanto se faz na Igreja em união com<br />

Jesus. Como o desejo piedoso, todo<br />

pensamento bom, qualquer obra de<br />

caridade feita pelo amor de Jesus reverte<br />

em bem para todo o corpo da<br />

Igreja e que aquele que não faça outra<br />

coisa que rogar a Deus em plena<br />

caridade por seus irmãos, este faz uma<br />

grande e salutar obra.<br />

As almas precisam de orações<br />

Ana Catarina Emmerich teve ocasião<br />

de ver o Purgatório. Vários aspectos<br />

dele se lhe apresentaram. Ela<br />

viu as penas tremendas das almas e<br />

como estas podem ser socorridas por<br />

nossas orações.<br />

Há muitas pessoas que fazem<br />

o seguinte cálculo: à primeira vista<br />

parece não valer muito a pena<br />

rezar pelas almas do Purgatório,<br />

considerando que, afinal de<br />

contas, elas cedo ou tarde vão para<br />

o Céu, enquanto as almas periclitantes<br />

nesta Terra podem ir para<br />

o Inferno, existindo, portanto, muito<br />

mais mérito rezar<br />

por estas últimas do<br />

que pelas outras. Este<br />

é um erro que pode<br />

seduzir até espíritos<br />

muito zelosos<br />

e razoáveis e é, portanto,<br />

o momento<br />

de desfazermos este<br />

equívoco, no qual<br />

a própria Ana Catarina<br />

Emmerich caiu.<br />

Ao narrar suas visões,<br />

ela conta como<br />

se corrigiu.<br />

Apareceu-lhe não<br />

me lembro que Santo<br />

e fez a ela o seguinte<br />

comentário: “Está no<br />

Purgatório uma alma<br />

piedosa, ela está no<br />

fogo, um fogo verdadeiro,<br />

não um símbolo,<br />

mas material.”<br />

O que é estar com<br />

o corpo dentro de fogo?<br />

É algo tremendo!<br />

Imaginem então<br />

estar com a alma dentro do fogo.<br />

Não adianta dizer: “A alma não é<br />

O Viático na Montanha da Navarra - Museu<br />

de Navarra, Pamplona, Espanha<br />

Coroação da Virgem do Lledó em 1924 - Basílica<br />

da Mãe de Deus do Lledó, Castellón, Espanha<br />

combustível”, porque, por ordem de<br />

Deus, dá-se um milagre por onde a<br />

alma se queima e sofre os verdadeiros<br />

tormentos das chamas.<br />

Dizia esse Santo a Ana Catarina<br />

Emmerich: “Aqui está uma alma que<br />

foi boa, ela vai para o Céu, mas encontra-se<br />

há séculos no Purgatório.<br />

Ali está um bandido que irá para o<br />

Inferno. Vale a pena deixar esse coitado<br />

séculos no Purgatório para salvar<br />

um bandido de um Inferno merecido?<br />

Evidentemente não.”<br />

É preciso ter um certo senso de<br />

distribuição por onde cada um, tocado<br />

pelos estímulos da graça que indica<br />

o desejo da Providência sobre cada<br />

um, ora rogue algum tanto pelas<br />

almas do Purgatório, ora pelas almas<br />

em perigo de se perderem.<br />

Entretanto, nessa visão, ela viu o<br />

fogo, os tormentos do Purgatório e<br />

ela faz algumas considerações a respeito<br />

desse tormento.<br />

Flávio Lourenço<br />

27


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

Dorotheu (CC3.0)<br />

A justiça e a misericórdia de<br />

Deus com relação às almas<br />

Purgatório - Dorotheum, Viena<br />

jos, levando consigo uma alegria indizível<br />

para dentro do Purgatório.<br />

Ela leva então miríades de almas para<br />

o Céu, por um ato soberano d’Ela,<br />

liquidando sentenças, penas e qualquer<br />

outra aflição.<br />

Para aquelas que não conduz para<br />

o Céu, a Santíssima Virgem muitas<br />

vezes diminui consideravelmente<br />

as penas ou as abrevia, de modo<br />

que cada festa de Nossa Senhora na<br />

Terra é uma libertação no Purgatório,<br />

sem contar as outras grandes<br />

festas do calendário: Páscoa, Semana<br />

Santa, Natal. As penas são, dessa<br />

forma, muitas vezes abreviadas de<br />

um modo maravilhoso. Há aqui um<br />

entrelaçamento insondável entre a<br />

A primeira consideração é o mistério<br />

da justiça e da misericórdia divinas.<br />

Deus é infinitamente justo e, mesmo<br />

amando as almas do Purgatório,<br />

Ele precisa puni-las. Ele é infinitamente<br />

misericordioso, mas, mesmo<br />

punindo as almas que estão ali,<br />

Ele quer atenuar os seus sofrimentos.<br />

Por isso várias visões contam<br />

que Nossa Senhora, Mãe de Misericórdia<br />

contínua e inesgotável, com<br />

frequência intervém ali. Por exemplo,<br />

em todas as suas grandes festas<br />

Ela vai até lá com uma coorte de Anjustiça<br />

e a misericórdia, que mostra<br />

uma justiça e uma misericórdia tão<br />

grandes que o homem, abismado,<br />

não logra visualizar bem até onde<br />

chega a amplitude desses dois atributos<br />

de Deus quando considera o<br />

Purgatório.<br />

De geração em geração...<br />

A vidente conta:<br />

Eu vi o bem e o mal passando de<br />

pais a filhos e converter-se em salvação<br />

e fidelidade pela vontade e cooperação<br />

destes.<br />

É uma coisa curiosa, mas há graças,<br />

bênçãos concedidas por Deus,<br />

às vezes a estirpes inteiras e que se<br />

propagam de pai para filho, de geração<br />

em geração para chegar até a última<br />

posteridade.<br />

Com as devidas ressalvas, porque<br />

a maldição não é igual à bênção, há<br />

também retrações de graças, há defeitos,<br />

às vezes há tentações que<br />

também se repetem de geração em<br />

geração numa mesma família. E embora<br />

ninguém seja salvo pela bênção<br />

hereditária, nem se perca pela maldição<br />

hereditária, pois todo homem<br />

tem graça suficiente para salvar-se<br />

e, correspondendo à graça, se salva,<br />

entretanto, esses tesouros misteriosos<br />

de bênçãos e esses terríveis reservatórios<br />

de maldição fixam-se e,<br />

às vezes, consomem ou reedificam linhagens<br />

inteiras.<br />

Em geral nós temos a respeito da<br />

decadência das famílias ideias muito<br />

erradas e julgamos que ela se dá por<br />

perda de dinheiro. Não podendo luxar<br />

como antes, não têm a mesma influência,<br />

o mesmo prestígio. Entretanto,<br />

no fundo, há uma espécie de<br />

perda de grandeza de alma, de capacidade<br />

de ter e de adotar grandes<br />

ideais, de fazer grandes coisas e, em<br />

geral, a pobreza, a ruína econômica<br />

é um resultado da bobeira.<br />

Por isso Ana Catarina Emmerich<br />

diz ter visto as bênçãos e as maldições<br />

hereditárias, também das nações,<br />

percorrendo a História.<br />

28


Arquivo <strong>Revista</strong><br />

São João Bosco e São Domingos Sávio<br />

Igreja do Sagrado Coração de Jesus, Roma<br />

O remorso pelo bem<br />

não praticado<br />

Ela diz:<br />

Vi socorrer de um modo admirável<br />

as almas com os tesouros da Igreja e<br />

com a caridade dos seus membros.<br />

Quer dizer, com as orações feitas<br />

pelas almas.<br />

Vi muitos estados de purificação.<br />

Em particular, vi castigados aqueles<br />

sacerdotes afeiçoados às suas comodidades<br />

e ao seu sossego.<br />

Sacerdotes que gostam da vidinha.<br />

“Com um lugarzinho no Céu, estou<br />

satisfeito, rezo, digo Missa, etc.”<br />

Quantos católicos há como esses<br />

sacerdotes, que julgam cumprir seu<br />

dever não cometendo pecado mortal,<br />

rezando, fazendo pequenos sacrifícios,<br />

desempenhando os pequenos<br />

deveres e no resto<br />

levando vida regalada!<br />

Quantos de nós, assistindo<br />

a algumas cerimônias<br />

religiosas, não temos esta<br />

sensação a respeito do padre<br />

e da maior parte dos fiéis<br />

que estão na igreja: tudo<br />

sossegadinho, meio rezando,<br />

meio bocejando! É<br />

este estado de espírito minimalista.<br />

Então, qual é o sofrimento<br />

que eles padecem<br />

no Purgatório? Além do<br />

fogo, o remorso. Eles veem<br />

com uma clareza interior<br />

tudo quanto poderiam ter<br />

feito e não fizeram. E isto<br />

atormenta a alma deles superlativamente.<br />

Lembro aqui uma visão<br />

que São João Bosco teve<br />

de São Domingos Sávio no<br />

Céu.<br />

São Domingos Sávio foi<br />

ao encontro dele com um<br />

cortejo enorme de almas<br />

cantando louvores a Dom<br />

Bosco, que perguntou o<br />

que era aquilo.<br />

— Essas são todas as almas<br />

salvas por vosso apostolado.<br />

— Mas eu receio que<br />

muitas não se tenham salvado<br />

por minha falta de<br />

correspondência completa<br />

à graça.<br />

Domingos Sávio respondeu:<br />

— Isto é bem verdade.<br />

O que um tormento desses<br />

significa? Vermos estar<br />

no Inferno, fadado a uma<br />

eterna infelicidade, desventura,<br />

um indivíduo que<br />

nós poderíamos ter contribuído<br />

para salvar? O que<br />

aquilo nos faz sofrer? É algo<br />

tremendo. Se nós fôssemos<br />

culpados por leviandade,<br />

por tontice, de uma trombada<br />

de automóvel que tivesse feito alguém<br />

ficar cego; vendo aquela pessoa<br />

cega a vida inteira, que remorso!<br />

Pois bem, é muito maior esse remorso<br />

pelo bem não praticado. As almas<br />

vão contemplar, vão ter a visão e o<br />

sofrimento disso no Purgatório.<br />

Mas tem-se uma afirmação muito<br />

consoladora: nada se perde, nem<br />

sequer um desejo piedoso ou um<br />

pensamento bom, quando foi feito<br />

por amor à Igreja, porque aquilo faz<br />

bem para todo o Corpo Místico. E<br />

aquele que não faça outra coisa senão<br />

rogar a Deus em plena caridade<br />

por seus irmãos, esse faz uma grande<br />

e salutar obra. São aqueles dedicados<br />

a pedir a Deus Nosso Senhor<br />

que evite que as almas vão para o<br />

Inferno, que determine a saída das<br />

almas do Purgatório e, sobretudo, a<br />

exaltação da Santa Igreja Católica<br />

na Terra.<br />

v<br />

(Extraído de conferência de<br />

1/11/1967)<br />

1) Não dispomos dos dados dessa obra.<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em novembro de 1967<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

29


Hagiografia<br />

Vyacheslav Argenberg (CC3.0)<br />

Só ama o bem quem<br />

odeia o mal<br />

Montanhas<br />

do Cáucaso<br />

São Lázaro, monge do século IX, teve as mãos queimadas por<br />

ordem de um imperador iconoclasta porque fazia imagens<br />

sagradas. Os humanitários que hoje declamam contra as<br />

Cruzadas e a Inquisição não têm uma palavra de censura para<br />

com os imperadores romanos que martirizavam os católicos.<br />

T<br />

emos para comentar<br />

alguns dados biográficos<br />

de um Santo<br />

extraordinário: São Lázaro,<br />

Confessor. Não é o amigo<br />

de Nosso Senhor, irmão<br />

de Marta e Maria. Monge e<br />

pintor de sagradas imagens,<br />

viveu no século IX. Queimaram-lhe<br />

as mãos com ferro<br />

em brasa, mas foi curado<br />

pelo poder de Deus e pintou<br />

novamente imagens que haviam<br />

sido raspadas pelos iconoclastas.<br />

O Criador restaurou<br />

suas mãos e ele restaurou<br />

as pinturas.<br />

Mãos queimadas<br />

até os ossos<br />

Lázaro, nascido no Monte<br />

Cáucaso, deixou seu país na<br />

primeira juventude e veio para<br />

Constantinopla, onde abraçou<br />

John Skylitzes (CC3.0)<br />

Imperador Teófilo<br />

a vida religiosa. Além dos exercícios<br />

ordinários do estado monástico,<br />

aprendeu pintura, arte<br />

que se cultivava nos claustros,<br />

sobretudo em Constantinopla,<br />

desde que a guerra contra as sagradas<br />

imagens tinha sido declarada<br />

pelos iconoclastas 1 .<br />

Como os iconoclastas eram<br />

contra o uso das imagens, nos<br />

bons mosteiros os monges<br />

aprendiam a pintá-las como<br />

um meio de combatê-los. Naturalmente,<br />

depois eles difundiam<br />

essas pinturas.<br />

Os imperadores, não contentes<br />

de quebrar as imagens<br />

e perseguir seus defensores, tinham<br />

ainda de tal modo intimidado<br />

os pintores com o rigor<br />

de seus editos, que o medo<br />

da morte, da prisão e do exílio<br />

os impedia de fazer qualquer<br />

quadro de Jesus Cristo ou dos<br />

Santos. Foi o que levou mui-<br />

30


tos superiores de mosteiros a querer reparar<br />

esse dano, apesar das ameaças<br />

e da indignação do soberano, introduzindo<br />

a arte da pintura em suas casas,<br />

para impedir que as santas imagens<br />

fossem abolidas pelos ímpios.<br />

Lázaro tinha se tornado muito hábil<br />

nessa profissão, e a perpetuação, a reputação<br />

que adquiriu foi causa da perseguição<br />

particular que teve de sofrer.<br />

O Imperador Teófilo, em 829, tendo<br />

ordenado a pena de morte para todos<br />

os pintores que recusassem a rasgar<br />

os quadros nos quais tivessem pintado<br />

os Santos, mandou buscar Lázaro<br />

em seu mosteiro, para executar o<br />

edito em sua presença. Não conseguiu<br />

levá-lo a isso pela doçura e recorreu à<br />

tortura. Fê-lo tão cruelmente que pensou<br />

que São Lázaro morreria no suplício.<br />

Mas, tendo recuperado suas forças<br />

algum tempo depois, continuou a<br />

pintar. O imperador mandou prendê-<br />

-lo de novo e torturá-lo com brasas de<br />

ferro rubro nas mãos, queimando-as<br />

até os ossos.<br />

A imperatriz Santa Teodora obteve<br />

do marido a sua libertação e o manteve<br />

oculto na Igreja de São João Batista,<br />

onde o fez curar. Quando Lázaro se restabeleceu,<br />

pintou, por reconhecimento,<br />

um quadro do Precursor, que se tornou<br />

um dos mais célebres de seu tempo.<br />

Após a morte de Teófilo, a imperatriz<br />

Santa Teodora e seu filho Miguel<br />

III restabeleceram a honra das imagens.<br />

Lázaro elaborou um Salvador<br />

que colocou sobre uma coluna para<br />

ser exposto à veneração pública.<br />

Vendo, então, o culto antigo bem<br />

fortalecido, entregou-se aos santos<br />

exercícios da vida monástica, não<br />

pensando senão em santificar-se nas<br />

obscuridades do claustro, onde morreu<br />

em 867.<br />

Ódio contra os que<br />

defendem a Fé<br />

Percebemos nesta narração, de<br />

modo muito notável, a fidelidade<br />

desse Santo à sua vocação, levando-<br />

-o a enfrentar toda espécie de torturas.<br />

Mas me parece ser tal o número<br />

de mártires com essa fidelidade – isso<br />

é algo refulgente de tal maneira<br />

na Igreja que as nossas almas estão<br />

cheias dessa luz –, não sendo o caso<br />

de insistir sobre isso.<br />

Talvez seria conveniente apontar,<br />

nesse conjunto de fatos, um aspecto<br />

não tão batido quanto o da glória insondável<br />

do martírio: a impiedade é fina<br />

e perspicaz no seu ódio, e devemos<br />

lamentar que nós, filhos da luz, não sejamos<br />

tão perspicazes e finos como ela.<br />

Os humanitários declamam muito<br />

contra as Cruzadas, a Inquisição<br />

e toda forma de guerra de religião –<br />

porque, dizem eles, são torturas horrorosas,<br />

não se deve absolutamente<br />

permitir uma coisa dessas, é contra<br />

a caridade etc. – porém, não têm<br />

uma palavra de censura para com<br />

os imperadores romanos que martirizavam<br />

os católicos. Quando se diz<br />

a um deles:<br />

— Você não fala contra Diocleciano,<br />

Nero? Só contra Torquemada 2 ?<br />

E num movimento temperamental<br />

de um ódio todo platônico, ele diz:<br />

— Ah, também contra esses eu<br />

sou contra. Mas Torquemada... é<br />

preciso acabar com ele.<br />

— E Nero não foi horroroso?<br />

— Sim, sim. São coisas que se deve<br />

censurar, e – bocejando, acrescenta<br />

– eu censuro…<br />

Mas o ódio dinâmico dos ímpios é<br />

contra aqueles que derramaram o sangue<br />

na defesa da Fé. Contra os que o<br />

fizeram verter para combater a Fé eles<br />

não têm ódio dinâmico nenhum. Isso<br />

prova que, no fundo, o ódio deles não<br />

é contra o derramamento de sangue,<br />

mas é contra a defesa da Fé.<br />

Quanto se tem falado contra os<br />

Autos de Fé espanhóis! No que isso<br />

tem de diferente de um Auto contra<br />

a Fé, do ponto de vista sangue? Não<br />

tem nada de diferente. Tanto um<br />

quanto outro envolvem sangue, são<br />

opressões da liberdade. Entendamo-<br />

-nos a esse respeito. O ódio dos hu-<br />

Henryk Siemiradzki (CC3.0)<br />

Ivan Kislyakov (CC3.0)<br />

Cristãos sendo usados como tochas humanas, na perseguição<br />

sob Nero - Museu Nacional, Cracóvia, Polônia<br />

Imperatriz Santa Teodora,<br />

esposa do Imperador<br />

Teófilo<br />

31


Hagiografia<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

manitários, dos liberais vai exclusivamente<br />

contra aqueles que derramaram<br />

o sangue para defender a Fé.<br />

Sanha de perseguição<br />

contra os bons<br />

Isso vai mais longe. Se eles não<br />

têm ódio aos que promoveram o<br />

derramamento de sangue perseguindo<br />

os católicos, muitos dentre eles,<br />

podendo, também não verteriam<br />

o sangue dos católicos? Uma coisa<br />

traz a outra, como consequência.<br />

Se eu, diante de crimes atrozes como<br />

esse, me manifesto frio, no fundo<br />

acho que quem fez isso tem uma certa<br />

razão e eu, no caso, talvez o fizesse.<br />

Compreende-se, então, até onde<br />

chega a ferocidade dos ímpios: não<br />

só até a contradição, mas até uma<br />

sanha de perseguição que não revelam,<br />

mas que, no fundo, eles têm.<br />

Reflexão muito útil quando estivermos<br />

em presença de pessoas como<br />

essas, pois quase todo mundo<br />

tem esse estado de espírito.<br />

Façam um teste nos ambientes<br />

frequentados. Digam algo sobre a<br />

Inquisição e todo mundo se levanta<br />

para atacá-la. Falem contra as perseguições,<br />

por exemplo, dos iconoclastas<br />

no Império Romano do Oriente,<br />

e sai o tal ódio frio, platônico, que<br />

não é verdadeiro ódio.<br />

Portanto, toda essa gente tem, no<br />

fundo – ao menos em algumas fibras<br />

da alma, quando não em todas<br />

–, uma complacência com a ideia de<br />

matar os autênticos católicos.<br />

Então, em contato com pessoas<br />

desse naipe, devo pensar: “Esse indivíduo<br />

que está falando comigo quereria<br />

matar-me, se pudesse”. É preciso<br />

chegar até o caso pessoal, atingir<br />

a pele e o instinto de conservação.<br />

Não considerar apenas em tese<br />

a morte dos cristãos, dos católicos.<br />

Não conhece nem ama o<br />

bem quem não conhece<br />

e não odeia o mal<br />

Se esse indivíduo fosse meu familiar,<br />

eu poderia cogitar: “É verdade.<br />

Mas sendo ele meu parente, não<br />

me mataria”. Isso é falso. O ódio deles<br />

contra a Fé é tão grande que gostariam<br />

de matar os católicos e não<br />

poupariam ninguém.<br />

Quem julgasse que o indivíduo não<br />

faria isso com ele porque é seu parente,<br />

pensaria como um ingênuo. Seria<br />

bom passar por um curso de “desingenuização”<br />

porque levou a ingenuidade<br />

até extremos muito grandes.<br />

Peçamos, então, a São Lázaro esta<br />

graça penetrante: perceber e discernir<br />

nos ímpios com os quais tratamos<br />

o ódio que eles têm a nós.<br />

Alguém dirá: “Mas, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>,<br />

qual é a vantagem disso? Eu vivo tão<br />

bem com os meus parentes. São agradáveis,<br />

influentes, conversam bem.<br />

Agora está o senhor me fazendo ver<br />

um Nero ou um Calígula... O senhor<br />

desarranja tudo! E parece estar contente<br />

com o desarranjo produzido.”<br />

A minha resposta é a seguinte:<br />

Não conhece nem ama o bem quem<br />

não conhece e não odeia o mal. O conhecimento<br />

do mal é indispensável<br />

para o conhecimento do bem, como<br />

contraste. Depois do pecado original,<br />

não se pode dispensar o conhecimento<br />

do mal. E é preciso medir o mal em<br />

toda a sua extensão, para conhecermos<br />

o bem em toda a sua nobreza.<br />

Portanto, é necessário fazer esse<br />

exercício com as pessoas próximas<br />

de nós. Porque, ademais, seria uma<br />

atitude simplória achar que os parentes<br />

dos outros não prestam e são<br />

muito ingênuos quando acreditam<br />

neles, mas os nossos são diferentes.<br />

Vale muito a pena nos compenetrarmos<br />

do ódio pessoal que eles<br />

têm a nós, porque enquanto não tivermos<br />

essa compenetração, um restinho<br />

de complacência com o mundo<br />

pode ficar. E se trata, exatamente,<br />

de dissipar toda e qualquer complacência<br />

com o mal. Então, fica isso<br />

indicado à nossa consideração a propósito<br />

da vida de São Lázaro. v<br />

(Extraído de conferência de<br />

22/2/1967)<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1967<br />

1) Não dispomos dos dados da ficha utilizada<br />

por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>.<br />

2) Tomás de Torquemada (*1420 -<br />

†1498), sacerdote dominicano espanhol,<br />

confessor da Rainha Isabel, a<br />

Católica, e do Rei Fernando de Aragão.<br />

Foi também grande Inquisidor<br />

de Espanha.<br />

32


Apóstolo do pulchrum<br />

Flávio Lourenço<br />

O mais belo dos<br />

panoramas<br />

Praia das Catedrais,<br />

Ribadeo, Espanha<br />

Muitas vezes nos extasiamos diante de um belo panorama:<br />

rios, montanhas, mares. Entretanto, o elemento rei de um<br />

panorama é o próprio homem. Por isso os panoramas mais<br />

magníficos da História são aqueles nos quais sobressaem<br />

os grandes gestos e os grandes lances dos homens.<br />

O<br />

que é um panorama? É um conjunto de coisas<br />

suficientemente grandes para serem habitadas<br />

pelo homem.<br />

Conceito de panorama<br />

O deserto dá um panorama, o mar, o céu; neles há um<br />

conjunto e sobra espaço para os homens habitarem.<br />

Pelo contrário, uma coleção pequena de obras de arte<br />

maravilhosas não forma um panorama, porque ali o<br />

homem não pode habitar. Pode-se afirmar que a unidade<br />

do panorama é o espaço do homem, e a multiplicidade<br />

desses espaços compõe um panorama.<br />

Um auditório, por exemplo, constitui um panorama.<br />

É estranho aplicar-lhe essa expressão quando está vazio,<br />

pois seria muito forçada, porque a palavra indica vastidões,<br />

extensão. No entanto, quando se vê um auditório<br />

tão alegremente cheio, onde se executam harmonias<br />

magníficas, unindo à música a declamação de coisas tão<br />

generosas com tão belo senso, tudo isso são elementos;<br />

mas muito mais autêntico é vê-lo repleto de gente. Que<br />

magnífico! Por quê? Porque a pluralidade de pessoas faz<br />

notar o espaço necessário para um homem.<br />

O elemento rei<br />

Chegamos a esta conclusão: o elemento rei de todo panorama<br />

não é o espaço, é o homem. Porque, se é verdade que o<br />

panorama tem como unidade o espaço que um homem deve<br />

ocupar, é ainda mais verdade que quando há muitos homens<br />

dignos, o conjunto deles forma um panorama.<br />

Panorama de vida, de variedade, de glória quando esses<br />

homens estão a serviço de Nossa Senhora. Panorama<br />

de desolação, de tristeza e de abjeção quando forma<br />

essas imensas massas modernas completamente anônimas,<br />

escravizadas pela Revolução, no qual as almas perderam<br />

a alteridade umas em relação às outras, logo todo<br />

mundo é ninguém.<br />

Imaginem cenas que podem se formar aos olhos dos<br />

homens, por exemplo, uma imensidade indefinida de asfalto<br />

liquefeito, um pouco borbulhante, de maneira a não<br />

se perceber estar líquido. E tão longe quanto a vista humana<br />

alcança, ela só encontra asfalto derretido. Isto não<br />

constitui um panorama, porque as unidades que o compõem<br />

são minúsculas, perdidas num magma, formando<br />

um todo só sem pluralidades, sem variedade, sem unidade<br />

verdadeira.<br />

33


Apóstolo do pulchrum<br />

Gabriel K.<br />

Cataratas do Niágara<br />

O panorama no qual Deus se compraz<br />

Tal consideração me trouxe ao espírito a ideia de<br />

quantas podem ser as modalidades de panorama que o<br />

homem possa ter diante de si. Pensei: “Como seria bonito<br />

nós vermos uma cena na qual se desenrolasse uma<br />

procissão religiosa magnífica ou uma na qual pudéssemos<br />

ver a cidade onde essa procissão se realizasse. Por<br />

exemplo, as procissões de Corpus Christi com a nota augusta<br />

e única da antiga Viena imperial. Que beleza! Mas<br />

seriam os palácios o panorama? Não, antes de tudo seriam<br />

os homens que ali estivessem.<br />

E então passou-me pelo espírito<br />

os panoramas aos olhos de Deus.<br />

O primeiro é o do universo quando<br />

foi criado. Deus olhou e Se<br />

comprouve com ele. É uma vista<br />

panorâmica. O panorama eterno.<br />

Depois de os homens terem<br />

sido julgados, após a História<br />

estar consumada, olharemos<br />

para a Terra vivificada, glorificada,<br />

purificada pelo enorme<br />

incêndio que a consumirá,<br />

a fim de destruir nela o mal e<br />

conferir novo brilho, novo reluzimento<br />

ao bem. Todos terão<br />

sido julgados: quem praticou<br />

o mal foi condenado; quem<br />

foi destinado à recompensa foi<br />

premiado.<br />

E Deus olha a Terra tendo em torno de Si a vastidão<br />

dos eleitos, embaixo a imensidade dos condenados e a<br />

obra d’Ele que se fez na Criação. Isto é panorama!<br />

Uma indagação diante de um contraste<br />

Cheguei a me perguntar e, sem ter tempo de me responder,<br />

vou tentar expor minha indagação em voz alta,<br />

conforme a reflexão me vier ao espírito.<br />

Perguntava-me qual dos dois panoramas seria mais<br />

bonito: se o primeiro, da Terra pura onde os homens não<br />

pisaram, onde as fontes saíam de dentro da terra, onde<br />

as aves começavam a voar, os animais a saltar, os ventos<br />

a soprar e toda a vida começava apenas a borbulhar;<br />

Flávio Lourenço<br />

Col d’Aubisque, Pirineus Franceses<br />

34


que beleza matinal, que inocência primeva e magnífica<br />

em todas as coisas postas ali! Tanto mais quanto, dominando<br />

todo o panorama, o Paraíso Terrestre, foco e<br />

centro de todas as belezas! Que pulcro, que maravilha!<br />

Depois pensei no panorama do mundo julgado. Houve<br />

desastres, catástrofes, crimes atrozes, houve atos de virtude<br />

incomparáveis. E por cima do clamor de todos os crimes,<br />

do ruído de todas as desordens, um gemido augusto,<br />

majestoso, dulcíssimo: “Meu Deus, meu Deus, por que me<br />

abandonaste? (Mt 27, 46) Consummatum est” (Jo 19, 30).<br />

Não houve panorama mais belo do que este: o céu<br />

carregado de nuvens, os pecados subindo de todos<br />

os lados, a nação eleita prevaricando, quase todos os<br />

Apóstolos dispersos e longe, apenas fiéis junto à Virgo<br />

Fidelis as Santas Mulheres, chorando. A Terra inteira<br />

repelente. Mas, vencendo tudo isso, o Homem-Deus<br />

que morre, que redime e que salva tudo!<br />

Que panorama incomparável! Então, não é verdade<br />

que depois de tudo isto ter acontecido, apesar dos pesares,<br />

a Terra ficou mais bela? É evidente.<br />

Assim são os panoramas: eles existem em função<br />

dos grandes gestos e dos grandes lances mais do que<br />

em função dos rios, das montanhas, dos mares, dos<br />

acidentes materiais.<br />

Em última análise, o verdadeiro panorama da História<br />

é a obra de Nosso Senhor Jesus Cristo. O resto<br />

é quadro, é moldura, é brigaria sem sentido, é invenção<br />

artística sem rumo. É coisa que brilha ou que, pelo<br />

contrário, se esvai.<br />

v<br />

Partida para a celebração de<br />

Corpus Christi na Catedral de<br />

Santo Estêvão em Viena<br />

Santíssimo Cristo<br />

das Misericórdias<br />

Paróquia da Santa<br />

Cruz, Espanha<br />

Gabriel K. Rijksmuseum. (CC3.0)<br />

(Extraído de conferência de 31/7/1982)


Perfeita harmonia<br />

Em Nossa Senhora se encontra a unidade na variedade dos dons de Deus. Isto se<br />

nota bem no fato de que, sendo uma, Ela Se apresenta a nós na variedade admirável<br />

das suas invocações. Ela é Nossa Senhora da Paz e Nossa Senhora dos Prazeres,<br />

mas também é Nossa Senhora das Dores; é a Saúde dos Enfermos, mas é Nossa<br />

Senhora da Boa Morte. N’Ela todos os contrastes se harmonizam. Ela é ao mesmo tempo<br />

Auxílio dos Cristãos e Refúgio dos Pecadores; Maria é glorificada por sua humildade<br />

incomparável, mas todos os videntes que tiveram a felicidade de A contemplar comentam<br />

sua soberana majestade; Ela Se apresenta a nós ut castrorum acies ordinata, mas<br />

ao mesmo tempo como Mater clementiæ et misericordiæ.<br />

N’Ela há a perfeita harmonia entre contrastes aparentemente irreconciliáveis: Virgem<br />

e Mãe! Ninguém mais plenamente mãe do que Nossa Senhora, Ela é a Mãe por<br />

excelência, mas também ninguém mais plenamente virgem do que a Virgem por excelência!<br />

(Extraído de conferência de 15/11/1958)<br />

Flávio Lourenço<br />

Dormição da Virgem<br />

Santuário de Guadalupe

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