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UnicaPhoto - Ed 19

Revista do curso de Fotografia da Universidade Católica de Pernambuco

Revista do curso de Fotografia da Universidade Católica de Pernambuco

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a revista de fotografia da Unicap

Unicaphoto

#

19

INDEPENDÊNCIA

OU MORTE

O grito de Simonetta Persichetti, Hélio Campos de Melo, Walter Firmo, Renata Victor, Augustin de Saint-Hilaire, Anny Stone, Natália Amor-in,

Juliana Amara, Rucker Vieira, Paulo Cunha, Fernando Monteiro, Rodrigo Carreiro, Augusto Pessoa, Cleane Pereira da Silva, Delma Josefa da

Silva, Juan Huanca, Sony Ferseck (Wei Paasi), Bruno Pereira e Dom Phillips (in memorian), Filipe Falcão, Pilar Roca, Federico García e do Brasil


Foto:Hélio Campos de Mello


editorial

sobre essa tal

independência

Esta edição de sua Unicaphoto é especial, porque os

tempos deste Brasil são bem especiais. 2022 é o ano

de nossas vidas, levando-se em conta palavras como

liberdade, democracia, independência. Não se trata

somente das eleições, mas de questões de identidade:

que povo (e não somente que país) somos este? Nestas

páginas, a pergunta aparece em cada imagem.

Como um grito. De liberdade. Todo dia comum e de luta

é especial, portanto. Não passarão.

Simonetta Persichetti e Hélio Campos Mello traduzem

a exposição “No verbo do silêncio a síntese do grito”,

de um dos mais expressivos fotógrafos brasileiros em

atividade: Walter Firmo. É sobre o Brasil de verdade. No

país mais do grito que da independência, Walter Firmo

mostra como a fotografia deve se negar à neutralidade.

Em cartaz no IMS, em São Paulo. Dessa São Paulo vem

também o ensaio de Renata Victor, com fotos deste 2022

e texto escrito em 1822, há duzentos anos portanto,

por outro viajante, o botânico Augustin de Saint-

Hilaire, para falar como o Brasil (há quem ache que São

Paulo é o Brasil inteiro) sempre foi selvagem com as

minorias e contrário à ideia “edificante” de liberdade e

independência, “Exercitada na arte de caçar homens” ou,

como diz o aniversariante Caetano Veloso, em “Sampa”:

“Pan-Américas de Áfricas utópicas, túmulo do samba/

Mais possível novo quilombo de Zumbi”. Esta edição

é sobre esse tipo de Narciso e espelho, antidivinal, que

encontra reflexos no ensaio “Alice da Aurora”, de Anny

Stone e da modelo Natália Amor-in, onde o espelho é

o Recife das lutas libertárias, a cidade-mangue, para

lembrar também os trintas anos do movimento mais

independente da música popular brasileira porque não

popular, mas do povo. Chico, Zapata, Sandino, Josué

de Castro, axé! A Alice de Anny Stone é o verdadeiro

espelho de uma cidade que se olha e toma chá e se nega

diante do rio, não do Ipiranga, mas do Capibaribe.

A identidade e liberdade estão também no ensaio de

Juliana Amara: “Sem nome e sem endereço”. Fotografia

como linguagem, esses espelhos de Amara denunciam

invisibilismos do Recife. As fotos são apresentadas sob

e sobre esquinas e ruas do bairro invisível de Água Fria,

do Recife, onde mora a artista visual.

Destaque se faça a outro fotógrafo “desaparecido”:

o pernambucano Rucker Vieira. Graças ao trabalho

de Paulo Cunha, seu nome é rotomado na História

da Fotografia (independente, popular) do Brasil.

Unicaphoto entrevista Paulo Cunha sobre seu mais

recente Árida luz nordestina (Ed. Contraluz) e publica

ensaio biográfico sobre Rucker, escrito pelo cineasta e

crítico de arte Fernando Monteiro, conhecido, também,

por sua independência aos mercados editoriais e da arte.

Em 2022 este país pode se tornar um faroeste?

Rodrigo Carreiro apresenta excelente artigo sobre

um dos maiores diretores do cinema, o italiano Sergio

Leone, para trazer esse “retrato” mais cru das emoções

humanas, cujo palco é o rosto. O superrosto.

O close extremo.

Esta nossa edição é uma das mais urgentes. Sob a

chamada de “Independência ou morte”, ouvimos as

minorias do Brasil. Pedimos para negros e negras,

indígenas, imigrantes, gente do Brasil Profundo nos

contar, em simbólicas duzentas palavras, o que significa

mesmo comemorar a independência, hoje. Para isso,

convidamos o fotógrafo Augusto Pessoa, que nos

atendeu numa canoa no Amazonas e, mesmo assim,

conseguiu sinal de internet para enviar essas fotaças,

num ensaio tocante, de um Brasil que se nega a si mesmo

e a se olhar. E se reconhecer como parte da sua América,

a do Sul, e não a do Norte.

É por essa vibe que circulam as fotos de Filipe Falcão,

que em 2022 visitou Machu Picchu, no Peru, para deixar

pistas da violência do colonizador espanhol.

As fotos trazem lúcido e emocionante texto do cineasta

e escritor Marcelo Pérez, que traduziu para Unicaphoto

trechos de Pachakuteq, livro inédito em português,

de dois pensadores: libertários, independentes,

latinamericanos: Pilar Roca e Federico García.

3


COORDENAÇÃO-GERAL

Renata Victor

EDITOR

Sidney Rocha

CONSELHO EDITORIAL

Filipe Falcão, Renata Victor e Sidney Rocha

FOTO DA CAPA

Augusto Pessoa

FOTO DA QUARTA CAPA

Rucker Vieira

QUEM É QUEM NESTA EDIÇÃO

Auguste de Saint-Hilarie (1779-1853) foi um botânico e viajante francês.

Anny Stone é fotógrafa e diretora de cinema.

Augusto Pessoa é jornalista e fotógrafo

Cleane Pereira da Silva, entre outras atividades, é coordenadora da Cecoq

(Coordenação de comunidades Quilombolas do Piauí)

Delma Josefa da Silva é doutora em Educação, pesquisadora sobre Educação

e relações étnico-raciais e currículo escolar Quilombola.

Ministra cursos sobre Necropolítica e Educação antirracista.

Fernando Monteiro é poeta, cineasta e cr´tico de arte

Filipe Falcão é doutor em Comunicação, pesquisador em audiovisual, professor da Unicap

Hélio Campos Mello é fotógrafo

Juan Huanca é imigrante boliviano e “ex-estudante”

Juliana Amara é fotógrafa concluinte do curso de fotografia de Unicap

Marcelo Pérez é cineasta, escritor, doutor em em Letras na Universidade Federal de Pernambuco.

Criou e ministrou em várias instituições educativas a disciplina

que chamou de Alfabetização Audiovisual.

Paulo Cunha é escritor, pesquisador e professor-titular aposentado na Universidade Federal de

Pernambuco. Doutor em Artes e Ciências da Arte pela Universidade de Paris I - Panthéon-Sorbonne.

Pilar Roca foi uma destacada líder estudantil na Universidade de San Marcos, no Peru,

onde estudou Serviço Socia. É também realizadora de cinema

Renata Victor é mestre em História e coordenadora do curso de Fotografia da Unicap

Rodrigo Carreiro é escritor, professor universitário e doutor em Comunicação (Cinema)

Simonetta Persichetti é jornalista, crítica de fotografia e doutora em Psicologia.

Sony Ferseck (Wei Paasi) faz parte do povo indígena Macuxi. É poeta, escritora, pesquisadora e

atualmente professora substituta no curso de Licenciatura Intercultural no Instituto Insikiran de

Formação Superior Indígena da UFRR. Douto-randa em Estudos Literários no Póslit/UFF.

Escaneie o código QR abaixo, através de aplicativo no seu smartphone,

e acesse todas as edições da revista na internet.

Unicaphoto é uma publicação semestral do Curso Superior de Tecnologia

em Fotografia da Universidade Católica de Pernambuco.

Esta sua 18 a edição vem a público em 29 de março de 2022.

(ISSN 2357 8793)


Uma apologia

da imagem

por Simonetta Persichetti &

Hélio Campos Mello

8

72

Cinema agreste

de Hucker

Entrevista com Paulo Cunha

Exercitada na arte de

matar homens

por Renata Victor

& Saint-Hilarie

Alice da Aurora

por Anny Stone

O estilo visual

de Sergio Leone

por Rodrigo Carreiro

14

34

76

O legado da luz

por Fernando Monteiro

80 Independência

ou morte

por Augusto Pessoa

A montanha

vem a mim

por Filipe Falcão

& Marcelo Pérez

50 106 Aconteceu

Sem nome,

sem endereço

por Juliana Amara

62

121


6


7Foto: Renata Victor


exposição

Uma apologia

da imagem

Publicado originalmente na revista Arte Brasileiros em maio de 2022

Texto de Simonetta Persichetti/Fotos de Hélio Campos Mello

8


9


Em 1957 um jovem com sua

Rolleiflex começou a trabalhar

no jornal Última hora no Rio de

Janeiro. Mais de sessenta anos

depois e com um acervo de 140 mil

fotografias, Walter Firmo, que aos

84 anos, continua fotografando,

mas de uma forma mais livre, com

o olhar solto em seu andar pelas

cidades, é sem dúvida um dos

nomes fundamentais da fotografia

brasileira.

Nascido em 1937 no subúrbio

carioca, de pais paraenses, pai

negro e mãe branca, Walter

Firmo, segundo Sérgio Burgi,

curador e coordenador de

fotografia do IMS: “construiu a

poética e a poesia de seu olhar

voltado principalmente para a

elaboração de um registro amplo

e generoso da população negra

e suburbana da cidade, olhar

que estenderia em seguida para

a população negra de todo o

país, em suas lidas cotidianas,

religiosidades, festas e múltiplas

manifestações culturais,

verdadeira ode à integridade,

altivez, força, resiliência e

resistência das pessoas negras,

desejo permanente de justiça

num país que insiste em

permanecer estruturalmente

estamental e segregacionista”.

Trabalhou em vários jornais

e revistas como o já citado

Última Hora, Jornal do Brasil,

revista Manchete, Realidade.

Foi diretor do Instituto Nacional

da Fotografia de 1986 e 1991,

publicou livros e ganhou

prêmios, como o Prêmio Esso de

Fotografia em 1963.

O fotógrafo que, parafraseando

outro fotógrafo o Ricardo

Chaves, o Kadão, por meio de

suas fotografias Walter Firmo

“abriu uma porta para o Brasil

de verdade”. Um fotógrafo que

correu o Brasil retratando a

cultura popular, trazendo as

cores e o pb de um país que ele

10

O Instituto Moreira

Salles de São Paulo

apresenta a exposição

“No verbo do silêncio

a síntese do grito”,

do fotógrafo carioca

Walter Firmo.

registrou sob muitos aspectos,

esportes, política, mas acima de

tudo gente. Sempre com um olhar

que como ele mesmo conta não

queria apresentar

“o jornalismo da fratura exposta”,

da dor, da notícia, mas a busca

por sutilezas, por um aspecto não

tão evidente à primeira vista.

Começou fotografando em preto e

branco a única linguagem possível

para o fotojornalismo naquela

época. Anos mais tarde conhece

a cor, nas revistas Manchete

e Realidade. Passa a ser

reconhecido como um fotógrafo

colorista, mas ele sabe muito bem

como fazer uso dessas estéticas

tão diferentes: “a cor é a fala da

paixão, o preto e branco é uma

foto mais silenciosa”.

Foi neste mar de imagens que

os curadores Sérgio Burgi,

a curadora adjunta Janaina

Damaceno Gomes, professora da

Universidade Estadual do Rio de

Janeiro (Uerj) e coordenadora

do Grupo de Pesquisas

Afrovisualidades: estéticas e

políticas da imagem negra e

com a assistência de curadoria

da conservadora-restauradora

Alessandra Coutinho Campos e

pesquisa biográfica e documental

de Andrea Wanderley,

integrantes da Coordenadoria de

Fotografia do IMS,

mergulharam durante dois anos

para extrair 266 fotografias que

o Instituto IMS apresenta na

exposição No verbo do silêncio

a síntese do grito: “esse tempo

foi necessário para entendermos

tudo o que Walter Firmo havia

produzido, tanto do ponto

de vista profissional como se

trabalho pessoal que acabam

se misturando”, conta Sérgio

Burgi. Após essa análise um

eixo principal acabou surgindo

que foi a sua produção sobre

a população negra e as raízes

africanas. Foi em 1968,

trabalhando nos estados Unidos

que Walter Firmo teve contato


com os movimentos negros e a

luta pelos direitos civis. Este

encontro marcou profundamente

sua fotografia.

O título foi pinçado de um texto

que o próprio Walter Firmo

escreveu em 1998. Ao ser

perguntado sobre a frase ele

responde: “o verbo do silêncio é

a própria fotografia. Que você se

encanta e quer traduzir através

do seu sentimento e inteligência o

que está na sua frente. A síntese

do grito é o registro”.

Em dois andares do Instituto

Moreira Salles Walter Firmo

passeia por suas fotografias:

“entro em conversa espiritual

com estes personagens que eu

fotografei. Eles são os meus

totens”. São as fotografias

entre tantas de artistas como

Pixinguinha, Cartola, Clementina

de Jesus, Madame Satã, Artur

Bispo do Rosário, que se

misturam com as fotos de seus

familiares: “falar somente em

auto representação é limitador

quando falamos do Walter

Firmo”, reflete a profa. Janaina

Damaceno Gomes, curadora

adjunta: “as fotos do Walter

constroem um direito básico que

é fundamental que é o direito

de olhar, não só porque você se

representa, mas porque você

também tem direito

de olhar o mundo”.

E é olhando o mundo que Walter

Firmo o sedutor das palavras e o

sedutor das imagens nos lembra

em uma frase estampada na

exposição: “a imagem não pode

ser neutra. O poder do olhar

deve influenciar as pessoas,

porque o ato de fotografar tem

que ser político, e não um mero

acaso do instantâneo”.

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ensaio

Exercitada

na arte de

caçar homens

Renata Victor (textos de Saint-Hilaire)

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Neste 2022, Renata Victor visitou

e fotografou outra vez São Paulo,

“berço da independência”, onde se deu

o grito às margens do Ipiranga.

O verbete Ipiranga, hoje, talvez seja mais

relacionado a um cruzamento

com a avenida São João que ao rio onde

certa vez Dom Pedro.

Entre 1816 e 1822, o botânico e viajante

francês Augustin François César Prouvençal

de Saint-Hilaire (1779 — 1853) visitou São

18


Paulo por duas vezes. Unicaphoto escolheu

trechos do seu livro Segunda viagem a São

Paulo e quadro histórico da província de São

Paulo para acompanhar este belo ensaio de

Renata Victor. A frase que dá título ao ensaio

é extraída do texto do botânico.

Sem anacronismos, texto e imagem falam

bem sobre as ideias de independência e

morte e suas contradições a partir do

nascimento da maior cidade da América

Latina.

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[....]

Depois de senão devastarem

o reduto de Santo Antônio,

os paulistas destruíram,

ainda, três outros redutos

e retiraram-se, conduzindo,

como escravos, avultado

número de indígenas. Vendo

seus discípulos acorrentados

como se fossem vis

criminosos, o padre Maceta

correu a abraçá-los, tendo

sido recebido com pancadas

e ameaçado de morte. Não

recuou, porém. Juntamente

com o padre Mansilla, tomou

a resolução de acompanhar

os prisioneiros até o Brasil,

a fim de ali ad-vogar a causa

de seus infelizes discípulos.

Caminhavam os dois padres

a alguma distância do bando

dos paulistas, alimentando-se

com raízes e frutas silvestres;

e todas as vezes que algum

dos cativos, prostrado pela

fadiga e pelos sofrimentos,

era abandonado pelos

seus aprisionadores, os

dois heroicos missionários

prodigalizavam-lhes seus

cuidados, consolavam-no

ternamente e mostravam-lhe

o céu, auxiliando-o a morrer.

Chegam, finalmente, a

São Paulo. Os indígenas

são repartidos entre seus

perseguidores, pelos

quais são vendidos e, logo,

dispersados, não só pela

capitania de São Paulo, como

pela do Rio de Janeiro. É em

vão que os padres Mansilla e

Maceta fazem ouvir a favor

desses infelizes a voz da

humanidade, da justiça e da

religião; não são ouvidos.

Seguem, então, para o Rio

de Janeiro, onde também

não são atendidos. Não

desanimam: embarcam para

a Bahia, onde imploram a

compaixão do governadorgeral.

Este os recebe com

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benevolência, mas, todo

ocupado com a guerra que

estalara entre os holandeses e

os habitantes do Brasil, pouco

interesse tomou pela sorte dos

indígenas, nada podendo fazer

em prol de seus defensores. De

regresso a São Paulo, os dois

missionários foram atirados

numa prisão. Postos mais

tarde em liberdade, voltaram

para Guaíra, prostrados de

dor, após terem mostrado,

inutilmente, quanto a caridade

cristã pode inspirar de

devotamento e de coragem.

Quando faziam caça aos

selvagens disseminados

no seio das florestas, os

paulistas só podiam agarrar

um pequeno número de cada

vez; nos redutos dos jesuítas,

ao contrário, encontravam

reunida uma população

considerável; e, como o

governo espanhol não permitia

o uso de armas de fogo aos

indígenas, estes, por assim

dizer, nenhuma resistência

ofereciam. Os paulistas

só tinham o trabalho de

acorrentá-los. Apenas esses

incansáveis aventureiros

chegavam das regiões

que tantos escravos lhes

forneciam, já se impacientavam

para às mesmas voltar. É

assim que preparavam uma

nova expedição, e, penetrando

mais uma vez pelos desertos,

chegaram, inopinadamente,

ao reduto de São Paulo,

saquearam-no, destruíramno,

acorrentaram seus

habitantes e exterminaram,

sucessivamente, vários outros

redutos.

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[....]

Os paulistas, entretanto,

desesperados por verem

arrebatada uma presa

que devia contribuir para

enriquecê-los, e não

encontrando mais redutos

para devastar, nem indígenas

para escravizar, investiram,

raivosamente, contra as

duas já referidas povoações

espanholas de Vila Rica e

Ciudad Real, saqueando-as e

destruindo-as completamente;

e, como não pudessem reduzir

seus habitantes a escravos,

pois pertenciam à mesma

raça deles, dispersaramnos.

Foram, dessa forma,

punidos esses últimos pelo

seu covarde egoísmo. Se

eles, em vez de se aproveitar,

como acima já referimos,

da desgraça dos indígenas,

aos mesmos se reunindo

para repelirem os bárbaros

estrangeiros invasores de

suas terras, não morreriam

no exílio, e Ciudad Real e Vila

Rica estariam, ainda hoje,

florescentes. Desde essa

ocasião Guaíra ficou deserta.

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[....]

Muito pouco se sabia, no

norte do Brasil, sobre o

que eram os paulistas,

ninguém havia, entretanto,

que não tivesse ouvido

falar de sua coragem e da

habilidade com que faziam

a guerra aos indígenas. Os

habitantes da província da

Bahia, não podendo livrarse

dos contínuos ataques

de formidável tribo dos

Guerens, recorreram aos

paulistas, apelando para um

dos mais famosos chefes

desses homens aventureiros,

de nome João Amaro. Era

mister que esse sertanista

reunisse sua gente e que,

para alcançar a Bahia,

atravessasse imensas

regiões desabitadas, sem

caminhos, regiões em que só

se podia viver da caça e de

frutos silvestres. Dois anos

decorreram, e Amaro não

aparecera ainda. Chegou,

enfim (1673), com sua tropa

de mamalucos exercitada

na arte de caçar homens.

Levava também indígenas,

os quais menos inteligentes

do que seus senhores,

eram entretanto, como

estes, tão ativos quanto

intrépidos e cruéis. Todas

as tropas locais reúnem-se

à de João Amaro. Partem.

Atravessam terras incultas,

até então desconhecidas;

massacram os indígenas que

resistem; enviam milhares de

prisioneiros à Bahia, livrando,

assim, por longo tempo, os

habitantes dessa cidade do

temor dos selvagens. Os

cativos eram tão numerosos

que foram vendidos a 30

francos por cabeça; mas os

sofri- mentos, os maus-tratos,

o desespero fizeram-nos

perecer tão depressa que

os compradores acharam

que por um preço tão vil

ainda faziam um péssimo

negócio. Além da elevada

quantia prometida a João

Amaro, deram-lhe uma vasta

extensão de terras e o domínio

sobre uma vila de que tinha

sido o fundador. Mas, para

os paulistas, destemidos

caçadores de homens, o

descanso era um suplício:

João Amaro vendeu suas

terras, voltando para São

Paulo, ansioso por encetar

novas aventuras.

Segunda viagem a São Paulo e Quadro Histórico da província de São Paulo, de Auguste

de Saint-Hilaire. Tradução e introdução de Afonso de E. Taunay. Coleção “O Brasil visto

por estrangeiros”. 238 p.: il. Editora do Senado Fe-deral, Brasília, 2002.

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ensaio

Alice

da Aurora

Anny Stone

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Este ensaio fotográfico o realizei

a partir de uma evocação: o

universo ou forma de ver o

mundo do Expressionismo

Alemão, somada à perspectiva

de uma Alice que visita a

própria mente a partir de novas

perspectivas.

O texto apresentado aqui é um

excerto de uma sustentação

téorica descrita em “A arte como

sentimento: Expressionismo

Alemão e novas releituras de

Alice no País das Maravilhas,

publicado em 1865 por Charles

Lutwidge Dodgson, sob

pseudônimo de Lewis Carroll.

A Alice retratada é uma Alice

urbana, que caminha entre

mangue e pichações do Recife,

que sente o cheiro do rio e olha

para a lua e as luzes da cidade.

Ao invés de gato falante, a Alice

da Aurora conversa com um

soldadinho, inseto típico local,

que aqui tomou uma poção

para crescer e ficou grande o

suficiente para passear com a

Alice.

O espelho da Alice é um portal

de acesso a todas as perguntas

ainda não respondidas,

remetendo à eterna busca do

eu, busca de si, do self, no

próprio reflexo que aqui é

questionado repetidamente,

potencializando também a

referência ao Expressionismo

Alemão com sua eterna

representação do duplo.

Figura humana quase não

humana, a Alice da Aurora

tem olhos surreais, maiores

que o normal, mais abertos a

enxergar o mundo de maneira

expressionista e sentimental.

A inspiração para o ensaio

partiu justamente desses

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olhos, que foram desenhados

especialmente para o ensaio.

Assim como as fotografias da

pioneira Cindy Sherman,

com destaque para o trabalho

de Anna Gaskell,

o ensaio segue a linha de

fotografia narrativa, montada

para a câmera a fim de criar

uma narração própria com

as imagens. Aqui, Alice toma

o chá do Chapeleiro, talvez

uma poção mágica, que a faz

ver as maravilhas no contexto

urbano-onírico à beira-rio da

Rua da Aurora. Entre outras

influências, está o trabalho

de Jan Svankmajer

e do diretor de cinema

Tin Burton.As fotos foram

realizadas no dia 8 de

dezembro de 2019, com a

modelo Natália Amor-in. As

fotografias foram feitas durante

o pôr-do-sol e um pouco

depois dele. com uma câmera

Canon 6D, com lentes Nikon

adaptadas 24 mm f 2.4 e 43-83

mm f 3.5, uma lente Rokinon

Cynelens 85 mm t 1.5, um flash

Canon 580EX II.

Para a produção das

fotografias, tive em mente

principalmente o contraste e

as diferentes angulações do

Expressionismo Alemão, além

da vontade de criar momentos

lúdicos e invenções oníricas.

Para isso utilizei objetos de

cena como o espelho da Alice,

a xícara, e também utilizei

ferramentas como lupas para

produzir efeitos e distorções.

Para o tratamento das imagens,

a principal referência foi o

trabalho de Anna Gaskell, com

foco para alguns preceitos

específicos: cores contrastadas

com reminiscências de

Caravaggio, recorte e

tratamento de luz para valorizar

os objetos principais na cena.

Anna Gaskell é uma fotógrafa de Iowa (EUA)

que já fez várias exposições aclamadas

e costuma trabalhar com “fotografia

narrativa”, ou seja, fotos encenadas,

montadas para a câmera, à semelhança

dos sets de filmagem. A fotógrafa convidou

duas gêmeas idênticas para encenar uma

nova versão de Alice, na série “Wonder”, de

1996, aclamada pela crítica. As fotografias

de Gaskell parecem ter um tempo que as

atravessa, um tempo que não é presente

ou futuro, mas no qual tudo acontece

ao mesmo tempo. Alguns elementos nas

fotografias têm um toque de absurdo,

de deslocamento, e isso é utilizado para

evocar um mundo onírico e muito vivo.

Em “A Viagem de Alice”, o diretor checo

Jan Svankmajer trabalhou com live- action

e stop-motion para dar uma vida surreal

ao universo da loucura da aventureira

Alice. Na fábula infantil, a fantasia é

utilizada para tratar de questões da vida

real. Provavelmente todos os personagens

das fábulas infantis mais conhecidas são

crianças assustadas diante de grandes

desafios. A personagem de Alice não foge à

regra, tentando sempre retornar ao mundo

da realidade, enquanto vai descobrindo

que suas certezas não são mais tão certas

assim, ela deixa até mesmo de saber se ela é

a Alice certa ou não. Esse universo confuso e

cheio de personagens do mundo da fantasia

é um prato cheio para as influências do

Expressionismo Alemão.

REFERÊNCIAS

O Grito, 1893 , Edvard Munch. Disponível em

<http://enciclopedia.itaucultural.org.br/

pessoa333908/edvard-munch>. Acessado

em 15 ago 2022

CARROL, LEWIS. Alice no País das

Maravilhas. São Paulo: Zahar, 2010.

GASKELL, A. página da artista no Museu de

Guggenheim. Disponível em:

<https://www.guggenheim.org/artwork/

artist/anna-gaskell>. Acessado em 15 ago

2022

MASCARELLO, F (org) – História do cinema

mundial. Campinas, Papirus, 2006

MORIN, E. O Cinema ou O Homem Imaginário

– Ensaio de Antropologia Sociológica. 1a.

Edição, São Paulo: Realizações Editora,

2014.

NAZÁRIO, L. As sombras móveis. Belo

Horizonte: Editora UFMG, 1999.

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artigo inovação

O estilo visual

de Sergio Leone

por Rodrigo Carreiro

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Fotogalerias

ou slideshows como

elementos de construção

de narrativas do

fotojornalismo digital.

Aqui, o projeto Displaced,

do NY Times, que vem

usando o recurso pra

amplificar efeitos de

recepção da notícia

e inovando

na narrativa visual.

Na imagem, escombros,

na Ucrânia,

Fonte: New York Times.

Quais as características que

destacam um filme como

interessante ou original, aos olhos

da platéia? Embora a maioria

das pessoas costume atentar em

primeiro lugar para aspectos

ligados ao enredo e às peripécias

da trama, isso nem sempre é

verdade. O modo como a história

é contada é determinante para a

percepção:

O estilo é a textura tangível do

filme, a superfície perceptual com

a qual nos deparamos ao escutar

e olhar: é a porta de entrada para

penetrarmos e nos movermos na

trama, no tema, no sentimento – e

tudo mais que é importante para

nós. (BORDWELL, 2009, p. 58).

No âmbito do cinema narrativo,

todo filme conta uma história.

Mas uma história criada com luz,

sons, cores e movimento. Muitas

vezes, não é o que o diretor filmou

que faz um filme emocionar as

pessoas. É a maneira como ele

filmou; são os recursos estilísticos

acionados pelo cineasta para

narrar a ação dramática.

Mas o que é o estilo? Para

David Bordwell, os padrões que

funcionam como assinaturas de

um diretor são desenvolvidos, ao

longo da carreira dele, através

do que o teórico denomina como

paradigma do problema/solução

(BORDWELL, 2009, p. 320).

Ou seja, o processo de contar

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uma história num meio audiovisual

consiste em uma sucessão de

problemas de representação, que

os realizadores solucionam fazendo

escolhas a partir de um repertório

anteriormente disponível.

Para cada problema que a

história a ser contada impõe

ao diretor existe uma série de

soluções possíveis, entre as quais

o artista deve escolher uma. O

paradigma do problema/solução

consiste na adaptação, para o

meio audiovisual, do conceito de

esquema (GOMBRICH, 2007).

Os artistas trabalham dentro de

uma tradição que dispõe de um

repertório de normas de estilo,

que eles podem copiar, reformular,

sintetizar ou rejeitar. O conjunto

de recursos que compõe esse

repertório constitui os esquemas.

Cada artista ajusta os esquemas

disponíveis a novas possibilidades

oferecidas pelos contextos sócioculturais,

econômicos, tecnológicos

e ideológicos em que trabalha.

O paradigma nos ensina que

determinado recurso, quando

usado com sucesso para resolver

um problema de representação,

tende a ser integrado aos esquemas

circulantes dentro da atividade

cinematográfica. Assim, se um

diretor é confrontado com um

problema idêntico ao que solucionou

antes, ele tende a repetir a

solução anterior. Essa repetição

cria padrões recorrentes, que

determinam o que chamamos de

estilo individual: “O termo estilo

deve ser considerado em sentido

amplo, como a arte de contar uma

história em imagens e em sons”

(JULLIER; MARIE, 2009, p. 20).

O processo de seleção das

soluções que determinarão o

estilo individual de um diretor

obedece, evidentemente, a uma

série de contextos de ordem sóciocultural,

histórica, tecnológica,

financeira e política, que funcionam

como limites e pré-condições.

Orçamento, tecnologia, modas e

censura, por exemplo, são alguns

desses contextos, muitas vezes

externos ao filme em si.

As escolhas estilísticas, portanto,

são atravessadas por fatores nãocinematográficos.

Elas moldam a

assinatura pessoal de um diretor,

embora não sejam necessariamente

pensadas de modo consciente.

Assim, é possível afirmar que a

assinatura autoral de um diretor

sempre emerge através da maneira

como este lida com os esquemas

circulantes de sua arte.

Tais escolhas podem ter sido

planejadas antes de filmar, podem

ter emergido espontaneamente

durante a filmagem ou se imposto

na pós-produção. Para fazer uma

distinção supersimplificada, podem

ser “escolhas livres”, que realizam

realmente as intenções do diretor,

ou podem ser “escolhas forçadas”,

nascidas de limites externos,

como tempo, dinheiro ou falta

de poder. Dessa maneira, para

explicar mudança e continuidade

dentro do estilo do filme, temos

de examinar as circunstâncias

que influenciam mais diretamente

a execução do filme – o modo de

produção, a tecnologia empregada,

as tradições e o cotidiano do ofício

favorecido por agentes individuais.

(BORDWELL, 2009, p. 69).

Neste artigo, procuro investigar

alguns padrões estilísticos

recorrentes na obra de Sergio

Leone, notadamente na área

da composição visual. Temos

como objetivo demonstrar que os

limites e pré-condições à produção

audiovisual nem sempre são

circunstâncias inibidoras do ato

da criação, podendo gerar novos

padrões que venham a se tornar

ferramentas de estilo importantes

dentro do repertório dos esquemas

narrativos circulantes no meio

cinematográfico. Também é nosso

objetivo reafirmar que a análise

estilística pode se constituir num

método valioso para a verificação

de hipóteses de trabalho

relacionadas à história da arte

cinematográfica.

Close-ups

De todos os padrões estilísticos

visuais da obra de Leone, o

uso abundante de close-ups é a

os close-ups nesta mátéria

são frames da filmografia

do diretor italiano

Sergio Leone (1929-1989)

52


ferramenta mais lembrada. Closeups

extremos de rostos (em que

o enquadramento vai do queixo

à testa do ator) ou de um par de

olhos são, até hoje, associados

aos filmes do italiano. Esse tipo

de composição, embora comum, é

mais frequente no cinema dele do

que no repertório de qualquer outro

cineasta (COUSINS, 2004, p. 33).

O close-up era um recurso

estilístico evitado por muitos

cineastas europeus da geração de

Leone. Esses diretores associavam

esse tipo de enquadramento ao

melodrama norte-americano;

aproximar a câmera do rosto do

ator parecia uma maneira vulgar

de manipular as emoções do

público. Ao mesmo tempo, o closeup

isolava o personagem do espaço

físico onde a ação dramática

acontecia, violando dessa forma

um dos princípios fundamentais

da estética neo-realista, influente

na Europa dos anos 1950: a

integração dos atores ao cenário.

Leone, no entanto, acreditava que

o uso que dava ao close-up era

diferente do uso que a ferramenta

tinha nos filmes norte-americanos:

Nos Estados Unidos, todos fazem

um close-up em um personagem

quando ele está prestes a dizer

algo importante. Eu sempre reagi

contra essa prática. Meus close-

53


ups são sempre a expressão de

uma emoção. Sou muito cuidadoso

nessa área, então me chamam

de perfeccionista ou formalista,

porque eu prezo por minhas

composições visuais. Mas não faço

isso para deixar o filme mais bonito.

Estou procurando, em primeiro

lugar, as emoções mais relevantes.

(LEONE, 2000. p. 77).

Ele resgatava, conscientemente

ou não, uma linhagem de diretores

que valorizava os close-ups com

funções expressivas. Cineastas

soviéticos dos anos 1920, em

especial Sergei Eisenstein,

concebiam o close-up como um

estudo pictórico da face humana,

extraindo dele não uma informação

objetiva, mas um efeito emocional:

“a essência está em filmar

expressivamente. Devemos (...)

usar o limite da forma simples

e econômica que expressa o que

precisamos” (EISENSTEIN,

2002, p. 137).

Também alguns diretores europeus

dos anos 1920 e 1930, a exemplo

de Carl Dreyer, lançavam mão

desse recurso estilístico com

frequência. No entanto, eles faziam

parte de uma minoria. Na Europa,

o esquema dominante da época

apontava para o registro visual

de cenas em tomadas longas e

com câmera distante dos atores.

Esses recursos eram ainda mais

proeminentes nos países europeus

do que em Hollywood, onde

também constituíam um esquema

dominante (SALT, 2009, p. 245).

Constituindo um instrumento de

exceção nos esquemas visuais

dominantes do cinema clássico, a

partir de 1928 o close-up passou

a ser utilizado ainda menos, por

uma razão técnica: a instituição

do cinema com som sincronizado,

fato ocorrido no ano anterior. Pelo

menos até 1932 (SALT, 2009,

p. 242), decupar qualquer cena

em muitos planos multiplicava as

dificuldades técnicas, devido às

dificuldades logísticas de captação

e edição dos diálogos gravados

nos sets de filmagens. Por isso, a

maioria das cenas era filmada em

54


tableau, através de composições

visuais que focalizavam os atores

de corpo inteiro, em planos gerais.

Com o aparecimento da televisão,

nos anos 1940, os diretores

gradualmente passaram a filmar

os atores com a câmera cada

vez mais próxima, variando os

enquadramentos. A utilização

de close-ups aumentou porque

os seriados de TV recorriam

com freqüência ao close-up dos

rostos para permitir que o público

acompanhasse a modulação

emocional do enredo com mais

facilidade – verificar o grau de

emoção irradiado por um rosto

em planos gerais ou médios, na

tela pequena de um aparelho de

televisão, era bastante difícil, de

forma que os diretores começaram

a inserir close-ups de reação

dos atores nos momentos mais

dramaticamente significativos.

Essa técnica, contudo, foi

assimilada aos poucos devido

a uma razão tecnológica: os

formatos anamórficos de imagem

introduzidos em 1953, como o

Cinemascope, exigiam lentes

especiais que deformavam as

bordas dos enquadramentos

próximos (BORDWELL, 2008,

p. 52), distorcendo os rostos dos

atores nos close-ups normais e

perdendo o foco nos close-ups mais

extremos.

No começo dos anos 1960,

quando Leone começou a dirigir, o

problema estava desaparecendo. O

Cinemascope dera lugar ao sistema

Panavision, também anamórfico,

cujas câmeras e lentes permitiam

a filmagem de close-ups sem

distorções intensas. Por outro lado,

os close-ups extremos ainda eram

raros, em parte porque não era

possível preencher todo o quadro

com o rosto e manter o foco nítido

na ação vista por trás desse rosto,

e em parte por razões culturais

– os cineastas não romperam de

forma radical com o esquema então

dominante, usado para solucionar

esse problema de representação.

Para Leone, os orçamentos

pequenos e a dificuldade que eles

55


geravam para povoar os cenários

com figurantes incentivaram o

uso de close-ups extremos. O

diretor de fotografia Tonino Valerii

(2003, p. 299) diz que Leone o

orientava a fechar cada vez mais

os enquadramentos, aproximando

cada vez mais a câmera dos atores

e preenchendo todo o quadro com

o rosto, do topo da cabeça até a

ponta do queixo, para evitar que

cenários vazios, sem figurantes,

aparecessem nas laterais do

quadro largo.

Por causa de tudo isso,

historiadores do estilo

cinematográfico (BORDWELL,

2008, p. 322; COUSINS, 2004,

p. 33; SALT, 2009, p. 247)

concordam entre si: Leone foi o

diretor dos anos 1960 que mais

usou close-ups. Os números

confirmam que os filmes feitos por

Leone contêm maiores índices de

close-ups do que os trabalhos de

qualquer outro diretor, mesmo os

contemporâneos, que utilizam o

recurso com mais freqüência do que

acontecia no cinema dos anos 1960.

Para comprovar isso, contei o

número de close-ups em três filmes

de Leone (Por um Punhado de

Dólares, Três Homens em Conflito

e Era uma Vez na América) e

comparei os dados obtidos com

a média de usos de close-ups em

longas-metragens realizados nos

anos de 1959 (SALT, 2009, p.

280) e 1999 (SALT, 2009, p. 369).

Por um Punhado de Dólares com

orçamento de US$ 200 mil; em

Três Homens em Conflito, Leone

teve seis vezes mais dinheiro

à disposição e acesso a novas

tecnologias; e Era uma Vez na

América, realizado duas décadas

depois, pertence a outro gênero

fílmico, e foi realizado no sistema

de produção dominante em

Hollywood.

Apesar dos três contextos

de produção serem bastante

diferentes entre si, as estatísticas

mostram que o uso do closeup

em Leone quase não variou

entre eles. Vejamos: o primeiro

western de Leone contém 221

close-ups normais e 217 close-ups

extremos. O filme tem 857 planos,

descontados os créditos iniciais,

dos quais 438 (ou seja, 51,10%)

são close-ups. Na prática, um

a cada quatro planos do filme

consiste de close-ups normais, e

mais um a cada quatro é um closeup

extremo.

Realizado dois anos depois, Três

Homens em Conflito alcança

resultados parecidos. Do total de

1.472 planos, 325 são close-ups,

e outros 551 close-ups extremos.

Esses números significam que um

a cada três planos do filme (551

planos, ou 37,43%) é um close-up

extremo; e um a cada cinco (325

planos, ou 22,07%), um close-up

normal. O longa-metragem tem, ao

todo, 876 planos em close-up. Isto

Composições recessivas:

Na pintura e também no

cinema moderno: a tendência

pelo espaço recessivo, em

busca de uma profundidade

na cena.

A ferrovia (Edouard Manet

1873), nesta página e Olympia

(1863),do mesmo artistas,

na página seguinte, detalhe

para a construção da cena:

personagens que nos olham.

56


significa que 59,51% do total de

planos do filme usam composições

com close-ups.

Era uma Vez na América teve

orçamento de US$ 30 milhões e

utilizou um formato de imagem

diferente (a proporção 2.35:1

foi substituída pela 1.85:1, mais

estreita e mais comum nos anos

1980). As alterações financeiras

e tecnológicas exerceram pouco

impacto no uso do recurso de

estilo. O total de planos em closeup

chega a 1.019 dos 1.687 que

compõem os 22 minutos do filme

(60,40%). Leone usou 444 planos

(26,31%) em close-up normal, ou

um a cada quatro; e 575 planos em

close-up extremo (34,08%), ou um

a cada três.

Para efeito de comparação, Barry

Salt (2009, p. 281) contou os tipos

de planos em uma amostragem

de 20 dos 151 longas-metragens

produzidos nos Estados Unidos em

1959, e chegou a um percentual

de 44,38% de close-ups (dos quais

10,08% são close-ups extremos).

Outra conclusão importante

mostra que Leone foi o único

cineasta dos anos 1960 a utilizar

mais close-ups extremos do

que close-ups normais em seus

filmes. A pesquisa de Barry Salt

(2009, p. 280-281) demonstra

que os diretores dos anos 1960

usavam, em média, um close-up

extremo para cada quatro closeups

normais. No ano de 1999,

essa relação era de três close-ups

normais para cada extremo. Na

obra de Leone, para cada três

close-ups normais, eram usados

quatro extremos.

O resultado dessa comparação

estatística nos mostra que o uso

do close-up extremo pode ter sido

impulsionado por modas, pelos

contextos de produção e pela

influência da televisão, quando

Leone começou a dirigir; mas

a consistência e a ampliação do

57


uso desse recurso, ao longo de

duas décadas, demonstram que a

ferramenta se tornou uma opção

estilística consciente para ele.

Mais até do que uma solução para

um problema de representação, o

close-up extremo se tornou uma

assinatura estilística amplamente

reconhecida.

Composições

recessivas

O segundo recurso visual

característico de Leone é o uso

da composição pictórica em

profundidade de campo. Esse

tipo de composição institui o que

Bordwell (2008, p. 219) chamou

de “espaço recessivo”, seguindo o

estudo de Heinrich Wölfflin sobre

a composição pictórica dos artistas

barrocos na Europa do século XVII:

Há um momento em que

enfraquece a relação entre os

planos e passa a ser enfatizada

a seqüência em profundidade

dos elementos do quadro; nesse

momento, o conteúdo já não

pode ser apreendido através

de camadas estruturadas na

superfície, e a força motriz

passa a residir na articulação

dos componentes próximos e

afastados. (...) Mesmo nos casos

em que esse efeito [a encenação

planimétrica] parece inevitável

– por exemplo, quando um certo

número de figuras se alinha

ao longo da boca de cena – o

artista cuida para que essas

figuras não se cristalizem numa

fileira perfeita, obrigando o

observador a fazer incursões

constantes [com o olho] até o

fundo do quadro. (WÖLFFLIN,

1996, p. 101).

Nas composições recessivas, o

artista se esmera em criar linhas

diagonais que cortam o quadro

do primeiro plano até o fundo.

Os artistas podem criar esse

efeito através de vários recursos,

inclusive as gradações de luz e

cor. Mas a maneira mais simples

de instituí-lo na imagem é a

disposição das figuras (atores,

objetos cênicos, animais) em

diferentes planos de profundidade.

Ao longo da história do cinema,

a composição recessiva nunca

foi um esquema dominante de

mise-en-scéne. Nos anos 1920

e 1930, a encenação dominante

tendia a posicionar os atores numa

linha perpendicular à câmera,

produzindo um achatamento

visual que resultava numa imagem

planimétrica (WÖLFFLIN, 2000,

p. 102), com pouca profundidade.

Isso era resultado não apenas

da influência do teatro, mas

também dos equipamentos –

sobretudo lentes e película – ainda

incipientes, que não permitiam

aos diretores de fotografia obter

profundidade de campo, de forma

que os atores, para ficar em foco,

tinham que se posicionar numa

faixa estreita do cenário.

Apesar disso, havia exceções,

incluindo diretores famosos,

oriundos de escolas e países

diferentes, que popularizaram

a composição recessiva como

uma alternativa viável à imagem

planimétrica. Sergei Eisenstein,

Kenji Mizoguchi, Jean Renoir,

John Ford e Orson Welles são

exceções famosas. Cada um

revisou e adaptou as composições

recessivas de uma maneira

ligeiramente diferente dos outros.

Todos influenciaram o processo de

revisão desse recurso que Leone

levou a cabo, nos anos 1960.

A partir do final dos anos 1930,

Eisenstein começou a aplicar à

encenação cinematográfica uma

coreografia mais elaborada do

movimento dos atores dentro do

quadro. Essa coreografia obedecia

ao mesmo princípio que ele usava

em sua teoria da montagem:

a organização dos elementos

visuais que compunham o quadro

era, em si, um segundo processo

de montagem, só que realizada

dentro do plano, e não através

do corte. Através da coreografia,

dizia Eisenstein (1992, p. 24) o

realizador podia guiar o olho do

espectador para certas partes da

imagem, depois para outras, e

assim por diante. Esse processo

era tão mais eficiente quanto

mais utilizasse a profundidade de

campo.

Na década de 1930, Kenji

Mizoguchi resgatou a composição

recessiva filmando dentro no

mesmo quadro duas ações

simultâneas, uma próxima e

outra distante da câmera, em

coreografias aparentemente

casuais e tomadas longas, com

muito movimento. Nos planos de

Mizoguchi, as figuras se moviam

constantemente, tanto no primeiro

quanto no segundo plano.

Na França, Jean Renoir usava

composições recessivas com

freqüência, e era também adepto

das tomadas longas. Os planos

reuniam vários atores conversando

e se movimentando a diferentes

distâncias da câmera. No entanto,

Renoir colocava seus atores bem

distantes da câmera, focalizados

em plano médio ou geral. Além

disso, ele às vezes mantinha o

segundo plano fora de foco, ou

agrupava os atores numa área

mais estreita, obtendo uma

profundidade de campo menos

enfática e retórica.

John Ford, outro adepto da

composição recessiva, valorizava

mais o espaço geográfico em que

a ação acontecia. De modo geral,

o primeiro plano em Ford é mais

distante do que em Eisenstein,

Mizoguchi ou Renoir, porque a

integração do homem à paisagem

58


funcionava como tema central em

seus filmes. A relação dos atores

com o espaço cênico era tão

importante quanto a coreografia

das figuras dentro do quadro.

Ford exerceu influência na

revisão que Orson Welles fez

da composição recessiva em

profundidade. Welles criou

uma variação mais exagerada e

hiperbólica. Ele hiperdramatizou

o recurso através da combinação

de várias técnicas: além da

profundidade de campo, usava

o contra-plongé (a filmagem

dos personagens de baixo para

cima acentuava a dramaticidade

dos rostos, efeito amplificado

pelas sombras oriundas da

iluminação quase expressionista

que utilizava, com pouca luz de

enchimento) e colocava um ator

em primeiro plano próximo da

câmera. Este último, em geral,

permanecia parado, enquanto

os demais atores iam e viam

do primeiro plano ao fundo, de

forma que essa movimentação

assinalasse a modulação

dramática, com personagens

dominando e sendo dominados

por outros alternadamente, às

vezes dentro da mesma tomada,

quase sempre sem cortes.

A influência de Welles

popularizou essa variação

hiperdramatizada de composição

recessiva nos filmes dos anos

1940. A técnica, chamada deep

focus (ampla profundidade

de campo obtida através da

combinação de lentes grandeangulares,

iluminação mais forte

e película mais sensível à luz),

tornada famosa por Cidadão

Kane (1941), permitia o uso

desse recurso em filmes pretoe-branco

(a película colorida

exigia mais luz, o que diminuía

automaticamente a profundidade

de campo obtida).

Nos anos 1950, pela mesma

razão tecnológica que reduziu o

uso de close-ups – a adoção de

processos anamórficos como o

Cinemascope –, as composições

recessivas voltaram a ser pouco

utilizadas. Elas se tornaram

tecnicamente mais difíceis

de obter, e só retornaram ao

repertório dos cineastas do

mainstream com Leone.

O uso típico que o italiano

dava à composição recessiva

se aproximava de Welles.

Havia sempre uma figura em

primeiríssimo plano, emoldurando

a ação ao fundo; a profundidade

de campo era ampla, com

distâncias de até 20 metros entre

as duas ações em diagonal, que

se relacionavam. Mas havia,

também, diferenças significativas.

Leone tinha predileção por

planos com câmera fixa, dentro

dos quais o movimento dos

atores era mínimo. Ele tendia a

enquadrar de modo mais estático

e minimalista, quase como uma

pintura. O senso de movimento

era gerada não no interior da

composição pictórica, como

seus antecessores, mas através

da justaposição desses planos

recessivos com outros planos –

principalmente os close-ups.

Usando a tela larga widescreen

como “uma superfície dividida em

unidades rítmicas” (BORDWELL,

2007, p. 311), Leone unia os

dois recursos de modos quase

simplórios: ele usava um rosto,

mão ou revólver como figura em

primeiríssimo plano; essa figura

preenchia um terço da tela. A

linha diagonal criada dentro do

quadro levava o olho do espectador

do primeiro plano para o fundo,

criando um jogo de tensão que

ampliava o suspense alcançado,

acentuando a impressão de tempo

dilatado – quase câmera lenta

– que era, por si só, um terceiro

padrão estilístico importante para

Leone.

A razão para essa tendência

de enquadrar de forma estática

estava, talvez, na influência do

uso da composição recessiva

feito por pintores europeus

que Leone admirava, como

Edgar Degas (1834-1917)

e Giorgio De Chirico (1888-

1978). Os planos que usavam a

composição recessiva aparecem

com uma solenidade que induz o

espectador a admirar o “artista”

que os produziu. Era, talvez

intuitivamente, uma tentativa de

se impor como autor.

Do francês Degas, Leone reteve

a técnica de criar linhas diagonais

através do posicionamento das

figuras a diferentes distâncias do

pintor; essa técnica é evidente

na famosa série de quadros de

bailarinas, que Leone adorava

(FRAYLING, 2000, p. 233). De

Chirico era citado por Leone pelo

uso da nitidez nas composições em

diagonal.

Para adotar a composição

recessiva com profundidade de

campo e moldura, Leone precisou

resolver impedimentos técnicos.

Nos anos 1960, as lentes

anamórficas disponíveis não

permitiam grande profundidade

de campo, o que inviabilizava

que as figuras em primeiro plano

ficassem próximas da câmera e/

ou distantes entre si. Mas a partir

de 1963 surgiu uma solução

técnica para esse problema. Essa

solução permitia que a câmera

ficasse a poucos centímetros

de distância do elemento em

primeiro plano, mantendo o foco

nele e também na ação dramática

mais distante, a até 20 metros

de distância. O aparato técnico

que permitia essas composições

surgiu em Roma, no laboratório

italiano da Technicolor. Foi lá

que alguns técnicos inventaram o

Techniscope (BARBUTO, 2009),

um sistema não-anamórfico

59


que registrava as imagens na

proporção 2.35:1 – a mesma dos

formatos anamórficos – numa

área correspondente a 50% do

negativo de 35 mm, utilizando

lentes esféricas normais, nãoanamórficas.

O principal problema do

Techniscope estava relacionado

à qualidade da imagem. Como

o Techniscope usava uma área

menor do negativo, a imagem

precisava passar por uma

ampliação maior na projeção; a

textura ficava mais granulada e

tinha cores desbotadas. Mas o

sistema tinha vantagens. Além

da economia de negativo, ele

oferecia maior profundidade de

campo:

[O Techniscope] usava as lentes

comuns, que chamamos de

esféricas. Pelo fato de a diagonal

do quadro ser menor, havia um

aumento da profundidade de

campo em relação ao 35mm e

ao Cinemascope. Havia uma

boa disponibilidade de lentes

zoom (...) [o que não acontecia

com as lentes anamórficas,

muito mais caras e difíceis

de encontrar]. Se poderia ter

o quadro largo, permitindo

o trabalho com a paisagem,

liberando a mise-en-scène. E, de

quebra, fazia o negativo render

o dobro, diminuindo os custos.

(BARBUTO, 2009).

Na Itália, os produtores

adotaram o Techniscope

como formato padrão dos

filmes de baixo orçamento,

pois as vantagens financeiras

eram expressivas. Leone, em

particular, viu no formato

a solução para o problema

das composições recessivas.

A desvantagem mencionada

– textura granulada e cores

desbotadas – não chegava a ser

um empecilho, pois a direção de

arte de seus westerns apostava

60

em cores gastas e texturas

sujas. O sistema até favorecia a

aparência rústica pretendida.

É importante esclarecer que a

justaposição de close-ups e planos

gerais em composição recessiva

ainda gerou um terceiro traço

estilístico recorrente na obra de

Leone: a percepção mais lenta da

passagem do tempo interno de

certas cenas, sobretudo os duelos.

A conexão entre a alternância de

close-ups e planos gerais com o

tratamento do tempo diegético

era estabelecida, em grande

parte, pela representação mais

fragmentada do espaço fílmico.

Nos momentos de maior tensão,

Leone quebrava a unidade

espacial da cena através dos

close-ups justapostos dos

rostos dos personagens. A

música dramática e o uso de

silêncios também reforçam

a sensação de câmera lenta.

Além disso, Leone sustentava a

representação fragmentada do

espaço fílmico durante o máximo

de tempo possível, para então

justapor aos close-ups algumas

tomadas panorâmicas em que os

personagens se tornam pequenos

pontos se movendo na tela, muitas

vezes emoldurados por rostos,

mãos ou botas. Essa economia

de planos gerais contribuía para

não deixar totalmente claras

as relações espaciais entre os

personagens da cena.

Essa era a versão de Leone para

uma ferramenta típica dos diretores

modernistas europeus – o uso

do falso raccord com intenção

de suspense –, que a utilizavam

para subverter uma convenção

da linguagem cinematográfica e

libertar o cinema da linearidade de

tempo e espaço (BÜRCH, 1992, p.

36).

Bordwell acrescenta uma

idéia importante para explicar

porque, no decorrer dos anos

1960, os diretores começaram

a fragmentar cada vez mais

o espaço fílmico. Para ele, os

cineastas foram influenciados

pela popularização dos formatos

Scope de imagem (na proporção

2.35:1), pois esses formatos de

imagem possuíam mais espaço

lateral, de forma que era possível

mostrar o cenário mesmo durante

um close-up.

Considerações

A continuidade intensificada é um

conceito cunhado a partir de uma

proposta alternativa da evolução

da poética do cinema ao longo do

século XX 1 . Em linhas gerais,

David Bordwell (2008, p. 12)

divide a poética em três vertentes:

temática, construção narrativa em

larga escala e prática estilística.

A primeira lida diretamente com

as peças que compõem a narrativa

(texto, subtexto, personagens,

temas, diálogos, etc.). A segunda

estrutura a ordem com que

essas peças são dispostas, com

as finalidades de organizar

as informações dramáticas e

provocar certas emoções no

público. A terceira corresponde

à textura visual e sonora

propriamente dita (composições

pictóricas, montagem, música,

iluminação, cenários, figurinos,

locações externas, etc.).

Bordwell propõem que os

princípios gerais que governam

a arte cinematográfica,

cuja premissa ele chamou

de “continuidade clássica”

(BORDWELL, 2006, p. 119),

jamais deixaram de operar. Ele

acredita que as três vertentes

da poética do cinema foram e

continuam sendo submetidas a

uma operação de intensificação

1

Por poética, aqui, compreende-se o

conjunto de princípios estilísticos e

narrativos que governam a construção de

sentido da obra de arte e a sua respectiva

decodificação pelo público.


Respeitar a mise en scène,

a profundidade de campo

Leone acreditava na

meticulosidade, no sentido de

cada detalhe na construção

do plano, da cena. Encenação,

como em um palco ou em uma

pintura. “Preciso trabalhar

a fantasia para melhor

instalar a coreografia e o

barroco na minha escrita

cinematográfica”, disse

uma vez o diretor em uma

entrevista.

A Schoolboy Sleeping on His

Book (1775), de Jean-Baptiste

Greuze

gradual e incessante, cujas

origens remontam aos anos 1960.

A poética da continuidade

intensificada, então, consiste

em um conjunto de esquemas

circulantes que incorporam um

leque cada vez mais amplo de

recursos estilísticos, sempre

apontando em direção a uma

experiência fílmica mais visceral

e intensa, buscando sempre uma

imersão maior do espectador

no espaço diegético. Ele sugere

que, embora muitos recursos de

estilo e táticas narrativas tenham

sido introduzidos desde então

no cardápio dos cineastas, os

princípios gerais da construção

narrativa, constituídos durante

a fase clássica do cinema, ainda

continuam valendo:

O que mudou, tanto nos registros

mais conservadores quanto nos

mais vanguardistas, não foi o

sistema estilístico da construção

cinematográfica clássica, mas sim

certas ferramentas funcionando

dentro desse sistema. (...) Desde

os anos 1960, essas técnicas

foram trazidas para o primeiro

plano, de formas inéditas em

décadas anteriores. Enquanto

se tornavam mais proeminentes,

essas técnicas alteraram a

textura de nossa experiência

fílmica. (BORDWELL, 2006, p.

119).

Entre os nomes dos diretores

que ajudaram a trazer essas

novas técnicas para o primeiro

plano, Bordwell cita Jean-Luc

Godard, François Truffaut,

Michelangelo Antonioni, Ingmar

Bergman, Akira Kurosawa

e Orson Welles. A análise

fílmica da obra de Sergio Leone

sugere que devemos incluir

o nome dele nesse grupo. A

contribuição dele na constituição

da poética intensificada tem

sido minimizada, principalmente

porque ele emergiu a partir de um

ciclo de produções populares – o

spaghetti western – e fazia filmes

de gênero, na época tidos como

artisticamente inferiores.

No entanto, ao isolar determinados

padrões estilísticos recorrentes

na obra de Leone e reconstituir

os contextos de emergência

dessas ferramentas, através da

metodologia de análise fílmica

que leva em consideração os

contextos sócio-culturais, torna-se

possível afirmar que o cinema de

Leone exerceu uma contribuição

importante na consolidação

do repertório da poética da

continuidade intensificada.

61


Sem nom

JULIANA AMARA

ensaio

62


e, sem endereço

Sem dinheiro no banco e sem parentes importantes, como diria o cearense

Belchior ou o baiano Caetano: sem lenço, sem documento. Assim se

apresenta Juliana Amara neste ensaio às vezes um pouco ao modo poseur

(nunca poser), outras vezes ao modo dos 3x4 para denunciar certo

cataloguismo. De espécie. A artista, hoje trabalhando em um museu de arte

contemporânea no Recife, aposta nos espelhos (da cidade, de si mesma)

como ecos da imagem, em uma visão bastante peculiar de si mesma e de

artistas visuais de um cidade que ignora ou invisibiliza bairros como Água

Fria, onde Juliana Amara sem-nome mora, em todos os endereços.Nenhuns.

63


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70


71


entrevista

Foto: Sidney Rocha

72


Cinema agreste

de Rucker

Nesta entrevista para Unicaphoto, o pesquisador Paulo Cunha fala sobre seu

novo livro, Arida luz nordestina, lançado pela editora Contraluz. e reforça a

importância do trabalho do pernambucano Rucker Vieira (1931-2001) para a

memória da fotografia e dos cinemas brasileiro e popular do Brasil. Há sucessores

para o trabalho de Rucker Vieira? “Quem dera houvesse hoje no Brasil cineastas

que olhassem para o mundo popular sem querer dar lições a ninguém”, diz Paulo

Cunha. Além da entrevista, Unicaphoto publica na íntegra o prefácio do livro,

um ensaio biográfico escrito pelo cineasta e crítico de arte Fernando Monteiro.

Árida luz nordestina:

o cinema de Rucker Vieira,

de Paulo Cunha,

358 páginas,

Editora Contraluz, 2022

Foto: Ana Farache

Paulo Cunha nasceu no Recife.

É pesquisador e professor-titular

aposentado na Universidade Federal de

Pernambuco. Doutor em Artes e Ciências da

Arte pela Universidade de Paris I - Panthéon-

Sorbonne. Publicou, entre outros: A utopia

provinciana: Recife, Cinema, Melancolia

(2010), A imagem e seus labirintos: o cinema

clandestino do Recife, 1930-1964 (2014),

A aventura do Baile Perfumado: vinte anos

depois (2016), Geneton: viver de ver o verde

mar (2019), A invenção de Tatuagem: o

processo de criação de Hilton Lacerda

(2021) e Árida luz nordestina: o cinema de

Rucker Vieira (2022).

Unicaphoto:Vamos começar pela

pergunta mais urgente: como se

explica de um nome como Rucker

Vieira desaparecer?

Paulo Cunha: Rucker Vieira foi

um dos criadores de imagens mais

importantes do Brasil na segunda

metade do século XX. Uso a

expressão “criador de imagens”

porque além de ter sido um

fotógrafo (de imagens estáticas)

e um diretor de fotografia (em

filmes de diversos diretores),

Rucker foi um cineasta rigoroso,

criador de obras antológicas como

“A cabra na região semiárida”.

Como o criador dessa dimensão

desaparece das histórias do

cinema e da fotografia? Como

some dos registros da cultura

brasileira? Podemos imaginar

que foi tragado pela melancolia

provinciana, pelo fato de ter sido

um homem simples e trabalhador,

ou por ter fugido das elites

intelectuais que legitimam os que

a ela se dobram. Rucker Vieira

foi provavelmente o mais popular

dos artistas visuais brasileiros, um

homem que bebia Rum Montilla

em bares suburbanos, onde

tirava imenso prazer em levar

seu projetor de 16 milímetros

para mostrar filmes com gols

de Garrincha aos parceiros de

farra. A cena cultural brasileira

é elitista. Rucker Vieira não se

enquadrava nela.

73


Brincando de luz e sombra:

Paulo Cunha analisa o

processo de criação de

Rucker Vieira.

Foto: reprodução do livro

Árida luz nordestina

Unicaphoto: Como se deu

a passagem da experiência

fotográfica para cinematográfica,

de Rucker Vieira? Era tudo

atrevimento e autodidatismo

ou havia uma formação mais

disciplinada, acadêmica, para

essa passagem?

PC: Havia em Rucker Vieira, a

um só tempo, talento nato para as

coisas práticas, para a bricolagem,

e um esforço permanente de

aprendizado. Rucker Vieira

aprendeu a fotografar ainda

adolescente, em Garanhuns.

Aprendeu praticando e percebeu

que queria viver daquilo.

Corajoso, aceitou um emprego

em São Paulo como fotógrafo e

laboratorista comprando e lendo

livros técnicos em espanhol.

Depois fez um curso de cinema no

Museu de Arte Moderna de São

Paulo que o levou a aceitar um

chamado de Linduarte Noronha

para ser o fotógrafo do clássico

“Aruanda”. Eu digo sem medo de

errar: fotógrafo tão expressivo

que assume o papel de coautor.

Então, sim: atrevimento, talento,

coragem.

Unicaphoto: Que características

marcam a estética de Rucker

Vieira? Em “Árida luz

nordestina”, há o comentário

do crítico Wills Leal sobre uma

estética peculiar de Vieira, como

uma “resposta nordestina”. O

senhor pode nos falar sobre isso?

Há algum exagero de se ligar essa

74


fotografia e estética à Estética

da Fome, do Cinema Novo, por

exemplo? O que uma transcende

da outra?

PC: Para mim, toda a fotografia

de Rucker Vieira se expressa na

forma de uma fuga do patético,

do acadêmico. Essa é a sua maior

grandeza. Rucker Vieira olhava

— e resgatava esse olhar — para

a vida do povo pobre do Brasil

como se dela fizesse parte. É

claríssimo que essa visão sem

pathos, essa visão singela do povo

simples do Nordeste brasileiro,

é a invenção mais sutil e ainda

pouco estudada de Rucker Vieira.

Quando se fala de “Aruanda”

como prenúncio do Cinema Novo

ou da Estética da Fome, fala-se

do espanto de Glauber Rocha

diante do fato de sido realizado

com uma câmera simples, um

tripé e com a força expressiva

de Linduarte Noronha e Rucker

Vieira, até, evidentemente,

de ter trazido à tona o mundo

dos quilombos, dos negros

nordestinos e sua capacidade de

sobrevivência. Gosto da visão de

Wills Leal e da interpretação da

fotografia de Rucker Vieira como

“resposta”, porque afinal se trata

disso também: de uma espécie de

reação, de reinvenção dos modos

de ver do cinema industrial

paulista, da Vera Cruz.

Unicaphoto: “Aruanda” é um

filme sobre a negritude, sobre a

resistência. Há evocações claras

do nome com Luanda, na África.

Como o senhor vê a fotografia e o

cinema atuais, no Brasil, nessa

relação de representatividade?

O trabalho de Rucker Vieira

tinha essa “pegada” política

ou se destaca nesse ponto

justamente por não buscar ser

“representativo” no campo da

política, senão da arte?

PC: Rucker Vieira não praticou

política militante, partidária.

Mas viveu e trabalhou num

Brasil convulsionado pela ideia

de revolução e pelos ataques

da contra-revolução. E creio

que ele sempre percebeu que

o cinema popular, o cinema

capaz de expressar e sintetizar

as populações mais pobres

do Brasil, era efetivamente

político, num sentido muito

amplo e profundo. A comunidade

negra da Serra do Talhado, na

Paraíba, onde ‘Aruanda” foi

filmado, foi uma descoberta de

Linduarte Noronha. Mas eu

estou absolutamente convencido

de que o filme jamais teria sido

o que foi sem a participação de

Rucker Vieira, que nascera e

fora criado na fronteira entre

Pernambuco e Alagoas, terra

de muitos quilombos, inclusive

o de Palmares. A infância de

Rucker Vieira se deu em meio aos

remanescentes desses quilombos,

que vinham vender seus produtos

na feira de Bom Conselho e que

participavam intensamente da

cultura daquela região. O que

Rucker Vieira fez com as imagens

não foi, aparentemente, fruto

de um projeto, de uma vontade

de representação, mas de uma

sinergia natural entre ele e seus

conterrâneos nordestinos, com

a mediação de um olhar sem

qualquer maneirismo estético.

Unicaphoto: Temas realistas e

“nacionais” eram a marca senão

uma exigência para o cinema,

no cenário político naquela

década de 1950. Parece que de

alguma forma a arte brasileira,

e incluímos a indústria do

cinema, tem buscado essa

conjunção realista, também.

Como o senhor vê essas relações

no Brasil de ontem e de hoje,

quanto à produção fotográfica e

cinematográfica? Há herdeiros

ou herdeiras dessa estética de

Rucker Vieira?

PC: Do ponto de vista temático,

de fato, a ideia de um recorte

nacional — até nacionalista —

foi característico do momento

em que Rucker Viera se lançou

na produção de cinema. Foi

o tempo em que se impôs um

cinema erudito, realizado por

cineastas de classe média e de

formação universitária. Aos

poucos, saíram de campo os

realizadores das chanchadas e

dos melodramas da Vera Cruz,

técnicos cujo aprendizado e

evolução se daria na própria

indústria cinematográfica. Com

os novos realizadores ocorreu

também uma guinada à esquerda

das abordagens, que passaram

a ser muito mais críticas na

interpretação da realidade.

Mas Rucker Vieira, tendo sido

um homem “de esquerda”,

não pertencia ao estrato

universitário da grande maioria

dos cinemanovistas. Ele nunca

fez curso superior. Suas opções

políticas e estéticas eram, no meu

modo de entender, muito mais

viscerais, íntimas, solidárias com

os pobres nordestinos. Desse

modo, seu olhar era sempre

horizontal, era participante,

era integrado. Nunca um

olhar estrangeiro, superior,

distanciado. Isso explica a sua

originalidade absoluta e a sua

grandeza como artista. Quem

dera houvesse hoje no Brasil

cineastas que olhassem para o

mundo popular sem querer dar

lições a ninguém.

75


ensaio biográfico

A luz

como legado

por Fernando Monteiro

76


Rucker Vieira em

filmagem com o ítalo-

-brasileiro Alberto

D’Aversa, em 1968.

Na página anterior,

detalhe de registro

etnográfico do artesanato

de barro para Aruanda

(1960), com direção

de fotografia de

Rucker Vieira.

Fotos: reproduções do

livro Árida luz nordestina

1

O caso do fotógrafo e cineasta pernambucano Rucker

Vieira, imaginando-o arrolado num imenso arquivo de

pastas sob a rubrica CINEMA BRASILERO, certamente

estaria “fichado” como caso da Agrupação “I”,

Situação “E” (sublinhado com tinta vermelha). Ou seja:

Cinema Brasileiro – Injustiças Extremas.

Mais: o seu nome encabeçaria esse setor, se

o ordenamento dos casos fosse regido não

alfabeticamente, mas pela classificação de gravidade

das situações mais sérias (e injustificáveis) de

esquecimento.

Rucker seria encontrado logo de cara, então,

justamente na posição de destaque que lhe foi

negada em vida – por falta extremada de justiça e\ou

reconhecimento do mérito.

VIEIRA estaria, assim, no topo final da lista de nomes

“apagados” ou quase anulados do nosso cinema,

por um descaso sem qualquer razão ou, mais

provavelmente, pelo motivo de mantê-lo na condição

coadjuvante de fotógrafo (e nada mais) de filmes cuja

importância só fez crescer com o tempo e para os

quais ele contribuiu decisivamente.

Perguntando bem claro:

quem tem medo de Rucker Vieira?...

Eu teria alguns palpites, nesse caso “misterioso”

do pernambucano de Bom Conselho cuja vida

despreocupada de autopromoções e outras empáfias

esteve sempre guiada por luz própria, certo (ele)

do mérito da sua seminal participação na chamada

“estética” do Cinema Novo, para a qual trouxe um

olhar direto e um coração sensível trabalhando

juntos na criação de imagens sem disfarces ou

ênfases supérfluas.

Rucker, como diretor de fotografia e\ou diretor, não

foi influenciado diretamente por nenhuma “escola”,

mas criou a sua, sem teorias alheias, mas por

empatia, por compreensão da nossa realidade sem

o apoio de teses a orientar olhares etc. Do mesmo

modo, ele se fez íntimo das ferramentas da sua

profissão, como “homem de curiosidade” dominando

as câmeras e as lentes do aparato, sempre modesto,

que lhe foi colocado nas mãos seguras de artista

o tempo todo superando os sérios

limites técnicos de captação de imagens no Nordeste

do final dos anos de 1950.

Fernando

Monteiro é poeta,

crítico de arte,

romancista e

cineasta.

Diretor de

documentários e

curtas ficcionais,

alguns dos quais

fotografados por

Rucker Vieira

2

Assim, este livro de Paulo Cunha trata de

um “esquecido” muito especial, ou de um “omitido”

para que outros fossem lembrados, como se tudo

se passasse numa corrida de cavalos puro-sangue

e de jegues, nessa furiosa feira de vaidades do meio

cinematográfico. Nele, o menino interiorano se tornou

o adulto que viria a desprezar o “brilho” externo,

praticamente ignorando a busca de carreiras,

empregos e prêmios.

Paulo foi firmemente motivado pela admiração que

sabe ler nas entrelinhas dos relatos e crônicas da

77


Rucker Vieira ao lado

de uma Arriflex 35mm, no set de

filmagem para o Banco do Estado

de Pernambuco, em 1969.

Foto: reprodução do livro Árida luz

nordestina

história – frequentemente torta – de caranguejos

e homens, “diretores” e Diretores, jornalistas e

Cineastas, nomes e Nomes. Rigoroso, o autor desta

fascinante obra, tão bem pesquisada quanto escrita

com a verdade em mente, não se enganou com

nenhuma torsão dos fatos, ou versão deles, que lhe

impedissem de sacudir a poeira grossa por sobre a

atividade de uma das mais importantes figuras da

história do nosso Documentarismo.

E não só isso: fica demonstrado como Rucker

percebeu bem a natureza da luz da Região nordestina,

a qualidade “crua” dos contrastes de sol e sombra,

pedras luminosas e interiores de mãos grossas

e rostos gretados, na longa procissão dos gestos

repetidos pelo ritmo das longas escravidões. Porque

o objeto de estudo, aqui, foi um homem com os pés

no chão, além da visão sempre alerta e o instinto,

trazido do berço, de iluminar a palo seco em território

barroco bem compatível com os séculos

de claro-escuro que vivemos e que ainda disfarçam

a verdade das “vidas secas”, no horizonte sem

esperança das “terras sem pão”.

Isso, essa percepção, se operava por imediata

solidariedade sem mácula, por parte dele. Porque não

se inventa, não se improvisa (para uso tópico, apenas)

sentimento fraterno, visão comovida dos desvalidos

78


vivendo em terras duras, com seus animais e

solidões, sem possuir as qualidades intrínsecas do

homem de sorriso afável que eu conheci no ambiente

do Cineclube Projeção 16, formado, na maioria,

por jornalistas e intelectuais pálidos sob o facho da

cinefilia que discutia teses acadêmicas aplicadas a

alguns filmes que gritavam.

Rucker estava e não estava ali, na companhia deles,

com o seu puro instinto para a vida “lá fora” e, muito

frequentemente, o “cuba-libre” oferecido (com piadas

benignas sobre os cineclubistas vindos de Berna)

àqueles poucos que ele considerava mais próximos

das suas visões.

dia, sumiu nos longes do Roraima de onde só voltou

para morrer no Recife, no dia 12 de fevereiro de 2001.

Até ler os originais desta obra, eu não sabia o ano da

morte de Rucker. E se eu não sabia dessa data, foi

porque não mereci inteiramente a amizade dele, não

a honrei como deveria ter honrado: com a angústia de

procurar saber do seu destino, das suas andanças e,

afinal, do dia em que o meu amigo “sumiu na espuma

do nada” (para citar um quase verso do ator Robert

de Niro, referindo-se ao seu pai).

Bem, voltemos à herança geral do cineasta brasileiro

aqui biografado.

3

Fui participante em algumas das jornadas desse

Vieira do Cinema, e dele guardei a lembrança de

um profissional dotado da capacidade de ver, sem

filtros, como eu suponho que também viam um Mário

Carneiro (Arraial do Cabo), um Vito Diniz (Pelourinho),

um Edson Santos (Saideira) e outros.

Mário Carneiro realizaria, bem depois do Arraial

(1960), o longa-metragem que é uma pequena obraprima

até hoje ignorada, inclusive pelos amigos para

os quais fez a fotografia de filmes sem um terço da

imaginação do seu Gordos e Magros (1977); Vito

Diniz viria a se tornar uma espécie de “Rucker da

Bahia”, esquecido quase tão injustamente quanto

o nosso – e Edson Santos teve a sorte de um maior

reconhecimento na função de diretor de fotografia de

filmes de grande sucesso (como A Dama do Lotação).

Seja como for, eles não ficaram remoendo a ação

dos invejosos, e, no caso do fotógrafo\cineasta de

Pernambuco, esse mais do que seguiu em frente,

oferecendo seus serviços e sendo contratado como

um diretor de fotografia capaz de ver o que tantos

Diretores deixavam de ver bem na sua frente. Foi

desse modo que ele prosseguiu na sua vida, após

Aruanda, sem tempo para o muro das lamentações de

chorosos profissionais. Porque sabia de si mesmo.

Estava seguro do domínio do seu olhar direto,

através de lentes que Rucker até “aperfeiçoava”, à

sua maneira, como conhecedor das técnicas, dos

processos e invenções & truques que muitos levam

uma vida inteira para aprender (e que ele decidia

oferecer, a qualquer um, sem esperar nada em troca

e também sem a jactância do “saber”, ao modo da

modéstia natural sertaneja).

Eu o chamava, com fraterno carinho, de “Roc”, pois

Rucker – com esse “k” meio intrometido – me parecia

solene demais para uma criatura tão simples e

generosa. Vou mais longe: fui também amigo de um

brasileiro cidadão do mundo – Alberto Cavalcanti –

e os junto, Alberto e Rucker, numa admiração que

sobreleva as diferenças, tão grandes, entre suas

bem diversas trajetórias, um no campo do cinema

internacional e, o outro, o “bugre-fulniô” (conforme

Paulo Cunha carinhosamente aqui o chama) que, um

4

Rucker Vieira dá nome a um Concurso de Roteiros

(da Fundação Joaquim Nabuco), e, talvez por isso,

não tenha sido totalmente esquecido esse superprofissional

que escreveu tão poucos roteiros na vida.

Roteiros? Não propriamente. Ou, melhor dizendo, ele

os “escrevia” (?) mais por aquela tal incrível mirada

imediata, na hora de filmar. Nem por isso, entretanto,

tal homenagem da Fundaj soa inadequada – na falta

absoluta de homenagens de outros.

A verdade é que Vieira virou uma lacuna (a mais

grave, eu repito) num cinema clamoroso de injustiças,

conforme é, infelizmente, o nosso. Essa “lacuna”

deve ter sido do interesse de X, Y, Z”... et altrii, em

Pernambuco, na Paraíba, no Rio de Janeiro e noutros

quadrantes nos quais, com este livro, vai ficar muito

difícil manter na sombra o alto talento do diretor

(porque o fotógrafo Rucker até que é lembrado,

volta e meia é recordado, digamos, pela ótica do

caranguejo: “foi ele que teve a honra de fotografar o

MEU filme” etc).

E é exatamente o oposto que vem para o foco deste

ensaio biográfico que examina a marca de RV nos

filmes “alheios” que trazem a sua fortíssima presença,

para além do que está nos créditos e em cada

sequência ou cena nas quais a fotografia de Rucker

alcança o patamar, no mínimo, da co-autoria dessas

obras. E esse patamar se afirma totalmente, na “pista”

por Paulo Cunha seguida, quando diligentemente se

aplica à análise de uma obra-prima irretocável que

traz a assinatura plena de Vieira: A Cabra na Região

Semiárida.

Ali está a mesma luz que ele criou para Aruanda, de

Linduarte Noronha – e que serviu de norte para as

câmeras do Cinema Novo.

“A luz, a luz!” – uma exigência exclamativa que Rucker

teria todo o direito de reivindicar, estendendo as

mãos para a janela da noite, quando esta se fechou,

definitivamente, para um artista já esquecido em vida.

Este, o caminho de vereda deste livro que largamente

acompanha um Mestre, trazendo-o para o lado claro

do cinema brasileiro como um rio nordestino que,

aparentemente seco, voltasse a correr entre os

mananciais da arte ainda hoje impactante nos filmes

que o meu Amigo deixou como legado.

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80

capa


Independência

ou morte

Augusto Pessoa

Augusto Pessoa,

paraibano do mundo,

fotografa desde

1994. Prêmio Abril

de Jornalismo e

colaborador da

National Geographic

Brasil, Pessoa

atualmente se

aventura pelo cinema

e segue seu trabalho

de documentação

da cultura popular

nordestina.

Etnia Baré, Rio Negro

Amazonas. Comunidade

ribeirinha do Livramento,

antiga região de

seringais. Algumas tribos

vivem nessa região

Neste Bicentenário de

Independência do Brasil,

pedimos ao jornalista e

fotógrafo Augusto Pessoa

um ensaio amplo de sua

trajetória, que envolvesse

algumas das minorias do

Brasil: negros, indígenas

de pelo menos duas etnias,

povos nos quilombos,

gente cuja identidades se

fundem como habitantes

do Cariri Cearense, pr

exemplo, imigrantes,

enfim:

o resultado você vê

agora. Ao mesmo tempo,

pedimos depoimentos a

representantes dessas

minorias espalhados pela

país que, de alguma forma,

respondessem à pergunta:

“O que significa, na

verdade, a Independência

do Brasil para esse povos,

entre outras minorias?

A resposta trazia uma

sutileza: deveria ser

respondida em exatas

duzentas palavras,

em clara referência a

esses duzentos anos da

“independência” do Brasil.

Assim, a indígena Macuxi,

a mãe e pesquisadora

Makuusi maimi (Sony

Ferseck), a especialista

em educação quilombola

Delma Silva, Cleane

Pereira, da Cecog, o

imigrante boliviano Juan

Huanca e a quilombola

Ângela terminam por nos

mostrar de forma tocante

a força de cada palavra.

As respostas denunciam

uma realidade impiedosa,

em um país que completa

esses duzentos anos de

sua independência, sob o

pior dos seus governos,

cujas palavras como

liberdade (individuais,

coletivas) e independência

não fazem parte do seu

vocabulário político.

Aqui, cada imagem e

palavra da matéria de

capa transcende o plano

simbólico e tem o peso da

realidade, de gente que

tem sentido na pele (e

nos lugares onde vivem)

o quanto a morte paira

mais sobre seus corpos

e tradições que a ideia de

verdadeira independência.

E contra isto luta.

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“É só mais um dia de luta”

A independência nunca foi para os povos indígenas. Não

neste mesmo sentido que se entende para o Brasil enquanto

autonomia política com relação a Portugal. Os povos indígenas

possuíam autonomia, seus próprios sistemas de vida dirigidos

por uma cosmopolítica ou de bem viver com a própria

comunidade, com outros povos, com a terra, em suas próprias

línguas e espiritualidades. Nunca fomos independentes, pois

sabemos que estamos em relação direta e constante com tudo

que habita os cosmos. Mas desde a colonização, houve uma

série de violências e imposições que continuam nos agredindo,

inclusive isso que se comemora no dia 7 de setembro. Não

dá para esquecer que durante um desfile “comemorativo”

da data, um parente indígena foi exposto amarrado em um

pau-de-arara como exemplo a quem se indispunha contra a

ditadura. O Brasil colônia pode até ter ido embora, mas deixou

uma estrutura de pensamento que permanece e criou uma

perversidade imensa, pois nos tirando o direito à terra e aos

nossos modos de vida nos transformou em “pobres”, impôs

obrigatoriedades legais e jurídicas para sermos reconhecidos

como pessoas e como cidadãos, impôs necessidades de

consumo para participar da chamada “civilização”. É só mais

um dia de luta pela vida.

Sony Ferseck em poesia. Wei Paasi em Makuusi maimu. faz parte do povo indígena Macuxi.

É mãe da Amora Fiorotti, poeta, escritora, palestrante, pesquisadora e atualmente professora

substituta no curso de Licenciatura Intercultural no Instituto Insikiran de Formação Superior

Indígena da UFRR. Co-fundadora junto com Devair Fiorotti da Wei Editora, primeira editora

independente do estado de Roraima. Doutoranda em Estudos Literários no Póslit/UFF, mestre

em Literatura, Artes e Cultura Regional e graduada em Letras/Inglês pela UFRR. Além de

sua pesquisa, ela se dedica às suas próprias produções literárias como Pouco verbo (2013),

Movejo (2020) e Weiyamî: mulheres que fazem sol (2022).

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Nas duas fotos

anteriores e nesta,

a etnia Awá Guaja,

fronteira do

Maranhão com o

Pará. Última tribo

semi-nômade da

América do Sul,

ameaçada por

garimpeiros e

fazendeiros que

insistem em invadir

as suas terras, os

Awá Guaja

vivem hoje sob

ameaça de todas as

formas, e enfrenta

ogrande desafio

de proteger as

florestas tropicais


A etnia Baré, vive

principalmente

ao longo do Rio

Xié e Rio Negro,

Amazonas. A foto foi

feita na Comunidade

ribeirinha do

Livramento, antiga

região de seringais.

Algumas tribos vivem

nessa região

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Raimundo Aniceto, Crato, Ceará. Mistura de negro

e índigena, Cariri, representante de uma linha

de tradição da cultura popular


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Dona Dinda, artesã.

Nova Olinda, Ceará.

Na página seguinte,

as mãos da artesã

dão cor forma e

sentido à sua luta


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“Somos a pedra no sapato da elite”

Continuar a insurgir-se. Não há perspectiva de independência

com decência a não ser no caminho da insurgência.

Denunciar essa farsa e mover-se num giro de trezentos

e sessenta graus para criar perspectivas de existência.

Historicamente temos feito isso. Os quilombos são insurgências

que pulsam há quatro séculos.

Desenvolver a consciência crítica de que na construção

do Brasil tem mais do que a nossa mão preta, tem o corpo

inteiro, com uma mente criativa, e leitura estratégica para

continuar a existir. As sublevações, as revoltas são referências

desses agir, mas também há conquistas edificadas nos

pilares da diplomacia no Plenário da ONU, na III Conferência

Internacional contra o racismo, a xenofobia e intolerâncias

correlatas, ocorrida na África do Sul em 2001,

ou no congresso nacional e STF com a conquista das ações

afirmativas no acesso de pretos e pardos ao ensino superior

e ao mercado de trabalho. Nós, negras e negros, imprimimos no

Brasil a sociologia da experiência na resistência,

marcada a ferro e fogo. Somos a pedra no sapato da elite

colonialista em pleno século XXI.

Delma Josefa da Silva

Pesquisadora sobre Educação

e relações étnico-raciais e currículo escolar Quilombola.

Ministra cursos sobre Necropolítica e Educação antirracista.

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Tambor de

Criola, São Luís,

Maranhão.

Negros que se

reúnem no centro

histórico para

rituais repletos de

musicalidade

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“...nossos ancestrais construíram este país”

A independência do Brasil foi um fato importante na história.

No entanto, esse processo não interferiu ou provocou rupturas

sociais no país. A escravidão se manteve e a distribuição

de renda continua desigual.

Nós, os Quilombolas ainda lutamos para que o Estado

execute as leis, nos reconhecendo como sujeitos de direito,

garantindo a permanência em nossos territórios através

da regularização fundiária, e a garantia de inclusão do nosso

povo nas políticas públicas com recorte e respeito as nossas

especificidades.

Há o racismo institucional praticado pelo Estado, que impede

que nosso direito seja garantido.

O Censo Demográfico 2022 será a primeira pesquisa oficial

que vai trazer informações sobre a população quilombola

residente no Brasil, resultado de uma forte incidência

política da Conaq, que há 26 anos vem defendendo a luta das

comunidades quilombolas em nível nacional.

Neste ano em que se comemoram 200 anos de independência,

completam-se também 10 anos de aprovação

das Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação escolar

quilombola, sem nenhum movimento do Estado

em direção a sua aplicação efetiva.

Seguimos em luta, reafirmando que nossos ancestrais

construíram este país, e é responsabilidade do Estado garantir

esses direitos para seus descendentes. Quando isso acontecer,

comemoraremos a independência do Brasil.

Cleane Pereira da Silva participa da coordenação do coletivo de educação da Conaq,

e é coordenadora da Cecoq (Coordenação de Comunidades Quilombolas do Piauí).

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Quilombo Caiana

dos Crioulos, Alagoa

Grande, Paraíba.

Esse quilombo surgiu

durante a colonização

e a fase Áurea dos

engenhos de açúcar no

interior.

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“Me desculpem lo português”

Cresci en Cobija. Há dois anos estoy en Brasil. En primieira

vez, tennia 19 anos e entrei por baixo, por Corumbá. Trabalhei

clandestinamente en madeira, pero meus pais necessitavam

e voltei. Hoje, com 26 anos, consegui una bolsa para [estudar]

gastroenmia en Mato Grosso, pero quando cheguei vi que era

un buraco para contrair deudas e pagar com trabalho.

Hoje, yo moro vivo como puedo, às vezes encontro gente de la

Bolívia, ocupamos algún e ficamos até onde dá.

Nosotros sempre vêmos Brasil como uno lugar alegre e rico en

oportunidades, pero nesses últimos anos, este es un país sem

coración. la gente imigrante sente isso nas ruas.

En Campo Grande, vivi com índios locales, en periferia,

que es lo que resta a ellos tb. Há hermanos brasileiros en

mesma condición en todo lugar. Há gente de la Colômbia e de

la Venezuela e de la Bolívia, gente que cursou faculdad, com

vontade de lutar, pero parece que el país adormeceu. Brasil,

parece, no es parte de la América Latina, desconhece que

somos hermanos e no esclavos uns de los outros. No sabia

desses duzentos anos de la su independência. Este povo ainda

no es independente. Me desculpem lo português.

Juan Huanca nasceu em 1996 em San Bernardo de Tarija. É técnico em refrigeração e exestudante,

como se definiu. Unicaphoto conseguiu entrevistar Juan pelo aplicativo WhatsApp

de um amigo em Campo Grande (MT). Huanca não é seu verdadeiro sobrenome. Juan prefere

não se identificar: “Não sei o que querem. Como entrevistar a mim?” Preferimos manter a grafia

do entrevistado em portunhol. Isso pode dar a ideia (somente parcial) da vida dos imigrantes

de países vizinhos neste Brasil.

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Foi apenas ver as fotos de

Filipe Facão. Como uma

fita de celuloide antigo

começaram a desfilar imagens

e pedaços de relatos. Alguns

dos inúmeros que lera nos

quase doze anos acadêmicos

que dediquei a pesquisar e

tentar ajudar a entender o

valor, o encanto evolutivo e

toda a magia escondida nas

literaturas andinas. A orografia

inconfundível que para maioria

de pessoas remete ao turismo,

e mais afortunadamente ao

paisagismo histórico, verificando

de algum modo a cosmogonia

dos povos que ali construíram

a fabulosa cidade do “umbigo

do mundo”, verdadeiro

significado de Cusco, ou Qosqo

ou Qusqu no quéchua que o

batizou originariamente. As

montanhas, assim como as outras

manifestações da natureza eram

entidades que faziam parte

e sentido desse mistério que

chamamos vida.

Qualquer imagem do cerro

remete também a cineastas

que produziram o que numa

época se conhecia como arte

‘comprometida’. Allpa Kallpa

(Força da terra) de Bernardo

Arias, Kuntur Wachana

(“Onde nascem os condores”)

de uma dupla de realizadores

cinematográficos, pesquisadores

e escritores peruanos. Ambos

filmes começam com as imagens

dessas montanhas. Premiados

internacionalmente por seus

numerosos longas de ficção e

docudramas, encarcerados,

censurados e ‘ninguneados’

(evitados, ignorados, apagados,

enfim) em seu país. Como

acontecera (pelo menos

inicialmente) com os escritores

de dimensão internacional como

Clorinda Matto de Turner,

Luis E. Valcarcel, José Maria

Arguedas, Manuel Scorza e

outros autores que decidiram

assumir uma releitura diferente

da hegemônica, sobre as centúrias

do domínio e da luta dos povos

originários dos Andes. O casal

formado por Federico García

Hurtado e Pilar Roca filmaram

juntos, ele como diretor e ela

como produtora, uma dúzia

de filmes. Deles, talvez o mais

conhecido seja Túpac Amaru

(1984). Premiado na década de

80 e m Cuba, Japão, Reino Unido

e Colômbia. Os dois primeiros

filmes mencionados acima abrem

a luz com a estampa imponente

desses cumes.

Essa remissão das fotos coincidiu

com a leitura de uma das últimas

obras publicadas também do

casal culturalmente tão prolífico,

dedicado ao conhecimento da

cultura pré-colombiana dos

Andes. Um volume titulado

Pachakuteq, que em quéchua

representa um cataclismo,

catástrofe cósmica em que o

estado das coisas se inverte ou

muda por completo.

O último teria ocorrido com a

chegada dos europeus, “para

saciar su apetito con ‘el sudor del

Sol’” como chamavam os índios

o metal cobiçado. Esse fenômeno

universal teria lugar

a cada 500 anos. Por esse

motivo, e pelas circunstancias

globais que atravessamos, parece

de peculiar interesse analisar

o que consideramos a base

conceitual da presunção dos

autores mencionados. O estudo

das obras de autores como os

relacionados acima, levaram-me

à percepção da eterna

incapacidade epistemológica

do invasor em reconhecer a

existência de outras formas

e capacidades de perceber,

entender e se comunicar com o

universo, com a vida. O que tem

dificultado até hoje dirimir as

fraturas do choque etnocultural.

Escolhemos assim traduzir as

páginas 166/169:

A montanha

veio a mim

Ensaio de Filipe Falcão/Texto de Marcelo Pérez

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CAPÍTULO VI

A CULTURA DA RESISTENCIA

1. O X Pachakuteq

A chegada dos europeus representou

o início de um processo de conquista

e dominação, marcado por dois

signos hegemônicos: o genocídio e

o etnocídio. Dentro da mentalidade

andina esta presença traumática,

inevitável e inexorável e que

deve acontecer cada 500 anos

corresponde ao X Pachakuteq.

Quando os Pizarro ingressaram

ao Tawantisuyu por Tumbes, a

população andina oscilava entre

os 12 e 15 milhões de habitantes,

segundo o historiados David Noble

Cook. Apenas dois séculos depois

tinha se reduzido a 600.00, devido a

causas diversas que compartiriam a

responsabilidade do extermínio com

o simples e claro massacre, como

aconteceu em Cajamarca durante a

captura do Inca Atawallpa, causas

indiretas como trabalhos forçados,

doenças, pestes e desordem

generalizada.

A extrema crueldade empregada

pelos invasores para submeter

o Tawantisuyo, sustenta a lenda

ignominiosa que tem coberto de

sombras o processo da conquista.

Poucas vezes na história da

humanidade tem se dado um exemplo

maior de irracionalidade carente de

sentido para destruir um sistema na

plenitude de seu funcionamento e

substituí-lo por nada.

Abrigamos a certeza de que

a simbiose cultural não tenha

acontecido jamais e que, sob a

piedosa mentira da aculturação, tem

se escondido, pelo lado dos invasores,

uma simples paranoia destrutiva, e

pelo lado dos vencidos, a paciente

forja de uma cultura da resistência

que, pese ao seu vigor, ainda

permanece soterrada.

O mérito maior do notável livro de

Huaman Poma de Ayala, é o registro

minucioso e doído das atrocidades

cometidas pelos invasores, sejam

estes frades ou laicos, em prejuízo

dos índios. Tem se registrado, por

exemplo, que se utilizavam cães

especialmente amestrados —

cruzamento de dogue e mastim—

para caçar índios como se fossem

objetos de presa, para depois

esquarteja-los e entregar seus

corpos dilacerados à voracidade das

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matilhas. O cronista Cieza de Leon

afirma que chegou a ver tendas de

açougue onde se comerciavam estes

macabros troféus.

A violenta substituição do

sistema altamente organizado

do Tawantisuyu, baseado na

agricultura, o artesanato, e a

utilização racional dos recursos,

pela desorbitada procura do ouro

e minerais, causou um trauma de

grandes proporções. Os índios

mitayos, conduzidos às minas de

Potosi e Huancavélica, praticamente

eram condenados a morte e sua

partida representava um sucesso

lutuoso para suas comunidades.

Nas minas morreram por sobreexploração

e enfermidades, milhares

de índios, deixando despovoadas e

em prático abandono chácaras e

povoados de regiões inteiras.

Os europeus trouxeram, junto aos

seus elementos de vida e costumes,

enfermidades desconhecidas em

América que causavam grande

mortalidade entre a população

nativa. Indefessos ante vírus e

bactérias que se transmitiam por

médio de violações, contatos diretos

e até por simples conversações nos

confessionários, semearam morte

e destruição no enorme território

sem que a natureza nem a medicina

forasteira fossem capazes de

conjurá-la. É possível que afecções

simples como os resfriados, o

sarampo, as febres digestivas e

endemias como a varíola, causaram

mais mortes no território invadido

do que a violência mesma, praticada

pelos invasores.

Porém, é fácil supor que a principal

causa do extermínio foi a brutal

substituição de seus códigos de vida

e costumes, pelos importados da

Europa.

Despejados das melhores

terras, nos vales interandinos,

os comunheiros tiveram que se

refugiar nas terras altas, por cima

dos 3.800 m. para escapar da

matança. Ali adoptaram a batata,

generoso tubérculo que suporta

as grandes alturas, como base da

sua alimentação em substituição do

milho, cultivado nas terras baixas.

Isto trouxe uma mudança dramática

na sua dieta e costumes, abrindo

a porta a um lento e inexorável

processo de aniquilação.

Esta etapa durou vários séculos e

não mudou com a independência,

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já que o encomendero espanhol foi

substituído pelo terra-tenente crioulo

e o “militar de fortuna”, prevalecendo

o regime despótico baseado na sobre

exploração do trabalho indígena.

Nunca um índio —talvez com a única

exceção do caudilho boliviano Don

Andrés de Santa Cruz— chegou

a ocupar cargos importantes na

administração colonial republicana.

Jamais um índio ganhou um

processo na Real Audiência nem na

Corte Suprema. Sua esperança de

participação só chegou ao nível de

cacique durante o vice-reino, ou de

Tenente Governador na República,

ou seja, nos degraus inferiores do

Estado. Quase sem variantes, esta

situação prevalece até nossos dias.

2. A ordem imposta

A conquista do Tawantisuyu pelos

espanhóis deve ser vista não apenas

como o acontecimento histórico

e político que significou para a

humanidade, e que introduziu

mudanças substanciais na estrutura

do poder e a correlação de forças

em Europa, senão como o conjunto

de encontro entre duas concepções

diferentes e antagónicas na maneira

de entender a vida e a civilização.

Europa impôs a sangue e fogo a sua

própria concepção do Estado e da

sociedade, derivada de um longo

processo acumulativo de experiências

sociopolíticas, e uma peculiar visão

da existência que teve suas raízes no

oriente médio e na civilização helénica

principalmente. Este modelo tem sido

a base da civilização ocidental que

cimentou o seu ecumenismo a partir

do mal chamado Descobrimento de

América. Espanha serviu apenas de

ponte para que o ouro americano

cimentara o despegue industrial

e o desenvolvimento capitalista de

Inglaterra e o resto de Europa.

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É a partir desse encontro ou colisão

entre duas culturas que a ordem

andina desaparece, varrida pela

imposição política e conceitual do

vencedor, ou a simples vontade

do vencido de se extraviar na sua

própria realidade e construir uma

ordem subterrânea.

Esta cultura da resistência, espécie

de tapume histórico que o índio

organizou para sobreviver ao

extermínio, tem mantido, a pesar do

inevitável sincretismo —mais informal

que real— o pathos andino em

vigência até o presente.

Quando da chegada do invasor,

o processo pan-andino tinha

alcançado sua culminação com

a hegemonia inca. Este cosmos é

o que encontraram os espanhóis

antes da virtual imposição do caos

que permanece até o presente. Para

sobreviver, os andinos construíram

a sua própria ordem, adaptando

igualmente às circunstâncias, como

se fossem variações cataclísmicas da

natureza que os obrigaram a buscar

guarida. Assim permaneceu a cultura

andina, durante meio milênio, larvada

e vigente, aguardando o tempo

inelutável do novo Pachakutec. Esse

tempo é chegado. O testemunham os

poderosos movimentos de massas

em outros territórios do universo

andino, como Equador e Bolívia. Onde

florescem manifestações populares

que tem colocado em xeque às

pseudorrepúblicas, planteando

reivindicações que, coincidentes com

o repudio à economia neoliberal

e à globalização, mantêm a sua

proposta originaria e lutam por

restabelecer o Qosqo, o centro

pré-hispânico, nas condições do

avanço tecnológico e a realidade

do mundo contemporâneo. Estes

acontecimentos parecem confirmar

a predição catastrófica de Spengler

quando vaticinou:

“A decadência de Occidente”.

Extraído de Pachakuteq, de Federico

García e Pilar Roca. Coleção Alfredo

Maneiro, Política e sociedade (Centro

Simón Bolívar e Fundación Editorial

El perro y la rana,2013). Tradução de

Marcelo Pérez.

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aconteceu

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FEVEREIRO

1.Concurso de fotografia

“Saudosos Carnavais de

Pernambuco”

O nosso Concurso de

Fotografia de Carnaval

teve como tema “Saudosos

Carnavais de Pernambuco.”

Puderam participar os

estudantes do Curso Superior

de Tecnologia em Fotografia e

do MBA Cultura Visual.

2.Encontro com a Fotografia -

16,17,18,19/02

O Encontro com a Fotografia

marcou a abertura do 1º

semestre de 2022. Tivemos

palestras com Pedro Neves:

“Fotografia de moda: uma

pequena introdução”, Yuri

Serodio: “Fotografia arte”, Dirceu

Marroquim: “Para ver culturas”,

Paloma Arquino: “GraviDeusa”,

Alan Campos: “Imagem e

história”, André Penteado:

Projetos artísticos: “O suicídio

de meu pai e Não estou sozinho.”

e Danilo Galvão: “Fricções

visuais e outras inquietações”.

As lives foram transmitidas

para o Youtube do curso e estão

gravadas. Além das lives tivemos

oficinas presenciais na Unicap,

com Douglas Fagner: “Cianotipia:

um processo fotográfico

alternativo” e com Danilo Galvão:

“Dramaturgia da imagem”.

MARÇO

1.Retorno das aulas

presenciais

No dia 15 de março tivemos o

retorno das aulas presenciais na

Unicap. Uma alegria receber os

estudantes de volta aos nossos

laboratórios e salas de aula

seguindo todas as normas de

segurança da OMS.

2.Aula aberta da disciplina:

Fotografia Crítica e curadoria.

(25.03)

Aconteceu uma aula aberta da

disciplina: Fotografia Crítica

e curadoria com Simonetta

Persichete, professora da

pós graduação “As narrativas

Contemporâneas da fotografia e

do audiovisual”

3. Minicurso - Unicap Prata - Dia 29

A Professora Renata Victor

realizou o Minicurso “Fotografia

e Produção de Vídeo com

Celular” para a turma da Unicap

Prata.

4- Lançamento da revista

Unicaphoto - (29.03)

No dia 29 de março tivemos o

lançamento da 18ª edição da

revista do Curso de Fotografia

da Unicap: a Unicaphoto, que

foi transmitido pelo canal do

Youtube do Curso.

5- Aula Aberta da disciplina:

Fotografia Crítica e curadoria.

(29.03)

Aconteceu uma aula aberta da

disciplina: Fotografia Crítica

e curadoria com Simonetta

Persichete, professora da

pós graduação “As narrativas

Contemporâneas da fotografia e

do audiovisual”

ABRIL

1. Prática com fotografia

analógica (04.04)

Os alunos do primeiro módulo

tiveram a oportunidade de

vivenciar, no Campus da Unicap,

o exercício da captura de

imagens com filme fotográfico.

2. Aula de “Fotografia Crítica e

Curadoria” (06.04)

O alunos da nossa

especialização “As Narrativas

Contemporâneas da Fotografia

e do Audiovisual” assistiram

mais uma aula incrível com a

professora Simonetta Persichetti

que é excelência na área.

3. Aula de processamento

químico (11.04)

Alunos do primeiro módulo

de fotografia vivenciam a

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jornada de revelação dos filmes

analógicos fotografados por eles.

4. 5ª Turma da Especialização

inicia as aulas com o professor

Paulo Cunha (13.04)

“Narrativas Poéticas e

Contemporâneas da Fotografia”

é o nome da disciplina ministrada

pelo experiente professor no

universo audiovisual, Paulo

Cunha. Boa forma de começar o

regime de aulas presenciais.

5. Convidada especial

(19.04)

O professor Paulo Cunha

convida a fotógrafa Yeda

Bezerra de Mello para

falar sobre a sua obra e

experiência na fotografia.

6. Entrega do prêmio

“Carnavais Saudosos”

(20.04)

Parabéns aos vencedores do

XII Concurso de Fotografia

de Pernambuco aos jovens

Jéssica Lopes e Pedro

Augusto, que tiveram uma

linda impressão fine art

como recompensa.

7. Selecionados para

o Intercom/Expocom

Nordeste (26.04)

O curso de fotografia

teve sete trabalhos

selecionados para o

Expocom Nordeste, edição

realizada em Salvador/

BA. Foram eles: Filme de

não ficção/ documentário/

docudrama, com o aluno

Rômulo Francisco e a aluna

Thalyta Tavares; Fotografia

Artística (avulso), de Alícia

Souza Batista; Roteiro de

filme não ficção (avulso ou

seriado), de Juliana Amara;

Roteiro de filme de ficção

(avulso ou seriado), da aluna

Jéssica Priscilla; Produção

Audiovisual para Mídias

Digitais (avulso ou seriado),

do aluno Arnaldo Sete; Filme

de Ficção (avulso), com

Sidney Rocha, Amanda Luiz

e Fernanda Travassos; e

Ensaio fotográfico artístico

(conjunto), da aluna Jéssica

Eduarda.

MAIO

1. Aula de campo com digital

(12.05)

Os alunos da disciplina da

nossa coordenadora Renata

Victor fizeram um passeio ao

Instituto Ricardo Brennand

e puderam aplicar os

conhecimentos na captura

de fotografias digitais. Foi

um momento de muita troca

e diversão.

2. 6ª Gincana do Saber

Fotográfico (14.05)

Testar o conhecimento, de

forma lúdica e consistente

é o intuito dessa atividade.

Uma manhã inteira de

diversão, onde os alunos,

em grupo, precisam cumprir

tarefas demandadas pelos

professores.

3. Alunos vencedores do

Expocom Nordeste (20.05)

Uma sexta-feira cheia de

motivos para comemorar.

Trouxemos três prêmios

para casa: Jéssica Maia

com “Desafogo” na categoria

Produção Transdisciplinar:

ensaio fotográfico artístico.

Sidney Rocha com “Moby

Dick” na categoria cinema e

audiovisual: filme de ficção

(avulso) e Maria Eduarda

com “Zine: percepções de

resiliência de mulheres em

Brasília teimosa durante

a pandemia da covid-19

na categoria design de

imprensa (avulso).

JUNHO

1. Exibição do “Fashion

Film” (14.06)

Os alunos do terceiro módulo

de Fotografia, trabalharam

durante um mês numa

produção audiovisual de

moda, para a disciplina de

Linguagem Fotográfica II,

ministrada pelo professor

João Guilherme. Na noite do

dia 14 exibiram o vídeo para

a comunidade universitária,

no pátio do bloco G.

2. Tarde dedicada à

Fotografia na Aliança

Francesa (18.06)

Um lindo momento dedicado

à fotografia com lançamento

do e-book Fotografia e

123


Audiovisual: imagem e pensamento

II, do livro do Árida Luz Nordestina:

o cinema de Rucker Vieira e da

exposição “Je suis moi-meme”.

Agradecemos a parceira com a

Aliança Francesa.

3. Oficina de fotografia de

Gastronomia (20.06)

Uma manhã de sábado divertida

e saudosa, pois recebemos esses

ilustres ex-alunos Victor Muzzi

e Anderson Freire, dois magos

do Food Stylist para ensinar os

segredos de uma boa foto de

comida para os alunos da disciplina

de Linguagem Fotográfica II,

ministrada pelo professor João

Guilherme.

4. Oficina de pinhole com alunos do

colégio Liceu (29.06)

Recebemos os alunos do Liceu

para uma oficina que remonta os

princípios da fotografia. A diversão

foi garantida com o processamento

analógico químico. Todos puderam

levar uma fotografia construída por

eles.

JULHO

1. Aula com a profª Julianna

Torezani (26.07)

Alunos da especialização “As

Narrativas Contemporâneas da

Fotografia e do Audiovisual” tem a

sua primeira aula com a professora

Julianna Torezani, na disciplina

“História e Estética da Fotografia”.

AGOSTO

1. Encontro com a fotografia – de

(09 a 13)

Na semana da programação

da abertura do semestre letivo,

que foi de 09 a 13 de agosto, a

coordenadora Renata Victor,

preparou uma agenda maravilhosa

para os alunos e as alunas do Curso

de Fotografia.

Já na primeira noite contamos

com a participação virtual de

Alice Martins falando sobre “A

categoria da cultura para pensar

os regimes de visualidades”,

mediada pela professora Marina

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Feldhues. Em seguida, a

aluna da especialização

Gisele Carvallo, falou sobre

a sua exposição “O Recife

de Van Gogh” e encerramos

a noite com uma visitação à

exposição. No dia 10 tivemos

Caio Danyagil mostrando

o seu trabalho e falando

sobre a sua empresa, a

“LOC”, tivemos também

Bruno Queiroz abordando

o tema: “Oportunidades de

negócios no Metaverso.” No

dia 11 aconteceram duas

oficinas presenciais: “Á cópia

analógica P&b” com Renata

Victor e “Ressignificando

o Pictorialismo através

das novas tecnologias com

Johnatta Marinho. No dia 12

tivemos Reginaldo Pereira

falando sobre a Biblioteca

Comunitária Caranguejo

Tabaiares e Mabel

Medeiros abordou o tema:

“ O Museu contemporâneo

e suas relações com as

universidades”.

2. Exposição “O Recife de

Van Gogh”, no Encontro com

a Fotografia (09.08)

A aluna da especialização,

Gisele Carvalho, inaugura a

sua exposição “O Recife de

Van Gogh” no hall da Biblioteca

Central da Unicap, com lindas

imagens das ruas do Recife.

O lançamento da mostra

recepciona os novos alunos do

curso Superior de Tecnologia

em Fotografia, que também

vão aproveitar uma vasta

programação carinhosamente

feita para eles.

3. Visita ao Convento de São

Francisco (13.08)

Os alunos de fotografia

tiveram uma manhã de

sábado nos espaços do

convento de São Francisco,

em Olinda. A paisagem, os

ambientes, tudo virou alvo

para as lentes atentas dos

nossos visitantes ávidos por

captura de imagens.

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No sábado, dia 13 de agosto,

alunos do curso de Fotografia

da Unicap visitaram o Convento

de São Francisco em Olinda

para uma visita rica em trocas

e aprendizados. Guiados pelo

Frei César, os alunos tiveram

a oportunidade de aprender

um pouco sobre cada espaço

que faz parte da labiríntica

geografia do patrimônio

histórico. Espaços do Convento

incluíram uma majestosa

capela, uma trilha até uma bica

de valor cultural e arquitetônico

inestimável, um cômodo que

compunha uma antiga sauna,

além de uma sacristia muito

rica em detalhes e diversas

bibliotecas cujo os acervos

variam entre a teologia e a

filosofia, passando por clássicos

das ciências sociais e da

literatura mundial – Conteúdo

este que se encontra em fase

de catalogação e preservação

para, no futuro, ser partilhado.

Além de conhecerem a história

de um importante ponto cultural

da história de Pernambuco,

os participantes tiveram

uma aula sobre o manuseio

de uma câmera drone com

o professor Luca Pacheco.

Todo o encontro enriqueceu a

experiência docente e discente

num dia certamente para se

guardar na memória. Por

último, os alunos aproveitaram

a oportunidade para

exercitar suas sensibilidades

artísticas com diversas

fotos dos diversos espaços

do Convento e, atualmente,

tais fotografias estão sendo

reunidas e trabalhadas para

uma exposição que se dará

no próprio Convento no dia

primeiro de outubro. Esperase

que seja o início de várias

parcerias com o Convento de

São Francisco.

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