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Publicação Mensal<br />
Vol. XXV - Nº <strong>296</strong> Novembro de 2022<br />
Unindo o Céu à Terra
Extraordinário alpinismo<br />
Bart Prins (CC3.0)<br />
Montanhas Nevadas<br />
do Tirol, Áustria<br />
V<br />
encer os montes, que linda proeza! Sim, um homem é capaz de ser valente para<br />
galgar montanhas, mas não em face de uma opção em sua vida ou de um raciocínio<br />
com a firmeza e a clareza com que o faz o católico quando se põe na escola de<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
O grande cume a galgar, o extraordinário alpinismo a empreender está dentro de nós. A<br />
beleza de nossa vida consiste em termos em nosso interior imensas montanhas magnificamente<br />
nevadas, dos flancos das quais pendem abismos terríveis; devemos ser os alpinistas<br />
de nós mesmos. Ao sermos criados, Deus teve um desígnio para cada um de nós, com vistas<br />
a que alcançássemos um grau de virtude e ocupássemos no Céu um determinado trono.<br />
O verdadeiro alpinismo é galgar de virtude em virtude até conquistarmos esse trono e<br />
aí cantar as glórias de Deus por toda a eternidade!<br />
(Extraído de conferência de 3/5/1986)
Sumário<br />
Publicação Mensal<br />
Vol. XXV - Nº <strong>296</strong> Novembro de 2022<br />
Vol. XXV - Nº <strong>296</strong> Novembro de 2022<br />
Unindo o Céu à Terra<br />
Na capa,<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, em seu<br />
apartamento, em<br />
julho de 1983<br />
Foto: Arquivo <strong>Revista</strong><br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
ISSN - 2595-1599<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
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Roberto Kasuo Takayanagi<br />
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Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
editoraretornarei@gmail.com<br />
Segunda página<br />
2 Extraordinário alpinismo<br />
Editorial<br />
4 Instaurando uma<br />
Cristandade cœliforme<br />
Piedade pliniana<br />
5 As virgens fiéis e<br />
as virgens loucas<br />
Dona Lucilia<br />
6 Suave fim de<br />
Dona Lucilia<br />
Reflexões teológicas<br />
8 O mais empolgante<br />
espetáculo da História<br />
Eco fidelíssimo da Igreja<br />
14 Realidade inevitável<br />
da morte<br />
Calendário dos Santos<br />
24 Santos de Novembro<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
26 Nada se perde na Igreja<br />
Hagiografia<br />
30 Só ama o bem quem<br />
odeia o mal<br />
Apóstolo do pulchrum<br />
33 O mais belo dos<br />
panoramas<br />
Última página<br />
36 Perfeita harmonia<br />
3
Editorial<br />
Instaurando uma Cristandade cœliforme<br />
N<br />
o universo por nós conhecido e com o qual temos um contato contínuo – portanto, não incluindo<br />
os Anjos, os quais não fazem parte do nosso universo visível – o que existe de mais elevado<br />
é a alma humana.<br />
A experiência mostra que quando temos amigos em quem podemos confiar inteiramente, aos quais estamos<br />
vinculados por uma afinidade de alma completa, quer pela identidade de doutrinas e de convicções,<br />
quer por uma harmonia das semelhanças e dissemelhanças psicológicas que tornam o convívio agradável,<br />
interessante e variado, sobretudo afinidade no serviço a princípios mais altos, ficam postas as condições<br />
ideais para termos um convívio de alma muito grande, no qual encontramos o que mais aprazível pode haver<br />
para a natureza humana.<br />
Por certo, pode-se dizer que um convívio assim é muito raro. Mas, quando ele se realiza, realmente é o<br />
maior deleite possível nesta Terra.<br />
O modo pelo qual se imagina o Céu é correntemente muito influenciado por imagens de Santos no<br />
estilo sulpiciano, com isto de curioso: parecem apresentar almas sem características psicológicas próprias.<br />
Assim, seja Santa Dorotéia, Santa Hildegarda ou Santa Teresa, são representadas com a mesma<br />
ausência de personalidade.<br />
Isso nos leva a perguntar qual é o relacionamento dessas pessoas no Céu, e tem-se a impressão de uma<br />
sensaboria completa, pois vários dos requisitos de um convívio humano perfeito não existem, o que contribui<br />
para apresentar do Paraíso uma imagem pouco atraente.<br />
Podemos imaginar o convívio de almas afins no Paraíso, talvez entre pessoas de séculos diferentes, mas<br />
modeladas pela providência de Deus muito mais para formar um grupo no Céu do que em função de sua<br />
existência na Terra.<br />
Essas pessoas, convivendo entre si, possuem uma felicidade na ordem do criado a mais completa possível.<br />
Mas ainda mais perfeita por estarem gozando da visão beatífica e comentarem o que estão contemplando<br />
de Deus, o Divino Panorama, que Se faz ver de maneiras infinitamente variadas por almas afins, as<br />
quais sentem do mesmo modo. Com isso, elas gozam de uma felicidade inimaginável. Assim, o ideal da felicidade<br />
da Terra se realiza no Céu de um modo fantástico, maravilhoso!<br />
Na Idade Média o que houve foi algo muito inferior ao Céu empíreo, mas nesta ordem. As almas tinham<br />
essa consonância profunda, essa virtude, a Fé as unia verdadeiramente, elas se amavam, não só por<br />
cima dos limites que as dividiam no campo social, mas até por causa desses limites: cada fronteira social<br />
era um título para o amor, e não para o ódio.<br />
Tudo isso ganha muito mais relevo se considerado à luz do que São Luís Grignion de Montfort diz a respeito<br />
do Reino de Maria, onde as almas santas, comparadas às dos séculos anteriores, serão como cedros<br />
do Líbano em comparação com arbustos. Portanto, o convívio, a densidade e a realidade da Cristandade<br />
vão ser muito maiores do que foram na Idade Média, pois haverá uma presença da graça nas almas especialmente<br />
própria a constituir uma sociedade mais parecida possível com o Céu empíreo.<br />
Para isto estamos trabalhando: em oposição à Revolução “sataniforme” ou “inferiforme” – moldada segundo<br />
satanás ou os infernos –, instaurar uma Cristandade “cœliforme”. Isso abrange os nossos ideais e os<br />
realiza por inteiro. Para lá caminha o élan de nossas almas! *<br />
* Cf. Conferência de 21/5/1989.<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
Piedade pliniana<br />
Luis C.R. Abreu<br />
As virgens fiéis e as<br />
virgens loucas<br />
As virgens loucas não se prepararam. As fiéis, sim. Desde quando estavam preparadas?<br />
A Parábola não o diz. Suponhamos que algumas o estivessem desde<br />
o primeiro instante e se foram quintessenciando até a chegada do Esposo. Oh,<br />
bem-aventuradas!<br />
Algumas, de outro lado, se atrasaram? Certamente. Como, então, estavam prontas<br />
quando o Esposo chegou? A misericórdia baixou sobre elas; e porque estavam humilhadas<br />
e arrependidas, o azeite se renovou em suas lâmpadas.<br />
Nossa Senhora dos humilhados e contritos!<br />
Nossa Senhora dos confiantes filiais!<br />
Nossa Senhora, Mãe de Misericórdia!<br />
Rogai por nós!<br />
(Anotações de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>. Domingo da Paixão de 1981)<br />
5
Dona Lucilia<br />
Fotos: Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Quando <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> ainda convalescia<br />
da crise de diabetes, mais uma dor<br />
veio assomar-se em seu horizonte:<br />
a separação de sua extremosa<br />
mãe, Dona Lucilia. Às vésperas<br />
de completar 92 anos, ela faleceu<br />
suave e serenamente, após traçar<br />
em si um grande Sinal da Cruz.<br />
A<br />
morte de Dona Lucilia passou-se<br />
assim:<br />
Os últimos momentos<br />
Estava com mamãe almoçando na<br />
sala de jantar de nosso apartamento.<br />
Ainda me encontrava em vias de<br />
completar o restabelecimento da crise<br />
de diabetes, e ela, muito idosa, com<br />
quase 92 anos, já não apresentava inteira<br />
lucidez. Conversávamos a sós,<br />
tocando uma prosa como era possível,<br />
bem devagarzinho; ela se entretinha,<br />
olhava-me fixamente e procurava<br />
acompanhar o que eu dizia.<br />
Neste jantar, na tranquilidade da<br />
casa, a morte se apresentou. Horas<br />
tantas, ela começou a sentir-se incomodada,<br />
com a sensação de haver, em<br />
torno do pescoço, algodões que lhe tiravam<br />
o ar e queria que alguém os<br />
Quarto de Dona Lucilia<br />
6
emovesse. Na verdade, não havia algodões.<br />
Percebi imediatamente tratar-se<br />
de algo grave, embora o médico<br />
a tivesse examinado recentemente<br />
e achado que o coração estivesse em<br />
condições normais para aquela idade.<br />
Chamei logo uma espécie de enfermeira<br />
ou dama de companhia<br />
que a acompanhava. Esta senhora<br />
ajudou-me a pô-la na cadeira de<br />
rodas, e, conduzindo-a ao quarto,<br />
auxiliou-a a deitar-se. Começava o<br />
fim da vida de mamãe…<br />
Convocamos imediatamente o médico,<br />
o qual, analisando a situação,<br />
sussurrou-me: “Ela chegou<br />
ao fim; de repente o<br />
coração ficou em condições<br />
péssimas… com 92<br />
anos! O senhor precisa<br />
preparar-se para o que vai<br />
acontecer.”<br />
Minha mãe estava com<br />
uma crise cardíaca fortíssima<br />
e falta de respiração.<br />
Passei o resto do dia junto à cama<br />
dela, rezando, conversando, procurando<br />
consolá-la, apesar do tormento que<br />
sentia ao vê-la padecer falta de ar. No<br />
meio daquela asfixia, ela mantinha-se<br />
numa calma que me deixava pasmo!<br />
Ela olhava sempre para a frente, numa<br />
admirável resolução. Notava que<br />
ela tinha consciência de estar morrendo<br />
e via a morte chegar; mas, via também<br />
que o Céu se aproximava.<br />
À noite, ela acabou se recompondo<br />
um pouco, e eu ainda muito<br />
e muito débil, fui recolher-me para<br />
descansar.<br />
Glorioso Sinal da Cruz<br />
Aspectos da fazenda em Amparo<br />
Na manhã seguinte, assim que me<br />
despertei, perguntei por ela. Avisaram-me<br />
que o médico tinha passado<br />
a noite assistindo-a e que ela ia se<br />
aguentando. Tomei o café da manhã,<br />
li um pouquinho o jornal, com a intenção<br />
de logo depois ir vê-la, quando me<br />
informaram que ela estava in extremis.<br />
Ainda naquele tempo eu andava<br />
com uma espécie de muletas. Levantei-me<br />
como pude e fui para o quarto<br />
dela, contíguo ao meu. Quando<br />
cheguei, o doutor me disse: “Ela<br />
morreu.”<br />
O médico explicou que, de súbito,<br />
o coração dela baqueou e ela sentiu<br />
que vinha a morte. Ela sabia que<br />
eu ainda estava muito doente e teve<br />
tanta delicadeza, que não me mandou<br />
chamar. Como médico, ele não<br />
pôde conter-lhe a vida, e ela faleceu.<br />
Antes de morrer, ela fez um grande e<br />
resoluto Nome do Padre, de cima da<br />
cabeça até abaixo, no peito e, com o<br />
glorioso Sinal da Cruz, ela morreu.<br />
Eu entrei… que pude fazer? Não<br />
sei há quantas décadas eu não chorava.<br />
Nessa ocasião chorei copiosamente,<br />
caudalosamente…! Depois<br />
fui para o meu quarto, fiz a toilette,<br />
preparei-me para ficar fazendo<br />
guarda ao corpo enquanto estivesse<br />
em casa e, depois, acompanhá-la ao<br />
cemitério.<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na Missa de<br />
sétimo dia de Dona Lucilia,<br />
em 27 de abril de 1968<br />
Enfrentando a<br />
morte da mãe<br />
Quando me preparava,<br />
a tristeza de repente sumiu<br />
de minha alma e tive uma<br />
tranquilidade, uma serenidade<br />
extraordinárias, apesar<br />
da dor.<br />
Fui ao salãozinho cor-de-<br />
-rosa de casa, onde estava<br />
exposto o corpo. Começaram a chegar<br />
pessoas da família e relações.<br />
Mais tarde ela foi enterrada.<br />
Acompanhei o féretro até a porta<br />
do Cemitério da Consolação, não<br />
desci para acompanhar o corpo, porque<br />
minhas condições não permitiam<br />
por causa da amputação. Dei o<br />
giro com o automóvel e voltei para<br />
casa.<br />
Entrei… Era a primeira vez que<br />
eu encontrava a casa sem a dona.<br />
O que pude fazer? Deitar-me, rezar,<br />
adormecer… A vida continuou.<br />
Na manhã seguinte fui à fazenda<br />
do Êremo do Amparo de Nossa Senhora.<br />
Até então ainda não tinha saído<br />
de São Paulo andando de muletas.<br />
De lá voltei só para a Missa de<br />
sétimo dia.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de<br />
11/8/1984)<br />
7
Reflexões teológicas<br />
Flávio Lourenço<br />
O mais empolgante<br />
espetáculo da História<br />
Ressurreição dos mortos<br />
Igreja de Santa Maria,<br />
Tarrasa, Espanha<br />
No Juízo Final, todos os homens já estarão mortos e<br />
individualmente julgados, exceto um punhado de eleitos,<br />
especialmente amados por Nossa Senhora. Estes terão sofrido<br />
tanto que Deus os dispensará de morrer no fim do mundo e<br />
testemunharão o espetáculo mais empolgante de toda a História.<br />
Qual o sentido mais profundo<br />
do Juízo Final? Através dessa<br />
pergunta poderemos compreender<br />
melhor como devemos representá-lo<br />
aos nossos olhos.<br />
Todos estarão julgados<br />
Sem dúvida, o Juízo Final será o<br />
acontecimento mais entusiasmante da<br />
História, a se equiparar apenas com as<br />
cenas da vida de Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo. Nele se dará a ressurreição dos<br />
mortos e isso tem um sentido especial.<br />
O Cordeiro de Deus quis morrer<br />
e morreu. Nossa Senhora teve uma<br />
morte que a Igreja, com a sua linguagem<br />
incomparável, chama de dormição<br />
da Bem-aventurada Virgem Maria,<br />
pois foi tão leve que se deu como<br />
um ligeiro sono.<br />
Todos os homens já terão morrido<br />
na ocasião do Juízo Final, exceto<br />
um grupo pequeno de homens<br />
especialmente amados por<br />
Nossa Senhora, os quais terão sofrido<br />
tanto, que Deus os dispensará<br />
de morrer. Estes assistirão ao<br />
fim e ao recomeço de todas as coisas,<br />
e terão diante de si os espetáculos<br />
mais empolgantes de toda a<br />
História.<br />
As pessoas de todas as épocas históricas,<br />
exceto esse punhadinho final<br />
de eleitos, já terão sido julgadas em<br />
seu juízo particular e, portanto, já terão<br />
seus destinos fixados. Esses últimos<br />
que não morrerão estarão confirmados<br />
em graça e não poderão<br />
mais pecar.<br />
8
Justiça completa para os<br />
corpos e para as almas<br />
Quando o homem morre, seu cadáver<br />
padece a desagregação e se decompõe.<br />
Por causa deste fim inevitável,<br />
o corpo acaba não sofrendo todos<br />
os castigos que mereceu, por ter sido<br />
instrumento para o pecado, nem recebe<br />
todos os gáudios e alegrias, por<br />
ter favorecido a prática da virtude.<br />
Portanto, é necessário que haja a ressurreição<br />
para que o corpo se associe<br />
ao destino eterno da alma. Assim, os<br />
bem-aventurados estarão com seus<br />
corpos gozando da felicidade eterna<br />
no Céu; os réprobos sofrerão tormentos<br />
corporais indescritíveis no Inferno,<br />
por toda a eternidade.<br />
É preciso que se queimem o corpo<br />
que gozou do prazer infame da impureza,<br />
a língua que serviu de instrumento<br />
à mentira e à calúnia, os olhos<br />
que serviram para dardejar ódio,<br />
mentir e lisonjear ou para ver coisas<br />
impuras, os ouvidos que se deleitaram<br />
em ouvir doutrinas falsas, músicas<br />
lascivas ou imoderados elogios<br />
sobre si próprio. Não haverá parcela<br />
do corpo do réprobo que não estará<br />
inundada de dor eternamente.<br />
O corpo dos bem-aventurados, porém,<br />
estarão inundados de felicidade<br />
e bem-estar. O corpo, portanto, deverá<br />
ser premiado ou castigado.<br />
Determinados homens praticaram<br />
pecados ocultos; outros, cometeram<br />
pecados escandalosos, que se tornaram<br />
conhecidos e levaram muita gente para<br />
o Inferno. Todos serão castigados.<br />
Também, e principalmente, as virtudes<br />
praticadas, às vezes às ocultas,<br />
serão premiadas. Quantos atos de<br />
abnegação que ninguém conheceu,<br />
quantas provas de fidelidade, heroísmo<br />
ou bondade que os homens viram<br />
e não apreciaram, ou não presenciaram,<br />
mas os Anjos do Céu admiraram<br />
e, voltando-se a Nossa Senhora,<br />
disseram: “Mãe nossa, recompensai-o<br />
ainda mais!”<br />
Quanto juízo errado os homens fazem<br />
uns sobre os outros, quanta amizade,<br />
indiferença ou ódio imerecidos.<br />
É preciso que haja um ato pelo<br />
qual, na presença de Deus ofendido<br />
ou glorificado, e de toda a humanidade,<br />
pública e oficialmente, se proclame<br />
a História do mundo e se passem<br />
todos os atos de virtude, como<br />
também todos os pecados. E na aclamação<br />
dos Anjos e dos bem-aventurados<br />
serão proclamados os méritos<br />
de cada um, até da pessoa mais modesta.<br />
Dos maiores pecadores ou dos<br />
mais modestos, serão enxovalhados<br />
os defeitos. Será feita a justiça diante<br />
de todos.<br />
Esplendorosa solenidade<br />
e a mais terrível rejeição<br />
Há algo ainda mais terrível. Assim<br />
como o homem abandonado por sua<br />
própria mãe está no maior dos abandonos,<br />
assim Nossa Senhora olhará<br />
para os condenados gelidamente ou,<br />
pior, com repulsa… O olhar indignado<br />
de Maria, como se pode conceber?!<br />
Voltando-se para alguém, Ela<br />
dirá: “Ofendeste meu Filho! Rejeito-te!<br />
Recuso-te! No meu coração<br />
não há espaço para ti! Houve espaço,<br />
mas tu o recusaste e meu coração<br />
se abriu para outros. O lugar que te<br />
era destinado foi dado a outros! Vai<br />
para o castigo eterno!”<br />
É preciso que esse Juízo se realize<br />
para que a justiça seja completa.<br />
E, por esta razão, para que se revele<br />
aos olhos de todos o valor dos méritos<br />
e a abominação dos pecados,<br />
será necessário que todos os atos e<br />
tudo o que se passar relativo ao fim<br />
do mundo seja revestido da mais esplendorosa<br />
solenidade. Por quê?<br />
Porque a solenidade realça tudo: na<br />
alegria, leva-a ao seu apogeu; na severidade,<br />
esmaga e atormenta ainda<br />
mais quem deve ser torturado.<br />
Flávio Lourenço<br />
Diante de Deus<br />
ofendido e glorificado<br />
Dormição da Santíssima Virgem - Museu de Belas Artes, Valência<br />
9
Reflexões teológicas<br />
No dia do Juízo,<br />
sensação semelhante<br />
à de uma expedição<br />
à Antártida<br />
Flávio Lourenço<br />
Admitidas como hipóteses<br />
por Doutores e Santos,<br />
não devemos nos espantar<br />
diante destas cenas grandiosas<br />
que a Fé nos faz entrever,<br />
e que nos dão uma<br />
ideia do fim do mundo.<br />
Lembro-me de ter tido<br />
uma ideia sobre este assunto<br />
lendo numa revista chamada<br />
“Geographic Magazine”<br />
a história de uma expedição<br />
para o Polo Antártico,<br />
a qual passou por lugares<br />
que nunca, segundo tudo<br />
leva a crer, nenhum homem<br />
tinha estado.<br />
Ali encontraram a solidão<br />
da natureza. Tudo gelado,<br />
branco, na aparência<br />
sem vida. O branco é uma<br />
cor admirável em certas circunstâncias,<br />
mas horrível em outras;<br />
numa sala de operações de hospital,<br />
por exemplo. Uma superfície branca<br />
para a qual se olha e só há gelo a perder<br />
de vista, é desoladora.<br />
Certo dia, os que participavam da<br />
expedição olharam para o chão e viram<br />
uma camada de gelo transparente,<br />
através da qual vislumbraram<br />
cardumes enormes de camarões róseos<br />
que circulavam por debaixo naquele<br />
mar.<br />
Tive a impressão de que eles sozinhos,<br />
naquele lugar onde homem<br />
nenhum tinha pisado, deveriam se<br />
sentir como que andando na mão<br />
de Deus, porque aquilo estava intacto<br />
como quando Ele criou. Nenhum<br />
homem havia pecado ali, nem praticado<br />
atos de virtude. Naquele espaço<br />
de terra pairava apenas o olhar e<br />
a providência divina.<br />
O silêncio, a solidão, a noção de<br />
que a vida humana e até a vida ani-<br />
Inferno - Museu de Belas Artes, Valência<br />
mal não existem naquele lugar, causam,<br />
naturalmente uma impressão<br />
tremenda.<br />
Ora, sensação semelhante teremos<br />
no dia em que ressuscitarmos. Quando<br />
os últimos homens bons tiverem<br />
bebido a sua última gota de fel da taça<br />
desmedidamente grande, quando<br />
o último ato da História dos homens<br />
tiver terminado, chegará o momento<br />
no qual o Juiz divino virá para julgar.<br />
Um quadro representando<br />
o fim do mundo<br />
Há um quadro famoso que representa<br />
uma cena minutos antes de começar<br />
o fim do mundo: a terra desolada,<br />
um grupo pequeno de homens rezando<br />
em torno de um padre que está<br />
celebrando a Missa. No Céu, Deus,<br />
Nossa Senhora, os Anjos e os Bem-<br />
-aventurados, todos esperam a Missa<br />
concluir para encerrar a História.<br />
Eu acho a concepção<br />
magnífica. A Missa é a renovação<br />
incruenta do Santo<br />
Sacrifício do Calvário.<br />
Assim, é esplendoroso, é<br />
magnífico que a Providência<br />
espere a última Missa<br />
terminar para que a História<br />
do mundo seja declarada<br />
encerrada. Eu considero<br />
isto extraordinário!<br />
Em certo momento, os<br />
homens percebem que algo<br />
de grandioso vai se passar:<br />
a natureza inteira se desestabiliza,<br />
desengonça e uma<br />
enorme modificação se prepara<br />
em torno deles. Ventos<br />
estranhos sopram, não é<br />
apenas uma tempestade ou<br />
um terremoto, é algo mais<br />
sutil e imponderável.<br />
Eles sentem que presenças<br />
magníficas e impalpáveis<br />
percorrem como luzes<br />
misteriosas este mundo no<br />
qual o Sol já terá se obscurecido,<br />
a Lua já não se fará<br />
mais ver, as luzes do céu terão se<br />
desbotado.<br />
Ao clamor de uma<br />
voz prodigiosa<br />
De repente, dentro do silêncio geral,<br />
uma voz, cujo timbre se compara a um<br />
toque de trombeta admirável e potentíssimo,<br />
se faz ouvir: “Ressuscitai!” Segundo<br />
certos autores, esta ordem será<br />
dada por um Arcanjo. Outros sustentam<br />
que será o próprio Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo quem bradará, com doçuras<br />
inefáveis e severidades infinitas, reboando<br />
por toda parte e dizendo.<br />
Surpresas que<br />
fazem rejubilar<br />
Podemos conjecturar que, entre<br />
o momento da ressurreição e a vinda<br />
de Nosso Senhor Jesus Cristo, haja<br />
alguns instantes de agradáveis ou<br />
10
desagradáveis surpresas. Talvez, dois<br />
Bem-aventurados se cumprimentem,<br />
e um diga ao outro: “Salvei-me!”<br />
Ambos olham um terceiro e comprovam<br />
que foi condenado…<br />
E assim se darão sucessivos inesperados:<br />
“Aquele que eu imaginava tão<br />
bom, não se salvou…” Ou: “O outro<br />
por quem eu tinha tal desinteresse, superou-me<br />
em perfeição! Como fiquei<br />
pequeno em relação a ele. Meu Deus,<br />
que extraordinário! Ele está maravilhoso!<br />
Julgava-o um ignorante, mas<br />
vejo que se encontra em um patamar<br />
superior, contemplando a Deus e conhecendo-O<br />
insondavelmente mais do<br />
que eu. De fato, só tem importância<br />
saber sobre Ele e amá-Lo.”<br />
“Sobre aquele outro incide uma<br />
luz especial. Ele é dos prediletíssimos!<br />
Há nele um brilho incomparável.<br />
O que será? Ah... estou percebendo!<br />
Ele foi devotíssimo de Nossa<br />
Senhora e trabalhou para, de todas as<br />
formas e por todas as partes, difundir<br />
a devoção a Maria; Ela o tomou para<br />
o seu amor particular!<br />
“Como Nossa Senhora<br />
é a Medianeira de todas<br />
as Graças, quem está<br />
mais perto d’Ela está mais<br />
perto de Deus, pois não<br />
há outro modo de aproximar-se<br />
d’Ele a não ser por<br />
meio d’Ela. Logo, aquele<br />
que tanto A amou, está a<br />
uma proximidade indescritível<br />
de Deus!”<br />
O cortejo mais<br />
belo da História<br />
Em determinado momento,<br />
tudo se põe em<br />
ordem, os céus ficam cada<br />
vez mais esplendorosos,<br />
iluminados; a abóbada<br />
celeste, tão azul,<br />
começa a apresentar fissuras<br />
– as quais imagino<br />
em forma de ogivas –,<br />
de onde surgem luzes e<br />
começam a baixar cânticos. É chegada<br />
a hora escolhida pela Providência<br />
para o julgamento final. Desce, por<br />
fim, o Filho de Deus!<br />
Neste ponto, São Tomás de Aquino<br />
põe um problema interessantíssimo,<br />
rebatendo uma mentalidade errada<br />
que julga o cerimonial uma manifestação<br />
de frivolidade de espírito: a<br />
distância que há entre o Céu e a Terra<br />
é enorme. Ora, sabemos que o nosso<br />
Rei vem nos julgar. O que conviria,<br />
então? Que os homens fossem ao<br />
seu encontro e Ele aparecesse acompanhado<br />
de sua Mãe Santíssima e de<br />
seus Anjos? Ou, pelo contrário, conviria<br />
que O esperassem na Terra, reverentes,<br />
entusiasmados, transidos de<br />
devoção, mas ao mesmo tempo imobilizados<br />
pelo respeito? Deus descerá<br />
ou os homens subirão até Ele? São Tomás<br />
resolve o caso lindissimamente.<br />
Enquanto Nosso Senhor estiver<br />
baixando, o cortejo enorme dos justos,<br />
segundo a virtude que praticaram,<br />
começará também a se elevar;<br />
Juízo Universal - Catedral de Burgos<br />
e do chão, protestarão e se contorcerão<br />
os condenados.<br />
Como deve ser belo e inenarrável<br />
o encontro entre os justos ressurrectos<br />
e Nosso Senhor Jesus Cristo!<br />
Alguns dos homens que viverem<br />
no fim do mundo, presume-se que<br />
não passarão pela morte; aliás, imagino-os<br />
como sendo os mais devotos<br />
de Nossa Senhora que tenha havido<br />
ao longo da História. Tudo isto não é<br />
senão imaginação, mas pode-se conceber<br />
que tais homens estejam no<br />
centro deste cortejo, pois foram os<br />
que sofreram e beberam as últimas<br />
gotas de fel da História, choraram<br />
as últimas lágrimas que os olhos humanos<br />
eram chamados a chorar, deram<br />
os últimos gemidos que de peitos<br />
humanos deveriam se evolar para<br />
Deus. Levantam-se como heróis!<br />
Ora, eu ao menos não consigo<br />
imaginar qual seria a cerimônia deste<br />
encontro no Céu, como Nosso Senhor<br />
olharia para cada um e vice-<br />
-versa. Porque terminada a História<br />
do mundo, está concluída<br />
a História da salvação<br />
dos homens. Os<br />
tronos que os demônios<br />
deixaram vazios no Céu<br />
estarão preenchidos, a<br />
obra divina estará completa<br />
e o que Deus tinha<br />
em vista quando criou<br />
tudo, por fim, ter-se-á<br />
realizado.<br />
Daí por diante, Deus<br />
contemplará em paz<br />
a sua obra com aquela<br />
grandeza e majestade<br />
que a Bíblia nos diz,<br />
no Gênesis, que terminada<br />
a obra da Criação,<br />
no sétimo dia Deus descansou<br />
(cf. Gn 2, 3). Assim<br />
também Ele olhará<br />
o fim a História e, por<br />
assim dizer, começará o<br />
grande repouso d’Ele.<br />
Que festa! Que provas<br />
de amor! Que ma-<br />
Flávio Lourenço<br />
11
Reflexões teológicas<br />
Flávio Lourenço<br />
nifestações! Que sorrisos e que bênçãos<br />
de Nossa Senhora!<br />
Maria Santíssima e os homens-<br />
-lei estarão ao lado do Juiz<br />
Não basta sofrer muito para alguém<br />
ser premiado. É preciso ter sofrido<br />
com uma grande generosidade<br />
de alma. Ora, no Antigo Testamento,<br />
o profeta-rei gemeu de um<br />
gemido profético, prenunciando o<br />
Redentor: “Nada há de intacto nos<br />
meus ossos. Não há parte sã em minha<br />
carne” (Sl 37, 4.7).<br />
Machucaram-no inteiro! Ninguém<br />
jamais resplandeceu na generosidade<br />
do sofrimento como Ele; pois bem,<br />
este será o esplendor do Homem-<br />
-Deus no fim do mundo.<br />
E como Se apresentará Nossa Senhora?<br />
Ela é a Rainha dos Mártires,<br />
no entanto, mártir Ela não foi, porque<br />
Nosso Senhor quis provar seu amor para<br />
com Ela desta forma: Ele sofreu tudo,<br />
mas não permitiu que tocassem em<br />
sua Mãe! Como, então, Ela é a Rainha<br />
dos Mártires? Porque padeceu por nós,<br />
em sua alma, dores verdadeiramente<br />
inenarráveis, e numa alma como a<br />
d’Ela, tais dores supõem sofrimentos<br />
muito maiores que os corporais.<br />
Pois bem, nós veremos, talvez,<br />
através de seu peito virginal e materno,<br />
o seu Sapiencial e Imaculado Coração,<br />
cujas pulsações fazem recordar<br />
a dor sofrida no alto do Calvário,<br />
mas também as alegrias na Páscoa<br />
da Ressurreição.<br />
Por fim, Nosso Senhor descerá à<br />
Terra e, junto a Ele, estarão uns homens<br />
misteriosos sentados em tronos<br />
à sua direita e esquerda. Estes serão<br />
os cojuízes que São Tomás chama de<br />
homens-lei, pois sua presença lembra<br />
e serve de lei para os outros.<br />
Haverá um silêncio enorme, até<br />
os cânticos cessarão. Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo, depois de passar em revista<br />
as virtudes e os defeitos de todos,<br />
concluirá como Juiz Onipotente,<br />
Onisciente, desejoso de aplicar<br />
o seu decreto eterno. Manda vir para<br />
a sua direita os justos, a quem Ele<br />
amou, e os ímpios, manda-os para<br />
o Inferno! Assim o Juízo Universal<br />
completará o Juízo Particular.<br />
A Terra, um lugar<br />
de peregrinação<br />
Santas no Céu - Mosteiro de San Cugat, Espanha<br />
Organizar-se-á o cortejo ascensional<br />
rumo ao Céu e, finalmente, os<br />
Anjos conduzirão os justos para junto<br />
de Deus. E o que acontecerá com<br />
a Terra? Como, do Céu, os homens,<br />
os Anjos e o próprio Deus irão considerá-la?<br />
Ela será vista como um lugar<br />
de peregrinação.<br />
Imaginemos, por exemplo, que do<br />
alto de um avião, estivéssemos sobrevoando<br />
a Terra Santa, e um perito em<br />
história das Cruzadas ou em História<br />
Sagrada nos dissesse: “Estão vendo?<br />
Esse é o Monte Carmelo. Ali Elias recebeu<br />
a primeira profecia sobre Nossa<br />
Senhora. A nuvenzinha, que depois se<br />
tornou imensa e fez chover a água regeneradora,<br />
previa a Virgem Maria de<br />
quem nasceria o manancial de graças<br />
que é Nosso Senhor Jesus Cristo.”<br />
“Mais adiante está o lugar onde<br />
Elias matou os quatrocentos sacerdotes<br />
de Baal. Mais além, encontra-se o<br />
palácio do Rei Acab e da Rainha Jezabel,<br />
por cuja perseguição o profeta<br />
teve de fugir ao deserto. Ali foi a praia<br />
onde a baleia aportou e ejetou Jonas,<br />
que saiu lá de dentro cambaleando…”<br />
O suposto guia acentuaria, sobretudo,<br />
os passos do Divino Mestre: “Ali,<br />
Nosso Senhor disse tal passagem que<br />
consta no Evangelho, mais adiante, realizou<br />
tal cura. Aquele foi o Pretório<br />
de Pilatos, onde se proclamou o Ecce<br />
Homo e onde houve a flagelação. Ali o<br />
Redentor caiu a primeira<br />
vez, naquele outro lugar,<br />
a segunda; lá caiu pela<br />
terceira vez. O lugar exato<br />
onde Ele foi crucificado<br />
está ali…”<br />
“Mais adiante, Godofredo<br />
de Bouillon teve<br />
uma grande provação,<br />
a ponto de se pôr de joelhos,<br />
chorar e rezar. Mas<br />
empunhou a espada e foi<br />
para frente! Aquele é o<br />
itinerário dele, vejam!<br />
Esse foi o ponto da muralha<br />
de Jerusalém por<br />
onde ele entrou…”<br />
Assim veríamos toda<br />
história das Cruzadas:<br />
“Naquele ponto vocês<br />
12
Samuel Holanda<br />
Santo Elias - Catedral de Autun, França<br />
verão, no Egito, onde foi a prisão de<br />
São Luís IX. Daqui a poucos minutos<br />
estaremos voando sobre Túnis, e ali<br />
poderão ver onde São Luís morreu,<br />
deitado no chão, em sinal de humildade,<br />
com tifo, sofrendo e se recriminando<br />
a si mesmo, por se achar o culpado<br />
de a Cruzada não ter tido bom<br />
êxito. Mas os Anjos não pensavam<br />
como ele; apenas o Rei santo morreu,<br />
veio uma miríade celeste colher sua<br />
alma para levá-la ao Céu!”<br />
Esses lugares começam a brilhar a<br />
nossos olhos. Os Anjos cantam sinfonias<br />
e visitam constantemente estes<br />
locais, sem precisarem abster-se<br />
da visão beatífica. Como nós gostaríamos<br />
de ver tudo isto!<br />
A história do Inferno também continuará:<br />
os Anjos darão ordens às<br />
substâncias impuras, fétidas e desagradáveis<br />
que restarem sobre a Terra para<br />
serem lançadas no Inferno e assim<br />
atormentar ainda mais os réprobos.<br />
É a lata de lixo do mundo e da História.<br />
Vai tudo lá para dentro e se tampa<br />
aquela porta para todo<br />
o sempre. Acabou!<br />
Um incêndio purificador<br />
percorrerá toda<br />
a Terra e consumirá tudo<br />
quanto estiver vivo,<br />
segundo alguns teólogos.<br />
Outros, pelo contrário,<br />
admitem que<br />
pelo menos a natureza<br />
vegetal continuará.<br />
É uma coisa discutível.<br />
Eu tenho uma certa<br />
simpatia pela ideia de<br />
que a natureza vegetal<br />
continue, me parece<br />
mais razoável, embora<br />
seja uma opinião<br />
pessoal. Não há uma<br />
doutrina definida pela<br />
Igreja a este respeito.<br />
O Céu empíreo<br />
e suas eternas<br />
delícias<br />
Só isto acontecerá<br />
com os homens? A<br />
Doutrina Católica nos<br />
ensina aquilo que a Ciência<br />
também afirma:<br />
o corpo do homem<br />
tem de ocupar um lugar.<br />
Não há corpo nem<br />
matéria que subsista<br />
fora de um determinado<br />
local.<br />
Por outro lado, o<br />
corpo humano que foi<br />
instrumento para praticar<br />
a virtude deve estar<br />
inundado de bem-<br />
-estar, assim como a<br />
alma está inundada de<br />
alegria ao ver a Deus.<br />
Como é que o corpo<br />
do homem vai ter essa<br />
alegria?<br />
Há uma parte do<br />
Paraíso que é chamada<br />
Céu empíreo. Ali,<br />
todos os homens que<br />
se salvarem terão os corpos num<br />
bem-estar e numa alegria extraordinária,<br />
numa natureza fabulosa.<br />
De maneira que é um lugar físico e<br />
imenso.<br />
Segundo algumas revelações, o Céu<br />
empíreo é formado por lugares maravilhosos,<br />
palácios e cidades lindíssimas,<br />
todas feitas de pedras preciosas,<br />
com um ar magnífico; tudo capaz de<br />
inundar o homem de gáudio. E conforme<br />
o homem vai vendo coisas novas<br />
em Deus, o Céu empíreo vai fazendo<br />
um comentário para o corpo.<br />
Os Anjos, por sua vez, utilizando-se<br />
da matéria do Céu empíreo como um<br />
músico poderia servir-se de um instrumento<br />
para tocar belas melodias, produzirão<br />
sons, cores, aromas diversos,<br />
fazendo-se conhecer por este meio.<br />
Assim conversaremos com os Anjos<br />
nesse lugar iluminado de glória. v<br />
(Extraído de conferência de<br />
19/1/1983)<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1983<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
13
Eco fidelíssimo da Igreja<br />
Flávio Lourenço<br />
Realidade<br />
inevitável<br />
da morte<br />
Morte de Francisco I<br />
Igreja de Santiago,<br />
Amberes, Bélgica<br />
Nada tão incerto para o homem<br />
quanto o dia de sua morte; nada mais<br />
certo para ele do que a certeza de que<br />
morrerá. Na intenção de beneficiar<br />
seus filhos espirituais e conferir-lhes<br />
uma impostação sobrenatural acerca<br />
do assunto, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> expõe algumas<br />
verdades e fatos que envolvem este<br />
acontecimento misterioso e temível.<br />
14
Qual o proveito de se fazer uma<br />
reflexão sobre a morte? A utilidade,<br />
muitas pessoas negarão.<br />
Dirão que considerar tal assunto<br />
pode tornar os nervos tensos, produzir<br />
desequilíbrio nas almas, trazer<br />
tristeza e desassossego. E que, portanto,<br />
é inteiramente desaconselhável,<br />
ainda mais para pessoas jovens.<br />
Será bem verdade isto?<br />
Ilusão de se obter uma<br />
felicidade terrena<br />
Se assim o fosse, Deus não seria<br />
Deus ou, ao menos, teria cometido<br />
um erro. Porque Ele<br />
– que com sabedoria perfeita<br />
criou o universo de tal modo<br />
que o homem não se cansa<br />
de estudá-lo e de se encantar<br />
por ele –, quis colocar sinais da<br />
morte por toda a parte. Pôs a<br />
doença, a luta, o sofrimento.<br />
Em consequência do pecado<br />
original, o homem se depara<br />
com toda sorte de dificuldades.<br />
A todo momento ouvimos<br />
falar de pessoas que se<br />
suicidam, que preferem atirarse<br />
no abismo sombrio da morte<br />
a aguentar a vida, de tal maneira<br />
ela lhes é pesada.<br />
A existência humana se apresenta<br />
cheia de dor, tendendo,<br />
de fato, para a morte. Uma vida<br />
difícil e dura, a respeito da qual<br />
a educação moderna mente ao<br />
jovem e depois ao adulto e até<br />
ao velho, tanto quanto ela pode.<br />
O homem criado na atmosfera<br />
moderna é posto na ilusão<br />
de que a felicidade nesta Terra<br />
é uma coisa obtenível: cria-se<br />
o mito do indivíduo jeitoso e<br />
sortudo, que nasceu bem constituído,<br />
bem-dotado, que consegue<br />
por meio de jeitinhos<br />
ou jeitões o necessário para se<br />
tornar feliz.<br />
É a classe dos homens “vacinados”<br />
contra o infortúnio.<br />
A doença e a morte não os colhem, a<br />
pobreza não lhes arma ciladas; a eles<br />
a calúnia não dá punhaladas pelas<br />
costas, a incompreensão dos outros<br />
não os obriga a andar jardas dentro<br />
do isolamento e da melancolia. Nada<br />
lhes acontecerá, eles serão uns felizes.<br />
No remotíssimo tempo de minha<br />
infância, toda a atmosfera que cercava<br />
uma criança dava-lhe a ideia<br />
de um caminho para a felicidade: os<br />
quartos infantis eram empapelados<br />
com cores alegres, as camas tinham<br />
um laqueado claro e as mesinhas<br />
Anjo da Guarda - Catedral de Prato, Itália<br />
eram cobertas com tampos de vidro,<br />
por cima de tecidos ornados com flores<br />
e passarinhos. Havia quadrinhos<br />
representando meninos brincando<br />
numa natureza maravilhosa, revistas<br />
mostrando automóveis, aviões, castelos,<br />
passeios e diversões, e tudo parecia<br />
dizer à criança: “Serás feliz, serás<br />
feliz, serás feliz…!”<br />
Em certo momento, porém, começaram<br />
as surpresas desagradáveis.<br />
E essas foram caindo, na minha<br />
infância “rósea e azul-claro”, como<br />
tiros de bombarda!<br />
Flávio Lourenço<br />
Decreto da morte na<br />
ponta do termômetro<br />
Por ocasião de uma doença<br />
que me causava febres altas tive<br />
de ficar de cama, e li um livrinho<br />
muito ilustrado e bonitinho,<br />
contando a história de um<br />
menino de minha idade que havia<br />
morrido. Um anjo tomava a<br />
alma dele no hospital e levava-<br />
-a para o lugar onde ela ficaria<br />
para sempre: um céu meio pagão<br />
e estranho, e não o Céu definidamente<br />
verdadeiro, anunciado<br />
pela Igreja Católica.<br />
Esse menino, levado pelo<br />
anjo, sobrevoava a cidadezinha<br />
onde tinha nascido e a<br />
casa onde havia morado; via a<br />
própria mãe, o quarto com os<br />
brinquedos e um pequeno tanque<br />
com um patinho que havia<br />
sido dele; o cachorrinho do vizinho,<br />
o carrinho do padeiro e<br />
a árvore onde ele brincava, da<br />
qual ainda pendiam algumas<br />
frutas que ele não tivera tempo<br />
de colher… Enfim, todas<br />
as coisas da vida, das quais ele<br />
se destacava, iam ficando cada<br />
vez mais longe e ele partia para<br />
o desconhecido.<br />
A minha doença era tão insignificante<br />
que mamãe me<br />
deixou ler esse livro durante a<br />
convalescença.<br />
15
Eco fidelíssimo da Igreja<br />
Edgard Martins (CC3.0)<br />
to de Deus, pois eu sou uma pessoa<br />
insignificante, da qual Ele pode dispor<br />
como quiser! Isso está na ordem<br />
das coisas e, se Ele deseja que assim<br />
aconteça, tenho de me adaptar de<br />
qualquer maneira.”<br />
A febre continuava altíssima e<br />
eu me perguntava: “Então, vou para<br />
junto de Deus? É o que não sei…<br />
Sou bastante bom para ser acolhido<br />
por Ele? Como é isto? Para onde<br />
vou? Que apuro! Será que essa febre<br />
não desce?” Em certo momento<br />
a febre baixou. Esqueci-me do menino<br />
da história e a ideia da morte ficou<br />
de lado.<br />
Problemas que as crianças às vezes<br />
se põem: “Vale a pena viver, vale<br />
a pena ser como esses que estão aí?<br />
Por que viver e atravessar tudo isto?<br />
Não valeria a pena morrer?” Por esses<br />
problemas todos passam. Começa<br />
a vida e ela é uma batalha!<br />
Menino afogado<br />
no Rio Tietê<br />
Havia em São Paulo um rapaz de<br />
quinze ou dezesseis anos, a quem eu<br />
conhecia. Sendo bastante perito em<br />
natação, pertencia ao Clube Tietê,<br />
localizado à beira do rio de mesmo<br />
Clube de Regatas Tietê no início do século XX<br />
Mas eu tinha uma noção infantil<br />
de que, à medida que a febre subisse,<br />
ela poderia chegar a um ponto em<br />
que eu morreria. Então, eu me sentia<br />
a poucos passos da morte e observava<br />
o termômetro para ver se chegava<br />
a hora. Para mim, o decreto da<br />
morte estava na ponta do termômetro…<br />
São sustos da infância. Quando<br />
a febre subia a 38 ou 39, eu, pensando<br />
que as pessoas não aguentam<br />
mais de 41 graus, dizia: “Estou a dois<br />
passos, a dois graus… Vai acontecer<br />
comigo o que se deu com aquele<br />
menino! E se algum Anjo me leva,<br />
começa a sobrevoar a Alameda Barão<br />
de Limeira e eu vejo isto e aquilo…?”<br />
Isso para mim era lancinante! Antes<br />
de tudo pela ideia de deixar mamãe.<br />
Se me dissessem que ela iria<br />
comigo para o Céu, eu nem olhava<br />
mais para baixo, mas… e se ela não<br />
fosse? Como me arranjaria no Céu<br />
sem ela? A ideia da morte me causava<br />
medo.<br />
Era uma catástrofe e um desastre.<br />
Eu tinha enorme vontade de<br />
não morrer e ficava muito angustiado<br />
pensando no tal livrinho, mas<br />
sem a menor revolta ou inconformidade,<br />
pois pensava: “É um direinome,<br />
o qual era muito limpo naqueles<br />
remotos tempos.<br />
Certo dia, uma pessoa veio me<br />
dar uma notícia:<br />
— Você sabe que fulano morreu?<br />
Perguntei:<br />
— Mas, como?<br />
— Ele estava em perfeita saúde<br />
e, no sábado à tarde, foi nadar no<br />
Clube Tietê. Subiu a um trampolim,<br />
brincando com os amigos, lançou-se<br />
de cima e afundou diretamente. Todos<br />
pensaram que havia mergulhado<br />
em boa forma e, como demorava em<br />
sair, houve brincadeiras gerais: “Que<br />
fôlego ele tem!”<br />
Mas, ao cabo de alguns minutos,<br />
uma vez que não aparecia, avisaram<br />
a direção do clube. Mandaram então<br />
nadadores procurarem pelo rapaz,<br />
e logo ele foi trazido à tona: era um<br />
cadáver.<br />
Talvez tenha batido com a cabeça<br />
no fundo do rio. A família notou que<br />
ele tardava a chegar para o jantar e,<br />
de repente, recebeu um telefonema:<br />
ele morreu! O corpo foi levado a um<br />
necrotério para ser examinado e, assim,<br />
verificar a causa da sua morte.<br />
Exclamei:<br />
— Então, os jovens também morrem!<br />
— Oh, sim! Como qualquer um…<br />
Meu interlocutor, pessoa de bastante<br />
idade, deu um bocejo e um<br />
olhar malicioso, como quem dizia:<br />
“Você pensa que a morte não o atingirá?<br />
Ela está mais perto de mim,<br />
mas você também será alcançado pelas<br />
garras dela, de um momento para<br />
outro…”<br />
Pensei: “A ideia de que eu posso<br />
morrer a qualquer instante consola<br />
esse homem, o qual sempre afirma<br />
querer-me bem… Percebo que<br />
ele tem alegria em olhar para mim e<br />
notar que, na minha curta idade, já<br />
estou sentindo o roçar dos dedos da<br />
morte!”<br />
Por relações de sociedade, tive de<br />
comparecer ao velório. Vi o jovem<br />
esticado, com o queixo preso por um<br />
16
pano e os pés amarrados<br />
por uma fita. O lustre<br />
da sala estava coberto<br />
com um crepe preto e<br />
a mãe dele chorava. Refleti:<br />
“E se isso acontecesse<br />
comigo…? Se fosse<br />
minha mãe a que estivesse<br />
aqui, chorando?<br />
Eu posso morrer!”<br />
Flávio Lourenço<br />
Morte de um<br />
amigo<br />
Pouco tempo depois,<br />
num período de férias,<br />
recebi a notícia de que<br />
um outro menino morrera<br />
de modo trágico.<br />
Eu estava brincando sozinho no<br />
jardim quando vi minha mãe descer<br />
as escadas externas da casa e dirigir-<br />
-se para mim com olhar de piedade,<br />
bondade e muita pena, querendo me<br />
agradar especialmente. Fui logo para<br />
junto dela e, então, com o cuidado<br />
de quem iria contar-me algo que poderia<br />
me contristar, disse-me:<br />
— Meu filho, você vai passar por<br />
uma situação que ainda não conhece.<br />
Permaneci em silêncio e ela continuou:<br />
— Sabe quem está mal à morte?<br />
Pensei tratar-se de alguém da geração<br />
dela e disse, com certa indiferença:<br />
— Não.<br />
— Lembra-se de tal menino assim,<br />
seu amigo?<br />
Era um colega do São Luís, de minha<br />
idade, aproximadamente.<br />
Respondi:<br />
— Lembro-me.<br />
— Ele está desenganado pelos<br />
médicos e vai morrer.<br />
— Mas, como? O que aconteceu?<br />
— Ele brincava em casa, com vários<br />
amigos entre os quais um primo, um<br />
tanto desequilibrado. A brincadeira se<br />
transformou em briga e esse primo, tomando<br />
uma tesourinha de unhas que<br />
encontrara sobre um móvel, investiu<br />
Os afogados - Museu de Belas Artes de Arras, França<br />
contra ele e cravou-lhe uma das pontas<br />
perto da arcada de um dos olhos.<br />
Apesar de ser muito profundo, esse ferimento<br />
não seria nada, mas acontece<br />
que, evidentemente, a tesoura não estava<br />
desinfetada e o resultado foi uma<br />
infecção pavorosa, cujo alastramento<br />
os remédios não puderam conter. Você<br />
reze por ele.<br />
Naquele tempo os antibióticos<br />
ainda não estavam tão desenvolvidos.<br />
Os médicos davam o menino<br />
por perdido, pois o organismo dele<br />
estava reagindo mal, com febre alta<br />
e delírios…<br />
Mamãe também me disse:<br />
— É a primeira vez que morre<br />
uma pessoa próxima de você. Então,<br />
é preciso que se prepare para sentir<br />
os reflexos da morte.<br />
Ela me falava com muito carinho,<br />
mas, naturalmente, a ideia da morte<br />
me impressionou e vieram-me ao espírito<br />
as seguintes perguntas: “E eu,<br />
que por todo lugar encontro antipatias,<br />
não posso de repente receber<br />
uma tesourada em cada olho? O que<br />
pode me acontecer? Morrer! Que<br />
horror! A morte pode me agarrar de<br />
um momento para outro! E aonde<br />
me levará?!”<br />
Quando nos esquecemos da morte,<br />
de vez em quando ela faz soar<br />
uma clarinada aos nossos ouvidos.<br />
Clarinada fúnebre que parece mais<br />
um riso de caveira do que um toque<br />
de clarim, como quem diz: “Eu estou<br />
aqui. Se eu não te pegar agora, fica<br />
conhecendo como é minha cara e como<br />
é o meu riso, porque mais tarde<br />
eu te pego. Um dia… ahahah!… eu<br />
te pegarei!”<br />
É incontestável! Um dia ela nos<br />
pegará.<br />
Na doença de crupe,<br />
primeira visita da morte<br />
Eu recebi, por enquanto, três visitas<br />
da morte.<br />
Na primeira eu tinha nove, dez<br />
anos, e ela ainda não visitara alguém<br />
mais próximo para eu ver outrem falecer;<br />
ela visitou-me a mim. Tive, então,<br />
uma primeira ideia de como é o<br />
estado do homem que vai morrer.<br />
Certa manhã, lembro-me de ter<br />
despertado fraquíssimo, quase sem<br />
forças para sentar-me na cama. Imediatamente<br />
chamei mamãe e, quando<br />
ela veio, eu disse com a voz embargada:<br />
— Meu bem, não me levanto agora,<br />
pois estou me sentindo muito<br />
mal.<br />
— O que você sente, meu filho?<br />
17
Eco fidelíssimo da Igreja<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
— Uma dor de garganta<br />
horrorosa.<br />
Ela fez-me abrir a boca e<br />
notou uma inflamação medonha<br />
em minha garganta, mas<br />
não me disse nada. Apenas<br />
mandou alguém me lavar e<br />
conduzir-me de volta à cama.<br />
Uma criada veio depois trazer-me<br />
o café da manhã, pois,<br />
graças a Deus, o apetite nunca<br />
me faltou e, mesmo nessa<br />
situação, para comer eu estava<br />
a postos! Mas sentia-me<br />
tão mal que quase me arrastava…<br />
Mamãe, então, fez trazer<br />
o brinquedo das “grandes<br />
circunstâncias” para me distrair<br />
e colocou-o sobre a minha<br />
cama: a grande caixa representando<br />
uma aldeia francesa<br />
para ser composta pelas<br />
crianças. E disse:<br />
— Vá brincando aqui enquanto<br />
eu chamo o médico.<br />
Sentei-me e já não estava<br />
pensando muito na doença,<br />
embora eu respirasse miseravelmente<br />
mal. Em determinado<br />
momento, tive a sensação de<br />
um vazio que me invadia; percebi estar,<br />
de repente, privado da força necessária<br />
para permanecer sentado e tentei<br />
de todo jeito segurar-me em algo para<br />
não cair de costas e não me entregar à<br />
doença. Agarrei-me às grades da cama<br />
nos dois lados, julgando poder resistir,<br />
mas senti que os meus braços também<br />
se deixavam tomar por esse misterioso<br />
vazio. Minhas mãos se abriram e eu caí<br />
sobre o travesseiro, gritando:<br />
— Mamãe! Mamãe!<br />
Ela veio correndo e daí a pouco<br />
estava o <strong>Dr</strong>. Murtinho Nobre em<br />
meu quarto. Examinou-me, não comentou<br />
nada diante de mim, saiu do<br />
quarto com mamãe e explicou:<br />
— Dona Lucilia, o <strong>Plinio</strong> está com<br />
crupe – ou angina diftérica – e pode<br />
morrer…<br />
Tratava-se de uma infecção frequente<br />
em crianças, a qual faz a garganta<br />
inchar de tal maneira que acaba<br />
obstruindo a respiração e o doente<br />
morre por asfixia. Minha mãe ficou<br />
transida de susto! A sua primeira providência<br />
foi manter-me deitado na cama<br />
por tempo indefinido e a segunda<br />
consistiu em proibir as outras crianças<br />
da família de entrarem no meu quarto,<br />
pois a doença era contagiosa e ameaçava<br />
propagar-se entre elas.<br />
Mamãe poderia perfeitamente<br />
contratar uma enfermeira para tratar<br />
de mim, pois, sendo muito doente<br />
do fígado, se ela contraísse a<br />
crupe certamente morreria; mas ela<br />
nem quis saber de enfermeira, do começo<br />
até o fim do tratamento!<br />
Eu ouvi no quarto contíguo uma<br />
discussão muito viva entre mamãe e<br />
minhas tias, a respeito do meu estado<br />
de saúde. Naquele tempo as famílias<br />
eram muito unidas e, quando al-<br />
guém adoecia, compareciam<br />
as irmãs, as cunhadas e outros<br />
membros da família. Uma das<br />
minhas tias tinha um cunhado<br />
– que, aliás, morreu quando<br />
eu era ainda pequeno – professor<br />
na Faculdade de Medicina<br />
e ótimo otorrino. Ela então<br />
disse:<br />
— Olhe, a opinião de meu<br />
cunhado é que o <strong>Plinio</strong> tem<br />
de ser operado!<br />
Mamãe, que não desejava<br />
a operação, perguntou:<br />
— Por quê?<br />
— Esse Murtinho é um<br />
charlatão, pois a homeopatia<br />
é charlatanismo e seria ridículo<br />
querer curar o <strong>Plinio</strong> por<br />
meio dela. Se você não chamar<br />
o meu cunhado, o seu<br />
menino vai morrer!<br />
— Vou ver. Agradeça ao<br />
seu cunhado pela opinião e<br />
pela cortesia.<br />
Ouvindo a conversa delas,<br />
eu pensava: “Não quero essa<br />
operação dolorida, mas… e se<br />
eu morrer de repente? Não vale<br />
mais a pena aguentar a dor?<br />
Vamos ver o que eles resolvem…”<br />
E permanecia na expectativa de<br />
ver entrar alguém com um boticão<br />
para me cortar a garganta… Mamãe<br />
hesitou, pois percebeu o fundamento<br />
do raciocínio da minha tia: para<br />
tratar uma dorzinha de garganta a<br />
homeopatia estava bem, mas diante<br />
de uma doença violentíssima, que<br />
podia matar-me de uma hora para<br />
outra, não parecia melhor chamar<br />
um médico que resolvesse o caso<br />
pela cirurgia? Certamente rezou e<br />
depois telefonou ao médico, dizendo:<br />
— <strong>Dr</strong>. Murtinho, eu tenho muito<br />
medo e confesso com franqueza:<br />
embora eu deposite no senhor e na<br />
homeopatia a confiança que o senhor<br />
conhece, está em jogo a vida<br />
de meu filho. Estou sofrendo toda<br />
a pressão da família para chamar o<br />
18
médico alopata. O que o senhor me<br />
diz a esse respeito?<br />
— A senhora dê ao <strong>Plinio</strong> tais medicamentos<br />
e não se assuste: a febre<br />
ainda vai subir e, se o remédio fizer<br />
efeito, ele, em certo momento, expelirá<br />
da garganta uma membrana infeccionada<br />
e estará curado. Pouco<br />
antes das três horas da tarde, a senhora<br />
esteja com uma toalha no colo<br />
para receber essa membrana.<br />
Depois mande imediatamente uma<br />
das criadas levar esse pano à horta e<br />
enterrá-lo bem fundo. É necessário<br />
ter o buraco já pronto, pois trata-se de<br />
algo muito contagioso e, se a senhora<br />
o puser em qualquer outro lugar da<br />
casa, contaminará alguém! Se até as<br />
três horas ele não expelir a membrana,<br />
a senhora pode chamar o médico<br />
alopata que desejar. Este fará uma<br />
operação doloridíssima e perigosa<br />
na garganta do menino e não é<br />
garantido que ele se salve. A senhora<br />
é mãe dele e fará o que desejar.<br />
Eu lhe sugiro esperar até<br />
essa hora.<br />
Ela, então, mandou abrir<br />
uma espécie de pequeno “túmulo”<br />
para esse efeito no quintal da<br />
casa, entre as couves e os pés de<br />
milho. Tudo isso aconteceu de manhã;<br />
eu não ouvira a conversa, mas<br />
apenas percebi que mamãe resolvera<br />
tratar-me pela homeopatia. Ela<br />
entrava no quarto andando na ponta<br />
dos pés, com um sorriso de afeto,<br />
tendo um copo na mão e dizendo:<br />
— Meu filhinho, chegou a hora<br />
de tomar o remédio.<br />
E começava, então, a dar-me certos<br />
medicamentos em gotinhas e pequenas<br />
pastilhas, um dos quais, recordo,<br />
chamado tarantula cubensis<br />
– ao que parece, extraído de alguma<br />
aranha – e eu pensava: “Mas isto<br />
aqui é tão insignificante que nem<br />
é remédio! Eu vou piorar cada vez<br />
mais!” Entretanto, como eu depositava<br />
em mamãe uma confiança total,<br />
concluía: “Bom, se ela quer, vou tomá-lo!”<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Ela sabia que eu sentia dor ao ingerir,<br />
mas fazia aquilo entrar na minha<br />
garganta de tal modo que a suavidade<br />
de seu trato compensava o<br />
meu sofrimento físico. Sempre observador,<br />
apesar da febre, da dificuldade<br />
de engolir e da fraqueza levada até a<br />
evanescência, eu não deixava de sentir<br />
a atitude dela: a benquerença, a<br />
compaixão e a pena, pois minha aflição<br />
era assumida por ela inteiramente,<br />
dando-me a entender o seguinte:<br />
“Vamos atravessar isto juntos.” Ela<br />
sofreu muito mais do que eu, na previsão<br />
do que poderia acontecer.<br />
Tanto quanto isso possa ser explícito<br />
na mente de uma criança, em<br />
que as analogias são ao mesmo tempo<br />
vivazes e imprecisas, eu pensava<br />
confusamente: “Ela é para mim o<br />
que essa água fresca está sendo para<br />
a minha doença: um refrigério. Eu<br />
me sinto inteiramente refrigerado<br />
na companhia dela. Se mamãe for a<br />
minha advogada no juízo de Deus,<br />
estou arranjado!”<br />
Terrível sensação de morte<br />
O médico me encorajava a comer<br />
e a dormir o mais possível, para meu<br />
organismo resistir; mas eu acordei<br />
da sesta pior do que nunca! Comecei<br />
então a mostrar os sintomas de uma<br />
situação grave: não tinha coragem<br />
de me mexer, não havia posição em<br />
que me acomodasse e, às vezes, nem<br />
sabia mais quem eu era… Talvez fossem<br />
os temíveis 41 graus daquela febre<br />
que se apoderava de mim.<br />
Aproximadamente às três horas<br />
da tarde, perdi o contato com o<br />
mundo exterior e parecia-me haver<br />
caído no caos. Então tive a sensação<br />
da morte: comecei a espernear pela<br />
impossibilidade de respirar, com estertores<br />
em todo o corpo e tendo a<br />
ideia de que o fim havia chegado.<br />
Quis falar e gritar por mamãe,<br />
mas não consegui. Ela, apavorada,<br />
permanecia perto de mim.<br />
Em certo momento, dei sinais<br />
de querer expelir alguma<br />
coisa e ejetei, então, a tal membrana<br />
numa toalha de rosto colocada<br />
sobre o colo de mamãe.<br />
Ela ficou contentíssima!<br />
A criada jogou a toalha no local<br />
indicado e cobriu-a com terra,<br />
para os micróbios lá se arranjarem<br />
<strong>Dr</strong>. Antonio Murtinho<br />
de Sousa Nobre<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
19
Eco fidelíssimo da Igreja<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
como pudessem! Graças a Deus,<br />
nem mamãe nem ela foram contagiadas<br />
em nada.<br />
Depois de ter ajudado a me recompor<br />
um tanto, mamãe telefonou<br />
ao médico:<br />
— <strong>Dr</strong>. Murtinho!<br />
— É Dona Lucilia, não é?<br />
— Sim!<br />
— Não precisa dizer mais nada,<br />
pois a sua voz alegre já me diz tudo:<br />
a senhora está contente porque<br />
o <strong>Plinio</strong> expeliu a membrana. Agora<br />
não há mais perigo. Conserve o menino<br />
na cama por mais dois ou três<br />
dias, vá alimentando-o e o assunto<br />
está resolvido.<br />
Muito lentamente, eu senti a vida<br />
voltando: olhava para os bordos da<br />
cama, comecei a me mover, mas ainda<br />
não conseguia me sentar. Nem de<br />
longe pensava na caixa com a minha<br />
aldeia francesa! Como era fundo o<br />
“poço” no qual eu havia entrado!<br />
Que coisa terrível! À noite, já me<br />
encontrava melhor e muito alegre,<br />
pois não iria daquela vez para o Céu;<br />
pelo contrário, continuava com mamãe!<br />
No terceiro dia, já estava restabelecido<br />
e em liberdade.<br />
Quadro grave, crise<br />
de diabetes<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na década de 1960<br />
Joguei-me na batalha da vida e<br />
não pensei mais na possibilidade de<br />
morrer. Quando eu tinha 59 anos,<br />
entretanto, a morte visitou-me mais<br />
uma vez…<br />
Era o ano de 1967. Eu fui sentindo<br />
a desordem invadir meu organismo,<br />
a febre que subia, mas sentia<br />
também certa resistência; dentro<br />
de mim estava uma luta intensa… os<br />
médicos examinaram-me e diagnosticaram<br />
imediatamente um quadro<br />
grave de diabetes, com a glicose cinco<br />
vezes acima do normal.<br />
Resolveram chamar um cirurgião<br />
de certa fama, perito em pé diabético:<br />
<strong>Dr</strong>. Abid Bouabci. Depois de<br />
examinar-me, ele me disse:<br />
— Doutor <strong>Plinio</strong>, é necessidade<br />
urgente uma intervenção cirúrgica<br />
no hospital.<br />
E eu estava tão enfraquecido e<br />
tão desordenado, que eu não imaginei<br />
o que é que pudesse ser. E disse:<br />
— Bem, então vamos ao hospital.<br />
Dirigi-me ao Hospital Sírio Libanês,<br />
fui conduzido à sala de opera-<br />
ções; dormi, e quando acordei, estava<br />
no quarto, sentindo-me aliviado,<br />
mas ao mesmo tempo percebendo<br />
que a situação era séria e o resultado<br />
incerto. A cada momento passava<br />
um médico ou um enfermeiro para<br />
certificar como eu estava. Só dias depois<br />
soube do ocorrido: tinham amputado<br />
quatro artelhos.<br />
Com o passar do tempo recuperei-me,<br />
estou vivo e desde então tenho<br />
trabalhado bem. No entanto,<br />
sei que depois da operação uma parte<br />
de meu ser já caiu na morte; vejo<br />
também que pelo progresso da idade<br />
a morte acerca-se de mim. Assim<br />
é a vida!<br />
Como uma ave de rapina…<br />
No início do ano de 1975, depois<br />
de ter uma última conversa com um<br />
membro do Grupo, tomei um lindo<br />
automóvel Mercedes-Benz de cor<br />
bordeaux.<br />
Sentei-me no banco dianteiro e tive<br />
um estranho pressentimento: “De<br />
repente há uma trombada e eu morro<br />
por estar aqui na frente… Vou<br />
dormir e, quem sabe se acordarei<br />
ferido ou, talvez, diante do juízo de<br />
Deus?”<br />
Mas depois pensei: “Não se deve<br />
dar importância a essas impressões!”<br />
Sentei-me, rezei e adormeci.<br />
Quando acordei, estava num hospital,<br />
depois de um terrível desastre.<br />
Muitos veículos passaram pelo local<br />
do acidente, mas ninguém se ofereceu<br />
para socorrer-me. Eu estava privado<br />
dos sentidos, com um trauma<br />
medonho na cabeça, o qual privava-<br />
-me da noção íntegra e clara da realidade;<br />
não sabia o que tinha acontecido,<br />
padecia tremendas dores, sentia-me<br />
atordoado, fora de mim!<br />
Soube depois que a uma das pessoas<br />
que passaram por lá pediu-se<br />
ajuda, e ela fez o comentário – quero<br />
supor que não me conhecia: “Deixem<br />
este velhinho. Ele já está praticamente<br />
morto e vocês estão tomando<br />
trabalho para salvá-lo. Chamem<br />
20
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Automóvel de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
após o desastre em 3<br />
de fevereiro de 1975<br />
te morta na rua; outros terão estado<br />
mal à morte e ela quiçá terá passado<br />
seus “dedos” frios pela fronte.<br />
Por mais jovens que sejam, isto<br />
é assim!<br />
Ora, por que Deus dispôs que a<br />
morte se nos apresentasse deste modo?<br />
Teria Ele feito apenas para nos<br />
castigar? Mas castigar pelo quê?<br />
Tomemos uma criança de seus<br />
seis, sete, oito, dez anos, como era<br />
eu quando tive crupe. Tenho a certeza<br />
de não haver cometido nenhum<br />
pecado mortal até então. Assim,<br />
a troco do que um castigo daqueles?<br />
Há uma resposta que satisfaz<br />
completamente e tem sua raiz na<br />
própria natureza humana. Todos os<br />
homens morrem. Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo, Homem-Deus, morreu.<br />
Nossa Senhora – a Virgem Imaculada!<br />
– concebida sem pecado original,<br />
quis passar pelas dores da morte.<br />
Por que então eu não hei de morrer?<br />
Se há algo de que estou certo é<br />
que morrerei.<br />
Alguém dirá: “Mas Elias, que foi<br />
arrebatado num carro de fogo, não<br />
escapou da morte?” Não! Ele vive<br />
há três mil anos, presumivelmente<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
uma empresa funerária, que ela resolve<br />
o caso!”<br />
Uma das mais antigas recordações<br />
que tenho desse fato é de ser<br />
transportado do Hospital de Jundiaí<br />
ao Hospital Santa Catarina, em São<br />
Paulo.<br />
É terrível a impressão que temos<br />
quando nos esfregamos na morte.<br />
Ela desaba sobre nós inopinadamente,<br />
como um abutre e, de repente,<br />
nos colhe! É como uma ave de rapina<br />
que começa a esvoaçar e lentamente<br />
vem descendo sobre nós,<br />
cuja bicada nos liquida. Nós a vemos<br />
aproximar-se… “morremos” mil vezes<br />
com medo de morrer, e a “ave”<br />
sobe de novo. Quando volta a baixar,<br />
não sabemos o que escolher: que ela<br />
acabe com esta tortura ou sobrevoe<br />
novamente e tenhamos mais uns meses,<br />
um ano de vida… É este o tormento<br />
em que se encontra o homem<br />
nesta Terra.<br />
Única certeza: todos<br />
morreremos<br />
Eu quis fazer essas descrições<br />
porque sei que muitos rasparam pela<br />
morte; perderam pai, mãe, irmão,<br />
parentes. Quase todos já perderam<br />
colegas, amigos. Alguns viram gen-<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante o período<br />
de sua convalescença,<br />
após o desastre de 3<br />
de fevereiro de 1975<br />
ao lado de Enoc. No entanto, ele há<br />
de morrer. Apenas a espera dele é<br />
mais longa do que a nossa, mas muito<br />
mais feliz, porque ele está confirmado<br />
em graça e, morrendo, tem a<br />
certeza apaziguadora de ir para o<br />
Céu! Mas, aquela sombra o acompanha:<br />
um dia morrerá!<br />
A morte, maior moralizadora<br />
para o homem<br />
Todos os homens sabem que podem<br />
vir a falecer a qualquer mo-<br />
21
Eco fidelíssimo da Igreja<br />
Flávio Lourenço<br />
mento, muitos conhecem pela Doutrina<br />
Católica e acreditam que podem<br />
condenar-se ao Inferno e, apesar<br />
disso, não mudam de vida. Quanta<br />
gente poderia converter-se pensando<br />
na morte!<br />
São Francisco de Borja era um<br />
Grande de Espanha. Ele era nobre,<br />
Duque de Gândia, lugar no qual era<br />
considerado como um pequeno rei.<br />
Era um personagem muito importante<br />
da corte do Imperador Carlos<br />
V, Rei da Espanha, e tinha muito<br />
boa amizade com a Imperatriz Isabel,<br />
primeira-dama da Cristandade<br />
como o Imperador do Sacro Império<br />
Romano Alemão era o primeiro<br />
gentil-homem da Cristandade.<br />
De repente, São Francisco recebe<br />
a notícia de que a Imperatriz havia<br />
morrido. Ele, como fidalgo, tinha<br />
funções a desempenhar nas exéquias;<br />
pôs-se de luto e foi prestar homenagens<br />
à falecida.<br />
Vendo a Imperatriz deitada, morta,<br />
percebeu a impotência daquela a<br />
O avaro e a morte - Museu Quiñones<br />
de León, Vigo, Espanha<br />
quem ele, há pouco, fazia<br />
reverências no fastígio<br />
da grandeza. Resultado,<br />
ele compreendeu<br />
de tal maneira<br />
que todas as coisas do<br />
mundo eram vãs, que<br />
se converteu, abandonou<br />
tudo e entrou para<br />
a Companhia de Jesus,<br />
sendo um dos grandes<br />
Santos desta Ordem.<br />
Ele foi o terceiro sucessor<br />
de Santo Inácio, tão<br />
completa foi a sua conversão.<br />
Esse é o bem que a<br />
morte fez a tantos homens<br />
ao longo da História.<br />
Deus quis tornar presentes<br />
para nós algumas<br />
grandes verdades. Umas<br />
são as que nos enchem<br />
de gáudio: o Céu, a visão<br />
de Deus. Outras são<br />
verdades terríveis que<br />
nos enchem de pânico: a<br />
morte e o Inferno.<br />
A maior parte dos<br />
homens não são sensíveis<br />
à pregação das verdades<br />
celestes, às grandes<br />
esperanças que nos<br />
aguardam; eles são sensíveis<br />
ao terror da morte,<br />
do Inferno. O número<br />
de almas condenadas<br />
seria talvez muito<br />
maior se não fosse o<br />
espetáculo da morte. A<br />
morte é a maior moralizadora.<br />
Quem tem a certeza<br />
de que dormirá hoje<br />
no horário de costume?<br />
Qualquer coisa pode<br />
suceder: está andando<br />
de automóvel para casa,<br />
é um disparo de um<br />
revólver na mão de um<br />
sujeito qualquer que o<br />
Inferno - Museus Reais de Belas Artes, Bruxelas<br />
atinge, e ele cai morto, e não teve<br />
tempo de nada.<br />
Como a morte faz bem! Como ela<br />
é amiga e como conduz para a salvação!<br />
“Um beijo vale bem<br />
o Inferno!”<br />
Há homens que, paradoxalmente,<br />
perderam o medo da morte. Pecam<br />
livremente. Até quando estão desenganados<br />
pelos médicos, ainda enfrentam<br />
a morte pecando e blasfemando.<br />
Por quê? São filhos do Inferno!<br />
Santo Afonso Maria de Ligório<br />
conta, num de seus livros, um caso<br />
acontecido nas bandas onde ele viveu,<br />
pelo Sul da Itália, o antigo Reino<br />
de Nápoles.<br />
Um padre foi atender um homem<br />
que estava em articulo mortis. Conforme<br />
manda a Igreja, antes de o sacerdote<br />
dar a absolvição, exigiu do<br />
moribundo que despedisse sua concubina<br />
e que esta saísse da casa com<br />
Flávio Lourenço<br />
22
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
tudo quanto lhe pertencesse. Ela,<br />
obrigada, saiu, e o padre, pôde absolvê-lo.<br />
Ora, o próprio padre contou que o<br />
moribundo não encontrou nada melhor<br />
para fazer do que mandar chamar<br />
novamente a concubina para casa.<br />
O homem, agonizando, ao vê-la,<br />
chamou-a : “Venha cá e me dê um<br />
beijo! Um beijo vale bem o Inferno!”<br />
É assim a maldade humana… Por<br />
isso, faz um bem extraordinário pensar<br />
a respeito dessas verdades.<br />
“Clericorum sors<br />
subitanea mors”<br />
Assisti a muitas mortes e tive a preocupação<br />
de aproveitá-las para minha<br />
vida espiritual. Lembrem-se também<br />
das mortes que presenciaram. E<br />
quando a tentação lhes induzir ao pecado,<br />
pensem: “Eu posso cair morto<br />
de um momento para outro.”<br />
Ninguém morre sem que tenha sido<br />
da vontade de Deus. Nosso Senhor<br />
disse no Evangelho que nenhum<br />
pássaro morre, nem um fio<br />
de cabelo cai de nossa cabeça, sem<br />
que Ele o tenha consentido. Se com<br />
um mísero passarinho é assim, tanto<br />
mais com um homem.<br />
Nós não morreremos a não ser<br />
quando Deus determinar, no momento<br />
em que Ele julgue que nossas<br />
contas estão encerradas.<br />
Às vezes, quando uma pessoa<br />
muito eleita peca, Deus pode intervir<br />
de um momento para outro. Acabou-se!<br />
Tira-lhe a vida repentinamente<br />
como quem diz: “Já fiz tanto,<br />
tanto, tanto por ti… tu pecaste<br />
de novo. Encerradas as contas! Vem<br />
prestá-las aqui!”<br />
E o homem, que é tão fraco, morre<br />
por uma causa mínima. De repente,<br />
ele está passeando no jardim,<br />
uma aranha o pica. Ele está picado<br />
de morte. O médico não percebe,<br />
trata de outra coisa; dali a 24 horas<br />
ele está na cova.<br />
Assim é o homem… E assim são,<br />
às vezes, as contas de Deus.<br />
Eu termino mencionando uma<br />
frase latina: “Clericorum sors subitanea<br />
mors: a sorte dos clérigos é a<br />
morte repentina”. Parece que a opinião<br />
geral confirma isso. Os padres<br />
morrem de repente. Não será, muitas<br />
vezes, porque o padre abusou,<br />
abusou?<br />
Se assim é com um sacerdote, por<br />
que não será com aqueles que a Santíssima<br />
Virgem chama tão especialmente<br />
para servi-La? Ela, que solicitamente<br />
escolheu-nos dos lugares mais<br />
inopinados para trazer-nos amorosamente<br />
para junto d’Ela? Se o indivíduo<br />
leva o pecado a um certo ponto,<br />
pode ser que Nossa Senhora diga em<br />
dado momento: “Acabou-se!”<br />
Que desafio tremendo nós pecarmos<br />
depois de termos recebido tanto.<br />
Que horror! E como é salutar<br />
pensar nisso!<br />
Temor, caminho para o amor<br />
Alguém me dirá: “Mas, Doutor<br />
<strong>Plinio</strong>, eu fico perturbado.”<br />
Eu respondo: “Eu prefiro, meu<br />
filho, que você se perturbe agora<br />
na vida e salve sua alma, a que você<br />
leve uma vida tranquila e depois<br />
se perca.”<br />
Um conhecido disse-me numa<br />
ocasião: “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, por que o senhor<br />
em vez de procurar encaminhar<br />
as almas pela via do temor, não<br />
procura encaminhá-las pela via do<br />
amor? Fale da bondade de Deus, do<br />
Céu que espera todos os homens…”<br />
Há casos em que isso é assim, porque<br />
Deus tem suas vias. No entanto,<br />
fico na dúvida de que esta seja a regra<br />
geral para os homens deste século.<br />
Quiçá, em geral, em todas as épocas<br />
da História, o princípio não seja<br />
aquele que São Bento pôs no início<br />
dos estatutos da Ordem beneditina,<br />
uma frase da Escritura: “Vinde,<br />
filhos, e eu vos ensinarei o temor de<br />
Deus”?<br />
O temor é o caminho para o<br />
amor. Há um grandíssimo número<br />
de pessoas que não começam a amar<br />
a não ser depois de terem começado<br />
a temer.<br />
Portanto, eu que já fiz várias conferências<br />
sobre o Céu, inclusive o<br />
Céu empíreo, matéria verdadeiramente<br />
maravilhosa, faço esta com a<br />
qual estou certo de ter concorrido<br />
para o bem de todos. v<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1984<br />
(Extraído de conferência de<br />
11/8/1984)<br />
23
Flávio Lourenço<br />
C<br />
alendário<br />
Santa Modesta<br />
1. São Vigor, bispo (†c. 538). Foi<br />
discípulo de São Vedasto e bispo de<br />
Bayeux, França.<br />
Beato Amadeu, religioso (†1482).<br />
Ingressou na Ordem dos Frades Menores.<br />
Fundou numerosos conventos,<br />
falecendo em Milão.<br />
2. Comemoração de Todos os Fiéis<br />
Defuntos.<br />
3. Santo Ermengol (ou Ermengaudo),<br />
bispo (†1035). Como bispo de<br />
Urgel, Espanha, dedicou-se a restabelecer<br />
a Igreja nas terras resgatadas<br />
dos sarracenos.<br />
Santa Odrada, virgem (†c. s. XI).<br />
Distinguiu-se desde pequena por sua<br />
piedade e bondade; ainda muito jovem<br />
consagrou sua castidade a Deus.<br />
4. Santa Modesta, abadessa (†680).<br />
Consagrada a Deus desde a infância,<br />
foi a primeira abadessa do Mosteiro<br />
de Santa Maria ad Horreum, em Tréveris,<br />
Alemanha. Foi grande amiga de<br />
Santa Gertrudes de Nivelles.<br />
São Félix de Valois, religioso<br />
(†1212). Companheiro de São João<br />
da Mata e cofundador dos Trinitários.<br />
dos Santos – ––––––<br />
5. Santa Bertila, abadessa (†s. VI).<br />
Pertencia a uma família nobre de<br />
Soissons; na adolescência decidiu<br />
abraçar a vida religiosa, vencendo a<br />
firme oposição paterna. Governou o<br />
Mosteiro de Chelles, edificando a todos<br />
por sua piedade. Atraiu muitas jovens<br />
para sua comunidade.<br />
6. Solenidade de Todos os Santos.<br />
(no Brasil, transferida do dia 1º).<br />
São Leonardo, ermitão (†559).<br />
7. São Prosdócimo, bispo (†100).<br />
Primeiro Bispo de Pádua.<br />
São Lázaro, estilita (†1054). Viveu<br />
sobre uma coluna no Monte Galésio,<br />
alimentando-se somente de pão e água.<br />
8. Beata Maria Crucificada (Isabel<br />
Maria Satellico), abadessa (†1745).<br />
Pertencia à Ordem das Clarissas, possuía<br />
profunda contemplação do mistério<br />
da Cruz e foi favorecida com carismas<br />
místicos.<br />
9. Dedicação da Basílica de Latrão<br />
(s. IV). Construída pelo imperador<br />
Constantino como sede dos bispos<br />
de Roma.<br />
10. São Baudelino, ermitão (†s. VIII).<br />
11. São Mennas, mártir (†295). Era<br />
militar egípcio e morreu confessando<br />
a Fé cristã.<br />
São Bertuíno, bispo e abade (†698).<br />
12. São Nilo, abade (†340). Foi discípulo<br />
de São João Crisóstomo.<br />
13. XXXIII Domingo do Tempo<br />
Comum.<br />
Santa Agostina (Lívia) Pietrantoni,<br />
virgem (†1894). Religiosa da Congregação<br />
das Irmãs da Caridade, morreu<br />
no hospital onde cuidava de tuberculosos,<br />
apunhalada por um enfermo.<br />
14. Santo Hipácio, bispo e mártir<br />
(†325). Morreu lapidado por hereges<br />
novacianos.<br />
Beata Maria Merket, virgem (†1872).<br />
Nascida na Prússia, foi cofundadora<br />
das religiosas de Santa Isabel, dedicadas<br />
ao cuidado dos doentes abandonados<br />
em suas próprias residências.<br />
15. Beato Hugo Faringdon (Cook),<br />
mártir (†1539). Abade beneditino, foi<br />
enforcado e esquartejado juntamente<br />
com dois presbíteros por se oporem<br />
a Henrique VIII, da Inglaterra,<br />
o qual tentava apropriar-se da autoridade<br />
da Igreja.<br />
16. Santo Agostinho e Santa Felicidade,<br />
mártires (†c. 250). Segundo a tradição,<br />
sofreram o martírio no tempo do<br />
Imperador Décio, em Cápua, Itália.<br />
17. São Gregório de Tours, bispo<br />
(†594). Visitou Venâncio Fortunato e<br />
Santa Radegunda em Poitiers, cujos<br />
funerais presidiu, em 587. Participou<br />
de vários concílios, escreveu inúmeras<br />
obras, entre as quais a História dos<br />
Francos.<br />
Santa Lucrécia<br />
Flávio Lourenço<br />
24
–––––––––––––– * Novembro * ––––<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
Beato Ludovico Roque Gientyngier<br />
18. Dedicação das Basílicas de São<br />
Pedro e São Paulo (1626; 1854).<br />
Santa Filipina Rosa Duchesne, virgem<br />
(†1852). Religiosa da Sociedade<br />
do Sagrado Coração, fundada por<br />
Santa Madalena Sofia Barat.<br />
19. Beato Eliseu García García,<br />
religioso e mártir (†1936). Salesiano<br />
martirizado no tempo da perseguição<br />
religiosa na Espanha.<br />
20. Solenidade de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo, Rei do Universo.<br />
21. Apresentação de Nossa Senhora.<br />
Beata Maria de Jesus Bom Pastor<br />
(Francisca de Siedliska), virgem<br />
(†1902). Fundadora do Instituto das<br />
Irmãs da Santa Família de Nazaré.<br />
22. Santa Cecília, virgem e mártir<br />
(†s. II-III).<br />
São Filêmon, mártir (†s. I). Discípulo<br />
de São Paulo, foi exortado pelo<br />
Apóstolo a receber Onésimo, um escravo<br />
fugitivo.<br />
23. Santa Mustiola, mártir (†s. III).<br />
Fazia parte da comunidade cristã de<br />
Chiusi, na Toscana, Itália. Entregou a<br />
vida em defesa da Fé.<br />
Santa Lucrécia, mártir (†306). Seu<br />
martírio deu-se durante a perseguição<br />
de Diocleciano.<br />
24. São Protásio, bispo (†352). Participou<br />
do Concílio de Sárdica e defendeu<br />
Santo Atanásio e a doutrina nicena<br />
diante do Imperador Constante.<br />
Santa Flora e Santa Maria, virgens<br />
e mártires (†856). Durante a perseguição<br />
muçulmana desencadeada em<br />
Córdoba, Espanha, foram encarceradas<br />
com Santo Eulógio e depois mortas<br />
a espada.<br />
São Bertuíno<br />
25. Santa Catarina de Alexandria,<br />
virgem e mártir (†s. inc.).<br />
Beato Jacinto Serrano López,<br />
mártir (†1936). Dominicano, fuzilado<br />
na perseguição contra a Igreja, durante<br />
a Guerra Civil Espanhola.<br />
26. Beato Humilde (Lucas Antonio)<br />
Pirozzo, religioso (†1637). Pertencia<br />
à Ordem dos Frades Menores,<br />
tornou-se célebre por seu espírito de<br />
profecia e frequentes êxtases.<br />
27. I Domingo do Advento.<br />
Samuel Holanda<br />
Nossa Senhora das Graças. Em<br />
1830, a Santíssima Virgem pediu a<br />
Santa Catarina Labouré que fosse<br />
cunhada uma medalha conforme a visão<br />
tida pela religiosa. Devido às inúmeras<br />
curas operadas através dessa<br />
medalha, ela ficou conhecida com o<br />
nome de Milagrosa.<br />
Santa Bilhildis, virgem (†710).<br />
28. Beato Juan Jesús (Mariano)<br />
Andradas Gonzalo, presbítero e mártir,<br />
e companheiros (†1936). Religiosos<br />
da Ordem de São João de Deus,<br />
martirizados durante a perseguição<br />
contra a Fé, na Espanha.<br />
29. São Filomeno de Ancira, mártir<br />
(†s. III). Oriundo de Licaônia, por<br />
confessar a Fé cristã, foi martirizado<br />
na perseguição ocorrida durante o<br />
império de Aureliano.<br />
Santa Iluminada, virgem (†320).<br />
30. Santo André, Apóstolo (†s. I).<br />
Beato Ludovico Roque Gientyngier,<br />
presbítero e mártir (†1941). Durante<br />
a ocupação nazista na Polônia,<br />
foi enviado ao campo de concentração<br />
de Dachau, onde posteriormente<br />
sofreu o martírio.<br />
Beata Maria Merket<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
25
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Flávio Lourenço<br />
Nada se perde<br />
na Igreja<br />
Peregrinação - Museu de<br />
Belas Artes, Arras, França<br />
Todo desejo piedoso, pensamento bom, qualquer<br />
obra de caridade feita por amor a Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo reverte em bem para todo o corpo da Igreja. Os<br />
tesouros da Santa Igreja revelam o entrelaçamento<br />
insondável entre a justiça e a misericórdia de Deus.<br />
Estamos próximos do dia de Finados,<br />
por isso é adequada a<br />
leitura de uma ficha de Catarina<br />
Emmerich retirada das “Visões<br />
e Revelações Completas” 1 .<br />
Visão das penas<br />
do Purgatório<br />
Esta noite pedi muito pelas almas<br />
benditas e vi as numerosas e miseráveis<br />
penas que elas padecem e a incompreensível<br />
misericórdia de Deus.<br />
Vi a infinita justiça de Deus e a sua<br />
misericórdia e compreendi que não há<br />
coisa alguma verdadeiramente boa no<br />
homem que não lhe seja útil. Vi o bem<br />
e o mal passando de pais a filhos converter-se<br />
em salvação e felicidade pela<br />
vontade e cooperação destes. Vi socorrer<br />
de um modo admirável as almas<br />
com os tesouros da Igreja, com a caridade<br />
dos seus membros.<br />
Vi muitos estados de purificação,<br />
em particular vi castigados aqueles<br />
sacerdotes afeiçoados às suas co-<br />
modidades e ao sossego e que dizem:<br />
“Com um lugarzinho no Céu estou<br />
satisfeito, eu rezo, digo Missa, etc.”<br />
Estes sentirão indizíveis tormentos<br />
e vivíssimos desejos de boas obras e<br />
verão a sua frente todas as almas a<br />
quem privaram de seu auxílio, e terão<br />
que sofrer um horrível desejo de<br />
socorrê-las. Toda a negligência se<br />
converterá em tormento para a alma,<br />
sua quietude em impaciência,<br />
sua inércia em cadeias. E estes castigos<br />
não são já invenções, mas proce-<br />
26
Flávio Lourenço<br />
dem clara e admiravelmente do pecado,<br />
como a enfermidade da causa<br />
que a produz.<br />
Sempre vi que nada se perde de<br />
quanto se faz na Igreja em união com<br />
Jesus. Como o desejo piedoso, todo<br />
pensamento bom, qualquer obra de<br />
caridade feita pelo amor de Jesus reverte<br />
em bem para todo o corpo da<br />
Igreja e que aquele que não faça outra<br />
coisa que rogar a Deus em plena<br />
caridade por seus irmãos, este faz uma<br />
grande e salutar obra.<br />
As almas precisam de orações<br />
Ana Catarina Emmerich teve ocasião<br />
de ver o Purgatório. Vários aspectos<br />
dele se lhe apresentaram. Ela<br />
viu as penas tremendas das almas e<br />
como estas podem ser socorridas por<br />
nossas orações.<br />
Há muitas pessoas que fazem<br />
o seguinte cálculo: à primeira vista<br />
parece não valer muito a pena<br />
rezar pelas almas do Purgatório,<br />
considerando que, afinal de<br />
contas, elas cedo ou tarde vão para<br />
o Céu, enquanto as almas periclitantes<br />
nesta Terra podem ir para<br />
o Inferno, existindo, portanto, muito<br />
mais mérito rezar<br />
por estas últimas do<br />
que pelas outras. Este<br />
é um erro que pode<br />
seduzir até espíritos<br />
muito zelosos<br />
e razoáveis e é, portanto,<br />
o momento<br />
de desfazermos este<br />
equívoco, no qual<br />
a própria Ana Catarina<br />
Emmerich caiu.<br />
Ao narrar suas visões,<br />
ela conta como<br />
se corrigiu.<br />
Apareceu-lhe não<br />
me lembro que Santo<br />
e fez a ela o seguinte<br />
comentário: “Está no<br />
Purgatório uma alma<br />
piedosa, ela está no<br />
fogo, um fogo verdadeiro,<br />
não um símbolo,<br />
mas material.”<br />
O que é estar com<br />
o corpo dentro de fogo?<br />
É algo tremendo!<br />
Imaginem então<br />
estar com a alma dentro do fogo.<br />
Não adianta dizer: “A alma não é<br />
O Viático na Montanha da Navarra - Museu<br />
de Navarra, Pamplona, Espanha<br />
Coroação da Virgem do Lledó em 1924 - Basílica<br />
da Mãe de Deus do Lledó, Castellón, Espanha<br />
combustível”, porque, por ordem de<br />
Deus, dá-se um milagre por onde a<br />
alma se queima e sofre os verdadeiros<br />
tormentos das chamas.<br />
Dizia esse Santo a Ana Catarina<br />
Emmerich: “Aqui está uma alma que<br />
foi boa, ela vai para o Céu, mas encontra-se<br />
há séculos no Purgatório.<br />
Ali está um bandido que irá para o<br />
Inferno. Vale a pena deixar esse coitado<br />
séculos no Purgatório para salvar<br />
um bandido de um Inferno merecido?<br />
Evidentemente não.”<br />
É preciso ter um certo senso de<br />
distribuição por onde cada um, tocado<br />
pelos estímulos da graça que indica<br />
o desejo da Providência sobre cada<br />
um, ora rogue algum tanto pelas<br />
almas do Purgatório, ora pelas almas<br />
em perigo de se perderem.<br />
Entretanto, nessa visão, ela viu o<br />
fogo, os tormentos do Purgatório e<br />
ela faz algumas considerações a respeito<br />
desse tormento.<br />
Flávio Lourenço<br />
27
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Dorotheu (CC3.0)<br />
A justiça e a misericórdia de<br />
Deus com relação às almas<br />
Purgatório - Dorotheum, Viena<br />
jos, levando consigo uma alegria indizível<br />
para dentro do Purgatório.<br />
Ela leva então miríades de almas para<br />
o Céu, por um ato soberano d’Ela,<br />
liquidando sentenças, penas e qualquer<br />
outra aflição.<br />
Para aquelas que não conduz para<br />
o Céu, a Santíssima Virgem muitas<br />
vezes diminui consideravelmente<br />
as penas ou as abrevia, de modo<br />
que cada festa de Nossa Senhora na<br />
Terra é uma libertação no Purgatório,<br />
sem contar as outras grandes<br />
festas do calendário: Páscoa, Semana<br />
Santa, Natal. As penas são, dessa<br />
forma, muitas vezes abreviadas de<br />
um modo maravilhoso. Há aqui um<br />
entrelaçamento insondável entre a<br />
A primeira consideração é o mistério<br />
da justiça e da misericórdia divinas.<br />
Deus é infinitamente justo e, mesmo<br />
amando as almas do Purgatório,<br />
Ele precisa puni-las. Ele é infinitamente<br />
misericordioso, mas, mesmo<br />
punindo as almas que estão ali,<br />
Ele quer atenuar os seus sofrimentos.<br />
Por isso várias visões contam<br />
que Nossa Senhora, Mãe de Misericórdia<br />
contínua e inesgotável, com<br />
frequência intervém ali. Por exemplo,<br />
em todas as suas grandes festas<br />
Ela vai até lá com uma coorte de Anjustiça<br />
e a misericórdia, que mostra<br />
uma justiça e uma misericórdia tão<br />
grandes que o homem, abismado,<br />
não logra visualizar bem até onde<br />
chega a amplitude desses dois atributos<br />
de Deus quando considera o<br />
Purgatório.<br />
De geração em geração...<br />
A vidente conta:<br />
Eu vi o bem e o mal passando de<br />
pais a filhos e converter-se em salvação<br />
e fidelidade pela vontade e cooperação<br />
destes.<br />
É uma coisa curiosa, mas há graças,<br />
bênçãos concedidas por Deus,<br />
às vezes a estirpes inteiras e que se<br />
propagam de pai para filho, de geração<br />
em geração para chegar até a última<br />
posteridade.<br />
Com as devidas ressalvas, porque<br />
a maldição não é igual à bênção, há<br />
também retrações de graças, há defeitos,<br />
às vezes há tentações que<br />
também se repetem de geração em<br />
geração numa mesma família. E embora<br />
ninguém seja salvo pela bênção<br />
hereditária, nem se perca pela maldição<br />
hereditária, pois todo homem<br />
tem graça suficiente para salvar-se<br />
e, correspondendo à graça, se salva,<br />
entretanto, esses tesouros misteriosos<br />
de bênçãos e esses terríveis reservatórios<br />
de maldição fixam-se e,<br />
às vezes, consomem ou reedificam linhagens<br />
inteiras.<br />
Em geral nós temos a respeito da<br />
decadência das famílias ideias muito<br />
erradas e julgamos que ela se dá por<br />
perda de dinheiro. Não podendo luxar<br />
como antes, não têm a mesma influência,<br />
o mesmo prestígio. Entretanto,<br />
no fundo, há uma espécie de<br />
perda de grandeza de alma, de capacidade<br />
de ter e de adotar grandes<br />
ideais, de fazer grandes coisas e, em<br />
geral, a pobreza, a ruína econômica<br />
é um resultado da bobeira.<br />
Por isso Ana Catarina Emmerich<br />
diz ter visto as bênçãos e as maldições<br />
hereditárias, também das nações,<br />
percorrendo a História.<br />
28
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
São João Bosco e São Domingos Sávio<br />
Igreja do Sagrado Coração de Jesus, Roma<br />
O remorso pelo bem<br />
não praticado<br />
Ela diz:<br />
Vi socorrer de um modo admirável<br />
as almas com os tesouros da Igreja e<br />
com a caridade dos seus membros.<br />
Quer dizer, com as orações feitas<br />
pelas almas.<br />
Vi muitos estados de purificação.<br />
Em particular, vi castigados aqueles<br />
sacerdotes afeiçoados às suas comodidades<br />
e ao seu sossego.<br />
Sacerdotes que gostam da vidinha.<br />
“Com um lugarzinho no Céu, estou<br />
satisfeito, rezo, digo Missa, etc.”<br />
Quantos católicos há como esses<br />
sacerdotes, que julgam cumprir seu<br />
dever não cometendo pecado mortal,<br />
rezando, fazendo pequenos sacrifícios,<br />
desempenhando os pequenos<br />
deveres e no resto<br />
levando vida regalada!<br />
Quantos de nós, assistindo<br />
a algumas cerimônias<br />
religiosas, não temos esta<br />
sensação a respeito do padre<br />
e da maior parte dos fiéis<br />
que estão na igreja: tudo<br />
sossegadinho, meio rezando,<br />
meio bocejando! É<br />
este estado de espírito minimalista.<br />
Então, qual é o sofrimento<br />
que eles padecem<br />
no Purgatório? Além do<br />
fogo, o remorso. Eles veem<br />
com uma clareza interior<br />
tudo quanto poderiam ter<br />
feito e não fizeram. E isto<br />
atormenta a alma deles superlativamente.<br />
Lembro aqui uma visão<br />
que São João Bosco teve<br />
de São Domingos Sávio no<br />
Céu.<br />
São Domingos Sávio foi<br />
ao encontro dele com um<br />
cortejo enorme de almas<br />
cantando louvores a Dom<br />
Bosco, que perguntou o<br />
que era aquilo.<br />
— Essas são todas as almas<br />
salvas por vosso apostolado.<br />
— Mas eu receio que<br />
muitas não se tenham salvado<br />
por minha falta de<br />
correspondência completa<br />
à graça.<br />
Domingos Sávio respondeu:<br />
— Isto é bem verdade.<br />
O que um tormento desses<br />
significa? Vermos estar<br />
no Inferno, fadado a uma<br />
eterna infelicidade, desventura,<br />
um indivíduo que<br />
nós poderíamos ter contribuído<br />
para salvar? O que<br />
aquilo nos faz sofrer? É algo<br />
tremendo. Se nós fôssemos<br />
culpados por leviandade,<br />
por tontice, de uma trombada<br />
de automóvel que tivesse feito alguém<br />
ficar cego; vendo aquela pessoa<br />
cega a vida inteira, que remorso!<br />
Pois bem, é muito maior esse remorso<br />
pelo bem não praticado. As almas<br />
vão contemplar, vão ter a visão e o<br />
sofrimento disso no Purgatório.<br />
Mas tem-se uma afirmação muito<br />
consoladora: nada se perde, nem<br />
sequer um desejo piedoso ou um<br />
pensamento bom, quando foi feito<br />
por amor à Igreja, porque aquilo faz<br />
bem para todo o Corpo Místico. E<br />
aquele que não faça outra coisa senão<br />
rogar a Deus em plena caridade<br />
por seus irmãos, esse faz uma grande<br />
e salutar obra. São aqueles dedicados<br />
a pedir a Deus Nosso Senhor<br />
que evite que as almas vão para o<br />
Inferno, que determine a saída das<br />
almas do Purgatório e, sobretudo, a<br />
exaltação da Santa Igreja Católica<br />
na Terra.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de<br />
1/11/1967)<br />
1) Não dispomos dos dados dessa obra.<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em novembro de 1967<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
29
Hagiografia<br />
Vyacheslav Argenberg (CC3.0)<br />
Só ama o bem quem<br />
odeia o mal<br />
Montanhas<br />
do Cáucaso<br />
São Lázaro, monge do século IX, teve as mãos queimadas por<br />
ordem de um imperador iconoclasta porque fazia imagens<br />
sagradas. Os humanitários que hoje declamam contra as<br />
Cruzadas e a Inquisição não têm uma palavra de censura para<br />
com os imperadores romanos que martirizavam os católicos.<br />
T<br />
emos para comentar<br />
alguns dados biográficos<br />
de um Santo<br />
extraordinário: São Lázaro,<br />
Confessor. Não é o amigo<br />
de Nosso Senhor, irmão<br />
de Marta e Maria. Monge e<br />
pintor de sagradas imagens,<br />
viveu no século IX. Queimaram-lhe<br />
as mãos com ferro<br />
em brasa, mas foi curado<br />
pelo poder de Deus e pintou<br />
novamente imagens que haviam<br />
sido raspadas pelos iconoclastas.<br />
O Criador restaurou<br />
suas mãos e ele restaurou<br />
as pinturas.<br />
Mãos queimadas<br />
até os ossos<br />
Lázaro, nascido no Monte<br />
Cáucaso, deixou seu país na<br />
primeira juventude e veio para<br />
Constantinopla, onde abraçou<br />
John Skylitzes (CC3.0)<br />
Imperador Teófilo<br />
a vida religiosa. Além dos exercícios<br />
ordinários do estado monástico,<br />
aprendeu pintura, arte<br />
que se cultivava nos claustros,<br />
sobretudo em Constantinopla,<br />
desde que a guerra contra as sagradas<br />
imagens tinha sido declarada<br />
pelos iconoclastas 1 .<br />
Como os iconoclastas eram<br />
contra o uso das imagens, nos<br />
bons mosteiros os monges<br />
aprendiam a pintá-las como<br />
um meio de combatê-los. Naturalmente,<br />
depois eles difundiam<br />
essas pinturas.<br />
Os imperadores, não contentes<br />
de quebrar as imagens<br />
e perseguir seus defensores, tinham<br />
ainda de tal modo intimidado<br />
os pintores com o rigor<br />
de seus editos, que o medo<br />
da morte, da prisão e do exílio<br />
os impedia de fazer qualquer<br />
quadro de Jesus Cristo ou dos<br />
Santos. Foi o que levou mui-<br />
30
tos superiores de mosteiros a querer reparar<br />
esse dano, apesar das ameaças<br />
e da indignação do soberano, introduzindo<br />
a arte da pintura em suas casas,<br />
para impedir que as santas imagens<br />
fossem abolidas pelos ímpios.<br />
Lázaro tinha se tornado muito hábil<br />
nessa profissão, e a perpetuação, a reputação<br />
que adquiriu foi causa da perseguição<br />
particular que teve de sofrer.<br />
O Imperador Teófilo, em 829, tendo<br />
ordenado a pena de morte para todos<br />
os pintores que recusassem a rasgar<br />
os quadros nos quais tivessem pintado<br />
os Santos, mandou buscar Lázaro<br />
em seu mosteiro, para executar o<br />
edito em sua presença. Não conseguiu<br />
levá-lo a isso pela doçura e recorreu à<br />
tortura. Fê-lo tão cruelmente que pensou<br />
que São Lázaro morreria no suplício.<br />
Mas, tendo recuperado suas forças<br />
algum tempo depois, continuou a<br />
pintar. O imperador mandou prendê-<br />
-lo de novo e torturá-lo com brasas de<br />
ferro rubro nas mãos, queimando-as<br />
até os ossos.<br />
A imperatriz Santa Teodora obteve<br />
do marido a sua libertação e o manteve<br />
oculto na Igreja de São João Batista,<br />
onde o fez curar. Quando Lázaro se restabeleceu,<br />
pintou, por reconhecimento,<br />
um quadro do Precursor, que se tornou<br />
um dos mais célebres de seu tempo.<br />
Após a morte de Teófilo, a imperatriz<br />
Santa Teodora e seu filho Miguel<br />
III restabeleceram a honra das imagens.<br />
Lázaro elaborou um Salvador<br />
que colocou sobre uma coluna para<br />
ser exposto à veneração pública.<br />
Vendo, então, o culto antigo bem<br />
fortalecido, entregou-se aos santos<br />
exercícios da vida monástica, não<br />
pensando senão em santificar-se nas<br />
obscuridades do claustro, onde morreu<br />
em 867.<br />
Ódio contra os que<br />
defendem a Fé<br />
Percebemos nesta narração, de<br />
modo muito notável, a fidelidade<br />
desse Santo à sua vocação, levando-<br />
-o a enfrentar toda espécie de torturas.<br />
Mas me parece ser tal o número<br />
de mártires com essa fidelidade – isso<br />
é algo refulgente de tal maneira<br />
na Igreja que as nossas almas estão<br />
cheias dessa luz –, não sendo o caso<br />
de insistir sobre isso.<br />
Talvez seria conveniente apontar,<br />
nesse conjunto de fatos, um aspecto<br />
não tão batido quanto o da glória insondável<br />
do martírio: a impiedade é fina<br />
e perspicaz no seu ódio, e devemos<br />
lamentar que nós, filhos da luz, não sejamos<br />
tão perspicazes e finos como ela.<br />
Os humanitários declamam muito<br />
contra as Cruzadas, a Inquisição<br />
e toda forma de guerra de religião –<br />
porque, dizem eles, são torturas horrorosas,<br />
não se deve absolutamente<br />
permitir uma coisa dessas, é contra<br />
a caridade etc. – porém, não têm<br />
uma palavra de censura para com<br />
os imperadores romanos que martirizavam<br />
os católicos. Quando se diz<br />
a um deles:<br />
— Você não fala contra Diocleciano,<br />
Nero? Só contra Torquemada 2 ?<br />
E num movimento temperamental<br />
de um ódio todo platônico, ele diz:<br />
— Ah, também contra esses eu<br />
sou contra. Mas Torquemada... é<br />
preciso acabar com ele.<br />
— E Nero não foi horroroso?<br />
— Sim, sim. São coisas que se deve<br />
censurar, e – bocejando, acrescenta<br />
– eu censuro…<br />
Mas o ódio dinâmico dos ímpios é<br />
contra aqueles que derramaram o sangue<br />
na defesa da Fé. Contra os que o<br />
fizeram verter para combater a Fé eles<br />
não têm ódio dinâmico nenhum. Isso<br />
prova que, no fundo, o ódio deles não<br />
é contra o derramamento de sangue,<br />
mas é contra a defesa da Fé.<br />
Quanto se tem falado contra os<br />
Autos de Fé espanhóis! No que isso<br />
tem de diferente de um Auto contra<br />
a Fé, do ponto de vista sangue? Não<br />
tem nada de diferente. Tanto um<br />
quanto outro envolvem sangue, são<br />
opressões da liberdade. Entendamo-<br />
-nos a esse respeito. O ódio dos hu-<br />
Henryk Siemiradzki (CC3.0)<br />
Ivan Kislyakov (CC3.0)<br />
Cristãos sendo usados como tochas humanas, na perseguição<br />
sob Nero - Museu Nacional, Cracóvia, Polônia<br />
Imperatriz Santa Teodora,<br />
esposa do Imperador<br />
Teófilo<br />
31
Hagiografia<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
manitários, dos liberais vai exclusivamente<br />
contra aqueles que derramaram<br />
o sangue para defender a Fé.<br />
Sanha de perseguição<br />
contra os bons<br />
Isso vai mais longe. Se eles não<br />
têm ódio aos que promoveram o<br />
derramamento de sangue perseguindo<br />
os católicos, muitos dentre eles,<br />
podendo, também não verteriam<br />
o sangue dos católicos? Uma coisa<br />
traz a outra, como consequência.<br />
Se eu, diante de crimes atrozes como<br />
esse, me manifesto frio, no fundo<br />
acho que quem fez isso tem uma certa<br />
razão e eu, no caso, talvez o fizesse.<br />
Compreende-se, então, até onde<br />
chega a ferocidade dos ímpios: não<br />
só até a contradição, mas até uma<br />
sanha de perseguição que não revelam,<br />
mas que, no fundo, eles têm.<br />
Reflexão muito útil quando estivermos<br />
em presença de pessoas como<br />
essas, pois quase todo mundo<br />
tem esse estado de espírito.<br />
Façam um teste nos ambientes<br />
frequentados. Digam algo sobre a<br />
Inquisição e todo mundo se levanta<br />
para atacá-la. Falem contra as perseguições,<br />
por exemplo, dos iconoclastas<br />
no Império Romano do Oriente,<br />
e sai o tal ódio frio, platônico, que<br />
não é verdadeiro ódio.<br />
Portanto, toda essa gente tem, no<br />
fundo – ao menos em algumas fibras<br />
da alma, quando não em todas<br />
–, uma complacência com a ideia de<br />
matar os autênticos católicos.<br />
Então, em contato com pessoas<br />
desse naipe, devo pensar: “Esse indivíduo<br />
que está falando comigo quereria<br />
matar-me, se pudesse”. É preciso<br />
chegar até o caso pessoal, atingir<br />
a pele e o instinto de conservação.<br />
Não considerar apenas em tese<br />
a morte dos cristãos, dos católicos.<br />
Não conhece nem ama o<br />
bem quem não conhece<br />
e não odeia o mal<br />
Se esse indivíduo fosse meu familiar,<br />
eu poderia cogitar: “É verdade.<br />
Mas sendo ele meu parente, não<br />
me mataria”. Isso é falso. O ódio deles<br />
contra a Fé é tão grande que gostariam<br />
de matar os católicos e não<br />
poupariam ninguém.<br />
Quem julgasse que o indivíduo não<br />
faria isso com ele porque é seu parente,<br />
pensaria como um ingênuo. Seria<br />
bom passar por um curso de “desingenuização”<br />
porque levou a ingenuidade<br />
até extremos muito grandes.<br />
Peçamos, então, a São Lázaro esta<br />
graça penetrante: perceber e discernir<br />
nos ímpios com os quais tratamos<br />
o ódio que eles têm a nós.<br />
Alguém dirá: “Mas, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>,<br />
qual é a vantagem disso? Eu vivo tão<br />
bem com os meus parentes. São agradáveis,<br />
influentes, conversam bem.<br />
Agora está o senhor me fazendo ver<br />
um Nero ou um Calígula... O senhor<br />
desarranja tudo! E parece estar contente<br />
com o desarranjo produzido.”<br />
A minha resposta é a seguinte:<br />
Não conhece nem ama o bem quem<br />
não conhece e não odeia o mal. O conhecimento<br />
do mal é indispensável<br />
para o conhecimento do bem, como<br />
contraste. Depois do pecado original,<br />
não se pode dispensar o conhecimento<br />
do mal. E é preciso medir o mal em<br />
toda a sua extensão, para conhecermos<br />
o bem em toda a sua nobreza.<br />
Portanto, é necessário fazer esse<br />
exercício com as pessoas próximas<br />
de nós. Porque, ademais, seria uma<br />
atitude simplória achar que os parentes<br />
dos outros não prestam e são<br />
muito ingênuos quando acreditam<br />
neles, mas os nossos são diferentes.<br />
Vale muito a pena nos compenetrarmos<br />
do ódio pessoal que eles<br />
têm a nós, porque enquanto não tivermos<br />
essa compenetração, um restinho<br />
de complacência com o mundo<br />
pode ficar. E se trata, exatamente,<br />
de dissipar toda e qualquer complacência<br />
com o mal. Então, fica isso<br />
indicado à nossa consideração a propósito<br />
da vida de São Lázaro. v<br />
(Extraído de conferência de<br />
22/2/1967)<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1967<br />
1) Não dispomos dos dados da ficha utilizada<br />
por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>.<br />
2) Tomás de Torquemada (*1420 -<br />
†1498), sacerdote dominicano espanhol,<br />
confessor da Rainha Isabel, a<br />
Católica, e do Rei Fernando de Aragão.<br />
Foi também grande Inquisidor<br />
de Espanha.<br />
32
Apóstolo do pulchrum<br />
Flávio Lourenço<br />
O mais belo dos<br />
panoramas<br />
Praia das Catedrais,<br />
Ribadeo, Espanha<br />
Muitas vezes nos extasiamos diante de um belo panorama:<br />
rios, montanhas, mares. Entretanto, o elemento rei de um<br />
panorama é o próprio homem. Por isso os panoramas mais<br />
magníficos da História são aqueles nos quais sobressaem<br />
os grandes gestos e os grandes lances dos homens.<br />
O<br />
que é um panorama? É um conjunto de coisas<br />
suficientemente grandes para serem habitadas<br />
pelo homem.<br />
Conceito de panorama<br />
O deserto dá um panorama, o mar, o céu; neles há um<br />
conjunto e sobra espaço para os homens habitarem.<br />
Pelo contrário, uma coleção pequena de obras de arte<br />
maravilhosas não forma um panorama, porque ali o<br />
homem não pode habitar. Pode-se afirmar que a unidade<br />
do panorama é o espaço do homem, e a multiplicidade<br />
desses espaços compõe um panorama.<br />
Um auditório, por exemplo, constitui um panorama.<br />
É estranho aplicar-lhe essa expressão quando está vazio,<br />
pois seria muito forçada, porque a palavra indica vastidões,<br />
extensão. No entanto, quando se vê um auditório<br />
tão alegremente cheio, onde se executam harmonias<br />
magníficas, unindo à música a declamação de coisas tão<br />
generosas com tão belo senso, tudo isso são elementos;<br />
mas muito mais autêntico é vê-lo repleto de gente. Que<br />
magnífico! Por quê? Porque a pluralidade de pessoas faz<br />
notar o espaço necessário para um homem.<br />
O elemento rei<br />
Chegamos a esta conclusão: o elemento rei de todo panorama<br />
não é o espaço, é o homem. Porque, se é verdade que o<br />
panorama tem como unidade o espaço que um homem deve<br />
ocupar, é ainda mais verdade que quando há muitos homens<br />
dignos, o conjunto deles forma um panorama.<br />
Panorama de vida, de variedade, de glória quando esses<br />
homens estão a serviço de Nossa Senhora. Panorama<br />
de desolação, de tristeza e de abjeção quando forma<br />
essas imensas massas modernas completamente anônimas,<br />
escravizadas pela Revolução, no qual as almas perderam<br />
a alteridade umas em relação às outras, logo todo<br />
mundo é ninguém.<br />
Imaginem cenas que podem se formar aos olhos dos<br />
homens, por exemplo, uma imensidade indefinida de asfalto<br />
liquefeito, um pouco borbulhante, de maneira a não<br />
se perceber estar líquido. E tão longe quanto a vista humana<br />
alcança, ela só encontra asfalto derretido. Isto não<br />
constitui um panorama, porque as unidades que o compõem<br />
são minúsculas, perdidas num magma, formando<br />
um todo só sem pluralidades, sem variedade, sem unidade<br />
verdadeira.<br />
33
Apóstolo do pulchrum<br />
Gabriel K.<br />
Cataratas do Niágara<br />
O panorama no qual Deus se compraz<br />
Tal consideração me trouxe ao espírito a ideia de<br />
quantas podem ser as modalidades de panorama que o<br />
homem possa ter diante de si. Pensei: “Como seria bonito<br />
nós vermos uma cena na qual se desenrolasse uma<br />
procissão religiosa magnífica ou uma na qual pudéssemos<br />
ver a cidade onde essa procissão se realizasse. Por<br />
exemplo, as procissões de Corpus Christi com a nota augusta<br />
e única da antiga Viena imperial. Que beleza! Mas<br />
seriam os palácios o panorama? Não, antes de tudo seriam<br />
os homens que ali estivessem.<br />
E então passou-me pelo espírito<br />
os panoramas aos olhos de Deus.<br />
O primeiro é o do universo quando<br />
foi criado. Deus olhou e Se<br />
comprouve com ele. É uma vista<br />
panorâmica. O panorama eterno.<br />
Depois de os homens terem<br />
sido julgados, após a História<br />
estar consumada, olharemos<br />
para a Terra vivificada, glorificada,<br />
purificada pelo enorme<br />
incêndio que a consumirá,<br />
a fim de destruir nela o mal e<br />
conferir novo brilho, novo reluzimento<br />
ao bem. Todos terão<br />
sido julgados: quem praticou<br />
o mal foi condenado; quem<br />
foi destinado à recompensa foi<br />
premiado.<br />
E Deus olha a Terra tendo em torno de Si a vastidão<br />
dos eleitos, embaixo a imensidade dos condenados e a<br />
obra d’Ele que se fez na Criação. Isto é panorama!<br />
Uma indagação diante de um contraste<br />
Cheguei a me perguntar e, sem ter tempo de me responder,<br />
vou tentar expor minha indagação em voz alta,<br />
conforme a reflexão me vier ao espírito.<br />
Perguntava-me qual dos dois panoramas seria mais<br />
bonito: se o primeiro, da Terra pura onde os homens não<br />
pisaram, onde as fontes saíam de dentro da terra, onde<br />
as aves começavam a voar, os animais a saltar, os ventos<br />
a soprar e toda a vida começava apenas a borbulhar;<br />
Flávio Lourenço<br />
Col d’Aubisque, Pirineus Franceses<br />
34
que beleza matinal, que inocência primeva e magnífica<br />
em todas as coisas postas ali! Tanto mais quanto, dominando<br />
todo o panorama, o Paraíso Terrestre, foco e<br />
centro de todas as belezas! Que pulcro, que maravilha!<br />
Depois pensei no panorama do mundo julgado. Houve<br />
desastres, catástrofes, crimes atrozes, houve atos de virtude<br />
incomparáveis. E por cima do clamor de todos os crimes,<br />
do ruído de todas as desordens, um gemido augusto,<br />
majestoso, dulcíssimo: “Meu Deus, meu Deus, por que me<br />
abandonaste? (Mt 27, 46) Consummatum est” (Jo 19, 30).<br />
Não houve panorama mais belo do que este: o céu<br />
carregado de nuvens, os pecados subindo de todos<br />
os lados, a nação eleita prevaricando, quase todos os<br />
Apóstolos dispersos e longe, apenas fiéis junto à Virgo<br />
Fidelis as Santas Mulheres, chorando. A Terra inteira<br />
repelente. Mas, vencendo tudo isso, o Homem-Deus<br />
que morre, que redime e que salva tudo!<br />
Que panorama incomparável! Então, não é verdade<br />
que depois de tudo isto ter acontecido, apesar dos pesares,<br />
a Terra ficou mais bela? É evidente.<br />
Assim são os panoramas: eles existem em função<br />
dos grandes gestos e dos grandes lances mais do que<br />
em função dos rios, das montanhas, dos mares, dos<br />
acidentes materiais.<br />
Em última análise, o verdadeiro panorama da História<br />
é a obra de Nosso Senhor Jesus Cristo. O resto<br />
é quadro, é moldura, é brigaria sem sentido, é invenção<br />
artística sem rumo. É coisa que brilha ou que, pelo<br />
contrário, se esvai.<br />
v<br />
Partida para a celebração de<br />
Corpus Christi na Catedral de<br />
Santo Estêvão em Viena<br />
Santíssimo Cristo<br />
das Misericórdias<br />
Paróquia da Santa<br />
Cruz, Espanha<br />
Gabriel K. Rijksmuseum. (CC3.0)<br />
(Extraído de conferência de 31/7/1982)
Perfeita harmonia<br />
Em Nossa Senhora se encontra a unidade na variedade dos dons de Deus. Isto se<br />
nota bem no fato de que, sendo uma, Ela Se apresenta a nós na variedade admirável<br />
das suas invocações. Ela é Nossa Senhora da Paz e Nossa Senhora dos Prazeres,<br />
mas também é Nossa Senhora das Dores; é a Saúde dos Enfermos, mas é Nossa<br />
Senhora da Boa Morte. N’Ela todos os contrastes se harmonizam. Ela é ao mesmo tempo<br />
Auxílio dos Cristãos e Refúgio dos Pecadores; Maria é glorificada por sua humildade<br />
incomparável, mas todos os videntes que tiveram a felicidade de A contemplar comentam<br />
sua soberana majestade; Ela Se apresenta a nós ut castrorum acies ordinata, mas<br />
ao mesmo tempo como Mater clementiæ et misericordiæ.<br />
N’Ela há a perfeita harmonia entre contrastes aparentemente irreconciliáveis: Virgem<br />
e Mãe! Ninguém mais plenamente mãe do que Nossa Senhora, Ela é a Mãe por<br />
excelência, mas também ninguém mais plenamente virgem do que a Virgem por excelência!<br />
(Extraído de conferência de 15/11/1958)<br />
Flávio Lourenço<br />
Dormição da Virgem<br />
Santuário de Guadalupe