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VERSOS TRESMALHADOS_assintura

LIVRO DE POEMAS

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GABRIEL SERRA

VERSOS TRESMALHADOS

RISONHAMENTE SÉRIOS


Autor: Gabriel Serra

Edição de autor

Todos os direitos reservados

© 2016, Gabriel Serra

Registo de obra n.º 579/2016 - IGAC

ISBN 978-989-20-6506-9

Esta edição não segue a grafia do

Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

Impressão e acabamento: 360imprimir.pt


A meus pais, António Francisco Serra

e Isabel Pacaro Serra

A vocês, pais, que uma letra não sabiam,

que apenas cursaram a escola da vida

e que sempre se mostraram coerentes

nos pensamentos e nas atitudes,

vos agradeço os ensinamentos da vida

que me deram.



ÍNDICE

VERSOS TRESMALHADOS 7

CANTO NOVO, CANTO VELHO 8

O MEU AMIGO DO SOBREIRO 9

PASSAGEM DE ANO 11

IMPOTÊNCIA 12

A TI EM VERSOS ME DOU 13

QUANDO EU ERA O “MC CLOUD” 14

AS MINHAS CONTAS 16

BEM CALÇADO 17

PORTA FECHADA 18

A FIGURA QUE ÀS VEZES FAÇO 19

VERSOS DISTRAÍDOS 20

VIAJAR SEMPRE 21

SAUDADES TANTAS 22

POUCO IMPORTA A COR 23

O FUMO DO TEU CIGARRO 24

CONVERSA FIADA 25

A IDADE QUE TENHO 27

HÁ DIAS MAIS DIAS QUE OS OUTROS 28

O EMPREGO 29

LÁ LONGE UMA PONTE CAÍU 30

SOU RICO, SOU POBRE 31

O TEMPO E A VIDA 32

A MINHA CASA É A MINHA ALMA 33

A ALMA NUA 34

NÃO É PROIBIDO SONHAR 35

COM QUEM ME ZANGO É COMIGO 37

PASMACEIRA 38

VIAGEM SEM VOLTA 40

PORQUE CHORAM OS TEUS OLHOS? 41

SOBREVIVÊNCIA 42

PORTUGAL INCENDIADO 43

O QUE PENSO 44

O VOTO 45

DIA DE TODOS OS NAMORADOS 46

O SALOIO FOI AO BALLET 47

CAMINHADA 50


O MORALISTA 51

UTOPIA 52

VAI A VIDA PASSANDO 53

POSSO TUDO E POSSO NADA 54

ALMA DE CAMPONÊS 55

PAI 56

PORTUGAL DO QUERO E POSSO 57

APENAS POR UM TRIZ 59

APANHADOR DE ACASOS 60

PÃO-POR-DEUS 61

DIA DE ANOS (ESTOU CHATEADO) 63

PAZ 64

FANÃ 65

FAZ UM ANO, MÃE 67

RETRATO DE MINHA MÃE 68

VIAGEM SENTIDA 69

POLIS (NO MEU CACÉM) 70

CHEGASTE TARDE E A MEDO 71

VALE A PENA? 72

CÃO QUE LADRA 73

SOU HOMEM DE TODAS AS CORES 74

DESTINO 75

EM QUE PENSAS, COMPANHEIRA? 76

BEM COMPORTADO 77

A CONSULTA 79

HÁ TANTA COISA NO MUNDO 81

APENAS RIMAS 82

NÃO SABER 83

PORTUGAL RECICLADO 84

PRIMEIRO DIA DO TERCEIRO MILÉNIO 85

A RAZÃO 86

ÁRBITRO 87

O MEU NATAL MENINO 88

LITLE MODEL 90

VIAGEM À PONTUAÇÃO 91


VERSOS TRESMALHADOS

Ai, meus versos enredados

em teias que não domino,

eu vos vejo tresmalhados

como as cabras que pastoreava

no cimo, bem no cimo,

lá da Serra do Cotão,

cada um para seu lado,

sem nenhuma ligação.

Se uns falam de amor,

logo outros ali ao lado

a dizerem que há sempre

desamor,

por mais que aquele

se afirme permanente.

Depois, são os poemas

mais tranquilos

a mostrarem-se felizes

a toda a gente,

a fazer rir

quando ali mais à frente

outros se apresentam

tão austeros

a dizer-nos

que nem sempre

é tempo de sorrir.

Gabriel Serra

7


CANTO NOVO, CANTO VELHO

Canto novo, canto velho,

eu canto o que sou capaz,

que um a outro se assemelha :

com o tempo , o novo velho se faz

e em mim o velho se espelha.

Por isso, canto o que canto

e me repito a mim mesmo:

contra as injustiças levanto

espadeiradas a esmo

sabendo bem que entretanto,

embora me julgue atento,

quando lanço qualquer dichote

para dar força ao que argumento,

me afiguro a D. Quixote

lutando contra moinhos de vento.

E é então na contradança

que a minha pena serena:

- perdida a fé e a esperança -,

regresso à vida terrena

e me faço Sancho Pança.

Gabriel Serra

8


Um encontro com um amigo “inesperado”

na aldeia de José Franco, Sobreiro, Mafra

O MEU AMIGO DO SOBREIRO

Aqui há tempos no Sobreiro,

dei de caras com um parceiro

que me olhou bem de frente

e de repente,

muito espontaneamente,

abraçámo-nos fortemente,

como se abraça um companheiro

que há anos se não vê.

Forte abraço,

com palmadas à mistura,

de companheiro para companheiro

cuja amizade perdura.

Após aquele abraço

prolongado e duradoiro,

a dúvida se enleia e tece,

perguntámos um ao outro:

- De onde é que a gente se conhece?

Ah! Foi aqui … Ah! Foi ali…

Ah! Foi em Belas num almoço

ou em Loures c'umas “Manelas”,

9


você contava anedotas

e a malta ria com elas!

Ah!, Foi aqui… … Ah!, Foi ali … ...

Depois de muito esmifrar

a puxar p'las memórias,

não vale a pena chorar,

não contemos mais histórias

que a gente não se conhece.

Foi triste a separação

de tão leal companheiro,

espero um dia encontrá-lo

uma outra vez no Sobreiro.

Gabriel

Serra

10


PASSAGEM DE ANO

É exactamente meia-noite.

É tão exacta meia-noite agora

que se batem tachos e panelas

como todos os anos a esta exacta hora

à porta da rua ou mesmo à janela.

Quem o faz não tem casino para onde ir,

que são poucos e estão cheios,

mas todos, num ou noutro lado,

afugentam o passado

e dão vivas ao porvir.

Mas bater tachos ou abrir champanhe

para o nosso organismo tanto faz.

Continua a regular-se internamente,

indiferente

de ainda ter sido “ano passado”

há apenas um segundo atrás.

Gabriel Serra

11


IMPOTÊNCIA

Doem-me as dores dos outros.

Doem-me as dores da Humanidade.

Doem-me por não me doerem.

Que me dói mais esta dor

de ver, cada vez maior,

a minha insensibilidade.

E se, a mim, me pergunto,

se olho para dentro de mim,

eu não me sei responder,

respostas me dou sem nexo,

respostas que quero ouvir:

É da vida, é do progresso.

Mas, bem no fundo,

eu sei que não é assim.

É apenas a impotência

de, sozinho, mudar o mundo

que guardo dentro de mim.

Gabriel Serra

12


A TI EM VERSOS ME DOU

A ti em versos me dou

com alegria,

tal qual eu sou,

sem hipocrisia.

Se em versos te amo,

se em versos te sinto,

se por ti chamo,

vem que em versos

não minto.

Gabriel Serra

13


QUANDO EU ERA O “MC CLOUD”

Quando eu era rapazote

usava chapéu de palha

e um very big bigode,

em tudo me assemelhava

ao famoso Mc Cloud.

Um dia até me pediram

uma fotografia montado

no burrico da vizinha,

vou-lhes contar o meu fado.

Após muitas confusões,

o burro bem segurado,

com ajuda e empurrões

ficou o burro montado.

Estava eu lá no alto,

tremeliques, liques... liques,

para a fotografia pousando,

até 'tava sorridente

com o bigodaço brilhando …

larga a tiazinha o burrico

para a pose ser natural,

mas o raio do animal,

não sei se lhe deu o cheiro,

começa a correr disparado

em direcção ao palheiro.

14


Aumentam os tremeliques,

os olhos esgazeados,

a ver metade da porta

direita a mim a correr

a velocidade danada,

o pessoal à gargalhada

com as minhas aflições,

pergunto prós meus botões:

Será que a minh'alma está morta

ou já é alma penada?!

Valeu-me a preparação

dos filmes imaginados,

lá me baixei de repente

e embora todo mijado

fiz figura de valente.

Mas logo ali ficou jurado

cá para nós intimamente,

com bigode ou sem bigode,

acabou-se o “Mc Cloud”.

Gabriel Serra

15


AS MINHAS CONTAS

Com esta história das contas,

tantas contas vou fazendo

a este, aquele, aqueloutro,

que as minhas vou esquecendo.

As minhas não as sei fazer.

As minhas não se resolvem

a multiplicar ou somar.

Por mais contas que se aprovem,

as minhas só se resolvem

a receber ou a dar.

São, por isso, difíceis de fazer.

Que para dar ou receber

tem de haver disponibilidade,

amor e humanidade

por tudo o que nos rodeia.

E quando tal haverá,

se o tempo tanto escasseia?

Gabriel Serra

16


BEM CALÇADO

Um dia, vindo eu de minha casa

aéreamente pensando,

em voo de asa sonhando,

truz...

numa pedra da calçada bati

e do sonhar acordei

e do que vi

me assustei

e fugi.

Estando eu engravatado,

bem penteado,

para ao trabalho chegar,

olho para baixo

e que vejo,

coisa estranha:

num pé sapato preto,

no outro, bota castanha!

Gabriel Serra

17


PORTA FECHADA

Já não tenho, ao mundo, a alma aberta.

Já me fecho, por dentro, num casulo.

A máscara da indiferença é a que uso

perante a miséria à vista ou encoberta.

O amor pelos outros foi-se aos poucos.

Cada vez é mais restrito o amor dado:

longe está o Abril dos anos loucos

em que vivia de peito aberto, confiado.

Agora, é a família e pouco mais:

o mundo é uma coisa assim distante

a ver-se na televisão e nos jornais.

Ai, pudera ser de novo confiante

e abrir a alma à vida e aos demais.

Gabriel Serra

18


A FIGURA QUE ÀS VEZES FAÇO

Bem tento ter tento na língua quando tenho

vontade de dizer o que me apetece

com a língua de palmo com me amanho,

bem tento, mas nem sempre me acontece

em ser como os outros bem educado,

falar assim cheio de salamaleques

ou pedir desculpa quando estou zangado.

Uma voz me lembra: tem tento, antes que peques.

Mas a voz do sul, do sangue ou da Calábria

ou de onde quer que seja,

grita mais alto e a palavra

explode-me em gestos sem que veja

a figura que faço, o ar alarve

que veria se me visse ao espelho.

Gabriel Serra

19


VERSOS DISTRAÍDOS

Um verso está à esquina a aguardar

um outro que vai descendo pela rua.

Aquele ali vem à janela espreitar

como aqueloutro se distrai a ver a Lua.

Enquanto o mais leve vai voando levemente

o mais pesado … mais pesado vê-se a si.

E o mais risonho mostra um sorriso de contente,

contando que o mais sisudo também possa ser feliz.

E eu pr'áqui estou c'uma caneta e um papel

encostado ao pensamento à espera deles,

esperando que tudo acabe num poema

e tenha um fim.

Mas por mais que tente puxá-los por um cordel

para ver depois o que posso fazer com eles,

com versos tão distraídos, é melhor deixar assim!

Gabriel Serra

20


VIAJAR SEMPRE

Viajar é preciso,

pouco importa a forma:

que viajando eu me aviso

contra toda

e qualquer norma.

De avião, de comboio ou camioneta,

balão, automóvel ou foguetão,

tudo serve de antemão

até mesmo a trotineta.

Que viajar eu preciso,

que só com o viajar eu me agrado:

mesmo quando já for velhinho,

se ainda estiver no meu juízo,

levem-me nem que seja num carrinho

desses do supermercado!

Gabriel Serra

21


SAUDADES TANTAS

Tenho de ti saudades tantas,

tantas saudades eu tenho.

Por mais que conte: quantas? quantas?

A contá-las não me avenho.

Só se ajuda te pedisse

e fossemos os dois a contá-las.

Talvez assim eu te visse

e não desse de precisá-las.

Que saudades não as conto

quando te sinto bem perto,

mas longe sinto-as ao ponto

de te ver amor incerto.

Que a ter ciúmes de ti

eu os tenho a toda a hora,

porque se ainda há pouco te vi,

já não sei de ti agora.

É este saber sem saber

que me dá saudades tantas,

e ciúmes 'tá de ver,

que nem eu sei quantos, nem quantas!

Gabriel Serra

22


POUCA IMPORTA A COR

Para a dor e para a morte

pouco importa a cor.

Sentida e chorada

é branca, amarela, negra.

É o que, com paciência,

vou observando à porta

do Serviço de Urgência.

A morte, como a dor,

não tem cor, nem raça,

nem certeza.

E se com sorte, a morte

vamos enganando,

é porque a vida se veste,

confundindo-a,

com todas as cores da natureza.

Gabriel Serra

23


O FUMO DO TEU CIGARRO

Quando no ar se esfuma

o fumo que não agarro,

só fica no ar a pose

com que fumas o cigarro.

Há tal estilo na mão

no cigarro ao agarrar

que até parece que estão

os teus dedos a pensar.

Que pensarão os teus dedos

que tu não tenhas pensado,

enquanto, às voltas, faz enredos

o fumo do teu cigarro?

Gabriel Serra

24


CONVERSA FIADA

O meu país é um país sem tédio.

Todos os dias acontecem desgraças,

ele é tristezas que não têm remédio

e então no telejornal é um ver-se-te-avias,

tantas são elas que até metem medo

quando nos entram pela casa adentro

como faz o governo todos os dias.

Não é por mal nem para mal fazer

que todos os dias assim aparece:

todos os momentos são de vigília

para salvar o país como é seu dever.

E a ouvi-los sabe melhor a quem adormece

com estas conversas assim em família.

Que já se conhecem de cor e salteado

quando o governo se põe a falar:

que o que disse a ocde,

entidade independente etcétra e tal,

é que o país geograficamente até

não se pode dizer que esteja assim mal

onde há tanto sol e às vezes luar,

fica para aqui entre a espanha e o mar

nesta estreiteza de vistas que é o nosso fado

como parente pobre da europa à mesa

que se senta a um canto envergonhado.

25


Não sei se a ocde disse ou se não disse

(que umas mal ouvi e outras terá dito),

mas a cumprir o rácio da aldrabice

somos tão bons como os melhores

e não nos saímos mal no desemprego,

que tem crescido a olhos vistos.

Só no futebol é que nos vimos gregos,

mas não foi mau podia ser pior

com tanta bandeira que por aí se via

por causa do futebol do mal o menos,

era o portugal inteiro todo de mão dada

que naquele mês só deu alegria

e nem houve impostos nem sequer governo

e muito menos conversa fiada.

Gabriel Serra

26


A IDADE QUE TENHO

Quando me olho ao espelho

vejo-me de cabelo branco.

E para mim penso: estou velho.

Mas se, por qualquer ensejo,

pernas bonitas eu vejo,

eu a mim próprio me minto.

E embora pareça estranho,

não vejo a idade que tenho

mas, sim, a idade que sinto.

Gabriel Serra

27


HÁ DIAS MAIS DIAS QUE OS OUTROS

Há dias e dias.

Há sempre dias mais dias que os outros.

Ou porque a lembrança os traga

ou porque nesse dia chovia

ou porque o sol brilhava

ou porque o tempo sabia

que era motivo de sobra

pôr-se a conversa em dia

apenas com o olhar.

Recordo, pois, eu agora

esse encontro casual

em que te perguntei as horas

e me disseste: toda a vida, oito e tal.

Gabriel Serra

28


O EMPREGO

A este país,

de um papel mais

a seguir a outros,

que são sempre poucos,

nunca são demais,

que se há-de fazer

senão solenemente

decretar talvez

- apenas numa via -

em acabar de vez

com a burocracia!

Mas, se assim fosse,

lá se ía

o meu emprego.

E pena seria

metade do país

ir para o desemprego.

Gabriel Serra

29


LÁ LONGE UMA PONTE CAIU

Lá longe uma ponte caiu.

Caiu uma ponte no rio.

Morreu gente, muita gente.

E há gente chorosa e em pranto,

como se viu na televisão.

Só então se descobriu

- depois que a ponte caiu -

que neste país pequenino,

que cabe na palma da mão,

a cinquenta quilómetros, se tanto,

é interior do sertão.

Gabriel Serra

30


SOU RICO, SOU POBRE

Sou rico? Sou pobre?

O que sou eu,

que não sei o que sou,

que para aqui estou

a ver televisão

no sofá sentado,

quando a miséria

que aquela me mostra

me passa ao lado?

Sou rico? Sou pobre?

Não sei o que sou:

sou rico,

que a fome não morde

e a casa me agasalha.

Mas pobre me sinto

porque a minha fartura

possa ser doutros

talvez a mortalha.

Gabriel Serra

31


O TEMPO E A VIDA

A vida e o tempo juntam-se

à esquina que o tempo faz com a vida,

quando esta atrevida se resolve

a entreter-se com o tempo delambida.

E assim neste entretém nem dão

pelo tempo a passar descuidado.

E pelo tempo dos tempos assim vão,

amantes, vida e tempo de braço dado.

Até que o tempo com o tempo vai

dizendo à vida como o tempo andou:

e só então aí, a vida, por fim, em si cai

e vê que, para si, o tempo passou.

Gabriel Serra

32


A MINHA CASA É A MINHA ALMA

A minha casa é a minha alma:

é pensamento, é voo de asa

em campo de flores,

é cheiro a terra

e silvestres sabores.

É sol agreste,

chuva diluviana,

sopro de vento

correndo a serra

e tem por tecto

o firmamento.

Sem esquecer dos meus o afecto,

nem o lugar onde nasci,

a minha casa é o meu país,

é o mundo,

a raça humana

e toda a vida animal.

A minha casa,

no fundo,

(será a minha alma cigana

que assim pede?)

não cabe em quatro paredes

porque é universal.

Gabriel Serra

33


A ALMA NUA

Em versos me dispo

no meio da rua:

o corpo vestido,

a alma nua.

Assim se desse,

sempre na vida:

a alma se mostrasse

a quem passasse

- janela aberta de par em par -,

e se ferida,

se assim estivesse,

apanhando ar

cicatrizasse.

Gabriel Serra

34


NÃO É PROIBIDO SONHAR

Agarrámos o futuro e lá fomos

a dá-lo a nós próprios de contentes,

não havia antes nem depois,

que o futuro era ali, era presente.

E nunca se vira nada semelhante:

ser-se semente e fruto no mesmo instante.

Cravos que gritavam mais que as balas,

mãos que se davam a quem quisesse dá-las,

era a primavera, era a alegria,

era o futuro que começou de madrugada,

um tiro no tédio, outro na monotonia,

eram coisas antes nunca vistas,

era o gato com o canário de mão dada

a comerem alegremente da mesma alpista,

era a velhota agarrada ao seu cajado,

que sorria e o sorriso não mancava.

Era o impossível ali realizado,

que milagre parecia ou então se dava.

Era um era que depois não foi.

Era um antes, agora é o depois.

E os milagres que ao tempo aconteciam

(embora nenhum deles tenha sido

até agora pela igreja reconhecido,

do que lhe sobra alguma mágoa,

salvo seja),

35


ou assim mesmo pareciam,

não se sabe por que carga-de-água

deixaram de se ver onde se viam

habitualmente.

Voltou-se ao antigamente.

Milagres agora só mesmo por milagre,

é uma lástima.

Quem pensa de outra forma não se ofenda

com tão curto rol:

milagres agora só mesmo no futebol

ou então em Fátima

e mesmo assim apenas por encomenda

Gabriel Serra.

36


COM QUEM ME ZANGO É COMIGO

Zango-me contigo e não zango.

Com quem me zango é comigo.

Se estou contigo, eu não quero.

Se estou longe, desespero.

Se me abraças, eu rejeito

nos dias em que estou zangado.

Mas quando te apanho a jeito,

eu só me quero abraçado.

Não ligues, pois, ao que eu digo.

Muito menos ao que eu faço,

pois quando não estou contigo

em lágrimas eu me desfaço.

Não fiques zangada comigo,

que zangas eu não desejo.

Dá-me, mulher, um abraço

que eu a seguir dou-te um beijo.

Gabriel Serra

37


PASMACEIRA

Leio o jornal para me entreter.

O que leio pouco me desperta,

que a vida me corre amena e certa

neste rame-rame que não é nem deixa de ser.

E neste domingo até houve eleições,

que é uma boa forma de encontrar

por aí conhecidos e amigos. E, se calhar,

trocar com eles algumas emoções

de quem não se vê há algum tempo.

E, enfim, saber-se as novidades:

é a vizinha que morreu ou então o casamento

do solteirão do quinto, que, diz-se,

de solteiro já ter saudades.

E, à noite, saber quem ganhou é uma treta.

Com esta história das previsões, uma certeza.

É quase o mesmo que fazer meninos em proveta:

escolhe-se logo a cor dos sapatinhos, mas perde-se

o gozo de os fazer como manda a natureza.

38


Depois, nunca ganha o meu partido,

por mais que me pareça votar bem:

o campeonato é sempre ganho

por um dos grandes, à partida,

e o meu clube é o Atlético do Cacém.

Mas nem tudo é tão mau como parece.

O governo é sempre doutros, nunca é meu:

posso, pois, dizer mal quando me apetece,

que os outros, se ofendem, ofendem o que é seu.

Gabriel Serra

39


VIAGEM SEM VOLTA

Comprei um bilhete de ida e volta

para ir até à capital do meu país.

E a viagem, que julgava descuidada,

foi uma viagem que me fez triste e infeliz.

Não é assim muita a distância

que o comboio vai aos poucos percorrendo

(em quilómetros, pouco mais de duas dezenas),

mas à medida que ele avança

mais triste fico com o que vou vendo

e da gente à minha roda tenho pena.

Porque é triste fazer-se assim uma viagem

(todos os dias a esta mesma hora)

tão diferente da que antes eu fazia

e que, agora, envolta em saudade,

me é trazida pela memória,

que a paisagem

dos verdes campos comprazia

a vista que por ela se alargava:

eram trigos, eram matos, eram flores

que ali em redor sempre moravam.

E quanto mais é a distância percorrida

mais cresce dentro de mim a tristeza,

mais a minha alma se revolta

de ver o progresso do cimento

numa viagem que parece só ter ida

e não ter volta.

Gabriel Serra

40


PORQUE CHORAM OS TEUS OLHOS

Porque choram os teus olhos?

Porque estão tristes assim?

Ó meu amor, quem me dera

vê-los a chorar por mim.

Se eu soubesse por quem choram,

se eles chorassem por mim,

decerto que te diria:

meu amor, não chores assim.

Mas ao vê-los tristes assim

de chorar por outro alguém

ficam os meus tristes também

por terem pena de mim.

Ai! Quem me dera chorar

e ver-te chorar também,

eu por ti e tu por mim

e nunca por mais ninguém.

Gabriel Serra

41


SOBREVIVÊNCIA

O sol inclemente varre a seara de calor.

O tempo parece suspenso em seu redor

e só o ar se enche com o zunido das cigarras.

As aves escondem-se nas ramadas,

esperando, como os outros animais,

que o tempo arrefeça e assim melhor.

Mas esta quietude é enganosa.

Por baixo desta aparente indolência

prepara-se luta fervorosa

em defesa da própria sobrevivência.

Assim também é a nossa vida:

também fazemos parte desta luta.

E se umas vezes, como as cigarras,

cantamos nas horas de acalmia,

noutras, forçamos as amarras

para sobreviver na labuta

que vivemos dia a dia.

Gabriel Serra

42


PORTUGAL INCENDIADO

Basta um fósforo e és fogueira!

Basta um lume e já és brasa!

Basta um sopro e te incendeias!

Ah! Portugal, só não há lágrima

que te afague!

Medra o fogo no calor dos interesses,

que com os negócios o fogo se entretece.

Arre! Que não há ninguém que diga basta e

que feche a porra da torneira e os apague!

Gabriel Serra

43


O QUE PENSO

O que penso?

Nada penso

que já não tenha sido pensado.

Só discorro sobre o que vejo

- umas vezes bem, outras mal -

apenas de um modo diverso,

único e pessoal.

Como qualquer ser humano,

faço parte do todo

que é o Universo,

que nada sabe a meu respeito

por mais que me mostre

e diga que existo.

Apenas sei que penso.

Por isso, resisto.

Gabriel Serra

44


O VOTO

Votante devoto lá vou votando

convicto que o meu voto pouco serve.

Se em branco fosse o mesmo se diria, igualando

o que a votar em quem ganha se atreve.

E se promessas há muitas antes de,

poucas promessas se cumprem após o que:

mas se votou em quem ganhou não se aborreça

que o País já é, em si, um promessa.

E cumprir um dever cívico é importante:

de quatro em quatro anos, bem se vê!

Que mais, 'tá-se a ver, era estafante

pois, à noite, nem há telenovela na têvê!

Nesse dia, perante tanto voto, vou ser franco,

contando que se faça alguma luz:

o que fazemos é passar um cheque em branco,

assinando-o de seguida com uma cruz.

Gabriel Serra

45


DIA DE TODOS OS NAMORADOS

Versos não vêm e vão

quando se querem.

Versos são sentidos ou não são.

Versos virão quando quiserem,

mas não me impedem

de te querer até mais não.

Que importa rimar

sem ser sincero?

Que importa cantar

sem sentimento?

Se os versos teimam

em se calar,

então mais vale

libertar o pensamento

e apenas com o olhar

te dizer quanto te quero.

Gabriel Serra

46


O SALOIO FOI AO BALLET

Fui uma vez ao ballet

Há sempre uma primeira vez

A companhia era russa

Não falava português

E legendas não havia

Para o pessoal entender

Mas que aquela gente sofria

Isso dava para ver.

Deve ser muito sofrido

Esta coisa dos ballets

Andar em bicos de pés

Dar saltos e piruetas

Correr de um lado para o outro

Às vezes ficam para o torto

E por causa do esforço

Fazem sentidas caretas.

Eu cá sou gente do povo

Até me chamam saloio

Reajo com emoção

E se vejo gente sofrer

Estendo logo a minha mão.

Estava eu ali na frente

Logo na primeira fila

Quando uma russa possante

Dá um salto de repente

47


Amanda-se em voo rasante

Deve estar “avariada”

Ou morre ou fica aleijada.

Vem na minha direcção

Entra aqui o meu instinto

Levanto-me eu da cadeira

Quero agarrar a pequena

P'ra que ela não se matasse

Dá-me a mulher um puxão

Se calhar é por ciúmes

Não valia o desatino

Agarrou-a um dançarino

Antes que eu a ajudasse.

Ciúmes não há razão

Pois noutra ocasião

Um dançarino coitado

Que caiu desamparado

O pobre não se levantava

Devia estar desmaiado

E ninguém o ajudava.

Não posso ver coisas destas

Ai tanta gente indiferente

48


Não és achado não te metas

Eu não vou ficar parado

Tenho de ajudar o coitado.

E cá vou eu outra vez Disposto

a saltar ao palco Mas o que é

que esta me quer Sinto-me de

novo agarrado.

O público a bater palmas

Acabou-se o espectáculo

Levanta-se ele com ligeireza

A agradecer sorridente É

todo salamaleques

'tá fino que nem um alho

Aquilo era tudo esperteza

E eu com cara de paspalho

Para a próxima já não te metes

Gabriel Serra

49


CAMINHADA

Uma ponte atravesso nesta vida,

nesta via,

direito não sei onde,

ao infinito,

que não sei onde fica,

ou se é longe,

que longa já vai a travessia.

Corre-me nas veias o cansaço

das pontes, pelo caminho, ir fazendo:

que a vida não é ponte de um só traço,

mas muitas pontes

que se vão, arduamente, percorrendo

Gabriel Serra.

50


O MORALISTA

Já tive pretensões de mudar o mundo,

de mudá-lo de um golpe, de uma vez.

Já tive, mas perdi-as, que no fundo

até deus demorou mais quando o fez.

Fiquei-me assim por tentar mudar

as pessoas que me eram próximas. Mas nem essas

o consegui como queria. Deixaram-me falar …

falar, mas fizeram, do que disse, tudo às avessas.

Pensei, então, que talvez a mim pudesse

convencer-me ao meu jeito como queria.

Desse modo, falei … falei comigo todos os dias

e que assim faria de mim o que quisesse.

Mas o eu que me ouve,

farto de mim, bem desabafa:

- Cala-te lá, ó moralista. Vai à fava!

Gabriel Serra

51


UTOPIA

O que nos sobra chegava

para matar a fome ao mundo.

Para isso apenas bastava

uma coisa simples, no fundo:

que a cada um nada sobrasse

e apenas a si se bastasse

com aquilo que precisava.

Mas o que parece assim fácil

aqui em versos dizer,

não passa de utopia

quando se tem de fazer.

Gabriel Serra

52


VAI A VIDA PASSANDO

Vai a vida passando e estou velho

sem dar conta que antes já fui novo,

tão novo como Abril foi espelho

de querer mudar-se tudo de um só golpe

com cravos a servir de balas

que das outras está o mundo cheio.

Vai a vida correndo a galope,

tão rápido que não se dá por ela:

e a minha já bem p'ra lá do meio,

o que antes gritava, agora calo.

Gabriel Serra

53


POSSO TUDO E POSSO NADA

Até posso ser poeta.

Posso tudo

e posso nada.

Que ser poeta é sobretudo

sentir a palavra certa

na altura que for precisa.

Que não chega quando avisa,

nem quando se dá precisada.

Posso tudo

e posso nada.

Gabriel Serra

54


ALMA DE CAMPONÊS

Filho de camponeses,

a terra está-me enraizada.

Eu sou camponês na alma

sem ter pegado uma enxada.

Quando por esses campos eu ando,

sempre a minha alma demanda

o cheiro da terra lavrada,

o gado, ao longe, pastando

o trigo a ser semeado,

as aves, em bando, voando.

E, então, na minha lembrança,

vejo o meu pai trabalhando.

Gabriel Serra

55


PAI

Tu, pai, que uma letra não sabias,

que apenas cursaste a escola da vida

e sempre foste coerente

nos pensamentos e nas atitudes;

que honraste a palavra,

que depois de dada se não nega;

que respeitaste os outros sem bajulices;

e leal foste à amizade

que te foi dada,

sem nunca usares baixezas ou intriguices;

e que ganhaste o pão que o diabo amassou

com o suor do teu rosto,

sem agradecer a um deus em que não crias,

mas sim à Natureza

que é mãe de todas as coisas;

A ti, pai, que sempre foste

um homem vertical,

a ti te agradeço os ensinamentos

da vida que me deste.

E seja onde estiveres,

planta, flor, fruto

terás ajudado a crescer,

renovando-se, assim, o ciclo da vida,

como sempre e apenas quiseste.

Gabriel Serra

56


PORTUGAL DO QUERO E POSSO

Portugal do quero e posso,

basta querer, segundo o adágio.

O campeonato é nosso

se Deus quiser ou se quiser

Nossa Senhora do Caravaggio.

Coitados dos outros que são tão poucos

e nós somos tantos no campo a jogar.

Ainda por cima com todos os santos

por nós a rezar.

Não viram aquela bola que todos chutámos

e que bateu no poste?!!

Olha o azar!

Mas pouco importa,

que daí a nada de alegria saltámos

quando a bola se enrola dentro da “porta”!

Com os outros a atacar, bem nos despimos

de preconceitos.

Roem-se as unhas do dedo mendinho,

pontapés no ar a torto e a direito,

uns no sofá, outros no vizinho,

que nos avisa:

Cuidado, amigo! Que as costas são minhas!

57


Oh! Mas foi um alívio! Que a bola já está

longe da baliza! Do nosso “véu”!

Há que sofrer para se ter o Céu!

Lá apita o árbitro para o final.

Na final já estamos. Calhe quem calhar,

o campeonato é “nosso”

é do “Portugal do quero e posso”.

Ainda não jogámos, mas vamos ganhar

com Portugal inteiro dentro do campo

com Deus e os Santos todos a ajudar!

Coitados dos outros, que tão poucos são,

sem terem ninguém que lhes dê a mão!

2004

Gabriel Serra

58


APENAS POR UM TRIZ

Às vezes sinto-me um zero,

um zero à esquerda da vírgula,

um zero tão grande que desespero

de não ter nada que me estimule,

nem trabalho que me apoquente

neste tempo que nunca acaba,

nem nada que mate o tempo

ou dê-me o tempo passado

em que, talvez sem ser feliz,

mais feliz eu me sentia

ou me via ou me parecia sentir.

E se o não fui, foi apenas por um triz,

por um clique que só se liga por magia,

que o amor nunca vem por se pedir.

Gabriel Serra

59


APANHADOR DE ACASOS

Ando quase sempre ao sabor do tempo

e das marés das convivências.

Só por acaso fujo disto.

Lá vou trocando uns bitates

com este e com aquele

sobre o tempo que não faz:

se o sol aperta, era chuva que devia;

se chove, o que se pede é calmaria.

Bom tempo encomenda-se,

mas não parece que haja em armazém.

E logo sobre isto e sobre tudo

boto palestra,

desde que seja a bem de todos

e do país principalmente:

discurso de bem fazer a rodos,

que os governantes são uns tolos

e não passam duns palermas.

Mas que conversa da seca!

Por falar nisso, não há por aí um vininho,

leve quanto baste para matar a sede

e forte que chegue

para acompanhar um queijo 'Serpa'?!

E de acaso em acaso,

lá se vai apanhando de jeito uma conversa.

Gabriel Serra.

60


PÃO-POR-DEUS

De porta em porta

vêm os meninos pedindo

o pão-por-deus.

E eu vi

com os olhos meus

como os teus

íam sorrindo.

- Pão-por-deus, minha senhora!

Dê-nos lá o pão-por-deus!

Ao ouvi-los,

as lembranças voam pelo tempo fora,

recordando tempos de outrora

em que eu também pedia o pão-por-deus.

Dás-lhes figos e carinhos,

pão-de-ló e rebuçados:

é amor embrulhadinho,

dado a todos por igual.

E lá partem eles contentes.

Só que não levem presentes,

levam sonhos no bornal.

61


Também eu ando pedindo,

também bato à tua porta.

Não me deixes ir fugindo

por essas portas batendo,

por essas ruas a fio,

com a minha alma doendo.

Pela lembrança dos Céus,

não deixes o meu saco vazio,

dá-me amor, amor-por-deus!

Gabriel Serra

62


DIA DE ANOS

(Estou chateado)

Estou chateado,

chateado comigo.

Porque sou parvo,

parvo contigo.

Nada fizeste

que merecesse

esta chatice.

Pelo menos

não se viu

razão que se visse,

porque razão não havia:

a não ser teres-te

lembrado de fazer anos,

sem que eu me lembrasse

que os fazias.

Gabriel Serra

63


P A Z

Paz, onde estás?

Que nem dentro de mim te vejo,

quanto mais no mundo em derredor?

Bem podes,

em letra maiúscula Te escreveres

e Te mostrares, como aqui,

em página de jornal.

De pouco vale, ó Paz,

a paz Tu prometeres

se quem manda

não quer a paz universal.

Que lucro dá a paz,

não me dizes Tu, ó Paz?

Porque se lucro desse

talvez então houvesse

por todo o mundo paz.

Gabriel Serra

64


Ao meu amigo de infância

José Fernando da Silva Branco

FANÃ

Por onde andas, jogador da bola,

do joga tudo só por jogar?

Miúdo pequeno, cedo feito homem,

do toque e foge a vadiar

por essas ruas, por esses campos

até que o sol fosse luar.

Verdes maçãs é o que se come,

na falta de outras 'tá bem de ver

que ninguém é parvo

se maduras há verdes comer.

Ah! jogador da bola, que tudo jogaste

por meio tostão,

se um golo marcasses de um certo jeito

talvez o prémio fosse melhor

e lá tu inventavas de peito feito

uma jogatana de endoidecer a multidão.

Não era um jogo o que se via:

era pura magia que dos teus pés saía,

ali ao vivo, sem replay na televisão.

65


Ah! Jogador da bola, que a vida jogaste

a entreter e a entreteres-te

porque o que jogavas

não era a bola mas o prazer

de assim viveres.

Por onde andarás, Fanã amigo?

Por onde andarás, que não te deixas ver?

E se combinássemos um jogo a sério,

qual hora-e-meia, desses mas é

de muda aos cinco e acaba aos dez.

E para dar pica, coisa que se veja,

quem perder paga as cervejas!

Gabriel Serra

66


FAZ UM ANO, MÃE

Faz um ano, mãe.

Faz um ano agora.

E ao lembrar-me de ti, viva,

da tua coragem mansa,

da tua sensata sabedoria,

da doçura que a todos agradava

e aprazia,

ao lembrar-me, mãe,

uma lágrima aos meus olhos aflora.

Sempre assim acontece

quando à tua casa vou e tu não estás:

se Céu houvesse

decerto que estarias por lá.

Mas deixa, mãe,

que eu te vejo em pensamento

ali sentada,

já no fim da vida,

uma almofada cosendo.

E, então, sem querer,

as lágrimas vão

pelo meu rosto correndo.

Gabriel Serra

67


RETRATO DE MINHA MÃE

Eu te vejo, como sempre te vi,

serena.

Serena é o traço exacto

do teu retrato.

Retrato à la minute já se vê.

E embora a imagem

se mostre desfocada pela memória,

num olhar mais atento,

nela a tua alma se antevê.

Gabriel Serra

68


VIAGEM SENTIDA

Muitas voltas dá o mundo.

Quase tantas o meu andar.

Que as voltas que dou, no fundo,

são à volta do meu pensar.

Igrejas, castelos, cidades,

vales, montanhas e rios

não são apenas coordenadas

na rota do meu navio.

São emoções, são encantos

que por aí andam perdidos

neste meu navio de espantos,

navio dos meus sentidos.

Que a viagem percorrida

no mapa-mundo é um traço.

Porque a viagem sentida

dentro de mim eu a faço.

Gabriel Serra

69


POLIS (No meu Cacém)

Na minha terra há searas de pão

ao pé da porta.

Os miúdos brincam na rua de terra batida:

ao pião, ao bilas, à cabra-cega,

à bola com duas pedras a fazer de baliza.

Na minha terra pequenina

(quinhentas pessoas, se tanto)

todos se conhecem e dizem bom-dia.

Na minha terra só passam

carros-de-bois com as rodas chiando.

E, às vezes, algumas carroças.

E até os pardais procuram tranquilos

comida nas bostas que os bois vão deixando.

Na minha terra é tudo tão bonito,

com quintas, arvoredo, natureza em volta,

que eu vos digo que não é preciso

que nela mexam

como o querem fazer agora.

Este é o Cacém da minha infância.

Esta a minha terra paraíso.

Podem tê-la alterado (como quiseram)

por ganância.

Podem agora com uma borracha

apagar o que fizeram.

Mas uma ou outra coisa não alteram

o paraíso que eu trago na lembrança.

Gabriel Serra

70


CHEGASTE TARDE E A MEDO

Chegaste tarde e a medo,

Poesia.

E é pena não teres chegado cedo

e amiúde.

Porque, se assim fosse,

sempre poderia

ir-te contando

com vagar

o que na alma me ía.

Ou, então,

te mostrar

a braveza

e a esperança no futuro

que sempre tem a juventude!

Mas não.

Só agora te lembraste

de aparecer,

uma ou outra vez,

em visita

tão fugaz

e breve,

que por mais

que o pensamento se eleve

vejo-me incapaz

de te enriquecer.

Gabriel Serra

71


VALE A PENA?

Vale a pena dizer-te

que não disse

o que dizes que disse?

Vale a pena falar-te

que não quis magoar-te?

Vale a pena ouvir-te

ralhares com a vida?

Vale a pena escutar

a tua alma dorida

e sentir

que te dói o passado

e não queres o futuro?

Vale a pena?

Vale a pena

quando me vejo causa

do teu amor magoado?

E, aí, comigo sou duro

porque me sinto culpado

do mal que te fiz,

sem do mal saber.

Apenas te quis,

só que não chegou

para te fazer feliz.

E, então, sem nada

valer, fico calado.

Gabriel Serra

72


CÃO QUE LADRA

Não brinques com o cão, não brinques.

Com o cão não brinques, minha filha.

Olha que o cão te morde, que os dentes rilha,

se continuas assim com as palermices.

Mas não ligou, pois, ao que disse.

E o cão, chateado, já rosnava,

com cara de pouco amigos

e alto e raivoso bem ladrava.

Até que percebeu que ía para o torto

a forma de levar a sua avante e impor respeito.

E, então, de um modo ladino e curioso,

pôs-se a abanar a cabeça dum lado para o outro

dando à sua expressão um ar de gozo!

Ficou assim provado e definido

que cão que ladra nunca morde,

embora aqui o provado

em sonho tenha sido,

pois acordei sobressaltado

com a mulher a “ladrar-me”

aos ouvidos:

- Gabriel, acorda. Já é tarde!

Gabriel Serra

73


SOU HOMEM DE TODAS AS CORES

Sou homem de todos os credos,

de todas as raças me assumo.

Eu cá sou de toda a parte

e sou de parte nenhuma.

Sou muçulmano e cristão,

ateu dos sete costados,

judeu, budista e pagão.

O meu deus é de todo

e nenhum lado.

Nas minhas veias corre o sangue

de meus primos e irmãos

(de tão longe ele já vem),

que não sei por onde andarão.

Parece-me vê-los além

ou estarei enganado?

Que de todas as cores eu terei

família por todo o lado.

Gabriel Serra

74


DESTINO

Enquanto o “eléctrico” vai percorrendo

As ruas que o levam ao seu destino,

viajo eu nele nem triste, nem contente,

com o pensamento correndo

por aí ao deus-dará.

O meu destino não é, com o seu, coincidente:

o seu foi, antes da partida, definido.

O meu: não sei aonde a vida o levará.

Gabriel Serra

75


EM QUE PENSAS, COMPANHEIRA?

Em que pensas, companheira?

No que te pões a sonhar?

Qual o sonho que te enleva e

te leva

ao outro lado do mar?

Quando os olhos em ti ponho

e vejo os teus a brilhar,

recordo lembranças passadas

e outras que vão chegar

ao outro lado do sonho,

ao outro lado do mar.

Se não for de outro modo

em viagens inventadas

de encanto doce e profundo,

sempre contigo à minha beira,

até aos confins do mundo,

minha mulher-companheira.

Gabriel Serra

76


BEM COMPORTADO

Sentado,

numa cadeira,

espero.

Esperançado

que não se demorem

a atender.

Espero,

no corredor,

sentado.

Espero

pacientemente

uma certidão

comprovativa

de que sou

bem comportado.

Gabriel Serra

77


A CONSULTA

Bons olhos o vejam. Que grande ausência!

Está a ver se lhe sai a sorte grande, não!?

(Lá que dava jeito, dava!)

Mas não é dessas em que está a pensar!

Não é as da Santa Casa. Tenha paciência!

É das outras.

É que o seu colesterol estava bonito, estava!

E a glicemia? Uma beleza! Nos limites!

(Sempre apreciei a aventura. E a beleza é infinita)

Não diz nada? E o seu coração?

Sôtôra, tenho-me sentido bem, por ora.

Então, depois de três anos, a que devo a sua visita

agora?

É que tenho aqui na perna uma infecção.

Mostre lá isso. Bem, bem … Pôs alguma pomada?

Só canesten, mais nada.

O quê? Canesten?!

78


Onde aprendeu isso? Na televisão?

Deve pensar que está no terceiro mundo.

Em Marrocos talvez, não?!

(Pensar, pensar, até penso. Que, no fundo,

uma viagem até lá bem me apetece:

Fez, Casablanca … Marraquexe.

É sempre este meu desejo de evasão …)

Mas canesten?! Não sabe que o canesten …

(Nem percebi bem o que disse.

Sinto-me assim tão reles e vil.

Se soubesse que também usei fenestil

ainda me perguntava

se tirei algum curso na Suíça)

Bem, bem … O ter vindo cá

sempre revela algum bom senso.

Valha-nos isso!

(Assim até me sinto um pouco melhor)

Mas isto não se cura por fora!

Cura-se por dentro!

E qual pomada, nem meio pomada!

Antibiótico e dos fortes!

Dos outros! Da farmácia!

79


(Aqui, devo ter esboçado um leve sorriso).

Não é para ter graça.

É para tomar. Cada doze horas.

Daqui a oito dias telefone.

Quero saber das suas melhoras.

(Fico agradecido).

Mas não se escapa: vai ter de fazer exames.

(Exames?! Com esta idade?!

Eu já não tenho vida para universidades)

Quero estas análises todas tiradas.

E apresente-se aqui no próximo mês.

A ver se consigo fazer de si

alguma coisa desta vez.

(Estou a gostar. Parece preocupada comigo)

Está muito bem, “Sotôra”.

Agora pode sair. Até depois. As melhoras.

(Por fim, vi-a sorrir).

Gabriel Serra

80


HÁ TANTA COISA NO MUNDO

Nada vezes nada é tudo

- um tudo de nada feito -,

que saber muito é sobretudo

nada saber a preceito.

Há tanta coisa no mundo

que nunca virei a saber:

somas do nada profundo

que nunca vou esquecer.

Só o que se aprende se esquece

ou o que alguma vez já se viu:

que muita água vai no rio,

mas pouca a margem humedece

Gabriel Serra.

81


APENAS RIMAS

Pode-se com versos rimar.

Pode-se com versos quase tudo.

Mas rimar só por rimar,

antes então ficar mudo.

De papel sou eu farto,

sobram-me canetas à mão.

Tenho tudo ao desbarato,

só emoção é que não.

Muitos dias passo assim:

tranquilo, sem emoções.

Nestas alturas , de mim,

só saem estes borrões.

Gabriel Serra

82


NÃO SABER

Com certezas, garantidamente não sei nada

que as dúvidas estão em mim sempre presentes.

O que sabia fui-o esquecendo por aí em qualquer

lado

e os novos saberes vou-os sabendo levemente,

assim a ver-se as coisas apenas pela rama,

que agarrar a árvore do saber é bem dorido.

É melhor ir-se lendo umas revistas como a Fama,

é mais suave e sempre se vê umas meninas pró

despido.

Que eu, agora, da vida só quero a parte airosa,

que coisas tristes fujo delas se adivinho.

O que eu quero mesmo é o mundo cor-de-rosa

porque as rosas do saber têm espinhos.

Gabriel Serra

83


PORTUGAL RECICLADO

Este país deu um salto fulminante,

deixando de ser, num instante,

o tal país rural

que ainda era há pouco Portugal.

Agora é tudo 'com' e 'tel'

e 'ar condicionado'.

É o Portugal rural reciclado

em serviços e pasta de papel.

Não que a reciclagem

não seja importante

na defesa do ambiente.

Mas, francamente,

só porque Bruxelas

nos faz engolir sapos

quando nos proíbe

a pesca da sardinha

e o mais que se avizinha,

não me vejo a comer,

todo sorridente,

um maço de guardanapos!

Gabriel Serra

84


PRIMEIRO DIA DO TERCEIRO MILÉNIO

Estou chateado, chateado

sem saber.

É dia de Ano Novo

e também Milénio Novo

(segundo o que está convencionado)

e estou eu para aqui parado

sem ter nada para fazer.

Eu desafio-te para ir para a cama,

que sozinho não tem jeito,

mas por mais que eu te chame

não é o convite aceite.

Fico ainda mais chateado.

Se isto é o novo milénio

antes quero o atrasado.

Gabriel Serra

85


A RAZÃO

Eu tenho razão às vezes

no que digo e no que penso.

Mas vendo as coisas com senso,

eu nunca tenho a certeza

quando tal assim acontece,

pois frente a outras verdades

a minha verdade enfraquece.

E se a uma verdade outra se soma

e razão alguém a tem,

esta nunca pertence, por norma,

a cem por cento a ninguém.

Gabriel Serra

86


ÁRBITRO

Naquelas intermináveis tardes

de jogos da bola

de muda aos dez e acaba aos vinte

com direito a desforra,

(Ah! Que saudades!),

grande honra me davam, hoje o sinto,

companheiros e adversários

quando me nomeavam

árbitro do encontro.

E aqui é que bate o ponto:

uma parte de mim

para ganhar jogava

com todo o empenho

até que o jogo chegasse ao fim.

E a outra parte, árbitro atento,

lá ía assinalando

as faltas, os cantos,

as bolas fora, os tentos,

tentando, tal qual um juiz,

manter-me isento.

Mas, agora, visto à distância,

eu sei que, na essência,

eu não arbitrava o jogo

mas a minha consciência.

Gabriel Serra

87


O MEU NATAL MENINO

Quando era pequenino,

não digo por mal nem por rancor,

apenas lembranças de menino

a quem dos pais não faltou amor,

mas que nunca viu

(será que não passou ou que fugiu?)

O Pai Natal.

E não era por não estar atento,

embora sonolento,

um olho aberto,

outro fechado,

ao ouvir passos por perto,

mais despertado

atentamente ouvia.

- É ele agora, por certo.

E, confiante, por fim adormecia.

Mas alguma coisa estranha havia:

ou porque minha mãe

escrever não soubesse

ou houvesse lá o que houvesse,

naqueles anos todos

da minha meninice,

não creio que fosse por mal

nem sequer por caturrice,

embora hoje ainda o não entenda,

88


a verdade é que o Pai Natal

sempre deixava nas mais bonitas

casas as mais bonitas prendas.

E cada um de nós, os dos meu bairro,

todos os meus amigos

apenas encontrávamos

de manhã no sapatinho

uma broa de milho

ou, com melhor sorte,

meia dúzia de figos.

Ao ver o Pai Natal agora,

que até parece um tipo porreiro,

uma interrogação me aflora:

Será que o “norte” perdia?

Talvez fosse mau carteiro

ou então por miopia.

Mas nesta altura do Natal,

está a distribuição melhor

mais equitativa, mais igual.

E até pelas últimas estimativas

do INE, do ENIC e não sei se da SIC,

parece haver muito menos enganos.

A isto por certo não será alheio

o ter-se criado o tal Código Postal

- que é meio caminho andado -

e que muito terá ajudado o Pai Natal.

Gabriel

Serra

89


LITLE MODEL

Na passarelle passam, passam,

em passos miúdos passam

modelos em miniatura:

tão jovens, tão inocentes,

tão empertigados, contentes,

que, de gente, fazem figura.

Mas eu vejo no olhar ardente

dos pais que em volta estão,

embora estejam sentados,

guiando os seus, enlevados,

a desfilar também vão.

Gabriel Serra

90


VIAGEM À PONTUAÇÃO

Faço uma vírgula e suspiro,

com um ponto, uma paragem.

Como quem bebe um pirolito

para depois seguir viagem.

Se me exclamo, me espanto

com tanta exclamação!!!

Mas se duvido entretanto,

lá vem a interrogação (?).

Com dois pontos me explico:

mandam assim as conveniências.

Quando me mostro hesitante,

três pontinhos … reticências.

Se ponho parêntesis ou traços

(se escrevo nas entrelinhas),

é para não lhes dar embaraços

a fazerem advinhas.

91


Com o til (~) eu me embalo

no mar da minha emoção,

que sentimentos não calo

quando abro o coração.

Também uso chapelinhos

como aqui mesmo se lê.

Que gente de importância

usa chapéu, já se vê.

Só é usada a cedilha

por baixo do c (de cão).

O melhor é pôr-me a milhas,

não vá morder-me o ladrão.

Ão ão!

Gabriel Serra

92

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