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Publicação Mensal<br />
Vol. XXV - Nº <strong>289</strong> Abril de 2022<br />
Esperança invencível na<br />
Mãe do Bom Conselho
Símbolo do Brasil no<br />
Reino de Maria<br />
Se nos voltamos para a exuberante<br />
e variegada flora<br />
brasileira, parece nos faltar<br />
o vocabulário para comentá-la<br />
de modo satisfatório. Por<br />
exemplo, um ipê na plenitude de<br />
sua floração, na riqueza estupenda<br />
de sua beleza, ou seja, no<br />
que ele tem de verdadeiramente<br />
único. É uma árvore de ouro.<br />
Sua copa não desenha uma esfericidade<br />
perfeita, pois tem reentrâncias<br />
diversas as quais fazem<br />
com que os jogos de luz sobre o<br />
dourado mudem de tonalidade, e<br />
se evidenciem os diferentes matizes<br />
dessa cor. E quando o ipê<br />
floresce contrastando com uma<br />
paisagem seca e desoladora, dir-<br />
-se-ia que ele é um protesto do<br />
futuro, a proclamar: “Esperem!<br />
Alguma coisa ainda virá!”<br />
Na minha ótica, será o símbolo<br />
do Brasil no Reino de Maria.<br />
É uma árvore simplesmente esplendorosa.<br />
Mostra qual será<br />
o futuro deste País a serviço de<br />
Nossa Senhora.<br />
(Extraído de conferências de<br />
12/10/1990 e 17/7/1991)
Sumário<br />
Publicação Mensal<br />
Vol. XXV - Nº <strong>289</strong> Abril de 2022<br />
Vol. XXV - Nº <strong>289</strong> Abril de 2022<br />
Esperança invencível na<br />
Mãe do Bom Conselho<br />
Na capa,<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1990.<br />
Foto: Arquivo <strong>Revista</strong><br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
ISSN - 2595-1599<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
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Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
editoraretornarei@gmail.com<br />
Segunda página<br />
2 Símbolo do Brasil no<br />
Reino de Marias<br />
Editorial<br />
4 Com os olhos postos na<br />
Mãe do Bom Conselho...<br />
Piedade pliniana<br />
5 Fogo sagrado e purificador<br />
Dona Lucilia<br />
6 Ambientes impregnados de uma<br />
presença régia e maternal<br />
Reflexões teológicas<br />
9 Jesus bebeu o cálice da<br />
morte gota a gota<br />
De Maria nunquam satis<br />
16 Poder maravilhoso de se<br />
comunicar com as pessoas<br />
Calendário dos Santos<br />
20 Santos de Abril<br />
Hagiografia<br />
22 Homem que lutou arduamente<br />
contra a Revolução<br />
Eco fidelíssimo da Igreja<br />
26 Ressurreição e Fátima<br />
Luzes da Civilização Cristã<br />
31 Verdadeiro equilíbrio e harmonia<br />
entre as classes sociais<br />
Última página<br />
36 Uma cruz bem carregada<br />
3
Editorial<br />
Com os olhos postos na<br />
Mãe do Bom Conselho...<br />
Refletindo sobre Nossa Senhora do Bom Conselho de Genazzano, chamou-me muito a atenção a inteira<br />
intimidade do Menino Jesus com sua Mãe Santíssima. Ele até passa a mão em torno do pescoço<br />
d’Ela, de maneira a se verem os dedos ali.<br />
Lembro-me de ser essa a intimidade que eu tinha com minha querida e saudosa mãe: uma intimidade<br />
tão cheia de respeito, de admiração, de veneração e de ternura, mas verdadeira intimidade. Mamãe sabia<br />
ser afável, meiga e fazer-se pequena, ainda quando eu era um menino completamente dependente dela e,<br />
portanto, sendo eu o pequeno e ela tão grande para mim.<br />
Eis a razão pela qual eu a chamava de “mãezinha”, tão logo comecei a pronunciar as primeiras palavras,<br />
ainda sem saber falar bem e dizendo “manguinha”, mas já era a noção do que havia nela de miúdo,<br />
de proporcionado a mim, de exorável e de compassivo para comigo. Essa ideia que brotava em meu espírito<br />
a propósito de toda a mansidão e bondade dela foi o modo pelo qual conheci a bondade de Nossa Senhora<br />
e do Sagrado Coração de Jesus.<br />
Contemplando a imagem da Mãe do Bom Conselho e vendo o Menino Jesus tão protegido e tão agarrado<br />
a Ela, eu quisera que um raio de graça descesse sobre cada um de nós e nos levasse a compreender como devemos<br />
ser assim em relação a Nossa Senhora: filhos intimíssimos, convictos de que a misericórdia d’Ela não se cansa<br />
nunca, o seu perdão jamais nos é recusado, e que o seu sorriso maternal quase nos antecede, tão logo nos voltemos<br />
para Ela. Aliás, a própria graça de recorrermos a Maria Santíssima nos é concedida por sua intercessão.<br />
Donde uma confiança sem limites e contínua na bondade d’Ela, em todas as ocasiões, em quaisquer circunstâncias,<br />
de todos os modos, dizendo-Lhe: “Salve Rainha, Mãe de Misericórdia, vida, doçura, esperança<br />
nossa, salve!”<br />
“Salve”, no sentido etimológico e latino da palavra, isto é, uma saudação: “eu te saúdo, Rainha”. Mas,<br />
cometendo um barbarismo, poderíamos querer significar também: “Salvai-nos Rainha, Mãe de Misericórdia,<br />
vida, doçura, esperança nossa, salvai-nos!”<br />
Sendo Mãe de Misericórdia, Maria é a nossa vida, porque se não fosse a misericórdia d’Ela, estaríamos<br />
mortos. Ela tem para com seus filhos, mesmo quando eles são fracos e infiéis, uma doçura tal que é, por<br />
excelência, a doçura do universo, a ponto de todas as formas materiais de doçura – a do mel, do açúcar, da<br />
brisa, e até mesmo dos corações maternos – não serem senão pálidas imagens desta doçura das doçuras<br />
que é a do Imaculado Coração de Maria.<br />
Na Santíssima Virgem, em sua intercessão e misericórdia para conosco, nós podemos esperar com uma<br />
esperança invencível, porque quem tem tal Mãe nunca será desamparado.<br />
Nós vivemos em uma procella tenebrarumi 1 , em meio a incógnitas, a investidas, a ciladas e ao ódio infernal<br />
que desaba contra nós à maneira de uma tremenda tempestade. Nada disso teria solução se não tivéssemos em<br />
quem confiar. Mater Boni Consilii a Genazzano representa essa confiança; é Nossa Senhora cujo bom conselho<br />
no interior de nossas almas é essencialmente este: “Confiai em Mim e sede cada vez mais meus devotos.”<br />
São essas palavras de esperança que vos dirijo, com os olhos postos na Mãe do Bom Conselho de Genazzano,<br />
desejando que seu olhar maternal seja a luz interior de nossas almas e a estrela a nos guiar neste<br />
mar tempestuoso de nossa existência. 2<br />
1) Do latim: tormenta de trevas.<br />
2) Cf. Conferências de 6/5/1968 e 6/11/1988.<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
Piedade pliniana<br />
Fogo sagrado e<br />
purificador<br />
T<br />
udo acabou: “Consummatum est”.<br />
Vossa cabeça pende inerte. Uma paz majestosa, suavíssima e divina se<br />
mostra em todo o vosso Corpo. Estais cheio de paz, ó Príncipe da Paz!<br />
Mas em torno de Vós tudo é aflição e perturbação. Aflição extrema no Coração<br />
de Maria e no pugilo de vossos fiéis. Perturbação no universo inteiro: o Sol se obscurece,<br />
a terra treme, o véu do Templo<br />
se cinde, os algozes fogem.<br />
Mas Vós estais em paz. Sim,<br />
porque tudo se consumou.<br />
Porque a iniquidade patenteou<br />
sua infâmia até o fim,<br />
e porque Vós patenteastes<br />
até o extremo vossa<br />
divina perfeição.<br />
Pelos méritos superabundantes<br />
de vossa Paixão<br />
e Morte é dado aos<br />
homens reconhecer toda a<br />
beleza da luz e todo o horror<br />
das trevas. Para que sejam filhos da<br />
luz e irredutíveis inimigos das trevas.<br />
Ao pé da Cruz está Maria. Que sublimes<br />
meditações se dão no íntimo d’Aquela de<br />
quem narra o Evangelho (cf. Lc 2, 51) que,<br />
já nos albores de vossa vida terrena, guardava<br />
no seu Coração todas as coisas que vos diziam<br />
respeito!<br />
Imaculado Coração de Maria, Sede da Sabedoria,<br />
comunicai-me uma centelha, por pequena que<br />
seja, de vossa lucidíssima e ardorosíssima meditação<br />
sobre a Paixão e Morte de vosso Filho, meu<br />
Redentor, para que eu a guarde como fogo sagrado<br />
e purificador no íntimo de minha alma.<br />
(Extraído de Catolicismo n. 148, abril de 1963)<br />
(Acervo particular)<br />
5
Dona Lucilia<br />
Dona Lucilia era uma senhora posta<br />
em proporção ao relacionamento com<br />
uma rainha, mas também com o mais<br />
desafortunado, infeliz e minguado de seus<br />
filhos. A sepultura na Consolação e os<br />
ambientes de seu apartamento parecem<br />
estar impregnados de sua presença.<br />
V<br />
endo fotografias isoladas de<br />
damas da corte britânica no<br />
cortejo ou na tribuna da nobreza,<br />
durante a coroação da atual<br />
Rainha, eu tinha a impressão de<br />
que uma ou outra poderia ser a soberana,<br />
pois, como é próprio da<br />
presença da soberana comunicar algo<br />
de régio àqueles com quem ela<br />
trata, aquelas eram damas conforme<br />
a Rainha.<br />
Nessa perspectiva eu consinto, de<br />
muito bom grado, em atender o pedido<br />
de tratar sobre o “Quadrinho” 1 ,<br />
o ambiente onde mamãe viveu seus<br />
últimos anos, isto é, o apartamento<br />
da Rua Alagoas, primeiro andar, e<br />
também as graças sentidas no Cemitério<br />
da Consolação, junto ao túmulo<br />
dela.<br />
Digna diante da realeza<br />
e na intimidade<br />
National Library of Australia (CC3.0)<br />
Chegada da Rainha Elizabeth II ao 20º Parlamento<br />
Federal, em Camberra, Austrália, no ano de 1954<br />
Não há sobre a face da Terra alguém<br />
mais empenhado em elogiar<br />
o “Quadrinho” do que eu. Ali mamãe<br />
não tem nada de régio, nem deveria<br />
ter, mas ela estaria bem num<br />
ambiente onde houvesse uma rainha.<br />
Ela está retratada em trajes domésticos,<br />
e compreende-se que jun-<br />
6
to de uma nobre ela tivesse um traje<br />
de gala. Se estivesse com uma rainha<br />
na intimidade, ela não precisava ser<br />
diferente para estar consonante com<br />
a majestade real.<br />
Quão atenciosa e respeitosa, quão<br />
transformada em dedicação, em devotamento,<br />
em respeito, em embevecimento,<br />
em desejo de colocar-se<br />
no devido nexo e na devida proporção<br />
com a soberana que ali estivesse<br />
presente!<br />
Talvez alguém poderia se perguntar:<br />
Será que uma joia ou um vestido<br />
de seda não acrescentariam algo<br />
a ela? Eu acho essa pergunta tola,<br />
pois isso iria bem para outra circunstância,<br />
mas não seria necessário para<br />
aumentar a dignidade dela; são coisas<br />
diferentes. Caso as circunstâncias<br />
impusessem, a indumentária seria<br />
outra, não há dúvida; ali mamãe<br />
está na intimidade da casa e a sua<br />
dignidade não precisava ser acrescida<br />
em nada.<br />
Entretanto, se viessem avisá-<br />
-la que em sua casa estava uma rainha,<br />
sem dúvida ela se apressaria em<br />
adornar-se e em pôr o seu melhor<br />
traje de gala. Quando a nobre entrasse,<br />
mamãe estaria naquela mesma<br />
naturalidade. Portanto, no glorioso<br />
cortejo das nobres damas, haveria<br />
um lugar para a senhora do<br />
“Quadrinho”, pois ali ela está em<br />
perfeita proporção com a realeza.<br />
Afabilidade da senhora<br />
do “Quadrinho”<br />
Notem, também, a afabilidade maternal!<br />
Dir-se-ia: “Então é uma matriarca?”<br />
Não propriamente.<br />
No “Quadrinho” mamãe não parece<br />
ter em vista a excelência, o estupendo<br />
resplendor daquilo que um dia ela<br />
alcançaria por meio das suas orações.<br />
Porém, parece ter visto a cada um inserido<br />
naquela mesma intimidade, tratando<br />
com ela, com sua distinção própria,<br />
nas distâncias e até nos afagos, no<br />
calor da intimidade. Se ela, entretanto,<br />
era uma senhora posta em proporção<br />
ao relacionamento com uma rainha,<br />
também não ficaria maior nem menor<br />
ao tratar com o mais desafortunado, infeliz<br />
e minguado dos filhos dela.<br />
Fotos: Arquivo <strong>Revista</strong><br />
7
Dona Lucilia<br />
Consideremos uma imagem<br />
muito piedosa da Santíssima<br />
Virgem como, por exemplo,<br />
Nossa Senhora das Graças.<br />
Imaginemos que no momento<br />
no qual Ela nos fitasse<br />
– como fitou Santa Catarina<br />
Labouré – Deus quisesse<br />
fazer-nos conhecê-La olhando<br />
para Ele. Pois bem, diante<br />
do esplendor e da majestade<br />
de Deus, seu Divino Filho,<br />
Ela seria a mesma.<br />
Se d’Ela se aproximasse Judas<br />
Iscariotes – arrastando-<br />
-se no chão, deitando sangue,<br />
pus e mau cheiro – e dissesse:<br />
“Eu não tenho coragem de<br />
vos olhar...”, tenho a impressão<br />
de que Nossa Senhora diria<br />
“Meu filho”, mesmo se ele<br />
fosse falar-Lhe logo depois de<br />
Ela ter assistido ao sepulcro<br />
de Nosso Senhor sendo fechado e estar<br />
tudo consumado.<br />
Ora, consideremos também o túmulo<br />
do Cemitério da Consolação.<br />
Eu acho muito bonito o fato de que<br />
tudo quanto se tem presente ao ver o<br />
“Quadrinho” torna-se, de algum modo,<br />
sensível a nós estando diante da<br />
sepultura dela. Contudo, eu não seria<br />
favorável à ideia de pôr o “Quadrinho”<br />
lá, pois, pelas suas expressões<br />
próprias, a atmosfera que impregna<br />
o lugar é capaz de dizer coisas<br />
que o “Quadrinho” não diz.<br />
Notem tratar-se de um jazigo convencional,<br />
de um bom granito, com<br />
uma cruz deitada sobre a campa. Não<br />
há nada, na natureza daquele material,<br />
que sugira as impressões que se têm ali.<br />
Alguém perguntará: “Por que o<br />
senhor não mandou fazer uma coisa<br />
que sugerisse essas impressões?”<br />
Eu não tinha nenhum elemento<br />
para achar que deveria ser diferente,<br />
e que aos olhos dos homens ela fosse<br />
outra coisa além de uma senhora<br />
de família tradicional, sepultada no<br />
Cemitério da Consolação. Meu sistema,<br />
nesses assuntos, é andar passo<br />
a passo enquanto não houver indícios<br />
para supor que algo vai se dar, e<br />
como não havia dados, então agi de<br />
acordo com a convenção.<br />
O resultado foi bom, porque o encanto<br />
que se sente lá não tem explicação,<br />
e se o granito fosse róseo ou de<br />
uma outra cor mais festiva, dir-se-ia:<br />
“De longe vimos o granito maravilhoso”.<br />
E não é assim. O granito escuro é<br />
digno e sério, não é senão isso.<br />
Ambientes impregnados<br />
da presença de mamãe<br />
Analisemos agora a residência dela.<br />
Eu noto no apartamento a mesma<br />
atmosfera do “Quadrinho” e da sepultura.<br />
Os salões, a sala de jantar e<br />
o hall possuem um ornato que contribui,<br />
a seu modo, para exprimir muito<br />
de sua alma. Nesses ambientes figuram<br />
objetos antigos da família de mamãe,<br />
com os quais ela se sentia muito<br />
autêntica e muito à vontade.<br />
Com exceção da cadeira de balanço<br />
que está ligada ao passado da família,<br />
os demais móveis foram mandados<br />
fazer por meu pai, no Liceu de Artes<br />
e Ofícios, quando eu ainda era<br />
menino, e são de um estilo usado<br />
na Belle Époque 2 , antes da I<br />
Guerra Mundial. Aquele estilo<br />
artístico encontra-se caracterizado<br />
no alto das estantes.<br />
Dona Lucilia possuía um<br />
relógio inglês fabricado em<br />
madeira – modesto, digno,<br />
bom – e também uma escrivaninha<br />
conexa com ele. O sofá,<br />
eu mandei fazer posteriormente,<br />
mas não é moderno.<br />
As cortinas datam do tempo<br />
de mamãe, e também são<br />
acortinados convencionais.<br />
Quando se entra em algum<br />
daqueles ambientes, tem-se a<br />
impressão de que ela está presente.<br />
Eu acho ainda mais expressivos<br />
os dois salões contíguos,<br />
em um dos quais está<br />
a imagem do Sagrado Coração<br />
de Jesus diante da qual ela rezava<br />
tanto e tanto.<br />
A mesinha redonda junto ao sofá<br />
do escritório não existia no tempo<br />
de mamãe, porque era onde eu ficava<br />
conversando com ela. Entretanto,<br />
quando ela veio a faltar, eu mandei<br />
colocar ali esse móvel junto com<br />
um abat- jour para preencher – pobre<br />
preencher! – a sua ausência, enquanto<br />
eu lia um pouco, deitado durante as<br />
sestas.<br />
Enfim, tem-se a impressão de que<br />
tudo está impregnado da presença<br />
dela. <br />
v<br />
(Extraído de conferência de<br />
28/9/1981)<br />
1) Quadro a óleo, que muito agradou<br />
a <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, pintado por um de seus<br />
discípulos, com base nas últimas fotografias<br />
de Dona Lucilia. Cf. <strong>Revista</strong><br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n. 119, p. 6-9.<br />
2) Do francês: Bela Época. Período entre<br />
1871 e 1914, durante o qual a Europa<br />
experimentou profundas transformações<br />
culturais, dentro de um clima<br />
de alegria e brilho social.<br />
8
Reflexões teológicas<br />
Gabriel K.<br />
Jesus bebeu o<br />
cálice da morte<br />
gota a gota<br />
Em sua Paixão, Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo passou por todas as formas e<br />
graus de dor, e entrou nelas com passo<br />
digno, sereno, firme e sem hesitação,<br />
caminhando para a Cruz como um rei<br />
caminharia ao trono de sua coroação.<br />
Quando analisamos cada lance<br />
da Paixão, seja física ou espiritual,<br />
notamos não ter sido<br />
poupado nada de Nosso Senhor. Ele<br />
entrou no abismo mais profundo da<br />
dor com passo de herói, assumiu todos<br />
os padecimentos possíveis e Se<br />
apresentou resplandecente de sofrimento<br />
ante a justiça do Padre Eterno.<br />
E assim salvou o gênero humano.<br />
Multidões do povo eleito<br />
afluíam a Nosso Senhor<br />
É interessante examinar, ponto<br />
por ponto, o anoitecer, o “Ofício<br />
de Trevas” dentro de Nosso Senhor,<br />
considerado no plano da sua humanidade<br />
santíssima.<br />
Jesus teve no primeiro ano de sua<br />
vida pública a alegria, o bom êxito,<br />
a correspondência de amor das multidões<br />
do povo eleito afluindo a Ele.<br />
Entretanto, sabia que isso tudo – vejam<br />
a amargura! – daria um número<br />
pequeno de conversões e excitaria os<br />
fariseus a determinarem a sua morte.<br />
Se Nosso Senhor tivesse muito<br />
menos adeptos, poderia não ter sido<br />
morto. Mataram-No por causa<br />
do sucesso desse primeiro ano. E nas<br />
multidões que O adoravam, Ele via o<br />
êxito como o primeiro passo do degrau<br />
o qual ia levá-Lo ao alto do patíbulo.<br />
Os Apóstolos e as outras pessoas<br />
não sabiam. Ele sim.<br />
Mais ainda. O Redentor via esse,<br />
aquele, aquele outro na plenitu-<br />
Nosso Senhor atado<br />
Sevilha, Espanha<br />
9
Reflexões teológicas<br />
de momentânea da vocação, da alegria,<br />
e cuja beleza de alma O encantava.<br />
Entretanto, Ele sabia que um deles<br />
ia apedrejá-Lo, um outro havia de<br />
abandoná-Lo, outro ainda caluniá-<br />
-Lo, dar risada ao denegri-Lo, insinuando<br />
ser verdadeira aquela calúnia.<br />
Nosso Senhor tinha tudo isso presente<br />
e, portanto, carregava diante de Si<br />
a enormidade desses tormentos.<br />
Tenho a impressão de que as calúnias<br />
só começaram a se espalhar depois<br />
de um certo trabalho do sinédrio junto<br />
aos que O seguiam, entibiando alguns<br />
e pondo outros contra Ele, de maneira<br />
àquela multidão se apresentar frouxa<br />
e desunida. E Jesus viu o crepúsculo<br />
da frouxidão baixando, à medida do aumento<br />
do número dos milagres.<br />
A ressurreição de Lázaro<br />
No segundo ano, quando Nosso Senhor<br />
tinha acumulado o castelo das<br />
suas maravilhas, Ele entra numa espécie<br />
de duelo com a frouxidão, porque<br />
a multidão procura escapar das suas<br />
Photo. R.M.N. / R.-G. Ojéda (CC3.0)<br />
Flávio Lourenço<br />
Multiplicação dos pães e peixes - Museu Condé, Chantilly, França<br />
Ressurreição de Lázaro - Museus<br />
Reais de Belas Artes, Bruxelas<br />
mãos. Ele busca retê-la fazendo maravilhas<br />
maiores. E fica colocado diante<br />
dessa situação humanamente insolúvel:<br />
quanto mais Ele faz maravilhas,<br />
tanto mais a multidão vai se tornando<br />
insensível e indiferente.<br />
Um indivíduo poderia comentar:<br />
“Ele ressuscitou um morto; essa foi<br />
a última coisa que fez?” E riria como<br />
quem diz: “Eu estou farto disso, desejo<br />
voltar para minha vidinha; maravilhas<br />
afastai-vos de mim, quero a banalidade!”<br />
E quando Jesus levou ao auge<br />
seus milagres, teve conhecimento<br />
da sentença de morte. Na ressurreição<br />
de Lázaro, Ele soube que resolveram<br />
matá-Lo. Ele conhecia tudo e, quando<br />
foi para a casa de Lázaro festejar a ressurreição,<br />
de fato comemorava a morte,<br />
porque a ressurreição de Lázaro foi<br />
o começo da morte d’Ele.<br />
Não sei se notam quanto tudo isso<br />
é pungente do ponto de vista da<br />
tristeza. Para usar uma expressão errada,<br />
mas que significa um pouco o<br />
que eu quero dizer, envenenava, metia<br />
o sabor amargo nas mais legítimas<br />
e esplendorosas alegrias.<br />
Imaginem o ambiente da casa de<br />
Lázaro, na qual Ele gostava de estar,<br />
logo após sua ressurreição. Os Apóstolos,<br />
a família de Lázaro, pessoas do<br />
lugar que vinham, O adoravam. Nosso<br />
Senhor sabia que a maior parte daquelas<br />
coisas todas ia dar em nada. E<br />
Ele, para o bem daquelas almas, comia<br />
o festim e Se alegrava. Entretanto,<br />
no íntimo do seu Coração, Ele<br />
10
chorava porque compreendia o que<br />
estava acontecendo. Só esse episódio<br />
daria um drama do outro mundo. O<br />
drama de tragédia grega não seria nada<br />
em comparação com isso.<br />
Ele devia sentir também a reação<br />
dos que lá estavam: já não era a mesma<br />
de outrora, com exceção de Nossa<br />
Senhora e de algumas santas mulheres.<br />
Os acontecimentos vão se sucedendo<br />
e Jesus alcança um triunfo, contudo,<br />
percebe o bafo desse triunfo. Quer dizer,<br />
o povinho queria aclamá-Lo, porém<br />
não em termos de romper com os<br />
fariseus, esperava que estes O entronizassem.<br />
Se os fariseus não o fizessem, o<br />
povinho seguiria a eles. E fizeram para<br />
Nosso Senhor aquela comemoração –<br />
a festa da ingenuidade, não do inocente,<br />
ingenuidade do mole, tão diferente<br />
da do inocente. E Ele, passando no<br />
meio daqueles hosanas, percebia perfeitamente<br />
o que vinha depois.<br />
Losango da dor<br />
Em todos esses passos, é preciso dizer<br />
desde já, impressiona notar Nosso<br />
Senhor, por desígnio do Padre Eterno,<br />
sofrendo aquela dor e não consentindo<br />
apenas que o sofrimento caísse sobre<br />
Si, mas indo de encontro a ele. Jesus<br />
Se afundava no vértice baixo, mais<br />
terrível, do losango da dor.<br />
A vida humana pode ser comparada<br />
a um losango com duas pontas, a de<br />
baixo a dor, a do alto o gáudio. Nosso<br />
Senhor desceu ao mais fundo do losango<br />
da dor, em cada um desses casos<br />
concretos, com uma probidade,<br />
uma integridade e uma obediência<br />
que lembram o Ecce ancilla Domini,<br />
fiat mihi secundum verbum tuum (Lc 1,<br />
38) 1 . Ele foi até o fim, de cabeça alta,<br />
na atitude que nós O vemos no Santo<br />
Sudário. Assim Jesus caminhou.<br />
Isso se torna mais pungente na<br />
Quinta-Feira Santa, em que se festeja<br />
o ápice da obra d’Ele. O Divino<br />
Salvador institui a Missa, a Eucaristia,<br />
o Sacramento da Penitência, e<br />
com isso o edifício da Igreja fica, em<br />
certo sentido da palavra, concluído.<br />
Entrada em Jerusalém - Museu Hermitage, São Petersburgo<br />
Hermitage Torrent (CC3.0)<br />
11
Reflexões teológicas<br />
Flávio Lourenço<br />
Jesus dá a Comunhão aos<br />
Apóstolos - Museu Grão<br />
Vasco, Viseu, Portugal<br />
O povo judaico estava<br />
todo em festa, comemorando<br />
a passagem<br />
do Mar Vermelho,<br />
a Páscoa. E Nosso<br />
Senhor, nesse ambiente<br />
de gáudio geral,<br />
via com certeza os Apóstolos<br />
participarem daquela<br />
alegria. Ele faz a festa e completa<br />
a sua obra sem desfalecer. Podemos<br />
conjecturar o misto de sua<br />
alegria e tristeza, pois sabia que dali<br />
a algumas horas a grande tragédia<br />
deveria começar.<br />
Imaginemos a tristeza do Redentor<br />
lavando os pés de Judas, São Pedro,<br />
São João, pensando no que fariam<br />
em seguida. Depois distribuindo<br />
a Eucaristia e passando a ter Presença<br />
Real dentro de cada um deles,<br />
tão pífios, tão abaixo da tarefa... São<br />
Pedro, o Príncipe da Igreja d’Ele,<br />
haveria de fazer o que fez!<br />
Gabriel K.<br />
Inflexibilidades do Pai Celeste<br />
Terminado o festim, todas as dores<br />
grandes e pequenas confluíram.<br />
Começou a agonia terrível, na qual<br />
Ele teve a representação de tudo o<br />
que sucederia e, na sua inteligência,<br />
na sua Alma santíssima, o quis<br />
com uma tal integridade que sofreu<br />
a desproporção entre a dor que vinha<br />
e as forças que possuía. Ele sentiu-Se<br />
esmagado. Apesar disso, fez<br />
um ato de submissão. Ele suou Sangue<br />
e pediu ao Padre Eterno: “Faça-<br />
-se a vossa vontade e não a minha!”<br />
(Cf. Lc 22, 42).<br />
Nosso Senhor possuía uma força<br />
divina que não tem nada de comum<br />
com a fraqueza, porém teve a aparência<br />
da fraqueza. Ele disse “Faça-<br />
-se a vossa vontade e não a minha”,<br />
como quem intuía ou conhecia que<br />
Jesus lava os pés dos<br />
Apóstolos - Capella degli<br />
Scrovegni, Pádua<br />
a vontade do Pai Celeste tinha inflexibilidades;<br />
Jesus estava esbarrando<br />
numa delas, na qual Ele Se esmagaria.<br />
Vem um Anjo e Lhe dá uma força<br />
que não era um consolo para sofrer<br />
menos, mas uma capacidade para<br />
padecer mais. Há, então, o abandono<br />
dos Apóstolos, etc.<br />
Em cada passo, vemos o horror<br />
alcançando o inimaginável. Ele entra<br />
nesse horror, reveste-Se dele e<br />
bebe o cálice da dor. E isso a cada<br />
minuto. Por exemplo, tiram-Lhe a<br />
túnica, toda empapada de Sangue já<br />
seco em alguns lugares e, portanto,<br />
colada às feridas. Na hora de puxá-<br />
-la, uma dilaceração sem nome! Es-<br />
tou certo de que um homem, sem<br />
as forças que Ele teve, ficaria louco,<br />
morreria de dor.<br />
Essa túnica presumivelmente foi<br />
jogada no chão e o Sangue precioso<br />
começou a secar ali.<br />
Imaginem se tivéssemos uma camisa<br />
ensanguentada com o nosso<br />
próprio sangue e este esfriasse, coagulasse,<br />
e depois precisássemos vesti-la<br />
sobre a carne viva. É verdade<br />
que não há nada na Terra comparável<br />
ao Sangue d’Ele, contudo se<br />
compreende o que quero ponderar.<br />
Deram pontapés, cuspiram, pisaram<br />
na túnica. Deve ter sucedido o<br />
inimaginável. Ora, dentro do conjunto<br />
de tormentos pelos quais Ele<br />
passou, isso é uma bagatela.<br />
Em cada um desses passos<br />
aconteceu o pior previsível.<br />
Ele os tomou por inteiro<br />
sem um minuto de adiamento.<br />
Em nenhum<br />
instante da Paixão o<br />
Redentor pede para<br />
terem pena d’Ele e<br />
adiarem um pouco para<br />
poder respirar.<br />
Oração no Horto - Museu de<br />
Belas Artes, Córdoba, Espanha<br />
Flávio Lourenço<br />
12
Teodoro Reis<br />
Jesus é condenado à morte<br />
Jesus leva a Cruz às costas<br />
Jesus cai pela primeira vez<br />
Encontro de Jesus com sua Mãe<br />
Jesus ajudado pelo<br />
Cireneu a levar a Cruz<br />
A Verônica enxuga o<br />
rosto de Jesus<br />
Jesus cai pela segunda vez<br />
Jesus consola as filhas<br />
de Jerusalém<br />
Até o Padre Eterno<br />
e o Espírito Santo<br />
O abandonaram<br />
Quando Ele cai debaixo da Cruz é<br />
porque as forças não aguentavam. Logo<br />
que pôde levantou-a e continuou,<br />
sofrendo tudo com serenidade única,<br />
como se não estivesse padecendo nada.<br />
Acredito que Pilatos, de dentro das banhas,<br />
do conforto dele, tenha tido inveja<br />
do bem-estar de Nosso Senhor.<br />
Nosso Senhor é obrigado a esta<br />
ação atroz de caminhar carregando a<br />
sua própria Cruz para o lugar onde<br />
o tormento chegaria ao auge. Quer<br />
dizer, cada passo dado Ele não era<br />
para a própria libertação. Porque se<br />
Lhe dissessem “Se subires esse morro,<br />
no alto estarás liberto”, teria um<br />
alívio. Ao contrário, os algozes como<br />
que afirmavam “Sobes esse morro<br />
e quando chegares ao cume terás<br />
o pior. Agora anda!” Ele sobe e em<br />
seguida começa a crucifixão.<br />
Tem-se a impressão de isso não<br />
ser nada em comparação com o que<br />
veio depois, ou seja, todo o demorado<br />
processo mortal da crucifixão. Ele<br />
podia morrer de uma apoplexia, de<br />
um momento para outro. Não. Jesus<br />
não bebeu o cálice da morte de um<br />
trago só, mas gotinha por gotinha,<br />
tomando-lhe todo o sabor. Ele sentiu-Se<br />
morrer aos milímetros, sendo<br />
cada um deles uma pequena morte.<br />
Nosso Senhor transpôs cada milímetro<br />
até o fim, e quis que o mundo<br />
soubesse não ter tido Ele consolação<br />
nenhuma até no gemido final. O Padre<br />
Eterno e o Divino Espírito Santo<br />
O abandonaram.<br />
A Humanidade santíssima de Jesus<br />
ficou abandonada. A Divindade<br />
– unida à Humanidade na união<br />
hipostática – tornou-se fechada para<br />
Ele. E o que no Redentor havia<br />
de natureza humana permaneceu<br />
na noite mais completa e escura,<br />
a ponto de arrancar aquele brado<br />
indicativo de duas coisas lindas:<br />
a pungência tremenda da dor e, de<br />
outro lado, tudo quanto de força<br />
restava ainda naquele Homem. “Iesus<br />
autem iterum clamans voce magna...”<br />
– “Jesus clamou de novo em<br />
alta voz...” E depois: “...emisit spiritum.”<br />
2 (Mt 27, 50).<br />
É o auge da dor previsto e aceito<br />
de longe por uma preparação da Alma<br />
para isso.<br />
Ajuda da graça<br />
Para fazer uma meditação sobre<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo é preciso<br />
tomar em consideração tudo isso.<br />
Como pode falar em Contra-Revolução<br />
quem não tem a alma bem<br />
ajustada nesse ponto?<br />
Concretamente, consiste em compreender<br />
algo paradoxal: essa vida<br />
é a mais terrível que se possa imaginar...<br />
exceto a do pecador. Porque é<br />
duríssima, mas a pessoa tem forças,<br />
tranquilidade, estabilidade, limpezas<br />
13
Reflexões teológicas<br />
de alma que já são nesta<br />
Terra pelo menos algo<br />
do cêntuplo do que ela irá<br />
receber.<br />
Como Pilatos deve ter<br />
invejado a felicidade de<br />
Nosso Senhor! O pecador<br />
inveja a pessoa que vive<br />
assim, e é injusto porque<br />
está pronto a caluniá-<br />
-la. Essa pessoa é o seu<br />
remorso em pé diante dele,<br />
e ele calunia seu próprio<br />
remorso para ter sossego.<br />
Sabe porém ser um<br />
desgraçado, e a felicidade<br />
existente nesta Terra é<br />
aquela.<br />
A dor de encontro à<br />
qual a pessoa caminha com<br />
passo firme de algum modo<br />
diminui. Quando nos<br />
esquivamos, ela vai crescendo<br />
à medida em que<br />
fugimos. Com isso vamos<br />
minguando, e na hora de<br />
ela nos estraçalhar não somos<br />
nada.<br />
Quanto mais o indivíduo<br />
previr de longe a dor,<br />
tanto menos ela lhe doerá.<br />
E a verdadeira ascese<br />
consiste na longa previsão,<br />
colocando-se nas<br />
mãos da Providência. Não<br />
tem outro remédio. E,<br />
paradoxalmente falando,<br />
nós temos aí o nosso cálice<br />
do Horto das Oliveiras,<br />
quer dizer, o líquido<br />
que nos dá força. Isso supõe não dizer<br />
“Na hora do drama serei um herói”,<br />
mas “na hora do draminha serei<br />
um herói”. Nas pequenas coisas<br />
da vida cotidiana deverei ser um herói<br />
também.<br />
Moisés no alto do<br />
Monte Nebo<br />
Teodoro Reis<br />
Isto não tem a seguinte conclusão:<br />
cada vez que se apresenta a perspec-<br />
Jesus cai pela terceira vez<br />
Jesus pregado na Cruz<br />
Jesus descido da Cruz<br />
Jesus despojado de suas vestes<br />
Jesus morre na Cruz<br />
Jesus posto no Sepulcro<br />
tiva de uma dor para nós, não devemos<br />
pedir o afastamento dela. A oração<br />
pode distanciar sofrimentos de<br />
nós. Assim como a Providência não<br />
só permite, mas quer – e a doutrina<br />
da Igreja estimula – que diminuamos<br />
as dores das almas no Purgatório,<br />
também, como muitas pessoas<br />
recebem uma parte desse tormento<br />
nesta Terra, é legítimo rogar que seja<br />
livrado isso delas. E muitas vezes<br />
a Providência de modo misericordioso<br />
as liberta. De maneira<br />
que não estou pregando<br />
a atitude do Múcio Scevola<br />
3 com a mão em cima<br />
do braseiro. A nota católica<br />
consiste em tudo isso,<br />
porém com os olhos postos<br />
nas misteriosas inflexibilidades<br />
de Deus.<br />
Recentemente eu estava<br />
falando a respeito do<br />
modo de Deus agir com<br />
Moisés. O Profeta levou<br />
o povo eleito até às proximidades<br />
da Terra Prometida,<br />
e o Criador lhe disse<br />
que ali morreria em castigo<br />
de uma infidelidade.<br />
Moisés rogou a Deus com<br />
insistência para poder entrar<br />
na Terra Prometida,<br />
a fim de vê-la. O Criador<br />
não achou o pedido estúrdio,<br />
julgou razoável e até<br />
o levou ao cimo do Monte<br />
Nebo, de onde pôde contemplar<br />
toda a Terra Prometida.<br />
Moisés havia insistido<br />
no pedido, mas Deus<br />
lhe disse: “Basta!” São<br />
das tais inflexibilidades,<br />
as quais são adoráveis. De<br />
um modo ou doutro, a alma<br />
sente isso e deve estar<br />
pronta para todos os<br />
élans de esperança e de<br />
confiança, e também de<br />
resignação.<br />
Morre Moisés, o homem<br />
fiel entre todos, a bem dizer<br />
condenado à morte por Deus. É uma<br />
coisa espantosa! O Criador o amava<br />
tanto que escondeu o seu corpo; ninguém<br />
sabe onde se encontra. O olhar<br />
de Deus pousa sobre esse corpo até<br />
a ressurreição dos mortos. Moisés<br />
esteve presente na Transfiguração,<br />
contudo aguentou milênios de Limbo.<br />
Um decreto inexorável sobre ele<br />
se abateu. E Moisés adorou esse decreto<br />
divino.<br />
14
Papel da confiança<br />
Assim também há no que estou dizendo<br />
um claro-obscuro. Primeiro,<br />
a ajuda de Nossa Senhora para nós<br />
conseguirmos ter força. Não acredito<br />
que algum homem, sem o auxílio da<br />
Santíssima Virgem, possa fazer isso.<br />
De outro lado, as exorabilidades<br />
adoráveis de Deus, ainda mais quando<br />
se suplica como intermediária a<br />
Mãe d’Ele, a gloriosa intercessio Beatæ<br />
Mariæ Virginis. E se podem conseguir<br />
coisas espantosas, porém sempre<br />
fica este ponto: uma inexorabilidade<br />
poderá baixar sobre nós. Nesta<br />
hora devemos saber fazer como<br />
Moisés: ele morreu sereno nas mãos<br />
de Deus.<br />
Se quisermos meditar com seriedade<br />
a Paixão, encontramos isso. E,<br />
quanto a Nossa Senhora, não se pode<br />
imaginar que a uma mera criatura<br />
seja pedido tanto quanto foi rogado<br />
a Ela.<br />
Imaginem o cuidado e carinho da<br />
Virgem Maria a Jesus enquanto menino,<br />
depois enquanto mocinho, moço,<br />
com que afeto Ela bordou a túnica<br />
inconsútil! E aquele Corpo o qual<br />
Nossa Senhora havia amado tanto,<br />
aquela Alma que Ela procurara encher<br />
de consolações – e sabia ter enchido<br />
– se encontrava naquele mar<br />
de tormentos. Ela estava conjugada<br />
com o inexorável de Deus e quis que<br />
Jesus morresse.<br />
Não temos ideia do que isso representa.<br />
Se devêssemos sentir em nós<br />
uma fagulha, morreríamos de dor.<br />
O papel da confiança é muito bonito<br />
nesse ponto. Ela é a virtude pela<br />
qual de modo misterioso discernimos<br />
o que não é o inexorável e conseguimos<br />
fazê-lo recuar em algo. A<br />
confiança é tão poderosa, creio que<br />
um pouco do próprio inexorável às<br />
vezes recua.<br />
É uma coisa curiosa, mas confiamos<br />
que não virão sobre nós as dores<br />
as quais sentimos não estarem normalmente<br />
em nosso caminho. Cada<br />
um de nós tem uma noção confusa<br />
de qual é o caminho das nossas<br />
dores. Também sentimos quando esbarramos<br />
no próprio inexorável. E aí<br />
a confiança muda de nome e se chama<br />
resignação. Porém, o mais terrível<br />
é quando vem a prova axiológica<br />
4 , porque a pessoa perde a noção<br />
do exorável e do inexorável.<br />
Essa é uma meditação sincera sobre<br />
a Semana Santa. Também é preciso<br />
dizer: por trás de tudo isso estão<br />
as glórias e as esperanças da Ressurreição.<br />
Quantas coisas na nossa<br />
vida foram à maneira de ressurreição!<br />
E virá, sobretudo, a ressurreição<br />
final de todos nós. Isto não é,<br />
portanto, um horizonte esmagador.<br />
As palavras de Nosso Senhor<br />
no alto da Cruz: “Meu Deus, meu<br />
Deus, por que Me abandonastes?”<br />
(Mt 27, 46) são o início de um Salmo<br />
profetizando a Ressurreição e a<br />
vitória.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de<br />
31/3/1983)<br />
1) Do latim: Eis a escrava do Senhor, faça-se<br />
em mim segundo a tua palavra.<br />
2) Do latm: entregou a alma.<br />
3) Herói da Antiguidade romana que,<br />
por ocasião de uma guerra ocorrida<br />
em 508 a.C., para dar mostra de sua<br />
coragem, queimou sua mão direita<br />
diante de seus inimigos.<br />
4) Axiologia provém do latim axis, is:<br />
eixo. Assim, na concepção de <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong>, a palavra “axiologia” e os seus<br />
derivados fazem sempre referência ao<br />
“eixo” que deve nortear a vida da pessoa,<br />
isto é, o fim para o qual o homem<br />
é criado e sua vocação específica, em<br />
torno do que devem girar todas as suas<br />
ideias, volições e atividades.<br />
Nossa Senhora das Angústias - Igreja de Santo<br />
Agostinho, Córdoba, Espanha<br />
Flávio Lourenço<br />
15
De Maria nunquam satis<br />
João Ligório<br />
Poder maravilhoso de se<br />
comunicar com as pessoas<br />
O quadro de Nossa Senhora do Bom Conselho de Genazzano<br />
tem um poder maravilhoso de fazer com que as pessoas entrem<br />
em comunicação com a Mãe de Deus. Ele muda de colorido e<br />
Maria Santíssima ora parece alegre, satisfeita e risonha, ora<br />
apresenta um aspecto de tristeza. Sem que se possa dizer que<br />
haja um movimento nos traços do afresco, ele exprime por<br />
esta forma a inúmeros fiéis aquilo que a Virgem deseja.<br />
No dia 26 de abril, comemora-<br />
-se a festa de Nossa Senhora<br />
do Bom Conselho de Genazzano,<br />
instituída a propósito do célebre<br />
afresco da Mãe de Deus que se<br />
venera na igreja dos agostinianos, na<br />
cidade de Genazzano, Itália.<br />
Scanderbeg, um guerreiro<br />
valorosíssimo<br />
As informações que darei foram<br />
tiradas de um livro sobre Nossa Senhora<br />
do Bom Conselho. A razão da<br />
compra desta obra, de minha parte,<br />
foi que em pequeno eu rezava muito<br />
diante de um quadro dessa invocação,<br />
o qual se encontrava no altar-mor<br />
da antiga capela do Colégio<br />
São Luís e tem uma história milagrosa,<br />
cujos pormenores não me lembro,<br />
mas que está ligada ao martí-<br />
16
Gabriel K.<br />
Gabriel K.<br />
Aparição do afresco na cidade de Genazzano. À esquerda, soldados<br />
acompanham a saída do quadro de Scútari. Pinturas de Prospero Piatti.<br />
Dave Proffer (CC3.0)<br />
rio dos quarenta jesuítas que vieram<br />
evangelizar o Brasil.<br />
Vendo esse livro, comprei-o e<br />
confesso que me encheu de admiração.<br />
De fato, tudo quanto ali<br />
diz respeito à história do<br />
afresco e à devoção a Mãe do Bom<br />
Conselho é uma verdadeira maravilha!<br />
Em duas palavras a história desse<br />
quadro é a seguinte: a Albânia, no<br />
século XV, era um Estado cristão capitaneado<br />
por um general chamado<br />
Scanderbeg, um guerreiro valorosíssimo<br />
que lutava contra as hordas turcas<br />
as quais estavam tentando avançar<br />
pela Europa adentro.<br />
Scanderbeg era um homem bastante<br />
religioso e que se colocava<br />
sob a proteção de Nossa Senhora do<br />
Bom Conselho, da qual havia na Albânia<br />
um santuário nacional muito<br />
frequentado. Enquanto Scanderbeg<br />
viveu, a luta contra os turcos foi vitoriosa.<br />
Ele reunia em si todo o valor<br />
e toda a combatividade da nação<br />
albanesa. Era um grandíssimo homem,<br />
mas o povo albanês estava em<br />
decadência e por causa disto provavelmente<br />
a resistência cessaria quando<br />
ele morresse. Os últimos lances<br />
de sua vida foram extraordinários.<br />
Numa ocasião ele se encontrava deitado,<br />
agonizando, quando veio a notícia<br />
de que os turcos estavam chegando<br />
às portas da cidade. Quando<br />
ele ouviu isto, fez uma oração a Nossa<br />
Senhora e pediu-Lhe forças para<br />
combater. Levantou-se do leito e<br />
foi de encontro aos turcos. Ele tinha<br />
dois auxiliares que o ajudavam porque<br />
quase não aguentava mais dirigir<br />
a batalha. Depois, voltou para<br />
a cama e faleceu. Assim morre um<br />
verdadeiro herói católico, um devoto<br />
de Nossa Senhora na sua acepção<br />
mais exata e mais adamantina. É<br />
uma verdadeira beleza!<br />
As águas do mar se<br />
tornaram sólidas<br />
Mas dois amigos albaneses, que<br />
eram filhos da luz, notando o declínio<br />
da Albânia e prevendo que o país<br />
cairia quando morresse Scanderbeg,<br />
resolveram ir ao Santuário de Nossa<br />
Senhora do Bom Conselho a fim<br />
de pedir luzes a respeito do que deveriam<br />
fazer: ficar na Albânia realizando<br />
uma certa resistência e algum<br />
apostolado debaixo das hordas turcas,<br />
ou ir para a Itália. Tanto mais que<br />
um número muito grande de albaneses<br />
já estava fugindo para lá, e parecia-lhes<br />
mais indicado emigrarem.<br />
Chegando ao Santuário, rezaram e<br />
ficaram de voltar no dia seguinte para<br />
ter uma solução do caso. Qual não<br />
foi a surpresa deles quando verificaram<br />
que o quadro se destacara da parede,<br />
deu uma espécie de giro dentro<br />
da igreja, saiu pela porta e foi andando<br />
no ar lentamente. Eles acompanharam<br />
o afresco que, quando chegou<br />
ao mar, continuou a andar aci-<br />
Scanderbeg - Parque<br />
de Pristina, Kosovo<br />
17
De Maria nunquam satis<br />
Gabriel K. / Rodrigo C. B.<br />
Fachada do Santuário da Virgem Mãe do Bom Conselho, Genazzano<br />
ma das águas. Os dois amigos, então,<br />
prosseguiram sua caminhada sobre o<br />
mar, que se tornou sólido debaixo dos<br />
seus pés, sempre acompanhando o<br />
quadro. Assim, chegaram à Itália.<br />
É uma grande caminhada, mas eu<br />
acho que não é o caso de interpor aqui<br />
perguntas e críticas, porque Nossa Senhora<br />
tem o poder de fazer um quadro<br />
andar pelos ares e de dar consistência<br />
às águas. E pode conceder a<br />
dois homens a possibilidade física de<br />
atravessar uma grande extensão, caminhando<br />
sobre as águas solidificadas.<br />
Na Itália, o quadro sumiu misteriosamente<br />
da vista deles. Então, empreenderam<br />
– isso é muito medieval<br />
ainda – andar por todo o país a fim de<br />
ver onde tinha ido parar, porque não<br />
Beata Petruccia<br />
queriam se separar dele. Assim como<br />
a estrela desapareceu da vista dos<br />
Reis Magos quando chegaram a Jerusalém,<br />
assim também o quadro sumiu<br />
para esses dois albaneses.<br />
Uma nuvem brilhante desceu<br />
sobre o terreno de Petruccia<br />
Havia em Genazzano – uma pequena<br />
cidade da Itália, que era feudo dos<br />
Príncipes de Colonna, uma grande família<br />
nobre romana – uma mulher anciã<br />
chamada Petruccia que dizia ter<br />
vocação de construir uma igreja. Era<br />
uma senhora isolada, meio mendiga,<br />
um pouco maníaca e todo mundo<br />
debicava dela. Em certo momento,<br />
Petruccia conseguiu que lhe dessem<br />
um terreno para edificar<br />
uma igreja em louvor<br />
de Nossa Senhora.<br />
Mais tarde, obteve<br />
um pouco de material<br />
da construção<br />
e, assim, levantou-<br />
-se algo a maneira<br />
de um muro numa<br />
parte do terreno.<br />
Depois os trabalhos<br />
pararam porque ela<br />
não recebeu mais auxílios.<br />
E toda a molecada,<br />
quando encontrava a Petruccia<br />
na rua, dizia para ela:<br />
— Ei, Petruccia, cadê a igreja?<br />
Quando é que será construída?<br />
Não é preciso ter muita imaginação<br />
para dar o alinhamento geral da<br />
cena.<br />
Havia em Genazzano uma feira<br />
para onde afluía grande parte da população.<br />
Certo dia em que Petruccia<br />
estava no meio do povo, de repente<br />
se fez ouvir um estrondo no céu<br />
e apareceu uma nuvem brilhante,<br />
da qual partiam harmonias que desciam<br />
sobre a cidade. A nuvem baixou<br />
sobre o terreno de Petruccia e,<br />
quando desapareceu, encontrou-se<br />
o quadro – que o povo não sabia ser<br />
de Nossa Senhora do Bom Conselho<br />
– encostado junto a uma das paredes,<br />
sem prego, nem apoio, nem suporte,<br />
o que é uma coisa inexplicável.<br />
Foi o grande dia da Petruccia.<br />
Mas ninguém sabia que invocação<br />
era aquela. Nunca se tinha ouvido<br />
falar dela. Era uma manifestação<br />
angélica.<br />
Um belo dia, os dois albaneses,<br />
que estavam à procura do quadro<br />
de Nossa Senhora do Bom Conselho,<br />
tendo ouvido falar, em Roma,<br />
sobre o que havia ocorrido em Genazzano,<br />
desconfiaram naturalmente<br />
que aquele era o quadro de Nossa<br />
Senhora do Bom Conselho.<br />
Foram para lá, se prostraram<br />
diante do afresco, rezaram. Comu-<br />
18
nicaram ao povo que se tratava do<br />
quadro de Nossa Senhora do Bom<br />
Conselho, da Albânia, que eles tinham<br />
visto partir para não se deixar<br />
subjugar pelos turcos.<br />
O quadro se mantém<br />
junto à parede de um<br />
modo miraculoso<br />
A igreja se tornou um lugar das<br />
múltiplas romarias partidas dos vários<br />
Estados italianos, antes da abominável<br />
unificação da Itália. A romaria<br />
andava em fila, homens separados<br />
das mulheres, havia proibição de estar<br />
prestando atenção nas coisas do<br />
caminho, devia-se o tempo inteiro rezando<br />
o Rosário, cantando ladainhas<br />
em louvor de Nossa Senhora, parando<br />
nos lugares ermos – onde não houvesse<br />
possibilidade de escândalo – para<br />
comer, e continuando a caminhada<br />
até chegar a Genazzano.<br />
Mesmo nos dias de enchentes, em<br />
que pessoas acabam dormindo até<br />
nas ruas, o quadro de Nossa Senhora<br />
continua junto à parede, mas não<br />
encostado nela, de maneira que ele<br />
se mantém de um modo miraculoso.<br />
Há, então, chuvas de graças que o<br />
afresco espalha para todas<br />
as pessoas.<br />
Essas graças são muitas<br />
vezes de curas, porém<br />
o forte não é propriamente<br />
a graça de cura,<br />
mas um poder maravilhoso<br />
de, sem praticar<br />
um milagre evidente, se<br />
comunicar com um grande<br />
número de pessoas<br />
que vão consultar a Santíssima<br />
Virgem a respeito<br />
de padecimentos espirituais,<br />
dúvidas, problemas.<br />
A meu ver, a ideia<br />
relacionada com o afresco<br />
é a seguinte:<br />
O quadro muda de colorido,<br />
ora toma uma cor<br />
brilhante e Nossa Senhora<br />
parece alegre, satisfeita e risonha,<br />
ora adquire cores que Lhe dão<br />
um aspecto de tristeza. E sem que se<br />
possa dizer que haja um movimento<br />
nos traços do afresco, entretanto<br />
é verdade que ele exprime por esta<br />
forma a inúmeros fiéis aquilo que<br />
Ela quer, e muitos acabam entendendo<br />
isto e passam a ter com a Mãe<br />
de Deus uma comunicação, resolvendo<br />
problemas importantíssimos.<br />
Mudanças de fisionomia<br />
de Nossa Senhora<br />
O quadro é veneradíssimo, e o livro<br />
apresenta atestados importantes<br />
de pessoas que reconheceram mudanças<br />
da fisionomia de Nossa Senhora.<br />
Um dos atestados mais interessantes<br />
é de um pintor de certa<br />
celebridade de Gênova, que recebeu<br />
de uma família genovesa, provavelmente<br />
rica, a incumbência de ir<br />
a Genazzano e fazer uma cópia do<br />
afresco para ser colocada numa igreja<br />
de Gênova. Como era um homem<br />
de projeção, consentiram que trabalhasse<br />
no próprio altar, perto do<br />
quadro, para poder ver bem, e ele<br />
começou, então, a pintar a imagem.<br />
O livro transcreve um atestado dele<br />
declarando que a figura de Nossa<br />
Senhora tantas vezes modificou a<br />
expressão fisionômica, enquanto ele<br />
pintava, que lhe foi impossível retratá-la.<br />
Ela não modifica tanto, mas é<br />
um prodígio que Maria Santíssima<br />
quis fazer para que este homem atestasse<br />
o maravilhoso do fato, e até hoje<br />
se dá isto.<br />
É um prodígio contemporâneo<br />
que não pode ser apresentado como<br />
um milagre, mas demonstra ser a Fé<br />
Católica verdadeira, e deve ser visto<br />
como uma graça muito preciosa para<br />
todas as pessoas que querem elucidar<br />
seus problemas.<br />
O mais interessante é que vários<br />
outros quadros de Nossa Senhora do<br />
Bom Conselho, os quais afinal se copiaram<br />
e foram levados para diversos<br />
pontos da Itália, têm propriedades<br />
análogas e há peregrinações porque a<br />
Santíssima Virgem prodigaliza os seus<br />
conselhos às pessoas que vão ali rezar.<br />
Temos, assim, a indicação de um<br />
elemento para nos afervorarmos na<br />
piedade a Nossa Senhora. v<br />
(Extraído de conferência de<br />
25/4/1967)<br />
Interior do Santuário. Ao fundo, capela onde se encontra o afresco milagroso.<br />
Gabriel K.<br />
19
Museo de Bellas Artes de Sevilla (CC3.0)<br />
C<br />
alendário<br />
1. São Hugo de Grenoble, bispo<br />
(†1132). Sagrado Bispo por Gregório<br />
VII, foi enviado para Grenoble para<br />
colocar fim nas diversas desordens<br />
dessa diocese. São Bruno foi seu confessor<br />
e conselheiro.<br />
Santa Maria Egipcíaca, penitente<br />
(†s. V).<br />
2. São Francisco de Paula, confessor<br />
(†1507). Fundador da Ordem dos<br />
Mínimos, na Calábria, Itália. Foi célebre<br />
pelos milagres que praticou e pelos<br />
exemplos de grande austeridade<br />
de vida, nascida de uma profunda humildade.<br />
Santa Teodora, virgem e mártir<br />
(†307).<br />
3. V Domingo da Quaresma<br />
São João, bispo (†432). Bispo de<br />
Nápoles, Itália, São João morreu na<br />
Noite Santa da Páscoa, enquanto celebrava<br />
os sagrados mistérios, e foi sepultado<br />
na Solenidade da Ressurreição<br />
do Senhor.<br />
4. Santo Isidoro de Sevilha, Bispo<br />
e Doutor da Igreja (†636).<br />
Beato Francisco Marto, (†1919).<br />
Foi um dos pastores que viu Nossa Se-<br />
dos Santos – ––––––<br />
nhora em Fátima. No início das aparições<br />
não conseguia ouvir o que a Virgem<br />
lhes dizia, porém, após dedicar-<br />
-se com piedade à oração, pôde ouvi-<br />
-La. Tornou-se um exemplo de menino<br />
imbuído do espírito de sacrifício para<br />
consolar os Corações de Jesus e Maria<br />
e para a salvação dos pecadores.<br />
5. São Vicente Ferrer, presbítero<br />
(†1419). Da Ordem dos Dominicanos,<br />
trabalhou com eficácia para pôr<br />
fim ao Cisma do Ocidente.<br />
São Geraldo, abade (†1095).<br />
6. Beato Notkero, o Gago, monge<br />
(†912).<br />
São Miguel Rua, presbítero<br />
(†1910). Sucessor de São João Bosco<br />
na direção da Sociedade Salesiana.<br />
7. São João Batista de la Salle,<br />
presbítero (†1719).<br />
8. São Dionísio de Corinto, bispo<br />
(†180). Dotado de admirável conhecimento<br />
da Palavra de Deus, instruiu<br />
pela pregação não só os fiéis de sua<br />
diocese em Corinto, na Grécia, mas,<br />
por meio de cartas, ensinou também<br />
os Bispos de outras dioceses.<br />
São Hugo de Grenoble apresentando a Cartuxa de Nuestra<br />
Señora de las Cuevas - Museu de Belas Artes de Sevilha<br />
Beato Notkero<br />
9. Beato Tomás de Tolentino, mártir<br />
(†1321).<br />
São Máximo, bispo (†282). Como<br />
presbítero em Alexandria, Egito,<br />
acompanhou no exílio e na confissão<br />
da Fé São Dionísio, a quem sucedeu<br />
na sede episcopal.<br />
10. Domingo de Ramos e da Paixão<br />
do Senhor<br />
Beato Antônio Neyrot, mártir<br />
(†1460).<br />
11. São Felipe, bispo (†180).<br />
Santa Gema Galgani, virgem<br />
(†1905). Mística ardorosa pela Cruz<br />
de Nosso Senhor, que teve como privilégio<br />
receber os estigmas da Paixão<br />
e morrer no Sábado Santo, aos 25<br />
anos de idade, em Lucca, Itália.<br />
12. Santa Teresa de Los Andes, virgem<br />
(†1920). Carmelita chilena que<br />
ofereceu a vida a Deus pela conversão<br />
do mundo. Morreu aos 20 anos.<br />
13. São Martinho I, Papa e mártir<br />
(†656).<br />
14. Quinta-Feira da Semana Santa<br />
São Bernardo, abade (†1117). Superior<br />
do mosteiro de Tiron, perto de<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
20
––––––––––––––––––– * Abril * ––––<br />
Flávio Lourenço<br />
Chartres, França, instruiu e conduziu<br />
à perfeição evangélica os numerosos<br />
discípulos que a ele acorriam.<br />
15. Sexta-Feira da Paixão do Senhor<br />
São Damião de Veuster, presbítero<br />
(†1889).<br />
16. Sábado Santo.<br />
Santa Bernadette Soubirous, virgem<br />
(†1879).<br />
17. Domingo de Páscoa da Ressurreição<br />
do Senhor<br />
Beata Clara Gambacorta, religiosa<br />
(†1419).<br />
Santa Maria Luísa de<br />
Jesus Trichet<br />
18. Santa Antusa, virgem (†s. VIII).<br />
Sendo filha do Imperador Constantino<br />
Coprônimo, soube empregar todos<br />
os seus bens para ajudar os pobres, redimir<br />
os escravos, restaurar as igrejas e<br />
construir mosteiros, recebendo do Bispo<br />
São Tarásio o hábito religioso.<br />
Beata Sabina Petrilli, fundadora<br />
(†1923). Fundou na Itália a Congregação<br />
das Irmãs dos Pobres de Santa<br />
Catarina de Siena.<br />
19. São Leão IX, Papa (†1054).<br />
20. Santa Inês de Montepulciano,<br />
virgem (†1317). Com apenas nove<br />
anos, tomou as vestes das virgens consagradas.<br />
Fundou em Montepulciano<br />
um mosteiro dominicano. Sua vida<br />
é repleta de episódios maravilhosos,<br />
sendo abundantes os milagres e as<br />
graças místicas. Faleceu aos 48 anos.<br />
21. Santo Anselmo, bispo e Doutor<br />
da Igreja (†1109).<br />
Santo Apolônio, mártir (†185). Cidadão<br />
romano eminente, foi denunciado<br />
como cristão e fez ante o prefeito<br />
Perennio e o Senado de Roma uma<br />
insigne apologia do Cristianismo. Depois<br />
confirmou com seu sangue o testemunho<br />
da Fé.<br />
22. Santa Oportuna, abadessa<br />
(†c. 770). No território francês, foi célebre<br />
pela sua abstinência e austeridade.<br />
São Leónidas, mártir (†204). Pai de<br />
Orígines. Fui encarcerado e morto na<br />
perseguição de Sétimo Severo.<br />
23. Santo Adalberto de Praga, bispo<br />
e mártir (†997).<br />
São Jorge, mártir (†s. IV).<br />
Santo Eulógio, bispo (†387). Bispo<br />
de Edessa, na Turquia, que, segundo a<br />
tradição, morreu na Sexta-Feira Santa.<br />
24. II Domingo da Páscoa ou da<br />
Divina Misericórdia.<br />
São Fidélis de Sigmaringa, presbítero<br />
e mártir (†1622).<br />
25. São Marcos, Evangelista.<br />
Beato Bonifácio de Valperga, bispo<br />
(†1243). Nasceu em Turim, de família<br />
Beata Sabina Petrilli<br />
nobre. Ingressou na Ordem dos beneditinos,<br />
porém mais tarde passou a fazer<br />
parte dos canônicos regulares de<br />
São Urso, em Aosta. Edificou a todos<br />
com uma exemplar vida cristã.<br />
26. Nossa Senhora do Bom Conselho.<br />
São Cleto, Papa (†88). Segundo sucessor<br />
de São Pedro a presidir a Igreja<br />
Romana.<br />
27. Santa Zita, virgem (†1278).<br />
Distribuía aos pobres o pouco que lhe<br />
sobrava do salário recebido como empregada<br />
doméstica. Sua santidade foi<br />
reconhecida ainda em vida, e confirmada<br />
por grande número de milagres.<br />
É padroeira das empregadas domésticas<br />
e patrona de Lucca, Itália.<br />
28. São Luís Maria Grignion de<br />
Montfort, presbítero (†1716).<br />
Santa Maria Luísa de Jesus Trichet,<br />
religiosa (†1759). Primeira religiosa da<br />
Congregação das Filhas da Sabedoria,<br />
fundada por São Luís Grignion.<br />
29. Santa Catarina de Sena, virgem<br />
e Doutora da Igreja (†1380).<br />
30. São José Benitto Cottolengo,<br />
fundador (†1842). Fundador da Casa<br />
da Divina Providência, na Itália.<br />
São Pio V, Papa (†1572).<br />
Flávio Aliança<br />
21
Hagiografia<br />
Homem<br />
que lutou<br />
GFreihalter (CC3.0)<br />
arduamente<br />
contra a<br />
Revolução<br />
Orador brilhante, São Fidélis de Sigmaringa evangelizou cidades<br />
alemãs e foi enviado para a região dos grisões, na Suíça, a fim de pregar<br />
contra o protestantismo. Alcançou sucessos importantes, o que levou<br />
os hereges a martirizarem-no. Foi um verdadeiro contrarrevolucionário<br />
porque a heresia protestante era a Revolução no seu tempo.<br />
No dia 24 de abril, a Igreja comemora<br />
a festa de São Fidélis<br />
de Sigmaringa. Sua ficha<br />
biográfica apresenta alguns dados tirados<br />
da Vida dos Santos, de Reindenberg,<br />
e da História da Igreja Católica,<br />
de Rohrbacher.<br />
Chefe de uma missão para<br />
combater o protestantismo<br />
Marcos Roi, o rei que viveu de<br />
1577 a 1622, tomou o nome de Fidélis<br />
quando entrou para os capuchinhos,<br />
aos 35 anos de idade.<br />
Nascido em Sigmaringa, distinguiu-<br />
-se como estudante de Filosofia e Direito<br />
em Friburgo de Brisgóvia. A seguir<br />
foi nomeado tutor de três jovens príncipes,<br />
com quem viajou por toda a Europa<br />
durante três anos. Depois de ter<br />
exercido a profissão de advogado em<br />
Colmar, resolveu abandonar o mundo.<br />
No testamento que fez nesta altura,<br />
diz o seguinte: “Quero viver daqui para<br />
o futuro na maior pobreza, castidade e<br />
obediência, nos sofrimentos e nas perseguições,<br />
numa penitência austera e<br />
humildade profunda. Saí nu do seio de<br />
minha mãe e despojo-me de tudo para<br />
me entregar aos braços do Salvador.”<br />
O Padre Fidélis possuía grandes dotes<br />
oratórios. Nomeado guardião (superior)<br />
do Convento de Feldkirch, pregou<br />
em numerosas cidades alemãs e<br />
suíças, e numerosas igrejas do campo.<br />
A cidade de Feldkirch foi de todo<br />
transformada por ele. Como o protestantismo<br />
estava a se espalhar pela Su-<br />
22
íça, especialmente entre os grisões, a<br />
Congregação da Propaganda encarregou<br />
os capuchinhos de irem combatê-<br />
-lo. O Padre Fidélis foi nomeado chefe<br />
dessa missão.<br />
“Dentro em breve não me tornareis a<br />
ver, disse ele a seus amigos em Feldkirch,<br />
pois fui chamado a dar o sangue pela<br />
Fé”. E desde então passou a assinar<br />
suas cartas da seguinte maneira: “Padre<br />
Fidélis, prope diem esca vermium” –<br />
que em breve será pasto dos vermes.<br />
Em janeiro de 1622, entrou na região<br />
ocupada pela Áustria e lá começou<br />
a pregar a Fé com grande êxito.<br />
Furiosos, os protestantes prepararam<br />
uma revolta e o missionário avisou<br />
os austríacos. Os grisões levantaram-se<br />
então em massa.<br />
No dia 24 de abril, estando o Padre<br />
Fidélis a pregar em Seewis, ouviu-se o<br />
grito: “Às armas!”<br />
Os grisões saíram ao encontro das<br />
tropas imperiais que tinham forçado<br />
seus postos avançados, convencidos<br />
de que o Padre Fidélis é quem chamara<br />
os austríacos.<br />
Ainda o deixaram sair da cidade.<br />
Mas como daí a pouco regressasse a<br />
Grächen, 20 soldados caíram sobre<br />
ele, trataram-no de sedutor e queriam<br />
forçá-lo a abraçar a sua seita.<br />
“Que me propondes? – perguntou<br />
Fidélis – Vim até vós para refutar<br />
vossos erros e não para abraçá-los. A<br />
Doutrina Católica é a Fé de todos os<br />
séculos, não a renunciarei. Ademais,<br />
sabei que não temo a morte.”<br />
Eles então mataram-no a sabre.<br />
É interessante notarmos qual foi a<br />
atuação deste grande pregador para<br />
que o comentário hagiográfico possa<br />
se fazer adequadamente. Ele era um<br />
missionário famoso que pregava em<br />
vários lugares. E a Santa Sé, desejando<br />
impedir a expansão do protestantismo<br />
na região da Suíça denominada<br />
dos grisões, incumbiu a Ordem religiosa<br />
da qual ele fazia parte – os capuchinhos<br />
– de mandar para aquela zona<br />
pregadores, bons oradores, a fim de<br />
converterem os que se tinham pervertido<br />
para o protestantismo, e impedir<br />
que novos católicos fossem objeto com<br />
êxito do proselitismo protestante.<br />
Então ele, que já havia transformado<br />
por inteiro uma cidade importante<br />
da Alemanha – Feldkirch – pelos<br />
seus sermões, se dirigiu à Suíça<br />
sabendo que ia morrer, pois recebeu<br />
uma revelação de que lá seria martirizado.<br />
Mas, homem sobrenatural,<br />
indômito, enérgico, batalhador, não<br />
recuou diante dessa ameaça. Pelo<br />
contrário, enfrentou a morte.<br />
E tinha uma espécie de prazer em<br />
considerar a hipótese de sua morte<br />
próxima, e até assinava “Frei Fidélis<br />
que em breve será pasto dos<br />
vermes.” Quer dizer, sabia que seria<br />
mártir e iria para o Céu o que lhe dava<br />
uma grande alegria.<br />
A essa prova de tenacidade, ele<br />
juntou outra demonstração de força,<br />
de valor: o fato de ter irritado sobremaneira<br />
os protestantes. Ninguém<br />
se torna irritante para o adversário<br />
sem ter conquistado êxitos contra este.<br />
São Fidélis alcançou sucessos tão<br />
importantes contra a heresia, que os<br />
protestantes prepararam um encontro<br />
no qual ele foi morto.<br />
Foi um orador audacioso, valoroso,<br />
forte, um missionário vigoroso<br />
que não recuou diante do holocausto<br />
do martírio. Um homem que nos<br />
dá um admirável exemplo de fortaleza,<br />
que leva a abnegação de sua própria<br />
vida e o desejo de lutar a ponto<br />
de imolar efetivamente a sua existência.<br />
Berthold Werner (CC3.0)<br />
Homem sobrenatural<br />
e indômito que<br />
enfrentou a morte<br />
Casa onde São Fidélis nasceu - Sigmaringa, Alemanha<br />
23
Hagiografia<br />
Parma benia artistici (CC3.0)<br />
Sentimentalismo religioso<br />
do século XIX<br />
Consideremos a fórmula utilizada<br />
por São Fidélis:<br />
Quero viver para o futuro na maior<br />
pobreza, castidade e obediência, no sofrimento<br />
e nas perseguições, numa penitência<br />
austera e humildade profunda.<br />
Saí nu do seio de minha mãe e despojo-me<br />
de tudo para entregar-me nos<br />
braços do Salvador.<br />
Se uma pessoa hoje empregasse essa<br />
fórmula, seríamos levados a achar que<br />
ela é “heresia branca” 1 . Diria isto suspirando,<br />
com tanta moleza, que afirmaríamos:<br />
“Qual! Você é um pulha e não<br />
tomamos a sério a sua vida espiritual.”<br />
Ele assinava suas cartas com as<br />
palavras: “Frei Fidélis, que em breve<br />
será pasto dos vermes.”<br />
Compreende-se o equívoco tremendo<br />
que o sentimentalismo religioso<br />
do século XIX criou em torno<br />
dessas fórmulas, e precisamos não<br />
nos deixar vencer pelo equívoco.<br />
O estado de espírito que apontei<br />
é muito ruim, mas a fórmula é muito<br />
boa em si mesma considerada. Ela<br />
foi empregada por um Santo e, portanto,<br />
não pode deixar de ser boa,<br />
porque tudo quanto o Santo faz é<br />
bom. Se essa fórmula não fosse boa,<br />
ele não teria sido canonizado.<br />
Precisamos compreender que essa<br />
fórmula é susceptível de ser pronunciada,<br />
ser vista de outro modo, e<br />
não devemos permitir que o besuntado<br />
sentimentalismo religioso do<br />
século XIX nos tolde a visão da coerência<br />
que ela tem com as virtudes<br />
as quais somos mais chamados a praticar:<br />
a fortaleza de ânimo, a resolução,<br />
a combatividade. Entre virtudes<br />
não há incompatibilidade. Ora, isso<br />
tem de ser virtude porque foi pronunciado<br />
por um santo.<br />
O valor dessa fórmula é muito<br />
grande. Evidentemente, um homem<br />
que tem a verdadeira virtude da sabedoria,<br />
compreendendo, portanto, que<br />
todas a coisas desta Terra são um nada<br />
– desde que elas obstem à aquisição<br />
da virtude, ao pleno conhecimento<br />
da sabedoria e ao amor de Deus –,<br />
precisa afastar-se delas.<br />
Quem tem vocação<br />
religiosa deve abraçá-la<br />
São Fidélis de Sigmaringa e São José de Leonessa<br />
Galeria Nacional de Parma, Itália<br />
Quando Nossa Senhora quer que<br />
alguém tenha uma vocação, torna-<br />
-lhe difícil a vida fora da vocação a<br />
qual deve abraçar. E um santo nessas<br />
condições, em geral, é levado pelas<br />
circunstâncias a uma alternativa:<br />
ou se perde ou adota o estado de vida<br />
para o qual foi chamado.<br />
Depois, independente do perigo<br />
de perder-se, ele tem o atrativo da<br />
graça para estar meditando as coisas<br />
da sabedoria e, por amor de Deus,<br />
assume aquela fórmula.<br />
Então, ele fez-se capuchinho. Isso<br />
significa abraçar a pobreza completa,<br />
renunciar a toda forma de sinarquia<br />
2 . É despreocupar-se com os<br />
bens deste mundo, não só não querendo<br />
tê-los para si, mas não se entusiasmando<br />
com as pessoas pelo fa-<br />
24
interpretada e entendida, nada tem<br />
de “heresia branca”; é uma fórmula<br />
esplêndida.<br />
A “heresia branca” se encontra<br />
no estado temperamental do estúpido<br />
com que os sentimentais repetiam<br />
isso.<br />
Temos a prova concreta: um homem<br />
que empregava tais fórmulas<br />
é um mártir de uma admirável coragem,<br />
o qual viu chegar a morte com<br />
a serenidade que os maiores heróis<br />
não teriam. Que lutou arduamente<br />
contra a Revolução, foi um verdadeiro<br />
contrarrevolucionário – porque<br />
o protestantismo era a Revolução<br />
no seu tempo –, homem completo,<br />
portanto, e digno de toda a nossa<br />
veneração.<br />
A relíquia de São Fidélis se encontra<br />
em nossa capela. Faremos<br />
uma boa coisa pedindo a ele que nos<br />
obtenha a graça de compreender coto<br />
de os possuírem. Não admirando<br />
ninguém porque tem um bonito automóvel,<br />
um formoso apartamento<br />
ou, suprema ventura, possui uma<br />
fábrica importante, Mas dando valor<br />
aos homens e às coisas na medida<br />
em que se aproximam, praticam<br />
a sabedoria.<br />
Uma pessoa assim, com um estado<br />
de espírito varonil, combativo, fazendo<br />
um ato de imolação inteiramente<br />
inaciano, pode dizer: “Eu quero viver<br />
daqui para o futuro na maior pobreza,<br />
castidade e obediência, nos sofrimentos<br />
e nas perseguições. Desejo<br />
imitar a Nosso Senhor Jesus Cristo<br />
que sofreu, e por isso vou ser um<br />
lutador, agredir o adversário; sofrerei<br />
porque na guerra se sofre.”<br />
É o sentimentalismo religioso do<br />
século XIX que dá a isso um aspecto<br />
de “heresia branca”. Mas não tem<br />
nada de “heresia branca”. É a piedade<br />
de boa lei que o homem mais valoroso<br />
e combativo deve ufanar-se<br />
em possuir.<br />
Verdadeiro<br />
contrarrevolucionário<br />
Assim também, dizer que dali a<br />
pouco ele vai ser o pasto dos vermes<br />
é ter coragem, uma prova de que<br />
não tem medo de morrer. São Fidélis<br />
poderia acrescentar, apontando<br />
para seu corpo: “Esta carne vai ser<br />
comida pelos vermes. Através destas<br />
órbitas eles entrarão – como que engendrados<br />
pelo meu próprio corpo –<br />
que comerão os olhos, sairão pelos<br />
ouvidos e pela boca. Mas eu não me<br />
incomodo porque a minha alma vai<br />
para o Paraíso. Terei a glória do martírio<br />
que vale muito mais do que essa<br />
decomposição do meu corpo. E no<br />
último dia ele ressuscitará e se juntará<br />
à minha alma no Céu.”<br />
É uma atitude de força de alma<br />
que o faniquito do liberal, do sentimental,<br />
não dá.<br />
Compreendemos, assim, como<br />
uma fórmula como essa, sendo bem<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1967<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
mo fórmulas dessas se compaginam<br />
bem com a nossa piedade, desde que<br />
expurgadas dos péssimos eflúvios do<br />
sentimentalismo religioso do século<br />
XIX vivo até nossos dias, infelizmente.<br />
Tal sentimentalismo, sendo uma<br />
coisa má, como é evidente, não houve<br />
na obra de nenhum santo daquele<br />
tempo. São deformações que existiram<br />
à margem do santo e de modo<br />
contrário ao exemplo dado por ele.<br />
Naquele século, houve santos admiráveis<br />
que estavam isentos e até<br />
eram o contrário disso, como Santa<br />
Teresinha do Menino Jesus.<br />
A pequena via ensinada por ela,<br />
tão cheia de candura, de suavidade,<br />
é uma via de grande força e combatividade<br />
para quem sabe ler um livro<br />
de Santa Teresinha.<br />
Percebe-se isso nos seus desejos.<br />
Ela dizia que possuía anseios infinitos,<br />
queria ser missionária, brandir<br />
o ferro no combate contra os<br />
inimigos da Igreja, etc. É uma manifestação<br />
de uma combatividade<br />
que chega até o Cruzado, e inclusive<br />
o desejo de derramar o sangue.<br />
E isto da parte dessa santa tão<br />
suave na sua pequena via. Vê-se,<br />
portanto, como as duas coisas são<br />
compatíveis.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de<br />
24/4/1967)<br />
1) Expressão metafórica criada por <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong> para designar a mentalidade<br />
sentimental que se manifesta na piedade,<br />
na cultura, na arte, etc. As pessoas<br />
por ela afetadas se tornam moles,<br />
medíocres, pouco propensas à<br />
fortaleza, assim como a tudo que signifique<br />
esplendor.<br />
2) Diferentemente do sentido político<br />
que lhe é dado habitualmente, <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong> usava a palavra “sinarquia” para<br />
caracterizar a mentalidade ateia,<br />
segundo a qual a finalidade suprema<br />
de uma sociedade é o trabalho e a<br />
produção material.<br />
25
Luis C.R. Abreu / Gabriel K.<br />
Eco fidelíssimo da Igreja<br />
Ressurreição<br />
e Fátima<br />
Ascensão - Igreja de<br />
Santa Maria, Waltham,<br />
Massachusetts<br />
Depois dos castigos preditos pela Virgem em Fátima, durante os<br />
quais possivelmente fiquemos como Nosso Senhor na Paixão –<br />
perseguidos, torturados, cobertos das chagas da dor do alto da<br />
cabeça até as plantas dos pés –, haverá o momento radioso em que a<br />
promessa de Nossa Senhora se cumprirá. Chegará o dia no qual os<br />
Anjos nos dirão: “Já não há mais tristeza nem sofrimento para vós.<br />
Regozijai-vos porque o Imaculado Coração de Maria triunfou!”<br />
26
Na Páscoa da Ressurreição, a<br />
Santa Igreja celebra o triunfo<br />
definitivo do Redentor<br />
sobre a morte e o pecado, e afirma<br />
solenemente que, ressuscitado, Cristo<br />
vive por todos os séculos, como<br />
Cabeça mística de todos os fiéis.<br />
Glória de Deus: preocupação<br />
que deve nos acompanhar<br />
do berço ao túmulo<br />
Dizem os autores espirituais que<br />
toda meditação bem feita deve trazer<br />
como consequência uma resolução<br />
concreta. As considerações de<br />
ordem meramente platônica não interessam<br />
à vida espiritual. Se contemplamos<br />
é para amar mais e agir<br />
melhor. “Ai da ciência que não se<br />
transforma em amor e em ação!” –<br />
disse o grande Bossuet 1 . E nós poderíamos<br />
afirmar: “Ai da meditação<br />
que não se transforma em amor, em<br />
virtude e em apostolado!”<br />
Assim, de nada nos adiantaria que<br />
enchêssemos de santo gáudio nossas<br />
almas e, na fartura e tranquilidade<br />
de nossos lares, ou abrindo um rápido<br />
e ensolarado parêntesis na amargura<br />
de nossas lutas e necessidades,<br />
celebrássemos as festas da Santa<br />
Páscoa, se um aumento de amor para<br />
com Deus não se notasse em nossos<br />
corações, e esse acréscimo não tivesse<br />
como consequência nosso incremento<br />
na virtude.<br />
Ora, ninguém ama a Deus sem<br />
amar a glória d’Ele. A realização<br />
dessa glória é o mais vivo anseio de<br />
todas as almas verdadeiramente piedosas.<br />
“Que em todas as coisas Deus<br />
seja glorificado!” é o lema debaixo<br />
do qual trabalham nas vias árduas<br />
da santificação interior e do apostolado<br />
os filhos de São Bento. “Para<br />
a maior glória de Deus” é a divisa<br />
que serve de meta para todas as preces<br />
e labutas dos filhos de Santo Inácio.<br />
Percorram-se os sistemas de espiritualidade<br />
próprios às várias Ordens,<br />
examinem-se os autores espirituais<br />
de todos os lugares e de todos<br />
os tempos, e ver-se-á que fazem da<br />
glória de Deus o alvo desinteressado<br />
e total de sua existência.<br />
Ninguém, por outro lado, dá glória<br />
a Deus sem obedecer ao beneplácito<br />
divino. A obediência à vontade<br />
do Criador, a plena conformidade de<br />
todas as nossas ideias com a Doutrina<br />
Católica, de todas as nossas volições<br />
com a Moral Católica, de todos<br />
os nossos sentimentos com o senti-<br />
Crucifixão - Museu do<br />
Patriarca, Valência<br />
Flávio Lourenço<br />
Flávio Lourenço<br />
Sepultamento de Jesus - Museu Thyssen-Bornemisza, Madri<br />
27
Eco fidelíssimo da Igreja<br />
Vicente Torres<br />
Sepulcro vazio - Abadia Beneditina de Subiaco, Itália<br />
re cum Ecclesia 2 , eis a preocupação<br />
que, do berço ao túmulo, deve acompanhar<br />
toda a alma crente.<br />
Em meio a tanta tristeza,<br />
Nossa Senhora tinha<br />
uma fímbria de alegria<br />
do corroído de vergonha e de dor<br />
para pedir-Lhe perdão. Mas era tão<br />
pouca gente dentro<br />
de todo aquele universo<br />
hostil... Entretanto,<br />
soledade, sobretudo,<br />
porque Maria<br />
Santíssima encontrava-Se<br />
naquela<br />
imensa solidão: não<br />
estava mais junto a<br />
seu Divino Filho, que<br />
era tudo para Ela. Ele<br />
estava morto.<br />
Todos os que tiveram<br />
a felicidade de<br />
ver misticamente o<br />
que se passava na alma<br />
de Nossa Senhora<br />
nessa hora contam<br />
como, concomitante<br />
a essa tristeza, havia<br />
um fundo de alegria<br />
porque Ela sabia<br />
que Ele ressuscitaria<br />
e, em breve, estariam<br />
de novo juntos;<br />
e que a Paixão ficara<br />
para trás, aquele oceano<br />
de dores já estava<br />
transposto e a imensa<br />
glória d’Ele ia se re-<br />
De dentro das alegrias da Ressurreição,<br />
tão cheias de ensinamentos<br />
para todos os católicos, convém<br />
tirarmos alguma lição especial para<br />
nós.<br />
Todas as visões e revelações fidedignas<br />
a respeito da Paixão narram<br />
que, de algum modo, a hora mais lúgubre<br />
não foi quando o Divino Redentor<br />
expirou, mas depois que Nossa<br />
Senhora colocou o sagrado Corpo<br />
d’Ele na sepultura. Nesse momento,<br />
Ela não teve mais a amarguíssima<br />
consolação de contemplar as feições<br />
mortas d’Ele, dirigiu-Se ao cenáculo,<br />
cujo prédio pertencia a uma pessoa<br />
dedicada a Nosso Senhor, e ali atravessou<br />
as horas amargas de sua soledade.<br />
Soledade, sem dúvida nenhuma,<br />
porque eram poucos os que estavam<br />
em torno d’Ela: as santas mulheres,<br />
São João Evangelista, São Pedro, um<br />
ou outro Apóstolo que vinha voltanvelar<br />
ao mundo para a grandeza e a<br />
salvação de toda a humanidade.<br />
Isso dava a Maria Santíssima, em<br />
meio a tanta tristeza, uma fímbria<br />
de alegria, diante da certeza do júbilo<br />
imenso que viria depois, maior<br />
do que os tormentos da Paixão. Porque,<br />
embora as dores tenham sido<br />
incomensuráveis, é verdade também<br />
que, sendo a Ressurreição e a Redenção<br />
a finalidade da Paixão, naturalmente<br />
o fim vale muito mais do<br />
que os meios. Logo, é maior ainda a<br />
alegria por ver alcançado e aparecer<br />
aos olhos dos homens o objetivo para<br />
o qual uma tão grande dor foi paga.<br />
Assim, na paz, a Santíssima Virgem<br />
tinha esta serenidade, esta confiança,<br />
mais ainda, esta certeza: Cristo<br />
ressuscitará. E, realmente, todas<br />
as expectativas d’Ela se confirmaram.<br />
Cristo ressuscitado aparece à Santíssima Virgem<br />
Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa<br />
Flávio Lourenço<br />
28
Após ressuscitar, Nosso<br />
Senhor foi visitar sua<br />
Mãe Santíssima<br />
Imaginemos o Santo Sepulcro,<br />
situado numa gruta<br />
perto do local onde Jesus foi<br />
crucificado, o Gólgota, como<br />
relata o Evangelho. Túmulo<br />
novo pertencente a José de<br />
Arimatéia e cedido por ele<br />
para Nosso Senhor ser sepultado.<br />
Segundo o costume<br />
judaico, o cadáver era todo<br />
atado, colocava-se à entrada<br />
da gruta uma pedra rigorosamente<br />
bem talhada para<br />
vedar inteiramente.<br />
Dentro domina a escuridão.<br />
De repente, irrompe<br />
uma luz mais intensa<br />
do que o brilho do Sol. Era<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />
cuja Alma santíssima,<br />
hipostaticamente unida à<br />
Segunda Pessoa da Santíssima<br />
Trindade, estivera no<br />
Limbo para levar às almas dos justos<br />
a boa nova da Redenção e prepará-<br />
-las para subirem ao Céu.<br />
Aquele Corpo glorioso, nascido das<br />
entranhas de Maria Virgem, estremece<br />
de vida e se levanta por si. As ataduras<br />
que O envolvem, bem como a pedra<br />
que lacra a sepultura, caem e as inúmeras<br />
feridas começam a resplandecer<br />
como sóis. Do lado de fora, os guardas<br />
ouvem um trovão e desmaiam, e Jesus<br />
aparece reluzente. É a Páscoa da Ressurreição.<br />
Ele passou pelos profundos<br />
vales da morte e ressurgiu glorioso, para<br />
depois subir ao Céu.<br />
Notem esse pormenor importante:<br />
quando Nosso Senhor ressuscitou,<br />
criatura humana nenhuma O viu sair<br />
da sepultura. Ele não quis que ninguém<br />
fosse o primeiro a vê-Lo ressuscitado.<br />
No momento em que as santas<br />
mulheres, São Pedro e São João<br />
Evangelista lá chegaram, o túmulo<br />
já estava vazio. No primeiro instante<br />
A Dolorosa - Santuário de Jesus<br />
Nazareno, Atotonilco, México<br />
depois de ter deixado o Santo Sepulcro,<br />
Jesus foi visitar sua Mãe Santíssima,<br />
de maneira a ser Ela a primeira a<br />
contemplá-Lo radioso, numa alegria<br />
verdadeiramente indescritível.<br />
A esperança de Maria, que na soledade<br />
continuou firme no auge das<br />
trevas, confirmou-se totalmente. Daí,<br />
então, a enorme alegria pascal transcendente,<br />
incomparavelmente maior<br />
do que o momento tremendo da dor.<br />
Podemos, assim, ter uma ideia de como<br />
foi a primeira Páscoa naquele Sapiencial<br />
e Imaculado Coração.<br />
Primavera da Fé maior do<br />
que a da Idade Média<br />
Isso que se passou no Imaculado<br />
Coração de Maria deve ocorrer também<br />
em nossas almas, a propósito das<br />
dores presentes da Santa Igreja. Nós<br />
estamos nos aproximando da hora extrema<br />
da Paixão. O sofrimento é intensíssimo<br />
e deve varar nossas<br />
almas de lado a lado<br />
com o gládio de dor. Mas no<br />
meio dessa dor, temos uma<br />
fímbria de alegria e a certeza<br />
do cumprimento da promessa<br />
de Fátima: “Por fim,<br />
o meu Imaculado Coração<br />
triunfará!”<br />
As coisas da Causa Católica<br />
têm suas “mortes” e suas<br />
“ressurreições”. Dir-se-ia<br />
que a Civilização Cristã está<br />
liquidada, do passado glorioso<br />
da Santa Igreja não sobra<br />
mais nada, e que da verdadeira<br />
Igreja Católica Apostólica<br />
Romana restam apenas<br />
algumas gotas que o calor<br />
abrasador da Revolução<br />
acabará por fazer evaporar.<br />
Entretanto, Nosso Senhor<br />
afirmou: “Tu és Pedro,<br />
e sobre esta pedra edificarei<br />
a minha Igreja; as portas<br />
do inferno não prevalecerão<br />
contra ela.” (Mt 16, 18).<br />
Depois das tristezas e ansiedades<br />
dos castigos preditos pela<br />
Virgem de Fátima – durante os quais<br />
possivelmente fiquemos como Nosso<br />
Senhor: perseguidos, torturados, cobertos<br />
das chagas da dor do alto da<br />
cabeça até as plantas dos pés –, haverá,<br />
sem dúvida, o momento radioso<br />
em que a promessa de Nossa Senhora<br />
se cumprirá. Chegará o dia no<br />
qual os Anjos nos dirão: “Já não há<br />
mais tristeza nem sofrimento para<br />
vós, vossa provação ficou para trás.<br />
Regozijai-vos porque o Imaculado<br />
Coração de Maria triunfou!”<br />
Será, então, nossa grande Páscoa,<br />
nossa imensa alegria. Teremos passado<br />
esse “Mar Vermelho” de sangue<br />
que será o mundo durante os<br />
castigos, a pés enxutos, isto é, sem<br />
termos pago tributo ao pecado.<br />
Contemplaremos, com o tocar<br />
dos poucos sinos que restarem,<br />
o resplandecer de uma alegria que<br />
transborda do Coração Imaculado<br />
Flávio Lourenço<br />
29
Eco fidelíssimo da Igreja<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
de Maria, difundida pelos Anjos por<br />
toda a Terra.<br />
Assistiremos dissipar-se todo o negrume<br />
e contemplaremos essa glória, a<br />
qual devemos desejar mais do que tudo<br />
no mundo: a glória da Santa Igreja<br />
Católica Apostólica Romana, a quem<br />
amamos mais do que a luz dos nossos<br />
olhos e do que tudo na Terra. Veremos<br />
a Esposa de Nosso Senhor Jesus Cristo<br />
reconduzida a uma primavera da Fé<br />
maior ainda do que na Idade Média, os<br />
santos florescendo, o culto reintegrado<br />
na inteira identidade de sua doutrina,<br />
as leis se desenvolvendo numa conformidade<br />
também plena com essa doutrina,<br />
os governos sendo exercidos segundo<br />
o espírito católico e, por causa dessa<br />
plenitude da Igreja, a terra produzindo<br />
seus frutos e suas flores sob o sorriso de<br />
Nossa Senhora.<br />
Resplendor superior ao de<br />
todos os sóis do universo<br />
É, portanto, esta a ocasião de<br />
pensarmos nessa alegria comparável<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1986<br />
apenas à do momento<br />
em que morrermos, formos<br />
julgados e houver<br />
para nós a grande aurora<br />
da vida eterna, quando<br />
afinal nós virmos, face<br />
a face, Nossa Senhora<br />
com seu Divino Filho<br />
no Céu a nos dizer: “Nós<br />
mesmos somos a vossa<br />
recompensa demasiadamente<br />
grande.”<br />
Porém, antes desse<br />
momento, também ao<br />
mundo Nosso Senhor<br />
dirá pelos lábios de sua<br />
Mãe Santíssima, e Maria<br />
nos falará pela voz sacratíssima<br />
da Santa Igreja:<br />
“Eu sou a vossa recompensa<br />
demasiadamente<br />
grande.” Vendo a Igreja<br />
próspera, triunfante,<br />
dominando o mundo,<br />
orientando as almas, esmagando<br />
o erro, glorificando<br />
a virtude, promovendo<br />
toda espécie de<br />
bens, fazendo circular<br />
sua seiva na vida temporal<br />
para encher uma civilização<br />
de prevalentes<br />
varões espirituais, marcada<br />
pela Fé e pela sacralidade,<br />
nós olharemos<br />
para ela e pensaremos:<br />
“A Santa Igreja Católica<br />
é a nossa recompensa<br />
demasiadamente<br />
grande”.<br />
Lancemo-nos na luta!<br />
Poderá nos vir a impressão<br />
de estarmos<br />
afundando no vale da<br />
derrota. Pouco importa.<br />
Chegará o momento<br />
em que os Anjos do<br />
Céu virão ao nosso socorro<br />
e nós brilharemos<br />
com um pouquinho do<br />
brilho da Ressurreição,<br />
ou seja, com um res-<br />
Virgem de Fátima (acervo particular)<br />
plendor maior do que todos os sóis<br />
do universo.<br />
Maria vencerá e cada um de nós<br />
poderá dizer, parafraseando Jó:<br />
“Bendito o dia que me viu nascer,<br />
benditas as estrelas que me viram<br />
pequenino, bendito o momento em<br />
que minha mãe disse: ‘Nasceu um<br />
homem!’” (cf. Jó 3, 3). Então assistiremos<br />
à vitória da Contra-Revolução<br />
e à implantação do Reino de<br />
Maria.<br />
v<br />
(Extraído de O Legionário n.<br />
499 de 5/4/1942, conferências de<br />
25/3/1967 e 30/3/1986)<br />
1) Jacques-Bénigne Bossuet (*1627 -<br />
†1704), Bispo de Meaux (França),<br />
célebre pregador e escritor.<br />
2) Do latim: sentir com a Igreja.<br />
Luis C.R. Abreu<br />
30
Luzes da Civilização Cristã<br />
Verdadeiro equilíbrio<br />
e harmonia entre<br />
Ilustrações: J. Pinchon<br />
as classes sociais<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> mostra como a sociedade temporal,<br />
regida pela Fé e Moral, é capaz de realizar<br />
uma verdadeira aliança entre as diversas<br />
classes sociais, onde cada pessoa tem seu<br />
papel, harmonizando o mútuo respeito<br />
com a dignidade hierárquica individual.<br />
Continuando a descrever a história da Bécassine, a<br />
vemos já como uma menininha, de uns quatro ou<br />
cinco anos. Nessa cena ela e se encontra no castelo<br />
dos marqueses. Em primeiro plano, aparece o marquês<br />
de Grand-Air e em breve vai se dar a refeição.<br />
Conceito francês de varonilidade<br />
Causa certa surpresa o contraste entre o marquês e a<br />
marquesa de Grand-Air.<br />
Levados talvez por algum conceito primitivo, nós temos<br />
o hábito de pensar que o homem deve ser corpulento,<br />
enquanto a senhora deve ser magra, esguia e delicada,<br />
pois o marido deve ser mais avantajado.<br />
Segundo o conceito francês de varonilidade, não cabe<br />
o elogio da corpulência. O homem francês clássico não<br />
é magro, mas musculoso, porém não daqueles músculos<br />
das figuras italianas da Renascença, usados para estudos<br />
de anatomia. Pelo contrário, é protuberante, porém<br />
ágil, destro, muito mais feito para saltar, galgar, avançar<br />
ou duelar, do que para empurrar obstáculos e atracar-se<br />
com as pessoas. É mais próprio da espada de esgrima do<br />
que do boxe.<br />
Podemos imaginar esse marquês moço, sendo um duelista<br />
de primeira; nunca o imaginaremos jogando uma partida<br />
de boxe. Nem ele é para o boxe, nem o boxe é para ele.<br />
Até seria uma extravagância relacioná-lo com esse esporte.<br />
Um homem desses, portanto, é da escola francesa da<br />
varonilidade, com a compleição física de um Dartagnan<br />
ou de um Cyrano, pois em moços eles certamente eram<br />
assim, prontos para lutar contra os turcos que estavam<br />
invadindo o Sacro Império ou qualquer outro inimigo.<br />
O marquês é, portanto, um homem muito batalhador,<br />
conforme o gênero francês, que se enfeita para a batalha<br />
como também para a vida quotidiana. Ele é ultra enfeitado<br />
e, como tal, um bibelozinho.<br />
Delicadeza, finura e elegância do marquês<br />
Analisemos o marquês.<br />
No desenho em questão, não se percebe por inteiro,<br />
mas ele é calvo. Ele tem os cabelos bem brancos, de as-<br />
31
Luzes da Civilização Cristã<br />
pecto macio, muito similar aos da marquesa, que formam<br />
uma moldura de cabelos salientes de um lado e do<br />
outro da face. Não são assim porque cresceram por acaso<br />
a la hippie. Não, tudo é muito graduado. Os cabelos<br />
devem ter uma certa altura, e assim por diante. Ficaria<br />
ridículo se fossem um pouco mais bufantes. Ou imaginem,<br />
por exemplo, que ele passasse um fixador e ficasse<br />
colante, a cabeça dele ficava pequena para o corpo.<br />
Então, qual é o cálculo? Na hora de pentear, precisa ser<br />
um artista para calcular exatamente o tamanho da cabeça<br />
para proporcioná-la com os ombros.<br />
Como o marquês está dentro de casa, não está de chapéu,<br />
no entanto, os homens dessa categoria na França,<br />
como na Inglaterra ou noutros países, saíam de chapéu<br />
à rua. Eles não faziam como nós no tempo do chapéu,<br />
na qual entrávamos numa chapelaria e comprávamos um<br />
chapéu. Não; as chapelarias de então desenhavam o chapéu<br />
específico para a cabeça de cada um. Por exemplo,<br />
em Paris há o famoso Gelot. Quando o freguês vai para<br />
o Gelot, o empregado desenha o chapéu que mais lhe<br />
convém, e se o sujeito gosta do desenho aí executam um<br />
boneco. Dias depois o freguês volta para experimentar o<br />
boneco, e só depois se faz o definitivo. Quando o homem<br />
já é conhecido na loja, esta fica com o modelo do chapéu<br />
dele, e cada vez que precisar, manda-o fazer e entrega-se<br />
por correio. Quer dizer, é calculado como uma escultura.<br />
Portanto, os cabelos do marquês esculturais. Aí se<br />
compreende o senso artístico que isso supõe.<br />
A barbicha dele é a la Francisco José, seu contemporâneo,<br />
ou quiçá, ele tenha uns dez<br />
anos a menos do que o Imperador.<br />
Notem o queixo dele<br />
raspado. A barba vem<br />
de trás e se perde no<br />
bigode que o comunica<br />
até o outro lado.<br />
A barbicha<br />
e o bigode também<br />
são calculados<br />
para fazer o<br />
mesmo efeito desse<br />
cabelo colateral<br />
e amoldurar bem o<br />
rosto.<br />
O marquês usa<br />
um monóculo.<br />
Essa lente,<br />
muito raras<br />
vezes, é feita<br />
para atender uma necessidade visual, é apenas um estilo.<br />
O indivíduo o usava porque tinha um aro muito discreto,<br />
e ao levantar as sobrancelhas para segurá-lo, ficava<br />
com um olhar mais espetado, colocando certa distância<br />
a quem o olhava.<br />
Vejam, por exemplo, como o marquês está tratando<br />
bem a Bécassine, e como esta conversa com ele à vontade.<br />
Ela não parece entender bem com quem está conversando,<br />
enfim, vê-se como ele a trata bem, pelo delicado<br />
gesto de mão. Ele todo é delicado, mas seu olhão e seu<br />
jeito espetam, criam uma distância em torno dele; é um<br />
homem que, coberto de agradabilidades, cria um vazio<br />
em torno de si. É o estilo.<br />
Indumentária de elegantíssima intimidade<br />
Analisemos a sua indumentária. O traje apresenta um<br />
colarinho engomado com uma camisa que quase não se<br />
vê por causa da enorme gravata tipo borboleta. Além<br />
disso, há outras três peças: um paletó, conhecido como<br />
sobrecasaca, cortada a meia altura entre o tronco e o joelho.<br />
É muito mais distinto do que um jaquetão.<br />
Ele também usa um colete com botões que não aparecem<br />
aí; em geral, eram botões de muita qualidade, de<br />
porcelana pintada, de cristal ou de madrepérola de joalheria<br />
ou também podiam ser de ouro ou de prata. Quando<br />
a camisa estava velha, tiravam-nos e os passavam para<br />
outra camisa. Eram objetos do uso do homem, e para<br />
cada duas ou três camisas haviam botões especiais que<br />
32
deviam ir de acordo com a roupa. Só de vez em quando<br />
os deixavam de usar para não dar a impressão de ser um<br />
pobretão que está sempre usando as mesmas coisas.<br />
No bolso inferior do colete figura uma corrente de relógio<br />
que cruza de um lado a outro da cintura; ali também<br />
havia uma bolsinha minúscula de ouro, prata ou<br />
platina, com uma malha muito leve e muito bem feita,<br />
onde se guardavam as moedas. Naquele tempo ainda se<br />
usavam moedas de ouro e de prata; não havia apenas esse<br />
infame e fraudulento papel-moeda que anda correndo<br />
por aí, o qual inundou o mundo monetário.<br />
Notem que os sapatos dele são de verniz e não de um<br />
couro vulgar, os quais são cobertos por um tecido, que<br />
está para o pé dele como a roupinha do cachorrinho está<br />
para o animal. Por assim dizer, envolve o tronco do pé de<br />
cor clara, como branca é a camisa, e o sapato é preto. Este<br />
tipo de sapato se prende embaixo, pois ali tem uma alça<br />
com uma fivela junto ao salto.<br />
A calça não é a tal britânica com uma lista firme e implacável<br />
na frente, porque o implacável é contrário à doçura<br />
francesa. Pelo contrário, é elegantemente negligé, como<br />
se estivesse caindo por acaso. Porque era deselegante<br />
para os donos da casa usar roupa que tivesse o ar de estar<br />
saindo do ferro de passar naquela hora. Eles deviam dar o<br />
ar de estarem numa elegantíssima intimidade; por isso, a<br />
calça, sem ser amarrotada, tem o comprimento exato para<br />
sobrar no fim da perna. Tudo isso é calculadíssimo, de maneira<br />
a dar essa elegância imponderável!<br />
Percebam como o marquês está com<br />
a mão no bolso, para segurar a sobrecasaca.<br />
Olhem as mãos dele! São finas,<br />
brancas e compridas, como<br />
a mão aristocrática deve ser,<br />
bem o oposto das mãos do<br />
monsieur Labornez.<br />
Distinção<br />
com notas<br />
impalpáveis<br />
com um xale azul e uma lista da mesma cor na barra e um<br />
detalhe no colarinho. Notem como o xale dela caiu até a<br />
cintura de forma muito elegante. O penteado da dama é<br />
muito simples, pois não está naquela atitude imponente<br />
como quando estava em público na carruagem. Entretanto,<br />
a distinção é evidente.<br />
No que essa distinção é impalpável? Vou tentar explicar.<br />
O Pinchon é tão bom desenhista que faz perceber a<br />
lentidão com que a marquesa anda, como todo mundo<br />
dentro da cena. Ademais, ela está tomando uma atitude<br />
despreocupada com os braços pendentes e o corpo um<br />
pouco inclinado, sem nenhuma cerimônia; porém, ainda<br />
se nota a distinção porque, apesar de estar descontraída,<br />
a relação busto-tronco e cabeça-corpo têm beleza.<br />
Nessas atitudes se percebe a pessoa distinta que, embora<br />
na intimidade, continua numa atitude bonita, passando<br />
a ser uma segunda natureza. E isso, o Pinchon soube<br />
representar, a meu ver, como um verdadeiro sociólogo,<br />
a tal ponto que ninguém conseguiria dizer em palavras<br />
palpáveis o que eu acabo de explicitar.<br />
Decadência implícita<br />
representada na menina<br />
Passemos a analisar a neta-sobrinha dos marqueses.<br />
Ela é uma menina pura que só pensa em se divertir<br />
Comparemos<br />
o marquês com a<br />
marquesa.<br />
Na figura ela<br />
não vem solenemente<br />
de braço<br />
com o marquês,<br />
pois está distendida<br />
pensando<br />
noutra coisa. Seu<br />
vestido branco é<br />
muito simples, apenas<br />
33
Luzes da Civilização Cristã<br />
de modo casto. De forma alguma alguém colocaria nas<br />
mãos dela uma revista imoral ou iria apresentar a ela a<br />
televisão impura dos dias de hoje. Ela é saltitante, sem<br />
distinção, procurando se divertir e dar risada a respeito<br />
de tudo o que encontra. Vê-se, entretanto, a educação e<br />
as boas roupas dela, num bom ambiente, com boa comida,<br />
muito bem lavada e bem penteada, contudo os trajes<br />
dela não aspiram à distinção.<br />
Quando crescer, ela vai ser uma moça comum que entra<br />
numa loja, num ônibus ou metrô, sem chamar a atenção<br />
a não ser de alguns que a conhecem e sabem ser uma<br />
pessoa distinta. É certo que não vai chegar à altura da<br />
marquesa porque esta, enquanto é marquesa, tem sempre<br />
a noção de sua grandeza, de sua superioridade e da<br />
obrigação de atrair o respeito dos que são inferiores. Por<br />
isso, nem o monsieur Labornez nem os netos dele dariam<br />
importância alguma a essa menina, mas se extasiariam<br />
com a marquesa. Portanto, na neta dos marqueses já está<br />
presente a decadência e a segunda classe.<br />
Eu não julgo necessário comentar o traje nem o penteado<br />
da menina, porque não tem charme nenhum e não<br />
carrega nada do passado. Eu afirmo o seguinte: impureza,<br />
não há! Por quê? O que há de casto aí? Há uma certa<br />
leveza viva sem ser agitada. Onde entra a impureza ou<br />
o abatimento há agitação e não existe leveza. Essa ainda<br />
é uma menina pura.<br />
Modéstia e educação da governanta<br />
Agora vem a classe média, a governanta. O marquês e<br />
a marquesa são da alta sociedade.<br />
A governanta é educada. O seu modo de pentear e a<br />
flexão do corpo, indicam ser uma pessoa de boas maneiras.<br />
A posição dela é de quem sabe não ser superior a<br />
ninguém, não fica espalhando em torno de si um “grand-<br />
-air”, nem aristocratismo de nenhum jeito.<br />
Bem o oposto do copeiro, pois este toma um ar de<br />
quem se encontra perante um rei, de tal forma está proporcionado<br />
à nobreza. Na cena em questão, ele ignora<br />
que a marquesa está na intimidade. Se a dama estivesse<br />
pronta para ir, por exemplo, a um baile oferecido<br />
pela alta nobreza a um monarca que está de passagem<br />
por Paris, ou então à nossa princesa Isabel ou ao conde<br />
D’Eu, todos contemporâneos, o copeiro não tomaria outra<br />
atitude da que está tomando.<br />
A governanta não, ela pode sair à rua ou fazer compras<br />
que fica dissolvida nesses ambientes. O marquês e<br />
a marquesa são de salão. Notem, entretanto, como o copeiro<br />
e a governanta são mais finos do que as pessoas finas<br />
de hoje em dia.<br />
Há outro lado que é preciso notar. Sem me deter muito<br />
tempo descrevendo a governanta, eu me pergunto:<br />
Quem se dirige a uma criança com essa delicadeza? É<br />
curioso como Pinchon, ao mesmo tempo, ao desenhar a<br />
governanta, demonstra certo respeito para com a criança,<br />
porque é neta dos patrões. Fica patente o sumo cuidado,<br />
delicadeza e até certo carinho com que conduz a<br />
neta dos marqueses para a sala de jantar, pois a criança<br />
está com a atenção voltada para cá<br />
e para lá. Exatamente como uma<br />
senhora trataria uma menina.<br />
34
Hoje em dia não é comum encontrar senhoras que tratem<br />
suas filhas assim. Aí se percebe a decadência do toda<br />
uma época, sem falar, eu insisto, em decadência moral, por<br />
onde o que era comum antes da guerra de 1914 – em que<br />
a Europa tinha milhares de pessoas como esses marqueses<br />
–, hoje em dia isso é objeto de museu que não se encontra<br />
mais, nem de longe! Alguns de nós, é possível, nem suspeitou<br />
existir gente assim, de tal maneira saiu dos costumes.<br />
Pessoas de classe média como essa governanta quase não<br />
existem mais, inclusive de dentro da alta sociedade.<br />
Essa governanta é uma pessoa modesta de vida pura,<br />
de família pura, muito correta, onde tudo se passa segundo<br />
a moral católica. Quer dizer, há uma tradição católica<br />
nessa família. Não é dessas moças, por exemplo, que<br />
saem em grupos de rapazes cantando e fazendo bagunça.<br />
Pelo contrário, é uma moça habituada a andar no meio<br />
de senhoritas, a ser tratada com muita cerimônia pelos<br />
rapazes da idade dela, a casar casta ainda. Em suma, é<br />
uma moça intacta que não foi poluída por nada. Quão<br />
raro hoje em dia também!<br />
Simplicidade inocente da camponesa bretã<br />
Bem, resta-nos a Bécassine. Há uma coisa a observar<br />
nela e é que está exageradamente gorducha, com o rosto<br />
redondo e vermelho como um queijo do Reno, usando<br />
uma touca vermelha e um pompom, sem fantasia nem<br />
gosto, mas convém ser assim, porque é um símbolo da<br />
classe dela. É o contrário do que gostaria apresentar a<br />
propaganda comunista a respeito da condição do camponês,<br />
vestido como burguês, sujo, maltrapilho, magro, doente<br />
e também revoltado, porque essa propaganda prega<br />
a revolução social. E há<br />
mais. Tudo decaiu tanto<br />
que até os filhos dos patrões<br />
se vestem à maneira<br />
de empregados dos tempos<br />
atuais. Andando pela<br />
rua, é difícil fazer distinção<br />
se o indivíduo é filho<br />
de patrão ou filho de empregado;<br />
quando se consegue<br />
fazer distinção.<br />
A Bécassine é apenas uma<br />
camponesa. O modo de ela engordar<br />
é o modo de camponesa,<br />
com a boa saúde da plebe. Ela,<br />
por exemplo, é uma menina mais<br />
saudável do que a neta da marquesa,<br />
que também é uma menina forte. Becassine<br />
foi educada no campo e não<br />
em Paris, fazendo exercício físico, ajudando<br />
o pai e a mãe, porque a criança<br />
nessa idade já faz trabalhinhos. E na hora de comer, come<br />
pães e bebe leite à vontade. O resultado é ficar bem<br />
nutrida.<br />
Pinchon é tão cuidadoso que até as pernas dela as desenhou<br />
gorduchas. Vejam como a neta da marquesa é<br />
mais magra, e se engordasse dessa forma a levariam no<br />
médico para indicar regime. Em parte, é assim porque<br />
há um imponderável qualquer por onde a boa educação<br />
transmitida por gerações faz a pessoa engordar de um<br />
modo diferente. Por exemplo, a madame de Grand-Air é<br />
gorda, porém é diferente da corpulência do criado.<br />
Tanto a camponesa como o copeiro são nitidamente<br />
inferiores à governanta, e esta é inferior à marquesa. É<br />
uma sociedade onde cada um tem seu papel. Tudo é bem<br />
organizado.<br />
Com isto termino de descrever essa cena.<br />
A Bécassine foi ao castelo para brincar e depois almoçar<br />
com a menina e com os marqueses. A camponesa<br />
– que perdeu toda a distância psíquica – está contando<br />
alguma coisa para o marquês e este está dizendo algo<br />
ou fazendo algum gesto amável explicando estar à esquerda<br />
sala de jantar onde todos vão entrar, pois ela ainda<br />
não percebeu onde será a refeição; de tal forma está<br />
extasiada. Com certeza, a camponesa será a atração do<br />
almoço porque vai fazer tolices e todos vão dar risada,<br />
com bondade.<br />
Assim, habituada ao castelo, a Becassine vai servir a<br />
marquesa até o fim da história, quando a nobre estiver<br />
idosa.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de 14/5/1980)<br />
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Uma cruz bem<br />
carregada<br />
Abênção se dá fazendo o Sinal-da-Cruz, e quem a recebe faz em si o mesmo sinal. Bênção e Cruz<br />
são indissociáveis. Quem não sofre, não é abençoado.<br />
No Reino de Maria haverá grandes dores alternadas com alegrias inimagináveis. Padecimentos<br />
pungentes como os do Calvário e júbilos esfuziantes como os da Páscoa da Ressurreição.<br />
Dona Lucilia teve em sua vida alguns fatos que lhe causaram sofrimentos muito pungentes, os quais<br />
não eram senão os ápices de dores muito maiores que, em certos momentos, chegavam a uma espécie de<br />
paroxismo.<br />
Entretanto, junto com essa dor permanente, mamãe tinha alegrias de fundo de alma que a ajudavam<br />
a carregar a cruz. Porque a impressão que ela dá é de uma cruz bem carregada, com muito equilíbrio<br />
e nunca com qualquer espécie de ansiedade.<br />
(Extraído de conferência de 12/11/1984)