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VERSOS TRESMALHADOS

Livro de Poesia

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GABRIEL SERRA<br />

<strong>VERSOS</strong> <strong>TRESMALHADOS</strong><br />

RISONHAMENTE SÉRIOS


Autor: Gabriel Serra<br />

Edição de autor<br />

Todos os direitos reservados<br />

© 2016, Gabriel Serra<br />

Registo de obra n.º 579/2016 - IGAC<br />

ISBN 978-989-20-6506-9<br />

Esta edição não segue a grafia do<br />

Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa<br />

Impressão e acabamento: 360imprimir.pt


A meus pais, António Francisco Serra<br />

e Isabel Pacaro Serra<br />

A vocês, pais, que uma letra não sabiam,<br />

que apenas cursaram a escola da vida<br />

e que sempre se mostraram coerentes<br />

nos pensamentos e nas atitudes,<br />

vos agradeço os ensinamentos da vida<br />

que me deram.


ÍNDICE<br />

<strong>VERSOS</strong> <strong>TRESMALHADOS</strong> 7<br />

CANTO NOVO, CANTO VELHO 8<br />

O MEU AMIGO DO SOBREIRO 9<br />

PASSAGEM DE ANO 11<br />

IMPOTÊNCIA 12<br />

A TI EM <strong>VERSOS</strong> ME DOU 13<br />

QUANDO EU ERA O “MC CLOUD” 14<br />

AS MINHAS CONTAS 16<br />

BEM CALÇADO 17<br />

PORTA FECHADA 18<br />

A FIGURA QUE ÀS VEZES FAÇO 19<br />

<strong>VERSOS</strong> DISTRAÍDOS 20<br />

VIAJAR SEMPRE 21<br />

SAUDADES TANTAS 22<br />

POUCO IMPORTA A COR 23<br />

O FUMO DO TEU CIGARRO 24<br />

CONVERSA FIADA 25<br />

A IDADE QUE TENHO 27<br />

HÁ DIAS MAIS DIAS QUE OS OUTROS 28<br />

O EMPREGO 29<br />

LÁ LONGE UMA PONTE CAÍU 30<br />

SOU RICO, SOU POBRE 31<br />

O TEMPO E A VIDA 32<br />

A MINHA CASA É A MINHA ALMA 33<br />

A ALMA NUA 34<br />

NÃO É PROIBIDO SONHAR 35<br />

COM QUEM ME ZANGO É COMIGO 37<br />

PASMACEIRA 38<br />

VIAGEM SEM VOLTA 40<br />

PORQUE CHORAM OS TEUS OLHOS? 41<br />

SOBREVIVÊNCIA 42<br />

PORTUGAL INCENDIADO 43<br />

O QUE PENSO 44<br />

O VOTO 45<br />

DIA DE TODOS OS NAMORADOS 46<br />

O SALOIO FOI AO BALLET 47<br />

CAMINHADA 50


O MORALISTA 51<br />

UTOPIA 52<br />

VAI A VIDA PASSANDO 53<br />

POSSO TUDO E POSSO NADA 54<br />

ALMA DE CAMPONÊS 55<br />

PAI 56<br />

PORTUGAL DO QUERO E POSSO 57<br />

APENAS POR UM TRIZ 59<br />

APANHADOR DE ACASOS 60<br />

PÃO-POR-DEUS 61<br />

DIA DE ANOS (ESTOU CHATEADO) 63<br />

PAZ 64<br />

FANÃ 65<br />

FAZ UM ANO, MÃE 67<br />

RETRATO DE MINHA MÃE 68<br />

VIAGEM SENTIDA 69<br />

POLIS (NO MEU CACÉM) 70<br />

CHEGASTE TARDE E A MEDO 71<br />

VALE A PENA? 72<br />

CÃO QUE LADRA 73<br />

SOU HOMEM DE TODAS AS CORES 74<br />

DESTINO 75<br />

EM QUE PENSAS, COMPANHEIRA? 76<br />

BEM COMPORTADO 77<br />

A CONSULTA 79<br />

HÁ TANTA COISA NO MUNDO 81<br />

APENAS RIMAS 82<br />

NÃO SABER 83<br />

PORTUGAL RECICLADO 84<br />

PRIMEIRO DIA DO TERCEIRO MILÉNIO 85<br />

A RAZÃO 86<br />

ÁRBITRO 87<br />

O MEU NATAL MENINO 88<br />

LITLE MODEL 90<br />

VIAGEM À PONTUAÇÃO 91


<strong>VERSOS</strong> <strong>TRESMALHADOS</strong><br />

Ai, meus versos enredados<br />

em teias que não domino,<br />

eu vos vejo tresmalhados<br />

como as cabras que pastoreava<br />

no cimo, bem no cimo,<br />

lá da Serra do Cotão,<br />

cada um para seu lado,<br />

sem nenhuma ligação.<br />

Se uns falam de amor,<br />

logo outros ali ao lado<br />

a dizerem que há sempre<br />

desamor,<br />

por mais que aquele<br />

se afirme permanente.<br />

Depois, são os poemas<br />

mais tranquilos<br />

a mostrarem-se felizes<br />

a toda a gente,<br />

a fazer rir<br />

quando ali mais à frente<br />

outros se apresentam<br />

tão austeros<br />

a dizer-nos<br />

que nem sempre<br />

é tempo de sorrir.<br />

Gabriel Serra<br />

7


CANTO NOVO, CANTO VELHO<br />

Canto novo, canto velho,<br />

eu canto o que sou capaz,<br />

que um a outro se assemelha :<br />

com o tempo , o novo velho se faz<br />

e em mim o velho se espelha.<br />

Por isso, canto o que canto<br />

e me repito a mim mesmo:<br />

contra as injustiças levanto<br />

espadeiradas a esmo<br />

sabendo bem que entretanto,<br />

embora me julgue atento,<br />

quando lanço qualquer dichote<br />

para dar força ao que argumento,<br />

me afiguro a D. Quixote<br />

lutando contra moinhos de vento.<br />

E é então na contradança<br />

que a minha pena serena:<br />

- perdida a fé e a esperança -,<br />

regresso à vida terrena<br />

e me faço Sancho Pança.<br />

Gabriel Serra<br />

8


Um encontro com um amigo “inesperado”<br />

na aldeia de José Franco, Sobreiro, Mafra<br />

O MEU AMIGO DO SOBREIRO<br />

Aqui há tempos no Sobreiro,<br />

dei de caras com um parceiro<br />

que me olhou bem de frente<br />

e de repente,<br />

muito espontaneamente,<br />

abraçámo-nos fortemente,<br />

como se abraça um companheiro<br />

que há anos se não vê.<br />

Forte abraço,<br />

com palmadas à mistura,<br />

de companheiro para companheiro<br />

cuja amizade perdura.<br />

Após aquele abraço<br />

prolongado e duradoiro,<br />

a dúvida se enleia e tece,<br />

perguntámos um ao outro:<br />

- De onde é que a gente se conhece?<br />

Ah! Foi aqui … Ah! Foi ali…<br />

Ah! Foi em Belas num almoço<br />

ou em Loures c'umas “Manelas”,<br />

9


você contava anedotas<br />

e a malta ria com elas!<br />

Ah!, Foi aqui… … Ah!, Foi ali … ...<br />

Depois de muito esmifrar<br />

a puxar p'las memórias,<br />

não vale a pena chorar,<br />

não contemos mais histórias<br />

que a gente não se conhece.<br />

Foi triste a separação<br />

de tão leal companheiro,<br />

espero um dia encontrá-lo<br />

uma outra vez no Sobreiro.<br />

Gabriel<br />

Serra<br />

10


PASSAGEM DE ANO<br />

É exactamente meia-noite.<br />

É tão exacta meia-noite agora<br />

que se batem tachos e panelas<br />

como todos os anos a esta exacta hora<br />

à porta da rua ou mesmo à janela.<br />

Quem o faz não tem casino para onde ir,<br />

que são poucos e estão cheios,<br />

mas todos, num ou noutro lado,<br />

afugentam o passado<br />

e dão vivas ao porvir.<br />

Mas bater tachos ou abrir champanhe<br />

para o nosso organismo tanto faz.<br />

Continua a regular-se internamente,<br />

indiferente<br />

de ainda ter sido “ano passado”<br />

há apenas um segundo atrás.<br />

Gabriel Serra<br />

11


IMPOTÊNCIA<br />

Doem-me as dores dos outros.<br />

Doem-me as dores da Humanidade.<br />

Doem-me por não me doerem.<br />

Que me dói mais esta dor<br />

de ver, cada vez maior,<br />

a minha insensibilidade.<br />

E se, a mim, me pergunto,<br />

se olho para dentro de mim,<br />

eu não me sei responder,<br />

respostas me dou sem nexo,<br />

respostas que quero ouvir:<br />

É da vida, é do progresso.<br />

Mas, bem no fundo,<br />

eu sei que não é assim.<br />

É apenas a impotência<br />

de, sozinho, mudar o mundo<br />

que guardo dentro de mim.<br />

Gabriel Serra<br />

12


A TI EM <strong>VERSOS</strong> ME DOU<br />

A ti em versos me dou<br />

com alegria,<br />

tal qual eu sou,<br />

sem hipocrisia.<br />

Se em versos te amo,<br />

se em versos te sinto,<br />

se por ti chamo,<br />

vem que em versos<br />

não minto.<br />

Gabriel Serra<br />

13


QUANDO EU ERA O “MC CLOUD”<br />

Quando eu era rapazote<br />

usava chapéu de palha<br />

e um very big bigode,<br />

em tudo me assemelhava<br />

ao famoso Mc Cloud.<br />

Um dia até me pediram<br />

uma fotografia montado<br />

no burrico da vizinha,<br />

vou-lhes contar o meu fado.<br />

Após muitas confusões,<br />

o burro bem segurado,<br />

com ajuda e empurrões<br />

ficou o burro montado.<br />

Estava eu lá no alto,<br />

tremeliques, liques... liques,<br />

para a fotografia pousando,<br />

até 'tava sorridente<br />

com o bigodaço brilhando …<br />

larga a tiazinha o burrico<br />

para a pose ser natural,<br />

mas o raio do animal,<br />

não sei se lhe deu o cheiro,<br />

começa a correr disparado<br />

em direcção ao palheiro.<br />

14


Aumentam os tremeliques,<br />

os olhos esgazeados,<br />

a ver metade da porta<br />

direita a mim a correr<br />

a velocidade danada,<br />

o pessoal à gargalhada<br />

com as minhas aflições,<br />

pergunto prós meus botões:<br />

Será que a minh'alma está morta<br />

ou já é alma penada?!<br />

Valeu-me a preparação<br />

dos filmes imaginados,<br />

lá me baixei de repente<br />

e embora todo mijado<br />

fiz figura de valente.<br />

Mas logo ali ficou jurado<br />

cá para nós intimamente,<br />

com bigode ou sem bigode,<br />

acabou-se o “Mc Cloud”.<br />

Gabriel Serra<br />

15


AS MINHAS CONTAS<br />

Com esta história das contas,<br />

tantas contas vou fazendo<br />

a este, aquele, aqueloutro,<br />

que as minhas vou esquecendo.<br />

As minhas não as sei fazer.<br />

As minhas não se resolvem<br />

a multiplicar ou somar.<br />

Por mais contas que se aprovem,<br />

as minhas só se resolvem<br />

a receber ou a dar.<br />

São, por isso, difíceis de fazer.<br />

Que para dar ou receber<br />

tem de haver disponibilidade,<br />

amor e humanidade<br />

por tudo o que nos rodeia.<br />

E quando tal haverá,<br />

se o tempo tanto escasseia?<br />

Gabriel Serra<br />

16


BEM CALÇADO<br />

Um dia, vindo eu de minha casa<br />

aéreamente pensando,<br />

em voo de asa sonhando,<br />

truz...<br />

numa pedra da calçada bati<br />

e do sonhar acordei<br />

e do que vi<br />

me assustei<br />

e fugi.<br />

Estando eu engravatado,<br />

bem penteado,<br />

para ao trabalho chegar,<br />

olho para baixo<br />

e que vejo,<br />

coisa estranha:<br />

num pé sapato preto,<br />

no outro, bota castanha!<br />

Gabriel Serra<br />

17


PORTA FECHADA<br />

Já não tenho, ao mundo, a alma aberta.<br />

Já me fecho, por dentro, num casulo.<br />

A máscara da indiferença é a que uso<br />

perante a miséria à vista ou encoberta.<br />

O amor pelos outros foi-se aos poucos.<br />

Cada vez é mais restrito o amor dado:<br />

longe está o Abril dos anos loucos<br />

em que vivia de peito aberto, confiado.<br />

Agora, é a família e pouco mais:<br />

o mundo é uma coisa assim distante<br />

a ver-se na televisão e nos jornais.<br />

Ai, pudera ser de novo confiante<br />

e abrir a alma à vida e aos demais.<br />

Gabriel Serra<br />

18


A FIGURA QUE ÀS VEZES FAÇO<br />

Bem tento ter tento na língua quando tenho<br />

vontade de dizer o que me apetece<br />

com a língua de palmo com me amanho,<br />

bem tento, mas nem sempre me acontece<br />

em ser como os outros bem educado,<br />

falar assim cheio de salamaleques<br />

ou pedir desculpa quando estou zangado.<br />

Uma voz me lembra: tem tento, antes que peques.<br />

Mas a voz do sul, do sangue ou da Calábria<br />

ou de onde quer que seja,<br />

grita mais alto e a palavra<br />

explode-me em gestos sem que veja<br />

a figura que faço, o ar alarve<br />

que veria se me visse ao espelho.<br />

Gabriel Serra<br />

19


<strong>VERSOS</strong> DISTRAÍDOS<br />

Um verso está à esquina a aguardar<br />

um outro que vai descendo pela rua.<br />

Aquele ali vem à janela espreitar<br />

como aqueloutro se distrai a ver a Lua.<br />

Enquanto o mais leve vai voando levemente<br />

o mais pesado … mais pesado vê-se a si.<br />

E o mais risonho mostra um sorriso de contente,<br />

contando que o mais sisudo também possa ser feliz.<br />

E eu pr'áqui estou c'uma caneta e um papel<br />

encostado ao pensamento à espera deles,<br />

esperando que tudo acabe num poema<br />

e tenha um fim.<br />

Mas por mais que tente puxá-los por um cordel<br />

para ver depois o que posso fazer com eles,<br />

com versos tão distraídos, é melhor deixar assim!<br />

Gabriel Serra<br />

20


VIAJAR SEMPRE<br />

Viajar é preciso,<br />

pouco importa a forma:<br />

que viajando eu me aviso<br />

contra toda<br />

e qualquer norma.<br />

De avião, de comboio ou camioneta,<br />

balão, automóvel ou foguetão,<br />

tudo serve de antemão<br />

até mesmo a trotineta.<br />

Que viajar eu preciso,<br />

que só com o viajar eu me agrado:<br />

mesmo quando já for velhinho,<br />

se ainda estiver no meu juízo,<br />

levem-me nem que seja num carrinho<br />

desses do supermercado!<br />

Gabriel Serra<br />

21


SAUDADES TANTAS<br />

Tenho de ti saudades tantas,<br />

tantas saudades eu tenho.<br />

Por mais que conte: quantas? quantas?<br />

A contá-las não me avenho.<br />

Só se ajuda te pedisse<br />

e fossemos os dois a contá-las.<br />

Talvez assim eu te visse<br />

e não desse de precisá-las.<br />

Que saudades não as conto<br />

quando te sinto bem perto,<br />

mas longe sinto-as ao ponto<br />

de te ver amor incerto.<br />

Que a ter ciúmes de ti<br />

eu os tenho a toda a hora,<br />

porque se ainda há pouco te vi,<br />

já não sei de ti agora.<br />

É este saber sem saber<br />

que me dá saudades tantas,<br />

e ciúmes 'tá de ver,<br />

que nem eu sei quantos, nem quantas!<br />

Gabriel Serra<br />

22


POUCA IMPORTA A COR<br />

Para a dor e para a morte<br />

pouco importa a cor.<br />

Sentida e chorada<br />

é branca, amarela, negra.<br />

É o que, com paciência,<br />

vou observando à porta<br />

do Serviço de Urgência.<br />

A morte, como a dor,<br />

não tem cor, nem raça,<br />

nem certeza.<br />

E se com sorte, a morte<br />

vamos enganando,<br />

é porque a vida se veste,<br />

confundindo-a,<br />

com todas as cores da natureza.<br />

Gabriel Serra<br />

23


O FUMO DO TEU CIGARRO<br />

Quando no ar se esfuma<br />

o fumo que não agarro,<br />

só fica no ar a pose<br />

com que fumas o cigarro.<br />

Há tal estilo na mão<br />

no cigarro ao agarrar<br />

que até parece que estão<br />

os teus dedos a pensar.<br />

Que pensarão os teus dedos<br />

que tu não tenhas pensado,<br />

enquanto, às voltas, faz enredos<br />

o fumo do teu cigarro?<br />

Gabriel Serra<br />

24


CONVERSA FIADA<br />

O meu país é um país sem tédio.<br />

Todos os dias acontecem desgraças,<br />

ele é tristezas que não têm remédio<br />

e então no telejornal é um ver-se-te-avias,<br />

tantas são elas que até metem medo<br />

quando nos entram pela casa adentro<br />

como faz o governo todos os dias.<br />

Não é por mal nem para mal fazer<br />

que todos os dias assim aparece:<br />

todos os momentos são de vigília<br />

para salvar o país como é seu dever.<br />

E a ouvi-los sabe melhor a quem adormece<br />

com estas conversas assim em família.<br />

Que já se conhecem de cor e salteado<br />

quando o governo se põe a falar:<br />

que o que disse a ocde,<br />

entidade independente etcétra e tal,<br />

é que o país geograficamente até<br />

não se pode dizer que esteja assim mal<br />

onde há tanto sol e às vezes luar,<br />

fica para aqui entre a espanha e o mar<br />

nesta estreiteza de vistas que é o nosso fado<br />

como parente pobre da europa à mesa<br />

que se senta a um canto envergonhado.<br />

25


Não sei se a ocde disse ou se não disse<br />

(que umas mal ouvi e outras terá dito),<br />

mas a cumprir o rácio da aldrabice<br />

somos tão bons como os melhores<br />

e não nos saímos mal no desemprego,<br />

que tem crescido a olhos vistos.<br />

Só no futebol é que nos vimos gregos,<br />

mas não foi mau podia ser pior<br />

com tanta bandeira que por aí se via<br />

por causa do futebol do mal o menos,<br />

era o portugal inteiro todo de mão dada<br />

que naquele mês só deu alegria<br />

e nem houve impostos nem sequer governo<br />

e muito menos conversa fiada.<br />

Gabriel Serra<br />

26


A IDADE QUE TENHO<br />

Quando me olho ao espelho<br />

vejo-me de cabelo branco.<br />

E para mim penso: estou velho.<br />

Mas se, por qualquer ensejo,<br />

pernas bonitas eu vejo,<br />

eu a mim próprio me minto.<br />

E embora pareça estranho,<br />

não vejo a idade que tenho<br />

mas, sim, a idade que sinto.<br />

Gabriel Serra<br />

27


HÁ DIAS MAIS DIAS QUE OS OUTROS<br />

Há dias e dias.<br />

Há sempre dias mais dias que os outros.<br />

Ou porque a lembrança os traga<br />

ou porque nesse dia chovia<br />

ou porque o sol brilhava<br />

ou porque o tempo sabia<br />

que era motivo de sobra<br />

pôr-se a conversa em dia<br />

apenas com o olhar.<br />

Recordo, pois, eu agora<br />

esse encontro casual<br />

em que te perguntei as horas<br />

e me disseste: toda a vida, oito e tal.<br />

Gabriel Serra<br />

28


O EMPREGO<br />

A este país,<br />

de um papel mais<br />

a seguir a outros,<br />

que são sempre poucos,<br />

nunca são demais,<br />

que se há-de fazer<br />

senão solenemente<br />

decretar talvez<br />

- apenas numa via -<br />

em acabar de vez<br />

com a burocracia!<br />

Mas, se assim fosse,<br />

lá se ía<br />

o meu emprego.<br />

E pena seria<br />

metade do país<br />

ir para o desemprego.<br />

Gabriel Serra<br />

29


LÁ LONGE UMA PONTE CAIU<br />

Lá longe uma ponte caiu.<br />

Caiu uma ponte no rio.<br />

Morreu gente, muita gente.<br />

E há gente chorosa e em pranto,<br />

como se viu na televisão.<br />

Só então se descobriu<br />

- depois que a ponte caiu -<br />

que neste país pequenino,<br />

que cabe na palma da mão,<br />

a cinquenta quilómetros, se tanto,<br />

é interior do sertão.<br />

Gabriel Serra<br />

30


SOU RICO, SOU POBRE<br />

Sou rico? Sou pobre?<br />

O que sou eu,<br />

que não sei o que sou,<br />

que para aqui estou<br />

a ver televisão<br />

no sofá sentado,<br />

quando a miséria<br />

que aquela me mostra<br />

me passa ao lado?<br />

Sou rico? Sou pobre?<br />

Não sei o que sou:<br />

sou rico,<br />

que a fome não morde<br />

e a casa me agasalha.<br />

Mas pobre me sinto<br />

porque a minha fartura<br />

possa ser doutros<br />

talvez a mortalha.<br />

Gabriel Serra<br />

31


O TEMPO E A VIDA<br />

A vida e o tempo juntam-se<br />

à esquina que o tempo faz com a vida,<br />

quando esta atrevida se resolve<br />

a entreter-se com o tempo delambida.<br />

E assim neste entretém nem dão<br />

pelo tempo a passar descuidado.<br />

E pelo tempo dos tempos assim vão,<br />

amantes, vida e tempo de braço dado.<br />

Até que o tempo com o tempo vai<br />

dizendo à vida como o tempo andou:<br />

e só então aí, a vida, por fim, em si cai<br />

e vê que, para si, o tempo passou.<br />

Gabriel Serra<br />

32


A MINHA CASA É A MINHA ALMA<br />

A minha casa é a minha alma:<br />

é pensamento, é voo de asa<br />

em campo de flores,<br />

é cheiro a terra<br />

e silvestres sabores.<br />

É sol agreste,<br />

chuva diluviana,<br />

sopro de vento<br />

correndo a serra<br />

e tem por tecto<br />

o firmamento.<br />

Sem esquecer dos meus o afecto,<br />

nem o lugar onde nasci,<br />

a minha casa é o meu país,<br />

é o mundo,<br />

a raça humana<br />

e toda a vida animal.<br />

A minha casa,<br />

no fundo,<br />

(será a minha alma cigana<br />

que assim pede?)<br />

não cabe em quatro paredes<br />

porque é universal.<br />

Gabriel Serra<br />

33


A ALMA NUA<br />

Em versos me dispo<br />

no meio da rua:<br />

o corpo vestido,<br />

a alma nua.<br />

Assim se desse,<br />

sempre na vida:<br />

a alma se mostrasse<br />

a quem passasse<br />

- janela aberta de par em par -,<br />

e se ferida,<br />

se assim estivesse,<br />

apanhando ar<br />

cicatrizasse.<br />

Gabriel Serra<br />

34


NÃO É PROIBIDO SONHAR<br />

Agarrámos o futuro e lá fomos<br />

a dá-lo a nós próprios de contentes,<br />

não havia antes nem depois,<br />

que o futuro era ali, era presente.<br />

E nunca se vira nada semelhante:<br />

ser-se semente e fruto no mesmo instante.<br />

Cravos que gritavam mais que as balas,<br />

mãos que se davam a quem quisesse dá-las,<br />

era a primavera, era a alegria,<br />

era o futuro que começou de madrugada,<br />

um tiro no tédio, outro na monotonia,<br />

eram coisas antes nunca vistas,<br />

era o gato com o canário de mão dada<br />

a comerem alegremente da mesma alpista,<br />

era a velhota agarrada ao seu cajado,<br />

que sorria e o sorriso não mancava.<br />

Era o impossível ali realizado,<br />

que milagre parecia ou então se dava.<br />

Era um era que depois não foi.<br />

Era um antes, agora é o depois.<br />

E os milagres que ao tempo aconteciam<br />

(embora nenhum deles tenha sido<br />

até agora pela igreja reconhecido,<br />

do que lhe sobra alguma mágoa,<br />

salvo seja),<br />

35


ou assim mesmo pareciam,<br />

não se sabe por que carga-de-água<br />

deixaram de se ver onde se viam<br />

habitualmente.<br />

Voltou-se ao antigamente.<br />

Milagres agora só mesmo por milagre,<br />

é uma lástima.<br />

Quem pensa de outra forma não se ofenda<br />

com tão curto rol:<br />

milagres agora só mesmo no futebol<br />

ou então em Fátima<br />

e mesmo assim apenas por encomenda<br />

Gabriel Serra.<br />

36


COM QUEM ME ZANGO É COMIGO<br />

Zango-me contigo e não zango.<br />

Com quem me zango é comigo.<br />

Se estou contigo, eu não quero.<br />

Se estou longe, desespero.<br />

Se me abraças, eu rejeito<br />

nos dias em que estou zangado.<br />

Mas quando te apanho a jeito,<br />

eu só me quero abraçado.<br />

Não ligues, pois, ao que eu digo.<br />

Muito menos ao que eu faço,<br />

pois quando não estou contigo<br />

em lágrimas eu me desfaço.<br />

Não fiques zangada comigo,<br />

que zangas eu não desejo.<br />

Dá-me, mulher, um abraço<br />

que eu a seguir dou-te um beijo.<br />

Gabriel Serra<br />

37


PASMACEIRA<br />

Leio o jornal para me entreter.<br />

O que leio pouco me desperta,<br />

que a vida me corre amena e certa<br />

neste rame-rame que não é nem deixa de ser.<br />

E neste domingo até houve eleições,<br />

que é uma boa forma de encontrar<br />

por aí conhecidos e amigos. E, se calhar,<br />

trocar com eles algumas emoções<br />

de quem não se vê há algum tempo.<br />

E, enfim, saber-se as novidades:<br />

é a vizinha que morreu ou então o casamento<br />

do solteirão do quinto, que, diz-se,<br />

de solteiro já ter saudades.<br />

E, à noite, saber quem ganhou é uma treta.<br />

Com esta história das previsões, uma certeza.<br />

É quase o mesmo que fazer meninos em proveta:<br />

escolhe-se logo a cor dos sapatinhos, mas perde-se<br />

o gozo de os fazer como manda a natureza.<br />

38


Depois, nunca ganha o meu partido,<br />

por mais que me pareça votar bem:<br />

o campeonato é sempre ganho<br />

por um dos grandes, à partida,<br />

e o meu clube é o Atlético do Cacém.<br />

Mas nem tudo é tão mau como parece.<br />

O governo é sempre doutros, nunca é meu:<br />

posso, pois, dizer mal quando me apetece,<br />

que os outros, se ofendem, ofendem o que é seu.<br />

Gabriel Serra<br />

39


VIAGEM SEM VOLTA<br />

Comprei um bilhete de ida e volta<br />

para ir até à capital do meu país.<br />

E a viagem, que julgava descuidada,<br />

foi uma viagem que me fez triste e infeliz.<br />

Não é assim muita a distância<br />

que o comboio vai aos poucos percorrendo<br />

(em quilómetros, pouco mais de duas dezenas),<br />

mas à medida que ele avança<br />

mais triste fico com o que vou vendo<br />

e da gente à minha roda tenho pena.<br />

Porque é triste fazer-se assim uma viagem<br />

(todos os dias a esta mesma hora)<br />

tão diferente da que antes eu fazia<br />

e que, agora, envolta em saudade,<br />

me é trazida pela memória,<br />

que a paisagem<br />

dos verdes campos comprazia<br />

a vista que por ela se alargava:<br />

eram trigos, eram matos, eram flores<br />

que ali em redor sempre moravam.<br />

E quanto mais é a distância percorrida<br />

mais cresce dentro de mim a tristeza,<br />

mais a minha alma se revolta<br />

de ver o progresso do cimento<br />

numa viagem que parece só ter ida<br />

e não ter volta.<br />

Gabriel Serra<br />

40


PORQUE CHORAM OS TEUS OLHOS<br />

Porque choram os teus olhos?<br />

Porque estão tristes assim?<br />

Ó meu amor, quem me dera<br />

vê-los a chorar por mim.<br />

Se eu soubesse por quem choram,<br />

se eles chorassem por mim,<br />

decerto que te diria:<br />

meu amor, não chores assim.<br />

Mas ao vê-los tristes assim<br />

de chorar por outro alguém<br />

ficam os meus tristes também<br />

por terem pena de mim.<br />

Ai! Quem me dera chorar<br />

e ver-te chorar também,<br />

eu por ti e tu por mim<br />

e nunca por mais ninguém.<br />

Gabriel Serra<br />

41


SOBREVIVÊNCIA<br />

O sol inclemente varre a seara de calor.<br />

O tempo parece suspenso em seu redor<br />

e só o ar se enche com o zunido das cigarras.<br />

As aves escondem-se nas ramadas,<br />

esperando, como os outros animais,<br />

que o tempo arrefeça e assim melhor.<br />

Mas esta quietude é enganosa.<br />

Por baixo desta aparente indolência<br />

prepara-se luta fervorosa<br />

em defesa da própria sobrevivência.<br />

Assim também é a nossa vida:<br />

também fazemos parte desta luta.<br />

E se umas vezes, como as cigarras,<br />

cantamos nas horas de acalmia,<br />

noutras, forçamos as amarras<br />

para sobreviver na labuta<br />

que vivemos dia a dia.<br />

Gabriel Serra<br />

42


PORTUGAL INCENDIADO<br />

Basta um fósforo e és fogueira!<br />

Basta um lume e já és brasa!<br />

Basta um sopro e te incendeias!<br />

Ah! Portugal, só não há lágrima<br />

que te afague!<br />

Medra o fogo no calor dos interesses,<br />

que com os negócios o fogo se entretece.<br />

Arre! Que não há ninguém que diga basta e<br />

que feche a porra da torneira e os apague!<br />

Gabriel Serra<br />

43


O QUE PENSO<br />

O que penso?<br />

Nada penso<br />

que já não tenha sido pensado.<br />

Só discorro sobre o que vejo<br />

- umas vezes bem, outras mal -<br />

apenas de um modo diverso,<br />

único e pessoal.<br />

Como qualquer ser humano,<br />

faço parte do todo<br />

que é o Universo,<br />

que nada sabe a meu respeito<br />

por mais que me mostre<br />

e diga que existo.<br />

Apenas sei que penso.<br />

Por isso, resisto.<br />

Gabriel Serra<br />

44


O VOTO<br />

Votante devoto lá vou votando<br />

convicto que o meu voto pouco serve.<br />

Se em branco fosse o mesmo se diria, igualando<br />

o que a votar em quem ganha se atreve.<br />

E se promessas há muitas antes de,<br />

poucas promessas se cumprem após o que:<br />

mas se votou em quem ganhou não se aborreça<br />

que o País já é, em si, um promessa.<br />

E cumprir um dever cívico é importante:<br />

de quatro em quatro anos, bem se vê!<br />

Que mais, 'tá-se a ver, era estafante<br />

pois, à noite, nem há telenovela na têvê!<br />

Nesse dia, perante tanto voto, vou ser franco,<br />

contando que se faça alguma luz:<br />

o que fazemos é passar um cheque em branco,<br />

assinando-o de seguida com uma cruz.<br />

Gabriel Serra<br />

45


DIA DE TODOS OS NAMORADOS<br />

Versos não vêm e vão<br />

quando se querem.<br />

Versos são sentidos ou não são.<br />

Versos virão quando quiserem,<br />

mas não me impedem<br />

de te querer até mais não.<br />

Que importa rimar<br />

sem ser sincero?<br />

Que importa cantar<br />

sem sentimento?<br />

Se os versos teimam<br />

em se calar,<br />

então mais vale<br />

libertar o pensamento<br />

e apenas com o olhar<br />

te dizer quanto te quero.<br />

Gabriel Serra<br />

46


O SALOIO FOI AO BALLET<br />

Fui uma vez ao ballet<br />

Há sempre uma primeira vez<br />

A companhia era russa<br />

Não falava português<br />

E legendas não havia<br />

Para o pessoal entender<br />

Mas que aquela gente sofria<br />

Isso dava para ver.<br />

Deve ser muito sofrido<br />

Esta coisa dos ballets<br />

Andar em bicos de pés<br />

Dar saltos e piruetas<br />

Correr de um lado para o outro<br />

Às vezes ficam para o torto<br />

E por causa do esforço<br />

Fazem sentidas caretas.<br />

Eu cá sou gente do povo<br />

Até me chamam saloio<br />

Reajo com emoção<br />

E se vejo gente sofrer<br />

Estendo logo a minha mão.<br />

Estava eu ali na frente<br />

Logo na primeira fila<br />

Quando uma russa possante<br />

Dá um salto de repente<br />

47


Amanda-se em voo rasante<br />

Deve estar “avariada”<br />

Ou morre ou fica aleijada.<br />

Vem na minha direcção<br />

Entra aqui o meu instinto<br />

Levanto-me eu da cadeira<br />

Quero agarrar a pequena<br />

P'ra que ela não se matasse<br />

Dá-me a mulher um puxão<br />

Se calhar é por ciúmes<br />

Não valia o desatino<br />

Agarrou-a um dançarino<br />

Antes que eu a ajudasse.<br />

Ciúmes não há razão<br />

Pois noutra ocasião<br />

Um dançarino coitado<br />

Que caiu desamparado<br />

O pobre não se levantava<br />

Devia estar desmaiado<br />

E ninguém o ajudava.<br />

Não posso ver coisas destas<br />

Ai tanta gente indiferente<br />

48


Não és achado não te metas<br />

Eu não vou ficar parado<br />

Tenho de ajudar o coitado.<br />

E cá vou eu outra vez Disposto<br />

a saltar ao palco Mas o que é<br />

que esta me quer Sinto-me de<br />

novo agarrado.<br />

O público a bater palmas<br />

Acabou-se o espectáculo<br />

Levanta-se ele com ligeireza<br />

A agradecer sorridente É<br />

todo salamaleques<br />

'tá fino que nem um alho<br />

Aquilo era tudo esperteza<br />

E eu com cara de paspalho<br />

Para a próxima já não te metes<br />

Gabriel Serra<br />

49


CAMINHADA<br />

Uma ponte atravesso nesta vida,<br />

nesta via,<br />

direito não sei onde,<br />

ao infinito,<br />

que não sei onde fica,<br />

ou se é longe,<br />

que longa já vai a travessia.<br />

Corre-me nas veias o cansaço<br />

das pontes, pelo caminho, ir fazendo:<br />

que a vida não é ponte de um só traço,<br />

mas muitas pontes<br />

que se vão, arduamente, percorrendo<br />

Gabriel Serra.<br />

50


O MORALISTA<br />

Já tive pretensões de mudar o mundo,<br />

de mudá-lo de um golpe, de uma vez.<br />

Já tive, mas perdi-as, que no fundo<br />

até deus demorou mais quando o fez.<br />

Fiquei-me assim por tentar mudar<br />

as pessoas que me eram próximas. Mas nem essas<br />

o consegui como queria. Deixaram-me falar …<br />

falar, mas fizeram, do que disse, tudo às avessas.<br />

Pensei, então, que talvez a mim pudesse<br />

convencer-me ao meu jeito como queria.<br />

Desse modo, falei … falei comigo todos os dias<br />

e que assim faria de mim o que quisesse.<br />

Mas o eu que me ouve,<br />

farto de mim, bem desabafa:<br />

- Cala-te lá, ó moralista. Vai à fava!<br />

Gabriel Serra<br />

51


UTOPIA<br />

O que nos sobra chegava<br />

para matar a fome ao mundo.<br />

Para isso apenas bastava<br />

uma coisa simples, no fundo:<br />

que a cada um nada sobrasse<br />

e apenas a si se bastasse<br />

com aquilo que precisava.<br />

Mas o que parece assim fácil<br />

aqui em versos dizer,<br />

não passa de utopia<br />

quando se tem de fazer.<br />

Gabriel Serra<br />

52


VAI A VIDA PASSANDO<br />

Vai a vida passando e estou velho<br />

sem dar conta que antes já fui novo,<br />

tão novo como Abril foi espelho<br />

de querer mudar-se tudo de um só golpe<br />

com cravos a servir de balas<br />

que das outras está o mundo cheio.<br />

Vai a vida correndo a galope,<br />

tão rápido que não se dá por ela:<br />

e a minha já bem p'ra lá do meio,<br />

o que antes gritava, agora calo.<br />

Gabriel Serra<br />

53


POSSO TUDO E POSSO NADA<br />

Até posso ser poeta.<br />

Posso tudo<br />

e posso nada.<br />

Que ser poeta é sobretudo<br />

sentir a palavra certa<br />

na altura que for precisa.<br />

Que não chega quando avisa,<br />

nem quando se dá precisada.<br />

Posso tudo<br />

e posso nada.<br />

Gabriel Serra<br />

54


ALMA DE CAMPONÊS<br />

Filho de camponeses,<br />

a terra está-me enraizada.<br />

Eu sou camponês na alma<br />

sem ter pegado uma enxada.<br />

Quando por esses campos eu ando,<br />

sempre a minha alma demanda<br />

o cheiro da terra lavrada,<br />

o gado, ao longe, pastando<br />

o trigo a ser semeado,<br />

as aves, em bando, voando.<br />

E, então, na minha lembrança,<br />

vejo o meu pai trabalhando.<br />

Gabriel Serra<br />

55


PAI<br />

Tu, pai, que uma letra não sabias,<br />

que apenas cursaste a escola da vida<br />

e sempre foste coerente<br />

nos pensamentos e nas atitudes;<br />

que honraste a palavra,<br />

que depois de dada se não nega;<br />

que respeitaste os outros sem bajulices;<br />

e leal foste à amizade<br />

que te foi dada,<br />

sem nunca usares baixezas ou intriguices;<br />

e que ganhaste o pão que o diabo amassou<br />

com o suor do teu rosto,<br />

sem agradecer a um deus em que não crias,<br />

mas sim à Natureza<br />

que é mãe de todas as coisas;<br />

A ti, pai, que sempre foste<br />

um homem vertical,<br />

a ti te agradeço os ensinamentos<br />

da vida que me deste.<br />

E seja onde estiveres,<br />

planta, flor, fruto<br />

terás ajudado a crescer,<br />

renovando-se, assim, o ciclo da vida,<br />

como sempre e apenas quiseste.<br />

Gabriel Serra<br />

56


PORTUGAL DO QUERO E POSSO<br />

Portugal do quero e posso,<br />

basta querer, segundo o adágio.<br />

O campeonato é nosso<br />

se Deus quiser ou se quiser<br />

Nossa Senhora do Caravaggio.<br />

Coitados dos outros que são tão poucos<br />

e nós somos tantos no campo a jogar.<br />

Ainda por cima com todos os santos<br />

por nós a rezar.<br />

Não viram aquela bola que todos chutámos<br />

e que bateu no poste?!!<br />

Olha o azar!<br />

Mas pouco importa,<br />

que daí a nada de alegria saltámos<br />

quando a bola se enrola dentro da “porta”!<br />

Com os outros a atacar, bem nos despimos<br />

de preconceitos.<br />

Roem-se as unhas do dedo mendinho,<br />

pontapés no ar a torto e a direito,<br />

uns no sofá, outros no vizinho,<br />

que nos avisa:<br />

Cuidado, amigo! Que as costas são minhas!<br />

57


Oh! Mas foi um alívio! Que a bola já está<br />

longe da baliza! Do nosso “véu”!<br />

Há que sofrer para se ter o Céu!<br />

Lá apita o árbitro para o final.<br />

Na final já estamos. Calhe quem calhar,<br />

o campeonato é “nosso”<br />

é do “Portugal do quero e posso”.<br />

Ainda não jogámos, mas vamos ganhar<br />

com Portugal inteiro dentro do campo<br />

com Deus e os Santos todos a ajudar!<br />

Coitados dos outros, que tão poucos são,<br />

sem terem ninguém que lhes dê a mão!<br />

2004<br />

Gabriel Serra<br />

58


APENAS POR UM TRIZ<br />

Às vezes sinto-me um zero,<br />

um zero à esquerda da vírgula,<br />

um zero tão grande que desespero<br />

de não ter nada que me estimule,<br />

nem trabalho que me apoquente<br />

neste tempo que nunca acaba,<br />

nem nada que mate o tempo<br />

ou dê-me o tempo passado<br />

em que, talvez sem ser feliz,<br />

mais feliz eu me sentia<br />

ou me via ou me parecia sentir.<br />

E se o não fui, foi apenas por um triz,<br />

por um clique que só se liga por magia,<br />

que o amor nunca vem por se pedir.<br />

Gabriel Serra<br />

59


APANHADOR DE ACASOS<br />

Ando quase sempre ao sabor do tempo<br />

e das marés das convivências.<br />

Só por acaso fujo disto.<br />

Lá vou trocando uns bitates<br />

com este e com aquele<br />

sobre o tempo que não faz:<br />

se o sol aperta, era chuva que devia;<br />

se chove, o que se pede é calmaria.<br />

Bom tempo encomenda-se,<br />

mas não parece que haja em armazém.<br />

E logo sobre isto e sobre tudo<br />

boto palestra,<br />

desde que seja a bem de todos<br />

e do país principalmente:<br />

discurso de bem fazer a rodos,<br />

que os governantes são uns tolos<br />

e não passam duns palermas.<br />

Mas que conversa da seca!<br />

Por falar nisso, não há por aí um vininho,<br />

leve quanto baste para matar a sede<br />

e forte que chegue<br />

para acompanhar um queijo 'Serpa'?!<br />

E de acaso em acaso,<br />

lá se vai apanhando de jeito uma conversa.<br />

Gabriel Serra.<br />

60


PÃO-POR-DEUS<br />

De porta em porta<br />

vêm os meninos pedindo<br />

o pão-por-deus.<br />

E eu vi<br />

com os olhos meus<br />

como os teus<br />

íam sorrindo.<br />

- Pão-por-deus, minha senhora!<br />

Dê-nos lá o pão-por-deus!<br />

Ao ouvi-los,<br />

as lembranças voam pelo tempo fora,<br />

recordando tempos de outrora<br />

em que eu também pedia o pão-por-deus.<br />

Dás-lhes figos e carinhos,<br />

pão-de-ló e rebuçados:<br />

é amor embrulhadinho,<br />

dado a todos por igual.<br />

E lá partem eles contentes.<br />

Só que não levem presentes,<br />

levam sonhos no bornal.<br />

61


Também eu ando pedindo,<br />

também bato à tua porta.<br />

Não me deixes ir fugindo<br />

por essas portas batendo,<br />

por essas ruas a fio,<br />

com a minha alma doendo.<br />

Pela lembrança dos Céus,<br />

não deixes o meu saco vazio,<br />

dá-me amor, amor-por-deus!<br />

Gabriel Serra<br />

62


DIA DE ANOS<br />

(Estou chateado)<br />

Estou chateado,<br />

chateado comigo.<br />

Porque sou parvo,<br />

parvo contigo.<br />

Nada fizeste<br />

que merecesse<br />

esta chatice.<br />

Pelo menos<br />

não se viu<br />

razão que se visse,<br />

porque razão não havia:<br />

a não ser teres-te<br />

lembrado de fazer anos,<br />

sem que eu me lembrasse<br />

que os fazias.<br />

Gabriel Serra<br />

63


P A Z<br />

Paz, onde estás?<br />

Que nem dentro de mim te vejo,<br />

quanto mais no mundo em derredor?<br />

Bem podes,<br />

em letra maiúscula Te escreveres<br />

e Te mostrares, como aqui,<br />

em página de jornal.<br />

De pouco vale, ó Paz,<br />

a paz Tu prometeres<br />

se quem manda<br />

não quer a paz universal.<br />

Que lucro dá a paz,<br />

não me dizes Tu, ó Paz?<br />

Porque se lucro desse<br />

talvez então houvesse<br />

por todo o mundo paz.<br />

Gabriel Serra<br />

64


Ao meu amigo de infância<br />

José Fernando da Silva Branco<br />

FANÃ<br />

Por onde andas, jogador da bola,<br />

do joga tudo só por jogar?<br />

Miúdo pequeno, cedo feito homem,<br />

do toque e foge a vadiar<br />

por essas ruas, por esses campos<br />

até que o sol fosse luar.<br />

Verdes maçãs é o que se come,<br />

na falta de outras 'tá bem de ver<br />

que ninguém é parvo<br />

se maduras há verdes comer.<br />

Ah! jogador da bola, que tudo jogaste<br />

por meio tostão,<br />

se um golo marcasses de um certo jeito<br />

talvez o prémio fosse melhor<br />

e lá tu inventavas de peito feito<br />

uma jogatana de endoidecer a multidão.<br />

Não era um jogo o que se via:<br />

era pura magia que dos teus pés saía,<br />

ali ao vivo, sem replay na televisão.<br />

65


Ah! Jogador da bola, que a vida jogaste<br />

a entreter e a entreteres-te<br />

porque o que jogavas<br />

não era a bola mas o prazer<br />

de assim viveres.<br />

Por onde andarás, Fanã amigo?<br />

Por onde andarás, que não te deixas ver?<br />

E se combinássemos um jogo a sério,<br />

qual hora-e-meia, desses mas é<br />

de muda aos cinco e acaba aos dez.<br />

E para dar pica, coisa que se veja,<br />

quem perder paga as cervejas!<br />

Gabriel Serra<br />

66


FAZ UM ANO, MÃE<br />

Faz um ano, mãe.<br />

Faz um ano agora.<br />

E ao lembrar-me de ti, viva,<br />

da tua coragem mansa,<br />

da tua sensata sabedoria,<br />

da doçura que a todos agradava<br />

e aprazia,<br />

ao lembrar-me, mãe,<br />

uma lágrima aos meus olhos aflora.<br />

Sempre assim acontece<br />

quando à tua casa vou e tu não estás:<br />

se Céu houvesse<br />

decerto que estarias por lá.<br />

Mas deixa, mãe,<br />

que eu te vejo em pensamento<br />

ali sentada,<br />

já no fim da vida,<br />

uma almofada cosendo.<br />

E, então, sem querer,<br />

as lágrimas vão<br />

pelo meu rosto correndo.<br />

Gabriel Serra<br />

67


RETRATO DE MINHA MÃE<br />

Eu te vejo, como sempre te vi,<br />

serena.<br />

Serena é o traço exacto<br />

do teu retrato.<br />

Retrato à la minute já se vê.<br />

E embora a imagem<br />

se mostre desfocada pela memória,<br />

num olhar mais atento,<br />

nela a tua alma se antevê.<br />

Gabriel Serra<br />

68


VIAGEM SENTIDA<br />

Muitas voltas dá o mundo.<br />

Quase tantas o meu andar.<br />

Que as voltas que dou, no fundo,<br />

são à volta do meu pensar.<br />

Igrejas, castelos, cidades,<br />

vales, montanhas e rios<br />

não são apenas coordenadas<br />

na rota do meu navio.<br />

São emoções, são encantos<br />

que por aí andam perdidos<br />

neste meu navio de espantos,<br />

navio dos meus sentidos.<br />

Que a viagem percorrida<br />

no mapa-mundo é um traço.<br />

Porque a viagem sentida<br />

dentro de mim eu a faço.<br />

Gabriel Serra<br />

69


POLIS (No meu Cacém)<br />

Na minha terra há searas de pão<br />

ao pé da porta.<br />

Os miúdos brincam na rua de terra batida:<br />

ao pião, ao bilas, à cabra-cega,<br />

à bola com duas pedras a fazer de baliza.<br />

Na minha terra pequenina<br />

(quinhentas pessoas, se tanto)<br />

todos se conhecem e dizem bom-dia.<br />

Na minha terra só passam<br />

carros-de-bois com as rodas chiando.<br />

E, às vezes, algumas carroças.<br />

E até os pardais procuram tranquilos<br />

comida nas bostas que os bois vão deixando.<br />

Na minha terra é tudo tão bonito,<br />

com quintas, arvoredo, natureza em volta,<br />

que eu vos digo que não é preciso<br />

que nela mexam<br />

como o querem fazer agora.<br />

Este é o Cacém da minha infância.<br />

Esta a minha terra paraíso.<br />

Podem tê-la alterado (como quiseram)<br />

por ganância.<br />

Podem agora com uma borracha<br />

apagar o que fizeram.<br />

Mas uma ou outra coisa não alteram<br />

o paraíso que eu trago na lembrança.<br />

Gabriel Serra<br />

70


CHEGASTE TARDE E A MEDO<br />

Chegaste tarde e a medo,<br />

Poesia.<br />

E é pena não teres chegado cedo<br />

e amiúde.<br />

Porque, se assim fosse,<br />

sempre poderia<br />

ir-te contando<br />

com vagar<br />

o que na alma me ía.<br />

Ou, então,<br />

te mostrar<br />

a braveza<br />

e a esperança no futuro<br />

que sempre tem a juventude!<br />

Mas não.<br />

Só agora te lembraste<br />

de aparecer,<br />

uma ou outra vez,<br />

em visita<br />

tão fugaz<br />

e breve,<br />

que por mais<br />

que o pensamento se eleve<br />

vejo-me incapaz<br />

de te enriquecer.<br />

Gabriel Serra<br />

71


VALE A PENA?<br />

Vale a pena dizer-te<br />

que não disse<br />

o que dizes que disse?<br />

Vale a pena falar-te<br />

que não quis magoar-te?<br />

Vale a pena ouvir-te<br />

ralhares com a vida?<br />

Vale a pena escutar<br />

a tua alma dorida<br />

e sentir<br />

que te dói o passado<br />

e não queres o futuro?<br />

Vale a pena?<br />

Vale a pena<br />

quando me vejo causa<br />

do teu amor magoado?<br />

E, aí, comigo sou duro<br />

porque me sinto culpado<br />

do mal que te fiz,<br />

sem do mal saber.<br />

Apenas te quis,<br />

só que não chegou<br />

para te fazer feliz.<br />

E, então, sem nada<br />

valer, fico calado.<br />

Gabriel Serra<br />

72


CÃO QUE LADRA<br />

Não brinques com o cão, não brinques.<br />

Com o cão não brinques, minha filha.<br />

Olha que o cão te morde, que os dentes rilha,<br />

se continuas assim com as palermices.<br />

Mas não ligou, pois, ao que disse.<br />

E o cão, chateado, já rosnava,<br />

com cara de pouco amigos<br />

e alto e raivoso bem ladrava.<br />

Até que percebeu que ía para o torto<br />

a forma de levar a sua avante e impor respeito.<br />

E, então, de um modo ladino e curioso,<br />

pôs-se a abanar a cabeça dum lado para o outro<br />

dando à sua expressão um ar de gozo!<br />

Ficou assim provado e definido<br />

que cão que ladra nunca morde,<br />

embora aqui o provado<br />

em sonho tenha sido,<br />

pois acordei sobressaltado<br />

com a mulher a “ladrar-me”<br />

aos ouvidos:<br />

- Gabriel, acorda. Já é tarde!<br />

Gabriel Serra<br />

73


SOU HOMEM DE TODAS AS CORES<br />

Sou homem de todos os credos,<br />

de todas as raças me assumo.<br />

Eu cá sou de toda a parte<br />

e sou de parte nenhuma.<br />

Sou muçulmano e cristão,<br />

ateu dos sete costados,<br />

judeu, budista e pagão.<br />

O meu deus é de todo<br />

e nenhum lado.<br />

Nas minhas veias corre o sangue<br />

de meus primos e irmãos<br />

(de tão longe ele já vem),<br />

que não sei por onde andarão.<br />

Parece-me vê-los além<br />

ou estarei enganado?<br />

Que de todas as cores eu terei<br />

família por todo o lado.<br />

Gabriel Serra<br />

74


DESTINO<br />

Enquanto o “eléctrico” vai percorrendo<br />

As ruas que o levam ao seu destino,<br />

viajo eu nele nem triste, nem contente,<br />

com o pensamento correndo<br />

por aí ao deus-dará.<br />

O meu destino não é, com o seu, coincidente:<br />

o seu foi, antes da partida, definido.<br />

O meu: não sei aonde a vida o levará.<br />

Gabriel Serra<br />

75


EM QUE PENSAS, COMPANHEIRA?<br />

Em que pensas, companheira?<br />

No que te pões a sonhar?<br />

Qual o sonho que te enleva e<br />

te leva<br />

ao outro lado do mar?<br />

Quando os olhos em ti ponho<br />

e vejo os teus a brilhar,<br />

recordo lembranças passadas<br />

e outras que vão chegar<br />

ao outro lado do sonho,<br />

ao outro lado do mar.<br />

Se não for de outro modo<br />

em viagens inventadas<br />

de encanto doce e profundo,<br />

sempre contigo à minha beira,<br />

até aos confins do mundo,<br />

minha mulher-companheira.<br />

Gabriel Serra<br />

76


BEM COMPORTADO<br />

Sentado,<br />

numa cadeira,<br />

espero.<br />

Esperançado<br />

que não se demorem<br />

a atender.<br />

Espero,<br />

no corredor,<br />

sentado.<br />

Espero<br />

pacientemente<br />

uma certidão<br />

comprovativa<br />

de que sou<br />

bem comportado.<br />

Gabriel Serra<br />

77


A CONSULTA<br />

Bons olhos o vejam. Que grande ausência!<br />

Está a ver se lhe sai a sorte grande, não!?<br />

(Lá que dava jeito, dava!)<br />

Mas não é dessas em que está a pensar!<br />

Não é as da Santa Casa. Tenha paciência!<br />

É das outras.<br />

É que o seu colesterol estava bonito, estava!<br />

E a glicemia? Uma beleza! Nos limites!<br />

(Sempre apreciei a aventura. E a beleza é infinita)<br />

Não diz nada? E o seu coração?<br />

Sôtôra, tenho-me sentido bem, por ora.<br />

Então, depois de três anos, a que devo a sua visita<br />

agora?<br />

É que tenho aqui na perna uma infecção.<br />

Mostre lá isso. Bem, bem … Pôs alguma pomada?<br />

Só canesten, mais nada.<br />

O quê? Canesten?!<br />

78


Onde aprendeu isso? Na televisão?<br />

Deve pensar que está no terceiro mundo.<br />

Em Marrocos talvez, não?!<br />

(Pensar, pensar, até penso. Que, no fundo,<br />

uma viagem até lá bem me apetece:<br />

Fez, Casablanca … Marraquexe.<br />

É sempre este meu desejo de evasão …)<br />

Mas canesten?! Não sabe que o canesten …<br />

(Nem percebi bem o que disse.<br />

Sinto-me assim tão reles e vil.<br />

Se soubesse que também usei fenestil<br />

ainda me perguntava<br />

se tirei algum curso na Suíça)<br />

Bem, bem … O ter vindo cá<br />

sempre revela algum bom senso.<br />

Valha-nos isso!<br />

(Assim até me sinto um pouco melhor)<br />

Mas isto não se cura por fora!<br />

Cura-se por dentro!<br />

E qual pomada, nem meio pomada!<br />

Antibiótico e dos fortes!<br />

Dos outros! Da farmácia!<br />

79


(Aqui, devo ter esboçado um leve sorriso).<br />

Não é para ter graça.<br />

É para tomar. Cada doze horas.<br />

Daqui a oito dias telefone.<br />

Quero saber das suas melhoras.<br />

(Fico agradecido).<br />

Mas não se escapa: vai ter de fazer exames.<br />

(Exames?! Com esta idade?!<br />

Eu já não tenho vida para universidades)<br />

Quero estas análises todas tiradas.<br />

E apresente-se aqui no próximo mês.<br />

A ver se consigo fazer de si<br />

alguma coisa desta vez.<br />

(Estou a gostar. Parece preocupada comigo)<br />

Está muito bem, “Sotôra”.<br />

Agora pode sair. Até depois. As melhoras.<br />

(Por fim, vi-a sorrir).<br />

Gabriel Serra<br />

80


HÁ TANTA COISA NO MUNDO<br />

Nada vezes nada é tudo<br />

- um tudo de nada feito -,<br />

que saber muito é sobretudo<br />

nada saber a preceito.<br />

Há tanta coisa no mundo<br />

que nunca virei a saber:<br />

somas do nada profundo<br />

que nunca vou esquecer.<br />

Só o que se aprende se esquece<br />

ou o que alguma vez já se viu:<br />

que muita água vai no rio,<br />

mas pouca a margem humedece<br />

Gabriel Serra.<br />

81


APENAS RIMAS<br />

Pode-se com versos rimar.<br />

Pode-se com versos quase tudo.<br />

Mas rimar só por rimar,<br />

antes então ficar mudo.<br />

De papel sou eu farto,<br />

sobram-me canetas à mão.<br />

Tenho tudo ao desbarato,<br />

só emoção é que não.<br />

Muitos dias passo assim:<br />

tranquilo, sem emoções.<br />

Nestas alturas , de mim,<br />

só saem estes borrões.<br />

Gabriel Serra<br />

82


NÃO SABER<br />

Com certezas, garantidamente não sei nada<br />

que as dúvidas estão em mim sempre presentes.<br />

O que sabia fui-o esquecendo por aí em qualquer<br />

lado<br />

e os novos saberes vou-os sabendo levemente,<br />

assim a ver-se as coisas apenas pela rama,<br />

que agarrar a árvore do saber é bem dorido.<br />

É melhor ir-se lendo umas revistas como a Fama,<br />

é mais suave e sempre se vê umas meninas pró<br />

despido.<br />

Que eu, agora, da vida só quero a parte airosa,<br />

que coisas tristes fujo delas se adivinho.<br />

O que eu quero mesmo é o mundo cor-de-rosa<br />

porque as rosas do saber têm espinhos.<br />

Gabriel Serra<br />

83


PORTUGAL RECICLADO<br />

Este país deu um salto fulminante,<br />

deixando de ser, num instante,<br />

o tal país rural<br />

que ainda era há pouco Portugal.<br />

Agora é tudo 'com' e 'tel'<br />

e 'ar condicionado'.<br />

É o Portugal rural reciclado<br />

em serviços e pasta de papel.<br />

Não que a reciclagem<br />

não seja importante<br />

na defesa do ambiente.<br />

Mas, francamente,<br />

só porque Bruxelas<br />

nos faz engolir sapos<br />

quando nos proíbe<br />

a pesca da sardinha<br />

e o mais que se avizinha,<br />

não me vejo a comer,<br />

todo sorridente,<br />

um maço de guardanapos!<br />

Gabriel Serra<br />

84


PRIMEIRO DIA DO TERCEIRO MILÉNIO<br />

Estou chateado, chateado<br />

sem saber.<br />

É dia de Ano Novo<br />

e também Milénio Novo<br />

(segundo o que está convencionado)<br />

e estou eu para aqui parado<br />

sem ter nada para fazer.<br />

Eu desafio-te para ir para a cama,<br />

que sozinho não tem jeito,<br />

mas por mais que eu te chame<br />

não é o convite aceite.<br />

Fico ainda mais chateado.<br />

Se isto é o novo milénio<br />

antes quero o atrasado.<br />

Gabriel Serra<br />

85


A RAZÃO<br />

Eu tenho razão às vezes<br />

no que digo e no que penso.<br />

Mas vendo as coisas com senso,<br />

eu nunca tenho a certeza<br />

quando tal assim acontece,<br />

pois frente a outras verdades<br />

a minha verdade enfraquece.<br />

E se a uma verdade outra se soma<br />

e razão alguém a tem,<br />

esta nunca pertence, por norma,<br />

a cem por cento a ninguém.<br />

Gabriel Serra<br />

86


ÁRBITRO<br />

Naquelas intermináveis tardes<br />

de jogos da bola<br />

de muda aos dez e acaba aos vinte<br />

com direito a desforra,<br />

(Ah! Que saudades!),<br />

grande honra me davam, hoje o sinto,<br />

companheiros e adversários<br />

quando me nomeavam<br />

árbitro do encontro.<br />

E aqui é que bate o ponto:<br />

uma parte de mim<br />

para ganhar jogava<br />

com todo o empenho<br />

até que o jogo chegasse ao fim.<br />

E a outra parte, árbitro atento,<br />

lá ía assinalando<br />

as faltas, os cantos,<br />

as bolas fora, os tentos,<br />

tentando, tal qual um juiz,<br />

manter-me isento.<br />

Mas, agora, visto à distância,<br />

eu sei que, na essência,<br />

eu não arbitrava o jogo<br />

mas a minha consciência.<br />

Gabriel Serra<br />

87


O MEU NATAL MENINO<br />

Quando era pequenino,<br />

não digo por mal nem por rancor,<br />

apenas lembranças de menino<br />

a quem dos pais não faltou amor,<br />

mas que nunca viu<br />

(será que não passou ou que fugiu?)<br />

O Pai Natal.<br />

E não era por não estar atento,<br />

embora sonolento,<br />

um olho aberto,<br />

outro fechado,<br />

ao ouvir passos por perto,<br />

mais despertado<br />

atentamente ouvia.<br />

- É ele agora, por certo.<br />

E, confiante, por fim adormecia.<br />

Mas alguma coisa estranha havia:<br />

ou porque minha mãe<br />

escrever não soubesse<br />

ou houvesse lá o que houvesse,<br />

naqueles anos todos<br />

da minha meninice,<br />

não creio que fosse por mal<br />

nem sequer por caturrice,<br />

embora hoje ainda o não entenda,<br />

88


a verdade é que o Pai Natal<br />

sempre deixava nas mais bonitas<br />

casas as mais bonitas prendas.<br />

E cada um de nós, os dos meu bairro,<br />

todos os meus amigos<br />

apenas encontrávamos<br />

de manhã no sapatinho<br />

uma broa de milho<br />

ou, com melhor sorte,<br />

meia dúzia de figos.<br />

Ao ver o Pai Natal agora,<br />

que até parece um tipo porreiro,<br />

uma interrogação me aflora:<br />

Será que o “norte” perdia?<br />

Talvez fosse mau carteiro<br />

ou então por miopia.<br />

Mas nesta altura do Natal,<br />

está a distribuição melhor<br />

mais equitativa, mais igual.<br />

E até pelas últimas estimativas<br />

do INE, do ENIC e não sei se da SIC,<br />

parece haver muito menos enganos.<br />

A isto por certo não será alheio<br />

o ter-se criado o tal Código Postal<br />

- que é meio caminho andado -<br />

e que muito terá ajudado o Pai Natal.<br />

Gabriel<br />

Serra<br />

89


LITLE MODEL<br />

Na passarelle passam, passam,<br />

em passos miúdos passam<br />

modelos em miniatura:<br />

tão jovens, tão inocentes,<br />

tão empertigados, contentes,<br />

que, de gente, fazem figura.<br />

Mas eu vejo no olhar ardente<br />

dos pais que em volta estão,<br />

embora estejam sentados,<br />

guiando os seus, enlevados,<br />

a desfilar também vão.<br />

Gabriel Serra<br />

90


VIAGEM À PONTUAÇÃO<br />

Faço uma vírgula e suspiro,<br />

com um ponto, uma paragem.<br />

Como quem bebe um pirolito<br />

para depois seguir viagem.<br />

Se me exclamo, me espanto<br />

com tanta exclamação!!!<br />

Mas se duvido entretanto,<br />

lá vem a interrogação (?).<br />

Com dois pontos me explico:<br />

mandam assim as conveniências.<br />

Quando me mostro hesitante,<br />

três pontinhos … reticências.<br />

Se ponho parêntesis ou traços<br />

(se escrevo nas entrelinhas),<br />

é para não lhes dar embaraços<br />

a fazerem advinhas.<br />

91


Com o til (~) eu me embalo<br />

no mar da minha emoção,<br />

que sentimentos não calo<br />

quando abro o coração.<br />

Também uso chapelinhos<br />

como aqui mesmo se lê.<br />

Que gente de importância<br />

usa chapéu, já se vê.<br />

Só é usada a cedilha<br />

por baixo do c (de cão).<br />

O melhor é pôr-me a milhas,<br />

não vá morder-me o ladrão.<br />

Ão ão!<br />

Gabriel Serra<br />

92

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