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edição de 23 de maio de 2022

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propmark 57 aNoS<br />

Alberto Rocha/Divulgação<br />

A criação, o<br />

algoritmo e Bartleby<br />

Fernand alphen*<br />

Muito além <strong>de</strong> qualquer invenção,<br />

a Revolução Industrial do<br />

século 19 nasceu para respon<strong>de</strong>r<br />

a uma i<strong>de</strong>ia: todo trabalho<br />

repetitivo será substituído por máquinas,<br />

mais precisas, mais rápidas, mais produtivas<br />

e não reivindicatórias. Máquinas não<br />

sofrem, não pe<strong>de</strong>m e não reclamam.<br />

O trabalho repetitivo é todo aquele que<br />

prescin<strong>de</strong> <strong>de</strong> raciocínio, pon<strong>de</strong>ração e análise<br />

para ser executado. É apertar parafusos, digitar<br />

textos, preencher planilhas, calar nas reuniões,<br />

ler em diagonal, jogar Minecraft e rolar<br />

miseravelmente as re<strong>de</strong>s sociais inventadas<br />

para sequestrar o tempo. Como as máquinas,<br />

os algoritmos existem para substituir o ser humano<br />

em suas tarefas repetitivas.<br />

Todo algoritmo, vendido (e comprado)<br />

como uma extraordinária inteligência, é só um<br />

conjunto finito <strong>de</strong> regras que, aplicado a um<br />

conjunto finito <strong>de</strong> dados, resolve um problema.<br />

Um algoritmo não tem inteligência: tem<br />

método. Tanto o algoritmo que seleciona respostas<br />

a uma pergunta – o Google – quanto a<br />

máquina que nos propulsiona sem nos cansar<br />

– a locomotiva – são fantásticas invenções.<br />

É claro que, na observação microscópica<br />

dos fenômenos, ainda po<strong>de</strong>mos preferir encontrar<br />

respostas na enciclopédia impressa:<br />

esta não veiculava coisas erradas, não viciava e<br />

não tinha propaganda. Mas tais conclusões são<br />

estreitas. Não po<strong>de</strong>mos mais viver felizes sem<br />

algoritmos. Com exceção dos luditas e outros<br />

veganos, a volta às cavernas é uma opção <strong>de</strong><br />

vida trabalhosa e cara.<br />

A questão perturbadora, contudo, é perguntar<br />

o quanto nosso trabalho po<strong>de</strong> ser substituído<br />

por um algoritmo. Ou, mais radicalmente,<br />

quando nosso trabalho po<strong>de</strong>rá ser substituído.<br />

Mas estávamos falando <strong>de</strong> trabalhos repetitivos.<br />

Vale, então, reformular a questão: em vez<br />

<strong>de</strong> “o que po<strong>de</strong> ser substituído no trabalho?”,<br />

talvez seja melhor perguntar “o que é repetitivo<br />

nele?”. Ou, ainda, indagar “o que não é<br />

repetitivo no meu trabalho?”. Pois não é repetitivo<br />

tudo aquilo que é novo, original e diferente.<br />

Ou, claro, não é repetitivo tudo aquilo<br />

que é criativo.<br />

Não é repetitivo tudo aquilo que é feito pela<br />

primeira vez, que não foi ousado ainda, que se<br />

atreve. Não é repetitivo tudo o que contraria o<br />

status quo, as regras, as pesquisas, os dados,<br />

o passado, o senso comum, o conveniente, o<br />

responsável, o bem-pensante, o correto, o normal,<br />

o briefing.<br />

Não é repetitivo tudo aquilo que diz “não”<br />

ao conjunto finito <strong>de</strong> regras que, aplicado a um<br />

conjunto finito <strong>de</strong> dados, resolve um problema.<br />

Não é repetitivo o que difere da solução do<br />

algoritmo. As máquinas, os algoritmos, as ferramentas<br />

e as inteligências artificiais não são<br />

inimigas: elas são referências ou, se preferirem,<br />

a régua ou o estímulo para que o trabalho<br />

seja melhor ou diferentemente melhor – portanto,<br />

criativo.<br />

É um <strong>de</strong>safio danado, mas é melhor sentir<br />

esse frio na barriga do que rezar pelo adágio<br />

do “tomara que eu morra antes”, que já matou<br />

tanta gente antes da hora.<br />

Bartleby (<strong>de</strong> Bartleby, o Escrivão, do escritor<br />

estaduni<strong>de</strong>nse Herman Melville) é um funcionário-padrão.<br />

Todos os dias, acorda, veste-<br />

-se e vai trabalhar em um escritório qualquer<br />

<strong>de</strong> contabilida<strong>de</strong>, mas po<strong>de</strong>ria ser <strong>de</strong> propaganda.<br />

Ele faz o que mandam e preenche seu<br />

timesheet, todos os dias, com a mesma competência.<br />

Um dia, ele resolve “não”: “I would<br />

prefer not to”. “Não” fazer como todos os dias.<br />

Desobe<strong>de</strong>cer: “I would prefer not to be a little<br />

reasonable”. O “não” <strong>de</strong> Bartleby é o começo<br />

do “sim” re<strong>de</strong>ntor.<br />

E, sempre que a gente se sentir <strong>de</strong>sencorajado<br />

pelas distopias do Vale do Silício, lembramo-nos<br />

da utopia <strong>de</strong> Melville: “Ah humanity!”.<br />

“Machines have less problems”, disse Andy<br />

Warhol. E acrescentou: “I want to be a machine”.<br />

Do you?<br />

“não é repetitivo<br />

tudo aquilo<br />

que é novo, original<br />

e diferente.<br />

ou, claro, não<br />

é repetitivo<br />

tudo aquilo<br />

que é criativo”<br />

*Fernand Alphen é CEO da Fbiz<br />

falphen@fbiz.com.br<br />

40 <strong>23</strong> <strong>de</strong> <strong>maio</strong> <strong>de</strong> <strong>2022</strong> - jornal propmark

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