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Samba, Democracia e Sociedade

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Luiz Ricardo Leitão

Marcelo Braz

(ORGS.)

SAMBA,

DEMOCRACIA E

SOCIEDADE

Grandes compositores

e expressões da resistência

cultural no Brasil


As letras de contestação às desigualdades

sociais e de resistência ao autoritarismo, e

outros tipos de desmandos, já vinham desde

antes do samba. Porque a história da música

popular brasileira se confunde, em muitos

aspectos, com a luta do “povo sofredor” por sua

autodeterminação. E é também, muitas vezes,

a crônica das desigualdades, cada vez mais

gritantes, que flagelam as camadas subalternas

da população brasileira, no seio da qual o

samba nasce/renasce a cada década, desde o

“Pelo Telefone”, em 1917.

Nesse panorama, a dialética ação/reação gera

movimentos e espaços de resistência, nos quais a

cultura popular, tendo o samba como um dos

principais baluartes, vocaliza o fenômeno. Assim

ocorreu, na Bahia oitocentista, quando o povo

preto se apropriou da Festa do Bonfim, criada

pela Igreja, e a formatou ao seu jeito, com seus

sambas e suas comidas; da mesma forma que

ocorreu com a Festa da Penha, em terra carioca.

A enumeração é longa. E chega até a década de

70, com a reação dos “pagodes de fundo de

quintal”, a fundação do Clube do Samba, liderada

pelo compositor e cantor João Nogueira,

e a criação do GRANES Quilombo, comandada

pelo já legendário sambista Candeia.

Pois é disto, entre outros assuntos e por outros

caminhos, que cuida este livro: do inestimável

patrimônio cultural que se encerra na tão

simples quanto diversificada rubrica “Samba”:

dos espaços sempre resistentes que este samba

semeou da Bahia para o Rio de Janeiro, e daqui

para todo o Brasil e, mesmo, algumas partes do

mundo. Além disso, os textos abordam o

trabalho de alguns criadores exemplares, tanto

pelo talento, quanto pela coragem de seu posicionamento

ideológico e sua ação política. Tal

qual ensinaram Paulo da Portela e outros “pais”

do Samba; em lições que os autores desta obra

aprenderam e nos transmitem muitíssimo bem.

NEI LOPES

Compositor, pesquisador e escritor


Luiz Ricardo Leitão

Marcelo Braz

(ORGS.)

SAMBA,

DEMOCRACIA E

SOCIEDADE

Grandes compositores

e expressões da resistência

cultural no Brasil


Todos os direitos desta edição reservados

à MV Serviços e Editora Ltda.

revisão

Marilia Pereira

projeto gráfico

Patrícia Oliveira

catalogação na fonte | uerj / rede sirius / nprotec

Elaborado por Rinaldo C. Magallon — crb 7/5016

S187

Samba, democracia e sociedade: grandes compositores e

expressões da resistência cultural no Brasil / Organizadores:

Luiz Ricardo Leitão e Marcelo Braz. – Rio de Janeiro: Mórula

Editorial; São Paulo: Outras Expressões, 2022.

228 p.

isbn 978-65-81315-34-4

isbn 978-65-87389-27-1

1. Compositores – Brasil – Biografia. 2. Sambistas – Brasil.

3. Arte popular – Brasil. I. Leitão, Luiz Ricardo, 1960-. II. Braz,

Marcelo. III. Título.

cdd: 929:784.4(81)

mórula editorial

Rua Teotônio Regadas 26 sala 904

20021_360 _ Lapa _ Rio de Janeiro _ RJ

www.morula.com.br _ contato@morula.com.br

/morulaeditorial /morula_editorial

editora outras expressões

Rua Abolição, 201 _ Bela Vista

01319-010 _ São Paulo _ SP

editora.expressaopopular.com.br _ livraria@expressaopopular.com.br

/ed.expressaopopular


Para José Ramos Tinhorão, um dos

maiores estudiosos do samba entre nós.

Para Monarco, a nobreza do samba.

E para a inesquecível Beth Carvalho,

cantora do povo.

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s u m á r i o

7 p r e fá c i o | Samba, Democracia e Sociedade

nei lopes

1 1 i n t r o d u ç ã o

1 9 pa r t e i | SAMBAS DE CONTESTAÇÃO E DE CRÍTICA

SOCIAL DE GRANDES COMPOSITORES

21 Com que roupa eu vou?

luiz ricardo leitão

35 Os sambas de contestação de Noel Rosa e de

Wilson Batista: sobre um Brasil moderno e arcaico

marcelo braz

59 Sambista de fato, rebelde por direito: Aluísio Machado

luiz ricardo leitão

79 A resistência democrática na Imperatriz Leopoldinense:

a contribuição de Zé Katimba

luiz ricardo leitão

99 Noca da Portela: um comunista de coração na luta

pela democracia

marcelo braz

121 Vamos lá rapaziada, tá na hora da virada!: os sambas

engajados de um sambista politizado

marcelo braz


1 4 5 pa r t e i i | EXPRESSÕES DO SAMBA, DA DEMOCRACIA

E DA CULTURA BRASILEIRA

147 Síncope e subversão: em memória do Clube do Samba

marianna de araujo e silva

167 Estranhou o quê? Preto pode ter o mesmo que você!

O Renascença Clube e o Samba do Trabalhador:

a potência da roda

larissa costa murad

193 Kizomba – 30 anos de um grito negro na Sapucaí.

Um registro plural e democrático

nathalia sarro

205 O proletariado é o herdeiro da filosofia clássica alemã:

considerações sobre um samba inusitado

de Carlos Nelson Coutinho & Leandro Konder

eduardo granja coutinho


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p r e fá c i o

Samba, Democracia e Sociedade

n e i l o p e s

No início da década de 1960, no universo da recém-nascida bossa-nova, a

dupla Tom e Vinicius lançou o samba “O morro não tem vez”. Por essa época,

o cenário cultural brasileiro vivia o que o historiador José Ramos Tinhorão,

no livro Pequena história da música popular, maliciosamente chamou de “onda

de ternura paternalista pelo povo sofredor”. A esse samba seguiu-se “Feio

não é bonito” (“o morro existe, mas pede pra se acabar”), de Carlos Lyra e

Gianfrancesco Guarnieri... Até que veio o dia 1º de abril de 1964.

Mas as letras de contestação às desigualdades sociais e de resistência ao

autoritarismo, e outros tipos de desmandos, já vinham desde antes do samba.

Porque a história da música popular brasileira se confunde, em muitos aspectos,

com a luta do “povo sofredor” por sua autodeterminação. E é também, muitas

vezes, a crônica das desigualdades, cada vez mais gritantes, que flagelam as

camadas subalternas da população brasileira, no seio da qual o samba nasce

renasce a cada década, desde o “Pelo Telefone”, em 1917.

Nesse panorama, a dialética ação/reação gera movimentos e espaços de

resistência, nos quais a cultura popular, tendo o samba como um dos principais

baluartes, vocaliza o fenômeno. Assim ocorreu, na Bahia oitocentista,

quando o povo preto se apropriou da Festa do Bonfim, criada pela Igreja, e

a formatou ao seu jeito, com seus sambas e suas comidas; da mesma forma

que ocorreu com a Festa da Penha, em terra carioca.

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A enumeração é longa. E chega até a década de 70, com a reação dos

“pagodes de fundo de quintal”, a fundação do Clube do Samba, liderada pelo

compositor e cantor João Nogueira, e a criação do GRANES Quilombo, comandada

pelo já legendário sambista Candeia. As três experiências decorreram,

direta ou indiretamente, da opção das então principais escolas de samba

carioca em valorizarem mais a competição carnavalesca do que o samba

propriamente dito. Assim, pagodes como o do “Arlindinho” (Arlindo Cruz,

brilhante músico e compositor); o da Tia Doca da Portela; e o bloco Cacique

de Ramos, realizados ao ar livre, com infraestrutura mínima, sem “estrelas”,

e sem qualquer tipo de monetização, tais como cobrança de ingresso, pagamento

de cachês, percentuais sobre a cerveja vendida etc. Tudo pelo prazer

de cantar, de mostrar o samba novo; e de ver a plateia feliz.

A resistência do Clube do Samba, motivada pela onda dos bailes do tipo

discothèque (no português brasileiro, “discoteca”, ou ainda “disco”, na forma

reduzida), deu-se em duas frentes: primeiro, com um baile semanal, na sede

do Clube de Regatas do Flamengo, no Morro da Viúva, e também com um

pagode, ao ar livre, no quintal do líder, no suburbano Méier. O baile era

animado por uma excelente orquestra, quase gafieirística. “Quase” porque,

além dos trombones, saxes, trompetes etc., tinha uma seção rítmica que

representava uma minibateria de escola, comandada pelo incomensurável

Wilson das Neves, um dos maiores nomes do samba em todos os tempos.

Sobre o Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo,

basta enunciar resumidamente um de seus fundamentos: “Quilombo não

pretende chamar atenção do consumo, violentador da cultura tradicional,

mas sim denunciar sua participação” (Candeia & Isnard, 1978, p. 88).

***

Tudo isso aconteceu na década de 1970. Num momento em que tradições,

como a do “samba de terreiro” e a dos versos improvisados do “partido-alto”,

eram desprezadas nas escolas, que passaram a visar apenas ao sucesso no

carnaval. Momento em que, proverbialmente, os “terreiros” eram ressignificados

como “quadras”, como aquelas dos clubes sociais e esportivos do

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“asfalto”, que várias agremiações passavam a utilizar, por aluguel ou empréstimo.

Principalmente depois da inauguração, em 1972, do “Palácio do Samba”,

da poderosa e admirada Mangueira.

Pois é disto, entre outros assuntos e por outros caminhos, que cuida

este livro: do inestimável patrimônio cultural que se encerra na tão simples

quanto diversificada rubrica “Samba”: dos espaços sempre resistentes que

esse samba semeou da Bahia para o Rio de Janeiro, e daqui para todo o

Brasil e, mesmo, algumas partes do mundo. Além disso, os textos abordam

o trabalho de alguns criadores exemplares, tanto pelo talento, quanto pela

coragem de seu posicionamento ideológico e sua ação política. Tal qual ensinaram

Paulo da Portela e outros “pais” do Samba; em lições que os autores

desta obra aprenderam e nos transmitem muitíssimo bem.

nei lopes é compositor, escritor e sambista, agraciado com o título de Doutor Honoris Causa

por quatro universidades públicas brasileiras: UFRGS, UFRRJ, UERJ e UFRJ.

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i n t r o d u ç ã o

Um samba

Que tal um samba?

Puxar um samba, que tal?

Para espantar o tempo feio

Para remediar o estrago

Que tal um trago?

Um desafogo, um devaneio

(...)

De novo com a coluna ereta, que tal?

Juntar os cacos, ir à luta

Manter o rumo e a cadência

Esconjurar a ignorância, que tal?

Desmantelar a força bruta

Então que tal puxar um samba

Puxar um samba legal

Puxar um samba porreta

Depois de tanta mutreta

Depois de tanta cascata

Depois de tanta derrota

Depois de tanta demência

E uma dor filha da puta, que tal?

Puxar um samba

Que tal um samba?

Um samba

[ chico buarque, “que tal um samba?” ]

11


Mais uma vez a canção popular brasileira é que irá nos redimir. Como povo

musical que somos, lemos a nossa realidade (e que dura realidade!) por meio

do cancioneiro nacional. Feliz do povo que tem entre os seus um compositor

como Chico Buarque. Sua obra se mantém atual e tem servido de bálsamo

para que suportemos estes tempos tristes em que vivemos. O que seria de

nós sem “Apesar de você”, “Vai passar” e tantas outras pérolas que cantamos

ontem e hoje. E eis que agora, meses antes de um processo eleitoral decisivo

para o futuro do país, Chico compôs um samba-de-lavar-a-alma pra “espantar

o tempo feio” e “desmantelar a força bruta”, propondo “um samba porreta”

“depois de tanta mutreta” e “depois de tanta derrota”.

Em sua nova canção o compositor sugere, “pra remediar o estrago”, “que

tal um samba?”. De nossa parte convidamos os leitores e leitoras a seguir

o fio por ele proposto, em forma de livro: que tal um “Samba, Democracia

e Sociedade”?

Entre as incertezas e expectativas do Brasil

contemporâneo

Este livro é fruto de inquietudes, compromissos e paixões de seus organizadores.

A apreensão — que, por certo, não é apenas nossa — advém da atual

conjuntura do país, cujas classes populares, celeiro dos bambas que aqui

serão analisados e exaltados, têm sofrido, nos últimos anos, perdas sociais e

econômicas brutais, provocadas pelas medidas radicalmente neoliberais do

desgoverno federal. Com seus direitos trabalhistas e previdenciários subtraídos

nas tenebrosas transações do Ministro Paulo Guedes com os banqueiros,

o grande capital nacional e o estrangeiro, além dos modernos “coronéis” do

agronegócio e da mineração, os trabalhadores e trabalhadoras do campo e da

cidade veem crescer a fome, o desemprego, a escassez de moradia e a terrível

violência rural e urbana, que, nesta “República das milícias e dos jagunços”,

condena literalmente à morte centenas de pessoas todos os dias. É um quadro

deveras desconcertante e desanimador, para cuja superação, no entanto, a

lição otimista do inesquecível samba de Noca da Portela e Gilper merece ser

evocada: “Vamos lá, rapaziada! / Tá na hora da virada / Vamos dar o troco!”.

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O compromisso — político, ideológico e social — que nos move é a causa

da justiça e da igualdade neste Brasil tão excludente e desigual. Um sambista

arguto e consciente já expressara, nos anos 70, com rara lucidez e tirocínio,

que “os direitos humanos são iguais / mas existem as classes sociais”. De fato,

o processo de concentração de renda e riqueza que a ditadura auspiciou entre

as décadas de 60 e 80 gerou uma das sociedades mais iníquas do planeta,

gerida por uma burguesia voraz e insaciável — uma autêntica colônia de

cupins de demolição, que corrói há séculos os instáveis pilares desta trôpega

nação. É por isso que, embevecidos com Zé Katimba, levantamos a “bandeira

da fé”. Nosso pavilhão é a resistência organizada e criativa de uma gente que

concebeu uma das mais ricas expressões culturais do país: o ‘samba’ e suas

férteis matrizes. E, tal qual o artista paraibano, compartilhamos a certeza de

que, “para reconquistar os direitos, temos de organizar um mutirão, derrubar

os preconceitos e a lei do circo e pão”1.

Por outro lado, não há como elidir nosso amor por esse gênero que fugiu

da chibata dos feitores nas fazendas e vicejou nos morros e nas áreas periféricas

do Recôncavo baiano e do Rio de Janeiro, tornando-se uma potente

expressão cultural do povo brasileiro — e que vai muito além da sua transformação,

por obra das classes dominantes, em uma espécie de ícone da

identidade nacional. Crias de Vila Isabel e Madureira, os dois organizadores

deste volume não são, definitivamente, “filhos de chocadeira”. Luiz é

apaixonado pela Unidos de Vila Isabel desde os onze anos, quando seu pai,

então estudante de Medicina, se mudou para a terra de Noel, estimulado

pelos versos antológicos de “O Pequeno Burguês”, de Martinho da Vila, cujo

dístico inicial ele entoava dia e noite: “Felicidades, passei no vestibular / Mas

a faculdade é particular...”. Desde então, seja deleitando-se com a “Casa de

Bamba” na antiga quadra do campo do América Football Club (onde hoje se

ergue o Shopping Boulevard), seja nos desfiles da Sapucaí, seu coração bate

em melodioso e cadenciado azul & branco.

Já Marcelo, mais do que ter nascido e crescido em Madureira, desenvolveu

o essencial de sua sociabilidade no bairro mais sambista do Rio de Janeiro.

1 Neste parágrafo, citamos versos da canção “A Humanidade”, de Aluísio Machado, e de

“Bandeira da Fé”, de Martinho da Vila & Zé Katimba.

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Tem o coração dividido entre as duas escolas do lugar. Vibrou, junto à sua mãe

imperiana e ao povo da Serrinha, com o inesquecível Bumbum Paticumbum

Prugurundum de 1982. Chorou, junto a uma multidão apinhada no terreiro da

Portela, quando aquele ser de luz que foi Clara Nunes partiu em 1983. Foi aí

que acabou se tornando portelense para toda vida, tal como foi seu saudoso

pai. Cultua todos os santos sagrados do samba, mas é devoto mesmo de um

semideus chamado Paulinho da Viola.

Um bastião sincopado da luta pela democracia

O objetivo primordial desta obra é ressaltar, antes de tudo, o papel que o

‘samba’ tem desempenhado, desde a primeira metade do século XX, como

forma popular de aguda e jocosa crítica política e de costumes, desvelando

máscaras sociais e denunciando, com engenho e arte, as mazelas e misérias

desta claudicante pátria inscrita em uma experiência socioespacial em que

se entrelaçam a modernização capitalista com relações de trabalho herdadas

da escravidão e se mesclam o moderno e o arcaico — contradição perfeitamente

figurada por Wilson Batista no “Bonde de São Januário”2 e genialmente

sintetizada por Noel Rosa no verso “coisa nossa... muito nossa”3. Não foi por

acaso que Franklin Martins, em seus três volumes de Quem foi que inventou

o Brasil? (um exaustivo estudo sobre as canções que “escreveram” a crônica

musical do país desde 1902 até 2002), concedeu ao gênero uma deferência

inequívoca. Embalado pelos sambas e pela verve de Noel Rosa, Lamartine

Babo, Wilson Baptista, Ary Barroso, Zé Keti, Paulinho da Viola, João Bosco,

Aldir Blanc, João Nogueira, Noca da Portela e tantos outros, o pesquisador

logrou recapitular a história da nossa República por meio das criações desses

grandes compositores brasileiros.

Em meio a tantos temas essenciais da vida pública nacional, nossa modesta

obra tratou de privilegiar o enlace do ‘samba’ com a bandeira da ‘democracia’

nesse país cevado no antigo regime colonial da “casa-grande & senzala”. De

2 “Bonde São Januário”, de Ataulfo Alves e Wilson Batista (1940).

3 “São Coisas Nossas”, de Noel Rosa (1932).

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fato, após a farsa da abolição da escravidão e de proclamação da República, ao

final do século XIX, o Brasil continuou a ser o paraíso das oligarquias, tornando-se,

a partir do “Estado Novo” de Vargas, pasto gentil do grande capital que

explora milhões de trabalhadores e trabalhadoras e dilapida as riquezas de

nossa terra. Essa evolução capitalista de notória feição ‘prussiana’, em que

o novo se revela tão somente uma versão repaginada das velhas estruturas

de poder, enseja, inevitavelmente, resistência e rebeldia das classes populares,

expressas não apenas por meio de greves, guerrilhas e insurreições,

mas também pelo humor ferino e corrosivo de nossos artistas. E, no caso

do ‘samba’, muitas vezes, por uma incisiva participação na linha de frente

da luta pela justiça social e pelos direitos dos trabalhadores, em defesa das

liberdades democráticas e da soberania nacional.

Assim, de Noel Rosa a Noca da Portela, esses “cronistas do Brasil”, legítimos

epígonos da linhagem que forjou Gregório de Matos e Lima Barreto,

retratam a pilhagem de nossos abundantes recursos, erguem suas vozes

contra a opressão e se atrevem, mesmo sob o tacão da ditadura, a conclamar

o povo para “dar o troco”, anunciando em seus versos a tão sonhada “hora

da virada”. Esse papel de vanguarda da resistência ao arbítrio nem sempre

tem sido devidamente sublinhado por historiadores e jornalistas, que, ao

evocar os “anos de chumbo”, costumam privilegiar outras vertentes musicais

que afrontaram, cada qual a seu modo, a opressão e a violência do regime. É

comum se celebrar a sanha iconoclasta da Tropicália em resposta à caretice

dos militares, ou a explosão da juventude estudantil nos festivais da TV (que

fizeram de Geraldo Vandré e Sérgio Ricardo ícones da luta armada).

Mas, que espaço está reservado aos bambas das Noitadas de Samba do

Teatro Opinião, que, de 1971 a 1983, desvendaram, em versos belos e potentes,

a falácia do “Brasil do milagre” (indagando, como Noca & Gilper, “de que

adianta trabalhar demais, se o que eu ganho é pouco” e advertindo-nos que

“quem tem muito tá querendo mais e quem não tem tá no sufoco”)? E o que

se reserva aos militantes boêmios, àquela turma animada e aguerrida de

homens e mulheres de luta que cantam e sambam nos palcos democráticos

da cidade? Qual o lugar dos barbudos e “barbudas” que fizeram do Barbas uma

referência política e cultural em forma de bar e depois bloco de carnaval? Os

leitores e as leitoras verão que essas indagações não ficam sem respostas aqui.

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Verão que o Clube do Samba de João Nogueira constituiu uma experiência

riquíssima de festa e de luta pela cultura brasileira num contexto

contraditório em que estávamos imersos numa luta pela redemocratização

da sociedade brasileira que, com a Anistia, se reforçaria com aqueles “que

partiram num rabo de foguete”. O Clube de Nogueira tinha alvos muito

claros: a luta pela democracia e a valorização do samba e de nossas expressões

culturais em meio a uma brutal estrangeirização da música capitaneada

pelas forças do mercado.

Conhecerão a história do Renascença Clube, que sempre esteve associada,

por meio de estratégias as mais diversas, à valorização da negritude, causa

que não foi abandonada em nenhum momento de sua trajetória e que se

renovou fortemente a partir de 2005. Foi nesse ano, como se lerá neste livro,

que se criou o Samba do Trabalhador, roda que está em atividade, religiosamente,

todas as segundas-feiras, por longos dezessete anos. É lá nesse palco

histórico da cultura popular que se canta, qual catarse coletiva, “Estranhou

o quê? Preto pode ter o mesmo que você” — versos de um samba de Moacyr

Luz, o criador da famosa roda, que têm forte relação com a luta contra o

racismo pela qual o já histórico clube sempre se bateu.

A valorização da cultura afro-brasileira teve em 1988 um dos seus momentos

mais gloriosos. Foi quando a Unidos de Vila Isabel se sagrou campeã em um

histórico desfile com enredo assinado pelo mestre Martinho da Vila, cujo

samba (escrito por Jonas, Rodolpho e o inesquecível Luiz Carlos da Vila)

figura entre os mais lindos de todos os tempos. Kizomba, a festa da raça

consagrou a nova direção da agremiação encabeçada por Lícia Caniné, a

Ruça, militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que buscava, justamente,

realizar um carnaval que afirmasse uma leitura crítica do centenário

da assim chamada “Abolição”.

Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder, dois grandes brasileiros, não

exatamente sambistas, que lutaram por um Brasil justo e igualitário, combatendo

no campo da batalha das ideias, também estão nesta Coletânea. Em

“diálogo” com uma composição de Bubu da Portela, consagrada na voz única

de Jamelão, os intelectuais estabeleceram uma “parceria” que nos deu um

samba inusitado. Os versos famosos de “Esta melodia”, como os do trecho

“Quando vem rompendo o dia / Eu me levanto, começo logo a cantar”, se

16


tornaram, por obra de Coutinho e Konder, em “Quando veio a burguesia /

O velho Kant se pôs a filosofar”. Ao longo da letra elaborada pelos dois

teóricos, que acabaram nos dando um “samba filosófico”, ficamos sabendo

da dialética entre a filosofia e o movimento do proletariado cuja superação

se dá pelo materialismo histórico marxista. Querem saber mais? Vão lá no

texto conferir.

Os autores e autoras desta Coletânea procuraram oferecer algumas respostas

que objetivam, principalmente, somar esforços para um maior debate acerca

das valiosas criações e experiências político-culturais que tiveram o samba

como dínamo e polo aglutinador — como bem nos aponta no Prefácio o

grande Nei Lopes, ele próprio uma liderança inconteste sempre envolvido

com nobres causas democráticas e culturais do povo brasileiro, como grande

compositor, escritor e sambista.

Então, caros leitores e leitoras, para finalizar este texto, que é só uma

Introdução, voltemos a Chico Buarque: “Que tal um samba?”. É nesse fio que

propomos: que tal Samba, Democracia e Sociedade com Noel Rosa, Wilson

Batista, Aluísio Machado, Noca da Portela, Zé Katimba, Carlos Nelson Coutinho,

Leandro Konder e mais o Clube do Samba, o Renascença Clube e o Samba

do Trabalhador, a Vila Isabel e a sua Kizomba...?

luiz ricardo leitão e marcelo braz

Rio de Janeiro / Natal, junho de 2022.

17


1ª edição outubro 2022

impressão paym

papel miolo avena 80g/m 2

papel capa cartão 250g/m 2

tipografia calluna e criteria


LUIZ RICARDO LEITÃO é escritor,

professor associado da UERJ (1995-2021) e

Doutor em Estudos Literários pela Universidad

de La Habana. Autor de Noel Rosa: Poeta da

Vila, Cronista do Brasil (2009), ele é supervisor

editorial do Acervo Universitário do Samba

(UERJ), projeto para o qual escreveu Aluísio

Machado: sambista de fato, rebelde por direito

(2015), Zé Katimba: antes de tudo um forte (2016),

Rosa Magalhães: a moça prosa da avenida (2019)

e Tiãozinho da Mocidade e os bambas de Padre

Miguel (2022).

FOTO: ACERVO PESSOAL

FOTO: DANIEL CORDEIRO • TV UERJ

MARCELO BRAZ é professor associado

do DESSO/UFRN e colaborador do PPGSS da

ESS/UFRJ. Doutor em Serviço Social pela

UFRJ, realizou o pós-doutorado em Economia

na Universidade de Lisboa. Entre outras obras,

publicou Partido e Revolução (2011), Samba,

Cultura e Sociedade (2013), Para a crítica da crise:

diálogos com intelectuais e parlamentares da

esquerda em Portugal (2016) e Noca da Portela e

de todos os sambas (2018).


Assim como a batucada empurra o corpo

pro remelexo, o período recente do nosso

país não nos permite ficar inertes — ou

então seremos ninados no meio da boca

dos crocodilos. E mexer-se é também

refazer tramas há cem anos enredadas:

samba, democracia e sociedade. Este livro

é o bem-vindo e necessário apito de

bateria convocando o samba e o país

pra umbigada no meio da roda.

MANU DA CUÍCA

Compositora e escritora

APOIO CULTURAL:

ISBN 978658131534-4

ISBN 978658738927-1

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