28.03.2022 Views

Revista Dr Plinio 289

Abril de 2022

Abril de 2022

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Publicação Mensal<br />

Vol. XXV - Nº <strong>289</strong> Abril de 2022<br />

Esperança invencível na<br />

Mãe do Bom Conselho


Símbolo do Brasil no<br />

Reino de Maria<br />

Se nos voltamos para a exuberante<br />

e variegada flora<br />

brasileira, parece nos faltar<br />

o vocabulário para comentá-la<br />

de modo satisfatório. Por<br />

exemplo, um ipê na plenitude de<br />

sua floração, na riqueza estupenda<br />

de sua beleza, ou seja, no<br />

que ele tem de verdadeiramente<br />

único. É uma árvore de ouro.<br />

Sua copa não desenha uma esfericidade<br />

perfeita, pois tem reentrâncias<br />

diversas as quais fazem<br />

com que os jogos de luz sobre o<br />

dourado mudem de tonalidade, e<br />

se evidenciem os diferentes matizes<br />

dessa cor. E quando o ipê<br />

floresce contrastando com uma<br />

paisagem seca e desoladora, dir-<br />

-se-ia que ele é um protesto do<br />

futuro, a proclamar: “Esperem!<br />

Alguma coisa ainda virá!”<br />

Na minha ótica, será o símbolo<br />

do Brasil no Reino de Maria.<br />

É uma árvore simplesmente esplendorosa.<br />

Mostra qual será<br />

o futuro deste País a serviço de<br />

Nossa Senhora.<br />

(Extraído de conferências de<br />

12/10/1990 e 17/7/1991)


Sumário<br />

Publicação Mensal<br />

Vol. XXV - Nº <strong>289</strong> Abril de 2022<br />

Vol. XXV - Nº <strong>289</strong> Abril de 2022<br />

Esperança invencível na<br />

Mãe do Bom Conselho<br />

Na capa,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1990.<br />

Foto: Arquivo <strong>Revista</strong><br />

As matérias extraídas<br />

de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

— designadas por “conferências” —<br />

são adaptadas para a linguagem<br />

escrita, sem revisão do autor<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

ISSN - 2595-1599<br />

CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />

INSC. - 115.227.674.110<br />

Diretor:<br />

Roberto Kasuo Takayanagi<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Virgílio Rodrigues, 66 - Tremembé<br />

02372-020 São Paulo - SP<br />

E-mail: editoraretornarei@gmail.com<br />

Impressão e acabamento:<br />

Northgraph Gráfica e Editora Ltda.<br />

Rua Enéias Luís Carlos Barbanti, 423<br />

02911-000 - São Paulo - SP<br />

Tel: (11) 3932-1955<br />

Preços da<br />

assinatura anual<br />

Comum............... R$ 200,00<br />

Colaborador........... R$ 300,00<br />

Propulsor.............. R$ 500,00<br />

Grande Propulsor....... R$ 700,00<br />

Exemplar avulso........ R$ 18,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

editoraretornarei@gmail.com<br />

Segunda página<br />

2 Símbolo do Brasil no<br />

Reino de Marias<br />

Editorial<br />

4 Com os olhos postos na<br />

Mãe do Bom Conselho...<br />

Piedade pliniana<br />

5 Fogo sagrado e purificador<br />

Dona Lucilia<br />

6 Ambientes impregnados de uma<br />

presença régia e maternal<br />

Reflexões teológicas<br />

9 Jesus bebeu o cálice da<br />

morte gota a gota<br />

De Maria nunquam satis<br />

16 Poder maravilhoso de se<br />

comunicar com as pessoas<br />

Calendário dos Santos<br />

20 Santos de Abril<br />

Hagiografia<br />

22 Homem que lutou arduamente<br />

contra a Revolução<br />

Eco fidelíssimo da Igreja<br />

26 Ressurreição e Fátima<br />

Luzes da Civilização Cristã<br />

31 Verdadeiro equilíbrio e harmonia<br />

entre as classes sociais<br />

Última página<br />

36 Uma cruz bem carregada<br />

3


Editorial<br />

Com os olhos postos na<br />

Mãe do Bom Conselho...<br />

Refletindo sobre Nossa Senhora do Bom Conselho de Genazzano, chamou-me muito a atenção a inteira<br />

intimidade do Menino Jesus com sua Mãe Santíssima. Ele até passa a mão em torno do pescoço<br />

d’Ela, de maneira a se verem os dedos ali.<br />

Lembro-me de ser essa a intimidade que eu tinha com minha querida e saudosa mãe: uma intimidade<br />

tão cheia de respeito, de admiração, de veneração e de ternura, mas verdadeira intimidade. Mamãe sabia<br />

ser afável, meiga e fazer-se pequena, ainda quando eu era um menino completamente dependente dela e,<br />

portanto, sendo eu o pequeno e ela tão grande para mim.<br />

Eis a razão pela qual eu a chamava de “mãezinha”, tão logo comecei a pronunciar as primeiras palavras,<br />

ainda sem saber falar bem e dizendo “manguinha”, mas já era a noção do que havia nela de miúdo,<br />

de proporcionado a mim, de exorável e de compassivo para comigo. Essa ideia que brotava em meu espírito<br />

a propósito de toda a mansidão e bondade dela foi o modo pelo qual conheci a bondade de Nossa Senhora<br />

e do Sagrado Coração de Jesus.<br />

Contemplando a imagem da Mãe do Bom Conselho e vendo o Menino Jesus tão protegido e tão agarrado<br />

a Ela, eu quisera que um raio de graça descesse sobre cada um de nós e nos levasse a compreender como devemos<br />

ser assim em relação a Nossa Senhora: filhos intimíssimos, convictos de que a misericórdia d’Ela não se cansa<br />

nunca, o seu perdão jamais nos é recusado, e que o seu sorriso maternal quase nos antecede, tão logo nos voltemos<br />

para Ela. Aliás, a própria graça de recorrermos a Maria Santíssima nos é concedida por sua intercessão.<br />

Donde uma confiança sem limites e contínua na bondade d’Ela, em todas as ocasiões, em quaisquer circunstâncias,<br />

de todos os modos, dizendo-Lhe: “Salve Rainha, Mãe de Misericórdia, vida, doçura, esperança<br />

nossa, salve!”<br />

“Salve”, no sentido etimológico e latino da palavra, isto é, uma saudação: “eu te saúdo, Rainha”. Mas,<br />

cometendo um barbarismo, poderíamos querer significar também: “Salvai-nos Rainha, Mãe de Misericórdia,<br />

vida, doçura, esperança nossa, salvai-nos!”<br />

Sendo Mãe de Misericórdia, Maria é a nossa vida, porque se não fosse a misericórdia d’Ela, estaríamos<br />

mortos. Ela tem para com seus filhos, mesmo quando eles são fracos e infiéis, uma doçura tal que é, por<br />

excelência, a doçura do universo, a ponto de todas as formas materiais de doçura – a do mel, do açúcar, da<br />

brisa, e até mesmo dos corações maternos – não serem senão pálidas imagens desta doçura das doçuras<br />

que é a do Imaculado Coração de Maria.<br />

Na Santíssima Virgem, em sua intercessão e misericórdia para conosco, nós podemos esperar com uma<br />

esperança invencível, porque quem tem tal Mãe nunca será desamparado.<br />

Nós vivemos em uma procella tenebrarumi 1 , em meio a incógnitas, a investidas, a ciladas e ao ódio infernal<br />

que desaba contra nós à maneira de uma tremenda tempestade. Nada disso teria solução se não tivéssemos em<br />

quem confiar. Mater Boni Consilii a Genazzano representa essa confiança; é Nossa Senhora cujo bom conselho<br />

no interior de nossas almas é essencialmente este: “Confiai em Mim e sede cada vez mais meus devotos.”<br />

São essas palavras de esperança que vos dirijo, com os olhos postos na Mãe do Bom Conselho de Genazzano,<br />

desejando que seu olhar maternal seja a luz interior de nossas almas e a estrela a nos guiar neste<br />

mar tempestuoso de nossa existência. 2<br />

1) Do latim: tormenta de trevas.<br />

2) Cf. Conferências de 6/5/1968 e 6/11/1988.<br />

Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />

de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />

na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />

outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


Piedade pliniana<br />

Fogo sagrado e<br />

purificador<br />

T<br />

udo acabou: “Consummatum est”.<br />

Vossa cabeça pende inerte. Uma paz majestosa, suavíssima e divina se<br />

mostra em todo o vosso Corpo. Estais cheio de paz, ó Príncipe da Paz!<br />

Mas em torno de Vós tudo é aflição e perturbação. Aflição extrema no Coração<br />

de Maria e no pugilo de vossos fiéis. Perturbação no universo inteiro: o Sol se obscurece,<br />

a terra treme, o véu do Templo<br />

se cinde, os algozes fogem.<br />

Mas Vós estais em paz. Sim,<br />

porque tudo se consumou.<br />

Porque a iniquidade patenteou<br />

sua infâmia até o fim,<br />

e porque Vós patenteastes<br />

até o extremo vossa<br />

divina perfeição.<br />

Pelos méritos superabundantes<br />

de vossa Paixão<br />

e Morte é dado aos<br />

homens reconhecer toda a<br />

beleza da luz e todo o horror<br />

das trevas. Para que sejam filhos da<br />

luz e irredutíveis inimigos das trevas.<br />

Ao pé da Cruz está Maria. Que sublimes<br />

meditações se dão no íntimo d’Aquela de<br />

quem narra o Evangelho (cf. Lc 2, 51) que,<br />

já nos albores de vossa vida terrena, guardava<br />

no seu Coração todas as coisas que vos diziam<br />

respeito!<br />

Imaculado Coração de Maria, Sede da Sabedoria,<br />

comunicai-me uma centelha, por pequena que<br />

seja, de vossa lucidíssima e ardorosíssima meditação<br />

sobre a Paixão e Morte de vosso Filho, meu<br />

Redentor, para que eu a guarde como fogo sagrado<br />

e purificador no íntimo de minha alma.<br />

(Extraído de Catolicismo n. 148, abril de 1963)<br />

(Acervo particular)<br />

5


Dona Lucilia<br />

Dona Lucilia era uma senhora posta<br />

em proporção ao relacionamento com<br />

uma rainha, mas também com o mais<br />

desafortunado, infeliz e minguado de seus<br />

filhos. A sepultura na Consolação e os<br />

ambientes de seu apartamento parecem<br />

estar impregnados de sua presença.<br />

V<br />

endo fotografias isoladas de<br />

damas da corte britânica no<br />

cortejo ou na tribuna da nobreza,<br />

durante a coroação da atual<br />

Rainha, eu tinha a impressão de<br />

que uma ou outra poderia ser a soberana,<br />

pois, como é próprio da<br />

presença da soberana comunicar algo<br />

de régio àqueles com quem ela<br />

trata, aquelas eram damas conforme<br />

a Rainha.<br />

Nessa perspectiva eu consinto, de<br />

muito bom grado, em atender o pedido<br />

de tratar sobre o “Quadrinho” 1 ,<br />

o ambiente onde mamãe viveu seus<br />

últimos anos, isto é, o apartamento<br />

da Rua Alagoas, primeiro andar, e<br />

também as graças sentidas no Cemitério<br />

da Consolação, junto ao túmulo<br />

dela.<br />

Digna diante da realeza<br />

e na intimidade<br />

National Library of Australia (CC3.0)<br />

Chegada da Rainha Elizabeth II ao 20º Parlamento<br />

Federal, em Camberra, Austrália, no ano de 1954<br />

Não há sobre a face da Terra alguém<br />

mais empenhado em elogiar<br />

o “Quadrinho” do que eu. Ali mamãe<br />

não tem nada de régio, nem deveria<br />

ter, mas ela estaria bem num<br />

ambiente onde houvesse uma rainha.<br />

Ela está retratada em trajes domésticos,<br />

e compreende-se que jun-<br />

6


to de uma nobre ela tivesse um traje<br />

de gala. Se estivesse com uma rainha<br />

na intimidade, ela não precisava ser<br />

diferente para estar consonante com<br />

a majestade real.<br />

Quão atenciosa e respeitosa, quão<br />

transformada em dedicação, em devotamento,<br />

em respeito, em embevecimento,<br />

em desejo de colocar-se<br />

no devido nexo e na devida proporção<br />

com a soberana que ali estivesse<br />

presente!<br />

Talvez alguém poderia se perguntar:<br />

Será que uma joia ou um vestido<br />

de seda não acrescentariam algo<br />

a ela? Eu acho essa pergunta tola,<br />

pois isso iria bem para outra circunstância,<br />

mas não seria necessário para<br />

aumentar a dignidade dela; são coisas<br />

diferentes. Caso as circunstâncias<br />

impusessem, a indumentária seria<br />

outra, não há dúvida; ali mamãe<br />

está na intimidade da casa e a sua<br />

dignidade não precisava ser acrescida<br />

em nada.<br />

Entretanto, se viessem avisá-<br />

-la que em sua casa estava uma rainha,<br />

sem dúvida ela se apressaria em<br />

adornar-se e em pôr o seu melhor<br />

traje de gala. Quando a nobre entrasse,<br />

mamãe estaria naquela mesma<br />

naturalidade. Portanto, no glorioso<br />

cortejo das nobres damas, haveria<br />

um lugar para a senhora do<br />

“Quadrinho”, pois ali ela está em<br />

perfeita proporção com a realeza.<br />

Afabilidade da senhora<br />

do “Quadrinho”<br />

Notem, também, a afabilidade maternal!<br />

Dir-se-ia: “Então é uma matriarca?”<br />

Não propriamente.<br />

No “Quadrinho” mamãe não parece<br />

ter em vista a excelência, o estupendo<br />

resplendor daquilo que um dia ela<br />

alcançaria por meio das suas orações.<br />

Porém, parece ter visto a cada um inserido<br />

naquela mesma intimidade, tratando<br />

com ela, com sua distinção própria,<br />

nas distâncias e até nos afagos, no<br />

calor da intimidade. Se ela, entretanto,<br />

era uma senhora posta em proporção<br />

ao relacionamento com uma rainha,<br />

também não ficaria maior nem menor<br />

ao tratar com o mais desafortunado, infeliz<br />

e minguado dos filhos dela.<br />

Fotos: Arquivo <strong>Revista</strong><br />

7


Dona Lucilia<br />

Consideremos uma imagem<br />

muito piedosa da Santíssima<br />

Virgem como, por exemplo,<br />

Nossa Senhora das Graças.<br />

Imaginemos que no momento<br />

no qual Ela nos fitasse<br />

– como fitou Santa Catarina<br />

Labouré – Deus quisesse<br />

fazer-nos conhecê-La olhando<br />

para Ele. Pois bem, diante<br />

do esplendor e da majestade<br />

de Deus, seu Divino Filho,<br />

Ela seria a mesma.<br />

Se d’Ela se aproximasse Judas<br />

Iscariotes – arrastando-<br />

-se no chão, deitando sangue,<br />

pus e mau cheiro – e dissesse:<br />

“Eu não tenho coragem de<br />

vos olhar...”, tenho a impressão<br />

de que Nossa Senhora diria<br />

“Meu filho”, mesmo se ele<br />

fosse falar-Lhe logo depois de<br />

Ela ter assistido ao sepulcro<br />

de Nosso Senhor sendo fechado e estar<br />

tudo consumado.<br />

Ora, consideremos também o túmulo<br />

do Cemitério da Consolação.<br />

Eu acho muito bonito o fato de que<br />

tudo quanto se tem presente ao ver o<br />

“Quadrinho” torna-se, de algum modo,<br />

sensível a nós estando diante da<br />

sepultura dela. Contudo, eu não seria<br />

favorável à ideia de pôr o “Quadrinho”<br />

lá, pois, pelas suas expressões<br />

próprias, a atmosfera que impregna<br />

o lugar é capaz de dizer coisas<br />

que o “Quadrinho” não diz.<br />

Notem tratar-se de um jazigo convencional,<br />

de um bom granito, com<br />

uma cruz deitada sobre a campa. Não<br />

há nada, na natureza daquele material,<br />

que sugira as impressões que se têm ali.<br />

Alguém perguntará: “Por que o<br />

senhor não mandou fazer uma coisa<br />

que sugerisse essas impressões?”<br />

Eu não tinha nenhum elemento<br />

para achar que deveria ser diferente,<br />

e que aos olhos dos homens ela fosse<br />

outra coisa além de uma senhora<br />

de família tradicional, sepultada no<br />

Cemitério da Consolação. Meu sistema,<br />

nesses assuntos, é andar passo<br />

a passo enquanto não houver indícios<br />

para supor que algo vai se dar, e<br />

como não havia dados, então agi de<br />

acordo com a convenção.<br />

O resultado foi bom, porque o encanto<br />

que se sente lá não tem explicação,<br />

e se o granito fosse róseo ou de<br />

uma outra cor mais festiva, dir-se-ia:<br />

“De longe vimos o granito maravilhoso”.<br />

E não é assim. O granito escuro é<br />

digno e sério, não é senão isso.<br />

Ambientes impregnados<br />

da presença de mamãe<br />

Analisemos agora a residência dela.<br />

Eu noto no apartamento a mesma<br />

atmosfera do “Quadrinho” e da sepultura.<br />

Os salões, a sala de jantar e<br />

o hall possuem um ornato que contribui,<br />

a seu modo, para exprimir muito<br />

de sua alma. Nesses ambientes figuram<br />

objetos antigos da família de mamãe,<br />

com os quais ela se sentia muito<br />

autêntica e muito à vontade.<br />

Com exceção da cadeira de balanço<br />

que está ligada ao passado da família,<br />

os demais móveis foram mandados<br />

fazer por meu pai, no Liceu de Artes<br />

e Ofícios, quando eu ainda era<br />

menino, e são de um estilo usado<br />

na Belle Époque 2 , antes da I<br />

Guerra Mundial. Aquele estilo<br />

artístico encontra-se caracterizado<br />

no alto das estantes.<br />

Dona Lucilia possuía um<br />

relógio inglês fabricado em<br />

madeira – modesto, digno,<br />

bom – e também uma escrivaninha<br />

conexa com ele. O sofá,<br />

eu mandei fazer posteriormente,<br />

mas não é moderno.<br />

As cortinas datam do tempo<br />

de mamãe, e também são<br />

acortinados convencionais.<br />

Quando se entra em algum<br />

daqueles ambientes, tem-se a<br />

impressão de que ela está presente.<br />

Eu acho ainda mais expressivos<br />

os dois salões contíguos,<br />

em um dos quais está<br />

a imagem do Sagrado Coração<br />

de Jesus diante da qual ela rezava<br />

tanto e tanto.<br />

A mesinha redonda junto ao sofá<br />

do escritório não existia no tempo<br />

de mamãe, porque era onde eu ficava<br />

conversando com ela. Entretanto,<br />

quando ela veio a faltar, eu mandei<br />

colocar ali esse móvel junto com<br />

um abat- jour para preencher – pobre<br />

preencher! – a sua ausência, enquanto<br />

eu lia um pouco, deitado durante as<br />

sestas.<br />

Enfim, tem-se a impressão de que<br />

tudo está impregnado da presença<br />

dela. <br />

v<br />

(Extraído de conferência de<br />

28/9/1981)<br />

1) Quadro a óleo, que muito agradou<br />

a <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, pintado por um de seus<br />

discípulos, com base nas últimas fotografias<br />

de Dona Lucilia. Cf. <strong>Revista</strong><br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n. 119, p. 6-9.<br />

2) Do francês: Bela Época. Período entre<br />

1871 e 1914, durante o qual a Europa<br />

experimentou profundas transformações<br />

culturais, dentro de um clima<br />

de alegria e brilho social.<br />

8


Reflexões teológicas<br />

Gabriel K.<br />

Jesus bebeu o<br />

cálice da morte<br />

gota a gota<br />

Em sua Paixão, Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo passou por todas as formas e<br />

graus de dor, e entrou nelas com passo<br />

digno, sereno, firme e sem hesitação,<br />

caminhando para a Cruz como um rei<br />

caminharia ao trono de sua coroação.<br />

Quando analisamos cada lance<br />

da Paixão, seja física ou espiritual,<br />

notamos não ter sido<br />

poupado nada de Nosso Senhor. Ele<br />

entrou no abismo mais profundo da<br />

dor com passo de herói, assumiu todos<br />

os padecimentos possíveis e Se<br />

apresentou resplandecente de sofrimento<br />

ante a justiça do Padre Eterno.<br />

E assim salvou o gênero humano.<br />

Multidões do povo eleito<br />

afluíam a Nosso Senhor<br />

É interessante examinar, ponto<br />

por ponto, o anoitecer, o “Ofício<br />

de Trevas” dentro de Nosso Senhor,<br />

considerado no plano da sua humanidade<br />

santíssima.<br />

Jesus teve no primeiro ano de sua<br />

vida pública a alegria, o bom êxito,<br />

a correspondência de amor das multidões<br />

do povo eleito afluindo a Ele.<br />

Entretanto, sabia que isso tudo – vejam<br />

a amargura! – daria um número<br />

pequeno de conversões e excitaria os<br />

fariseus a determinarem a sua morte.<br />

Se Nosso Senhor tivesse muito<br />

menos adeptos, poderia não ter sido<br />

morto. Mataram-No por causa<br />

do sucesso desse primeiro ano. E nas<br />

multidões que O adoravam, Ele via o<br />

êxito como o primeiro passo do degrau<br />

o qual ia levá-Lo ao alto do patíbulo.<br />

Os Apóstolos e as outras pessoas<br />

não sabiam. Ele sim.<br />

Mais ainda. O Redentor via esse,<br />

aquele, aquele outro na plenitu-<br />

Nosso Senhor atado<br />

Sevilha, Espanha<br />

9


Reflexões teológicas<br />

de momentânea da vocação, da alegria,<br />

e cuja beleza de alma O encantava.<br />

Entretanto, Ele sabia que um deles<br />

ia apedrejá-Lo, um outro havia de<br />

abandoná-Lo, outro ainda caluniá-<br />

-Lo, dar risada ao denegri-Lo, insinuando<br />

ser verdadeira aquela calúnia.<br />

Nosso Senhor tinha tudo isso presente<br />

e, portanto, carregava diante de Si<br />

a enormidade desses tormentos.<br />

Tenho a impressão de que as calúnias<br />

só começaram a se espalhar depois<br />

de um certo trabalho do sinédrio junto<br />

aos que O seguiam, entibiando alguns<br />

e pondo outros contra Ele, de maneira<br />

àquela multidão se apresentar frouxa<br />

e desunida. E Jesus viu o crepúsculo<br />

da frouxidão baixando, à medida do aumento<br />

do número dos milagres.<br />

A ressurreição de Lázaro<br />

No segundo ano, quando Nosso Senhor<br />

tinha acumulado o castelo das<br />

suas maravilhas, Ele entra numa espécie<br />

de duelo com a frouxidão, porque<br />

a multidão procura escapar das suas<br />

Photo. R.M.N. / R.-G. Ojéda (CC3.0)<br />

Flávio Lourenço<br />

Multiplicação dos pães e peixes - Museu Condé, Chantilly, França<br />

Ressurreição de Lázaro - Museus<br />

Reais de Belas Artes, Bruxelas<br />

mãos. Ele busca retê-la fazendo maravilhas<br />

maiores. E fica colocado diante<br />

dessa situação humanamente insolúvel:<br />

quanto mais Ele faz maravilhas,<br />

tanto mais a multidão vai se tornando<br />

insensível e indiferente.<br />

Um indivíduo poderia comentar:<br />

“Ele ressuscitou um morto; essa foi<br />

a última coisa que fez?” E riria como<br />

quem diz: “Eu estou farto disso, desejo<br />

voltar para minha vidinha; maravilhas<br />

afastai-vos de mim, quero a banalidade!”<br />

E quando Jesus levou ao auge<br />

seus milagres, teve conhecimento<br />

da sentença de morte. Na ressurreição<br />

de Lázaro, Ele soube que resolveram<br />

matá-Lo. Ele conhecia tudo e, quando<br />

foi para a casa de Lázaro festejar a ressurreição,<br />

de fato comemorava a morte,<br />

porque a ressurreição de Lázaro foi<br />

o começo da morte d’Ele.<br />

Não sei se notam quanto tudo isso<br />

é pungente do ponto de vista da<br />

tristeza. Para usar uma expressão errada,<br />

mas que significa um pouco o<br />

que eu quero dizer, envenenava, metia<br />

o sabor amargo nas mais legítimas<br />

e esplendorosas alegrias.<br />

Imaginem o ambiente da casa de<br />

Lázaro, na qual Ele gostava de estar,<br />

logo após sua ressurreição. Os Apóstolos,<br />

a família de Lázaro, pessoas do<br />

lugar que vinham, O adoravam. Nosso<br />

Senhor sabia que a maior parte daquelas<br />

coisas todas ia dar em nada. E<br />

Ele, para o bem daquelas almas, comia<br />

o festim e Se alegrava. Entretanto,<br />

no íntimo do seu Coração, Ele<br />

10


chorava porque compreendia o que<br />

estava acontecendo. Só esse episódio<br />

daria um drama do outro mundo. O<br />

drama de tragédia grega não seria nada<br />

em comparação com isso.<br />

Ele devia sentir também a reação<br />

dos que lá estavam: já não era a mesma<br />

de outrora, com exceção de Nossa<br />

Senhora e de algumas santas mulheres.<br />

Os acontecimentos vão se sucedendo<br />

e Jesus alcança um triunfo, contudo,<br />

percebe o bafo desse triunfo. Quer dizer,<br />

o povinho queria aclamá-Lo, porém<br />

não em termos de romper com os<br />

fariseus, esperava que estes O entronizassem.<br />

Se os fariseus não o fizessem, o<br />

povinho seguiria a eles. E fizeram para<br />

Nosso Senhor aquela comemoração –<br />

a festa da ingenuidade, não do inocente,<br />

ingenuidade do mole, tão diferente<br />

da do inocente. E Ele, passando no<br />

meio daqueles hosanas, percebia perfeitamente<br />

o que vinha depois.<br />

Losango da dor<br />

Em todos esses passos, é preciso dizer<br />

desde já, impressiona notar Nosso<br />

Senhor, por desígnio do Padre Eterno,<br />

sofrendo aquela dor e não consentindo<br />

apenas que o sofrimento caísse sobre<br />

Si, mas indo de encontro a ele. Jesus<br />

Se afundava no vértice baixo, mais<br />

terrível, do losango da dor.<br />

A vida humana pode ser comparada<br />

a um losango com duas pontas, a de<br />

baixo a dor, a do alto o gáudio. Nosso<br />

Senhor desceu ao mais fundo do losango<br />

da dor, em cada um desses casos<br />

concretos, com uma probidade,<br />

uma integridade e uma obediência<br />

que lembram o Ecce ancilla Domini,<br />

fiat mihi secundum verbum tuum (Lc 1,<br />

38) 1 . Ele foi até o fim, de cabeça alta,<br />

na atitude que nós O vemos no Santo<br />

Sudário. Assim Jesus caminhou.<br />

Isso se torna mais pungente na<br />

Quinta-Feira Santa, em que se festeja<br />

o ápice da obra d’Ele. O Divino<br />

Salvador institui a Missa, a Eucaristia,<br />

o Sacramento da Penitência, e<br />

com isso o edifício da Igreja fica, em<br />

certo sentido da palavra, concluído.<br />

Entrada em Jerusalém - Museu Hermitage, São Petersburgo<br />

Hermitage Torrent (CC3.0)<br />

11


Reflexões teológicas<br />

Flávio Lourenço<br />

Jesus dá a Comunhão aos<br />

Apóstolos - Museu Grão<br />

Vasco, Viseu, Portugal<br />

O povo judaico estava<br />

todo em festa, comemorando<br />

a passagem<br />

do Mar Vermelho,<br />

a Páscoa. E Nosso<br />

Senhor, nesse ambiente<br />

de gáudio geral,<br />

via com certeza os Apóstolos<br />

participarem daquela<br />

alegria. Ele faz a festa e completa<br />

a sua obra sem desfalecer. Podemos<br />

conjecturar o misto de sua<br />

alegria e tristeza, pois sabia que dali<br />

a algumas horas a grande tragédia<br />

deveria começar.<br />

Imaginemos a tristeza do Redentor<br />

lavando os pés de Judas, São Pedro,<br />

São João, pensando no que fariam<br />

em seguida. Depois distribuindo<br />

a Eucaristia e passando a ter Presença<br />

Real dentro de cada um deles,<br />

tão pífios, tão abaixo da tarefa... São<br />

Pedro, o Príncipe da Igreja d’Ele,<br />

haveria de fazer o que fez!<br />

Gabriel K.<br />

Inflexibilidades do Pai Celeste<br />

Terminado o festim, todas as dores<br />

grandes e pequenas confluíram.<br />

Começou a agonia terrível, na qual<br />

Ele teve a representação de tudo o<br />

que sucederia e, na sua inteligência,<br />

na sua Alma santíssima, o quis<br />

com uma tal integridade que sofreu<br />

a desproporção entre a dor que vinha<br />

e as forças que possuía. Ele sentiu-Se<br />

esmagado. Apesar disso, fez<br />

um ato de submissão. Ele suou Sangue<br />

e pediu ao Padre Eterno: “Faça-<br />

-se a vossa vontade e não a minha!”<br />

(Cf. Lc 22, 42).<br />

Nosso Senhor possuía uma força<br />

divina que não tem nada de comum<br />

com a fraqueza, porém teve a aparência<br />

da fraqueza. Ele disse “Faça-<br />

-se a vossa vontade e não a minha”,<br />

como quem intuía ou conhecia que<br />

Jesus lava os pés dos<br />

Apóstolos - Capella degli<br />

Scrovegni, Pádua<br />

a vontade do Pai Celeste tinha inflexibilidades;<br />

Jesus estava esbarrando<br />

numa delas, na qual Ele Se esmagaria.<br />

Vem um Anjo e Lhe dá uma força<br />

que não era um consolo para sofrer<br />

menos, mas uma capacidade para<br />

padecer mais. Há, então, o abandono<br />

dos Apóstolos, etc.<br />

Em cada passo, vemos o horror<br />

alcançando o inimaginável. Ele entra<br />

nesse horror, reveste-Se dele e<br />

bebe o cálice da dor. E isso a cada<br />

minuto. Por exemplo, tiram-Lhe a<br />

túnica, toda empapada de Sangue já<br />

seco em alguns lugares e, portanto,<br />

colada às feridas. Na hora de puxá-<br />

-la, uma dilaceração sem nome! Es-<br />

tou certo de que um homem, sem<br />

as forças que Ele teve, ficaria louco,<br />

morreria de dor.<br />

Essa túnica presumivelmente foi<br />

jogada no chão e o Sangue precioso<br />

começou a secar ali.<br />

Imaginem se tivéssemos uma camisa<br />

ensanguentada com o nosso<br />

próprio sangue e este esfriasse, coagulasse,<br />

e depois precisássemos vesti-la<br />

sobre a carne viva. É verdade<br />

que não há nada na Terra comparável<br />

ao Sangue d’Ele, contudo se<br />

compreende o que quero ponderar.<br />

Deram pontapés, cuspiram, pisaram<br />

na túnica. Deve ter sucedido o<br />

inimaginável. Ora, dentro do conjunto<br />

de tormentos pelos quais Ele<br />

passou, isso é uma bagatela.<br />

Em cada um desses passos<br />

aconteceu o pior previsível.<br />

Ele os tomou por inteiro<br />

sem um minuto de adiamento.<br />

Em nenhum<br />

instante da Paixão o<br />

Redentor pede para<br />

terem pena d’Ele e<br />

adiarem um pouco para<br />

poder respirar.<br />

Oração no Horto - Museu de<br />

Belas Artes, Córdoba, Espanha<br />

Flávio Lourenço<br />

12


Teodoro Reis<br />

Jesus é condenado à morte<br />

Jesus leva a Cruz às costas<br />

Jesus cai pela primeira vez<br />

Encontro de Jesus com sua Mãe<br />

Jesus ajudado pelo<br />

Cireneu a levar a Cruz<br />

A Verônica enxuga o<br />

rosto de Jesus<br />

Jesus cai pela segunda vez<br />

Jesus consola as filhas<br />

de Jerusalém<br />

Até o Padre Eterno<br />

e o Espírito Santo<br />

O abandonaram<br />

Quando Ele cai debaixo da Cruz é<br />

porque as forças não aguentavam. Logo<br />

que pôde levantou-a e continuou,<br />

sofrendo tudo com serenidade única,<br />

como se não estivesse padecendo nada.<br />

Acredito que Pilatos, de dentro das banhas,<br />

do conforto dele, tenha tido inveja<br />

do bem-estar de Nosso Senhor.<br />

Nosso Senhor é obrigado a esta<br />

ação atroz de caminhar carregando a<br />

sua própria Cruz para o lugar onde<br />

o tormento chegaria ao auge. Quer<br />

dizer, cada passo dado Ele não era<br />

para a própria libertação. Porque se<br />

Lhe dissessem “Se subires esse morro,<br />

no alto estarás liberto”, teria um<br />

alívio. Ao contrário, os algozes como<br />

que afirmavam “Sobes esse morro<br />

e quando chegares ao cume terás<br />

o pior. Agora anda!” Ele sobe e em<br />

seguida começa a crucifixão.<br />

Tem-se a impressão de isso não<br />

ser nada em comparação com o que<br />

veio depois, ou seja, todo o demorado<br />

processo mortal da crucifixão. Ele<br />

podia morrer de uma apoplexia, de<br />

um momento para outro. Não. Jesus<br />

não bebeu o cálice da morte de um<br />

trago só, mas gotinha por gotinha,<br />

tomando-lhe todo o sabor. Ele sentiu-Se<br />

morrer aos milímetros, sendo<br />

cada um deles uma pequena morte.<br />

Nosso Senhor transpôs cada milímetro<br />

até o fim, e quis que o mundo<br />

soubesse não ter tido Ele consolação<br />

nenhuma até no gemido final. O Padre<br />

Eterno e o Divino Espírito Santo<br />

O abandonaram.<br />

A Humanidade santíssima de Jesus<br />

ficou abandonada. A Divindade<br />

– unida à Humanidade na união<br />

hipostática – tornou-se fechada para<br />

Ele. E o que no Redentor havia<br />

de natureza humana permaneceu<br />

na noite mais completa e escura,<br />

a ponto de arrancar aquele brado<br />

indicativo de duas coisas lindas:<br />

a pungência tremenda da dor e, de<br />

outro lado, tudo quanto de força<br />

restava ainda naquele Homem. “Iesus<br />

autem iterum clamans voce magna...”<br />

– “Jesus clamou de novo em<br />

alta voz...” E depois: “...emisit spiritum.”<br />

2 (Mt 27, 50).<br />

É o auge da dor previsto e aceito<br />

de longe por uma preparação da Alma<br />

para isso.<br />

Ajuda da graça<br />

Para fazer uma meditação sobre<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo é preciso<br />

tomar em consideração tudo isso.<br />

Como pode falar em Contra-Revolução<br />

quem não tem a alma bem<br />

ajustada nesse ponto?<br />

Concretamente, consiste em compreender<br />

algo paradoxal: essa vida<br />

é a mais terrível que se possa imaginar...<br />

exceto a do pecador. Porque é<br />

duríssima, mas a pessoa tem forças,<br />

tranquilidade, estabilidade, limpezas<br />

13


Reflexões teológicas<br />

de alma que já são nesta<br />

Terra pelo menos algo<br />

do cêntuplo do que ela irá<br />

receber.<br />

Como Pilatos deve ter<br />

invejado a felicidade de<br />

Nosso Senhor! O pecador<br />

inveja a pessoa que vive<br />

assim, e é injusto porque<br />

está pronto a caluniá-<br />

-la. Essa pessoa é o seu<br />

remorso em pé diante dele,<br />

e ele calunia seu próprio<br />

remorso para ter sossego.<br />

Sabe porém ser um<br />

desgraçado, e a felicidade<br />

existente nesta Terra é<br />

aquela.<br />

A dor de encontro à<br />

qual a pessoa caminha com<br />

passo firme de algum modo<br />

diminui. Quando nos<br />

esquivamos, ela vai crescendo<br />

à medida em que<br />

fugimos. Com isso vamos<br />

minguando, e na hora de<br />

ela nos estraçalhar não somos<br />

nada.<br />

Quanto mais o indivíduo<br />

previr de longe a dor,<br />

tanto menos ela lhe doerá.<br />

E a verdadeira ascese<br />

consiste na longa previsão,<br />

colocando-se nas<br />

mãos da Providência. Não<br />

tem outro remédio. E,<br />

paradoxalmente falando,<br />

nós temos aí o nosso cálice<br />

do Horto das Oliveiras,<br />

quer dizer, o líquido<br />

que nos dá força. Isso supõe não dizer<br />

“Na hora do drama serei um herói”,<br />

mas “na hora do draminha serei<br />

um herói”. Nas pequenas coisas<br />

da vida cotidiana deverei ser um herói<br />

também.<br />

Moisés no alto do<br />

Monte Nebo<br />

Teodoro Reis<br />

Isto não tem a seguinte conclusão:<br />

cada vez que se apresenta a perspec-<br />

Jesus cai pela terceira vez<br />

Jesus pregado na Cruz<br />

Jesus descido da Cruz<br />

Jesus despojado de suas vestes<br />

Jesus morre na Cruz<br />

Jesus posto no Sepulcro<br />

tiva de uma dor para nós, não devemos<br />

pedir o afastamento dela. A oração<br />

pode distanciar sofrimentos de<br />

nós. Assim como a Providência não<br />

só permite, mas quer – e a doutrina<br />

da Igreja estimula – que diminuamos<br />

as dores das almas no Purgatório,<br />

também, como muitas pessoas<br />

recebem uma parte desse tormento<br />

nesta Terra, é legítimo rogar que seja<br />

livrado isso delas. E muitas vezes<br />

a Providência de modo misericordioso<br />

as liberta. De maneira<br />

que não estou pregando<br />

a atitude do Múcio Scevola<br />

3 com a mão em cima<br />

do braseiro. A nota católica<br />

consiste em tudo isso,<br />

porém com os olhos postos<br />

nas misteriosas inflexibilidades<br />

de Deus.<br />

Recentemente eu estava<br />

falando a respeito do<br />

modo de Deus agir com<br />

Moisés. O Profeta levou<br />

o povo eleito até às proximidades<br />

da Terra Prometida,<br />

e o Criador lhe disse<br />

que ali morreria em castigo<br />

de uma infidelidade.<br />

Moisés rogou a Deus com<br />

insistência para poder entrar<br />

na Terra Prometida,<br />

a fim de vê-la. O Criador<br />

não achou o pedido estúrdio,<br />

julgou razoável e até<br />

o levou ao cimo do Monte<br />

Nebo, de onde pôde contemplar<br />

toda a Terra Prometida.<br />

Moisés havia insistido<br />

no pedido, mas Deus<br />

lhe disse: “Basta!” São<br />

das tais inflexibilidades,<br />

as quais são adoráveis. De<br />

um modo ou doutro, a alma<br />

sente isso e deve estar<br />

pronta para todos os<br />

élans de esperança e de<br />

confiança, e também de<br />

resignação.<br />

Morre Moisés, o homem<br />

fiel entre todos, a bem dizer<br />

condenado à morte por Deus. É uma<br />

coisa espantosa! O Criador o amava<br />

tanto que escondeu o seu corpo; ninguém<br />

sabe onde se encontra. O olhar<br />

de Deus pousa sobre esse corpo até<br />

a ressurreição dos mortos. Moisés<br />

esteve presente na Transfiguração,<br />

contudo aguentou milênios de Limbo.<br />

Um decreto inexorável sobre ele<br />

se abateu. E Moisés adorou esse decreto<br />

divino.<br />

14


Papel da confiança<br />

Assim também há no que estou dizendo<br />

um claro-obscuro. Primeiro,<br />

a ajuda de Nossa Senhora para nós<br />

conseguirmos ter força. Não acredito<br />

que algum homem, sem o auxílio da<br />

Santíssima Virgem, possa fazer isso.<br />

De outro lado, as exorabilidades<br />

adoráveis de Deus, ainda mais quando<br />

se suplica como intermediária a<br />

Mãe d’Ele, a gloriosa intercessio Beatæ<br />

Mariæ Virginis. E se podem conseguir<br />

coisas espantosas, porém sempre<br />

fica este ponto: uma inexorabilidade<br />

poderá baixar sobre nós. Nesta<br />

hora devemos saber fazer como<br />

Moisés: ele morreu sereno nas mãos<br />

de Deus.<br />

Se quisermos meditar com seriedade<br />

a Paixão, encontramos isso. E,<br />

quanto a Nossa Senhora, não se pode<br />

imaginar que a uma mera criatura<br />

seja pedido tanto quanto foi rogado<br />

a Ela.<br />

Imaginem o cuidado e carinho da<br />

Virgem Maria a Jesus enquanto menino,<br />

depois enquanto mocinho, moço,<br />

com que afeto Ela bordou a túnica<br />

inconsútil! E aquele Corpo o qual<br />

Nossa Senhora havia amado tanto,<br />

aquela Alma que Ela procurara encher<br />

de consolações – e sabia ter enchido<br />

– se encontrava naquele mar<br />

de tormentos. Ela estava conjugada<br />

com o inexorável de Deus e quis que<br />

Jesus morresse.<br />

Não temos ideia do que isso representa.<br />

Se devêssemos sentir em nós<br />

uma fagulha, morreríamos de dor.<br />

O papel da confiança é muito bonito<br />

nesse ponto. Ela é a virtude pela<br />

qual de modo misterioso discernimos<br />

o que não é o inexorável e conseguimos<br />

fazê-lo recuar em algo. A<br />

confiança é tão poderosa, creio que<br />

um pouco do próprio inexorável às<br />

vezes recua.<br />

É uma coisa curiosa, mas confiamos<br />

que não virão sobre nós as dores<br />

as quais sentimos não estarem normalmente<br />

em nosso caminho. Cada<br />

um de nós tem uma noção confusa<br />

de qual é o caminho das nossas<br />

dores. Também sentimos quando esbarramos<br />

no próprio inexorável. E aí<br />

a confiança muda de nome e se chama<br />

resignação. Porém, o mais terrível<br />

é quando vem a prova axiológica<br />

4 , porque a pessoa perde a noção<br />

do exorável e do inexorável.<br />

Essa é uma meditação sincera sobre<br />

a Semana Santa. Também é preciso<br />

dizer: por trás de tudo isso estão<br />

as glórias e as esperanças da Ressurreição.<br />

Quantas coisas na nossa<br />

vida foram à maneira de ressurreição!<br />

E virá, sobretudo, a ressurreição<br />

final de todos nós. Isto não é,<br />

portanto, um horizonte esmagador.<br />

As palavras de Nosso Senhor<br />

no alto da Cruz: “Meu Deus, meu<br />

Deus, por que Me abandonastes?”<br />

(Mt 27, 46) são o início de um Salmo<br />

profetizando a Ressurreição e a<br />

vitória.<br />

v<br />

(Extraído de conferência de<br />

31/3/1983)<br />

1) Do latim: Eis a escrava do Senhor, faça-se<br />

em mim segundo a tua palavra.<br />

2) Do latm: entregou a alma.<br />

3) Herói da Antiguidade romana que,<br />

por ocasião de uma guerra ocorrida<br />

em 508 a.C., para dar mostra de sua<br />

coragem, queimou sua mão direita<br />

diante de seus inimigos.<br />

4) Axiologia provém do latim axis, is:<br />

eixo. Assim, na concepção de <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong>, a palavra “axiologia” e os seus<br />

derivados fazem sempre referência ao<br />

“eixo” que deve nortear a vida da pessoa,<br />

isto é, o fim para o qual o homem<br />

é criado e sua vocação específica, em<br />

torno do que devem girar todas as suas<br />

ideias, volições e atividades.<br />

Nossa Senhora das Angústias - Igreja de Santo<br />

Agostinho, Córdoba, Espanha<br />

Flávio Lourenço<br />

15


De Maria nunquam satis<br />

João Ligório<br />

Poder maravilhoso de se<br />

comunicar com as pessoas<br />

O quadro de Nossa Senhora do Bom Conselho de Genazzano<br />

tem um poder maravilhoso de fazer com que as pessoas entrem<br />

em comunicação com a Mãe de Deus. Ele muda de colorido e<br />

Maria Santíssima ora parece alegre, satisfeita e risonha, ora<br />

apresenta um aspecto de tristeza. Sem que se possa dizer que<br />

haja um movimento nos traços do afresco, ele exprime por<br />

esta forma a inúmeros fiéis aquilo que a Virgem deseja.<br />

No dia 26 de abril, comemora-<br />

-se a festa de Nossa Senhora<br />

do Bom Conselho de Genazzano,<br />

instituída a propósito do célebre<br />

afresco da Mãe de Deus que se<br />

venera na igreja dos agostinianos, na<br />

cidade de Genazzano, Itália.<br />

Scanderbeg, um guerreiro<br />

valorosíssimo<br />

As informações que darei foram<br />

tiradas de um livro sobre Nossa Senhora<br />

do Bom Conselho. A razão da<br />

compra desta obra, de minha parte,<br />

foi que em pequeno eu rezava muito<br />

diante de um quadro dessa invocação,<br />

o qual se encontrava no altar-mor<br />

da antiga capela do Colégio<br />

São Luís e tem uma história milagrosa,<br />

cujos pormenores não me lembro,<br />

mas que está ligada ao martí-<br />

16


Gabriel K.<br />

Gabriel K.<br />

Aparição do afresco na cidade de Genazzano. À esquerda, soldados<br />

acompanham a saída do quadro de Scútari. Pinturas de Prospero Piatti.<br />

Dave Proffer (CC3.0)<br />

rio dos quarenta jesuítas que vieram<br />

evangelizar o Brasil.<br />

Vendo esse livro, comprei-o e<br />

confesso que me encheu de admiração.<br />

De fato, tudo quanto ali<br />

diz respeito à história do<br />

afresco e à devoção a Mãe do Bom<br />

Conselho é uma verdadeira maravilha!<br />

Em duas palavras a história desse<br />

quadro é a seguinte: a Albânia, no<br />

século XV, era um Estado cristão capitaneado<br />

por um general chamado<br />

Scanderbeg, um guerreiro valorosíssimo<br />

que lutava contra as hordas turcas<br />

as quais estavam tentando avançar<br />

pela Europa adentro.<br />

Scanderbeg era um homem bastante<br />

religioso e que se colocava<br />

sob a proteção de Nossa Senhora do<br />

Bom Conselho, da qual havia na Albânia<br />

um santuário nacional muito<br />

frequentado. Enquanto Scanderbeg<br />

viveu, a luta contra os turcos foi vitoriosa.<br />

Ele reunia em si todo o valor<br />

e toda a combatividade da nação<br />

albanesa. Era um grandíssimo homem,<br />

mas o povo albanês estava em<br />

decadência e por causa disto provavelmente<br />

a resistência cessaria quando<br />

ele morresse. Os últimos lances<br />

de sua vida foram extraordinários.<br />

Numa ocasião ele se encontrava deitado,<br />

agonizando, quando veio a notícia<br />

de que os turcos estavam chegando<br />

às portas da cidade. Quando<br />

ele ouviu isto, fez uma oração a Nossa<br />

Senhora e pediu-Lhe forças para<br />

combater. Levantou-se do leito e<br />

foi de encontro aos turcos. Ele tinha<br />

dois auxiliares que o ajudavam porque<br />

quase não aguentava mais dirigir<br />

a batalha. Depois, voltou para<br />

a cama e faleceu. Assim morre um<br />

verdadeiro herói católico, um devoto<br />

de Nossa Senhora na sua acepção<br />

mais exata e mais adamantina. É<br />

uma verdadeira beleza!<br />

As águas do mar se<br />

tornaram sólidas<br />

Mas dois amigos albaneses, que<br />

eram filhos da luz, notando o declínio<br />

da Albânia e prevendo que o país<br />

cairia quando morresse Scanderbeg,<br />

resolveram ir ao Santuário de Nossa<br />

Senhora do Bom Conselho a fim<br />

de pedir luzes a respeito do que deveriam<br />

fazer: ficar na Albânia realizando<br />

uma certa resistência e algum<br />

apostolado debaixo das hordas turcas,<br />

ou ir para a Itália. Tanto mais que<br />

um número muito grande de albaneses<br />

já estava fugindo para lá, e parecia-lhes<br />

mais indicado emigrarem.<br />

Chegando ao Santuário, rezaram e<br />

ficaram de voltar no dia seguinte para<br />

ter uma solução do caso. Qual não<br />

foi a surpresa deles quando verificaram<br />

que o quadro se destacara da parede,<br />

deu uma espécie de giro dentro<br />

da igreja, saiu pela porta e foi andando<br />

no ar lentamente. Eles acompanharam<br />

o afresco que, quando chegou<br />

ao mar, continuou a andar aci-<br />

Scanderbeg - Parque<br />

de Pristina, Kosovo<br />

17


De Maria nunquam satis<br />

Gabriel K. / Rodrigo C. B.<br />

Fachada do Santuário da Virgem Mãe do Bom Conselho, Genazzano<br />

ma das águas. Os dois amigos, então,<br />

prosseguiram sua caminhada sobre o<br />

mar, que se tornou sólido debaixo dos<br />

seus pés, sempre acompanhando o<br />

quadro. Assim, chegaram à Itália.<br />

É uma grande caminhada, mas eu<br />

acho que não é o caso de interpor aqui<br />

perguntas e críticas, porque Nossa Senhora<br />

tem o poder de fazer um quadro<br />

andar pelos ares e de dar consistência<br />

às águas. E pode conceder a<br />

dois homens a possibilidade física de<br />

atravessar uma grande extensão, caminhando<br />

sobre as águas solidificadas.<br />

Na Itália, o quadro sumiu misteriosamente<br />

da vista deles. Então, empreenderam<br />

– isso é muito medieval<br />

ainda – andar por todo o país a fim de<br />

ver onde tinha ido parar, porque não<br />

Beata Petruccia<br />

queriam se separar dele. Assim como<br />

a estrela desapareceu da vista dos<br />

Reis Magos quando chegaram a Jerusalém,<br />

assim também o quadro sumiu<br />

para esses dois albaneses.<br />

Uma nuvem brilhante desceu<br />

sobre o terreno de Petruccia<br />

Havia em Genazzano – uma pequena<br />

cidade da Itália, que era feudo dos<br />

Príncipes de Colonna, uma grande família<br />

nobre romana – uma mulher anciã<br />

chamada Petruccia que dizia ter<br />

vocação de construir uma igreja. Era<br />

uma senhora isolada, meio mendiga,<br />

um pouco maníaca e todo mundo<br />

debicava dela. Em certo momento,<br />

Petruccia conseguiu que lhe dessem<br />

um terreno para edificar<br />

uma igreja em louvor<br />

de Nossa Senhora.<br />

Mais tarde, obteve<br />

um pouco de material<br />

da construção<br />

e, assim, levantou-<br />

-se algo a maneira<br />

de um muro numa<br />

parte do terreno.<br />

Depois os trabalhos<br />

pararam porque ela<br />

não recebeu mais auxílios.<br />

E toda a molecada,<br />

quando encontrava a Petruccia<br />

na rua, dizia para ela:<br />

— Ei, Petruccia, cadê a igreja?<br />

Quando é que será construída?<br />

Não é preciso ter muita imaginação<br />

para dar o alinhamento geral da<br />

cena.<br />

Havia em Genazzano uma feira<br />

para onde afluía grande parte da população.<br />

Certo dia em que Petruccia<br />

estava no meio do povo, de repente<br />

se fez ouvir um estrondo no céu<br />

e apareceu uma nuvem brilhante,<br />

da qual partiam harmonias que desciam<br />

sobre a cidade. A nuvem baixou<br />

sobre o terreno de Petruccia e,<br />

quando desapareceu, encontrou-se<br />

o quadro – que o povo não sabia ser<br />

de Nossa Senhora do Bom Conselho<br />

– encostado junto a uma das paredes,<br />

sem prego, nem apoio, nem suporte,<br />

o que é uma coisa inexplicável.<br />

Foi o grande dia da Petruccia.<br />

Mas ninguém sabia que invocação<br />

era aquela. Nunca se tinha ouvido<br />

falar dela. Era uma manifestação<br />

angélica.<br />

Um belo dia, os dois albaneses,<br />

que estavam à procura do quadro<br />

de Nossa Senhora do Bom Conselho,<br />

tendo ouvido falar, em Roma,<br />

sobre o que havia ocorrido em Genazzano,<br />

desconfiaram naturalmente<br />

que aquele era o quadro de Nossa<br />

Senhora do Bom Conselho.<br />

Foram para lá, se prostraram<br />

diante do afresco, rezaram. Comu-<br />

18


nicaram ao povo que se tratava do<br />

quadro de Nossa Senhora do Bom<br />

Conselho, da Albânia, que eles tinham<br />

visto partir para não se deixar<br />

subjugar pelos turcos.<br />

O quadro se mantém<br />

junto à parede de um<br />

modo miraculoso<br />

A igreja se tornou um lugar das<br />

múltiplas romarias partidas dos vários<br />

Estados italianos, antes da abominável<br />

unificação da Itália. A romaria<br />

andava em fila, homens separados<br />

das mulheres, havia proibição de estar<br />

prestando atenção nas coisas do<br />

caminho, devia-se o tempo inteiro rezando<br />

o Rosário, cantando ladainhas<br />

em louvor de Nossa Senhora, parando<br />

nos lugares ermos – onde não houvesse<br />

possibilidade de escândalo – para<br />

comer, e continuando a caminhada<br />

até chegar a Genazzano.<br />

Mesmo nos dias de enchentes, em<br />

que pessoas acabam dormindo até<br />

nas ruas, o quadro de Nossa Senhora<br />

continua junto à parede, mas não<br />

encostado nela, de maneira que ele<br />

se mantém de um modo miraculoso.<br />

Há, então, chuvas de graças que o<br />

afresco espalha para todas<br />

as pessoas.<br />

Essas graças são muitas<br />

vezes de curas, porém<br />

o forte não é propriamente<br />

a graça de cura,<br />

mas um poder maravilhoso<br />

de, sem praticar<br />

um milagre evidente, se<br />

comunicar com um grande<br />

número de pessoas<br />

que vão consultar a Santíssima<br />

Virgem a respeito<br />

de padecimentos espirituais,<br />

dúvidas, problemas.<br />

A meu ver, a ideia<br />

relacionada com o afresco<br />

é a seguinte:<br />

O quadro muda de colorido,<br />

ora toma uma cor<br />

brilhante e Nossa Senhora<br />

parece alegre, satisfeita e risonha,<br />

ora adquire cores que Lhe dão<br />

um aspecto de tristeza. E sem que se<br />

possa dizer que haja um movimento<br />

nos traços do afresco, entretanto<br />

é verdade que ele exprime por esta<br />

forma a inúmeros fiéis aquilo que<br />

Ela quer, e muitos acabam entendendo<br />

isto e passam a ter com a Mãe<br />

de Deus uma comunicação, resolvendo<br />

problemas importantíssimos.<br />

Mudanças de fisionomia<br />

de Nossa Senhora<br />

O quadro é veneradíssimo, e o livro<br />

apresenta atestados importantes<br />

de pessoas que reconheceram mudanças<br />

da fisionomia de Nossa Senhora.<br />

Um dos atestados mais interessantes<br />

é de um pintor de certa<br />

celebridade de Gênova, que recebeu<br />

de uma família genovesa, provavelmente<br />

rica, a incumbência de ir<br />

a Genazzano e fazer uma cópia do<br />

afresco para ser colocada numa igreja<br />

de Gênova. Como era um homem<br />

de projeção, consentiram que trabalhasse<br />

no próprio altar, perto do<br />

quadro, para poder ver bem, e ele<br />

começou, então, a pintar a imagem.<br />

O livro transcreve um atestado dele<br />

declarando que a figura de Nossa<br />

Senhora tantas vezes modificou a<br />

expressão fisionômica, enquanto ele<br />

pintava, que lhe foi impossível retratá-la.<br />

Ela não modifica tanto, mas é<br />

um prodígio que Maria Santíssima<br />

quis fazer para que este homem atestasse<br />

o maravilhoso do fato, e até hoje<br />

se dá isto.<br />

É um prodígio contemporâneo<br />

que não pode ser apresentado como<br />

um milagre, mas demonstra ser a Fé<br />

Católica verdadeira, e deve ser visto<br />

como uma graça muito preciosa para<br />

todas as pessoas que querem elucidar<br />

seus problemas.<br />

O mais interessante é que vários<br />

outros quadros de Nossa Senhora do<br />

Bom Conselho, os quais afinal se copiaram<br />

e foram levados para diversos<br />

pontos da Itália, têm propriedades<br />

análogas e há peregrinações porque a<br />

Santíssima Virgem prodigaliza os seus<br />

conselhos às pessoas que vão ali rezar.<br />

Temos, assim, a indicação de um<br />

elemento para nos afervorarmos na<br />

piedade a Nossa Senhora. v<br />

(Extraído de conferência de<br />

25/4/1967)<br />

Interior do Santuário. Ao fundo, capela onde se encontra o afresco milagroso.<br />

Gabriel K.<br />

19


Museo de Bellas Artes de Sevilla (CC3.0)<br />

C<br />

alendário<br />

1. São Hugo de Grenoble, bispo<br />

(†1132). Sagrado Bispo por Gregório<br />

VII, foi enviado para Grenoble para<br />

colocar fim nas diversas desordens<br />

dessa diocese. São Bruno foi seu confessor<br />

e conselheiro.<br />

Santa Maria Egipcíaca, penitente<br />

(†s. V).<br />

2. São Francisco de Paula, confessor<br />

(†1507). Fundador da Ordem dos<br />

Mínimos, na Calábria, Itália. Foi célebre<br />

pelos milagres que praticou e pelos<br />

exemplos de grande austeridade<br />

de vida, nascida de uma profunda humildade.<br />

Santa Teodora, virgem e mártir<br />

(†307).<br />

3. V Domingo da Quaresma<br />

São João, bispo (†432). Bispo de<br />

Nápoles, Itália, São João morreu na<br />

Noite Santa da Páscoa, enquanto celebrava<br />

os sagrados mistérios, e foi sepultado<br />

na Solenidade da Ressurreição<br />

do Senhor.<br />

4. Santo Isidoro de Sevilha, Bispo<br />

e Doutor da Igreja (†636).<br />

Beato Francisco Marto, (†1919).<br />

Foi um dos pastores que viu Nossa Se-<br />

dos Santos – ––––––<br />

nhora em Fátima. No início das aparições<br />

não conseguia ouvir o que a Virgem<br />

lhes dizia, porém, após dedicar-<br />

-se com piedade à oração, pôde ouvi-<br />

-La. Tornou-se um exemplo de menino<br />

imbuído do espírito de sacrifício para<br />

consolar os Corações de Jesus e Maria<br />

e para a salvação dos pecadores.<br />

5. São Vicente Ferrer, presbítero<br />

(†1419). Da Ordem dos Dominicanos,<br />

trabalhou com eficácia para pôr<br />

fim ao Cisma do Ocidente.<br />

São Geraldo, abade (†1095).<br />

6. Beato Notkero, o Gago, monge<br />

(†912).<br />

São Miguel Rua, presbítero<br />

(†1910). Sucessor de São João Bosco<br />

na direção da Sociedade Salesiana.<br />

7. São João Batista de la Salle,<br />

presbítero (†1719).<br />

8. São Dionísio de Corinto, bispo<br />

(†180). Dotado de admirável conhecimento<br />

da Palavra de Deus, instruiu<br />

pela pregação não só os fiéis de sua<br />

diocese em Corinto, na Grécia, mas,<br />

por meio de cartas, ensinou também<br />

os Bispos de outras dioceses.<br />

São Hugo de Grenoble apresentando a Cartuxa de Nuestra<br />

Señora de las Cuevas - Museu de Belas Artes de Sevilha<br />

Beato Notkero<br />

9. Beato Tomás de Tolentino, mártir<br />

(†1321).<br />

São Máximo, bispo (†282). Como<br />

presbítero em Alexandria, Egito,<br />

acompanhou no exílio e na confissão<br />

da Fé São Dionísio, a quem sucedeu<br />

na sede episcopal.<br />

10. Domingo de Ramos e da Paixão<br />

do Senhor<br />

Beato Antônio Neyrot, mártir<br />

(†1460).<br />

11. São Felipe, bispo (†180).<br />

Santa Gema Galgani, virgem<br />

(†1905). Mística ardorosa pela Cruz<br />

de Nosso Senhor, que teve como privilégio<br />

receber os estigmas da Paixão<br />

e morrer no Sábado Santo, aos 25<br />

anos de idade, em Lucca, Itália.<br />

12. Santa Teresa de Los Andes, virgem<br />

(†1920). Carmelita chilena que<br />

ofereceu a vida a Deus pela conversão<br />

do mundo. Morreu aos 20 anos.<br />

13. São Martinho I, Papa e mártir<br />

(†656).<br />

14. Quinta-Feira da Semana Santa<br />

São Bernardo, abade (†1117). Superior<br />

do mosteiro de Tiron, perto de<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

20


––––––––––––––––––– * Abril * ––––<br />

Flávio Lourenço<br />

Chartres, França, instruiu e conduziu<br />

à perfeição evangélica os numerosos<br />

discípulos que a ele acorriam.<br />

15. Sexta-Feira da Paixão do Senhor<br />

São Damião de Veuster, presbítero<br />

(†1889).<br />

16. Sábado Santo.<br />

Santa Bernadette Soubirous, virgem<br />

(†1879).<br />

17. Domingo de Páscoa da Ressurreição<br />

do Senhor<br />

Beata Clara Gambacorta, religiosa<br />

(†1419).<br />

Santa Maria Luísa de<br />

Jesus Trichet<br />

18. Santa Antusa, virgem (†s. VIII).<br />

Sendo filha do Imperador Constantino<br />

Coprônimo, soube empregar todos<br />

os seus bens para ajudar os pobres, redimir<br />

os escravos, restaurar as igrejas e<br />

construir mosteiros, recebendo do Bispo<br />

São Tarásio o hábito religioso.<br />

Beata Sabina Petrilli, fundadora<br />

(†1923). Fundou na Itália a Congregação<br />

das Irmãs dos Pobres de Santa<br />

Catarina de Siena.<br />

19. São Leão IX, Papa (†1054).<br />

20. Santa Inês de Montepulciano,<br />

virgem (†1317). Com apenas nove<br />

anos, tomou as vestes das virgens consagradas.<br />

Fundou em Montepulciano<br />

um mosteiro dominicano. Sua vida<br />

é repleta de episódios maravilhosos,<br />

sendo abundantes os milagres e as<br />

graças místicas. Faleceu aos 48 anos.<br />

21. Santo Anselmo, bispo e Doutor<br />

da Igreja (†1109).<br />

Santo Apolônio, mártir (†185). Cidadão<br />

romano eminente, foi denunciado<br />

como cristão e fez ante o prefeito<br />

Perennio e o Senado de Roma uma<br />

insigne apologia do Cristianismo. Depois<br />

confirmou com seu sangue o testemunho<br />

da Fé.<br />

22. Santa Oportuna, abadessa<br />

(†c. 770). No território francês, foi célebre<br />

pela sua abstinência e austeridade.<br />

São Leónidas, mártir (†204). Pai de<br />

Orígines. Fui encarcerado e morto na<br />

perseguição de Sétimo Severo.<br />

23. Santo Adalberto de Praga, bispo<br />

e mártir (†997).<br />

São Jorge, mártir (†s. IV).<br />

Santo Eulógio, bispo (†387). Bispo<br />

de Edessa, na Turquia, que, segundo a<br />

tradição, morreu na Sexta-Feira Santa.<br />

24. II Domingo da Páscoa ou da<br />

Divina Misericórdia.<br />

São Fidélis de Sigmaringa, presbítero<br />

e mártir (†1622).<br />

25. São Marcos, Evangelista.<br />

Beato Bonifácio de Valperga, bispo<br />

(†1243). Nasceu em Turim, de família<br />

Beata Sabina Petrilli<br />

nobre. Ingressou na Ordem dos beneditinos,<br />

porém mais tarde passou a fazer<br />

parte dos canônicos regulares de<br />

São Urso, em Aosta. Edificou a todos<br />

com uma exemplar vida cristã.<br />

26. Nossa Senhora do Bom Conselho.<br />

São Cleto, Papa (†88). Segundo sucessor<br />

de São Pedro a presidir a Igreja<br />

Romana.<br />

27. Santa Zita, virgem (†1278).<br />

Distribuía aos pobres o pouco que lhe<br />

sobrava do salário recebido como empregada<br />

doméstica. Sua santidade foi<br />

reconhecida ainda em vida, e confirmada<br />

por grande número de milagres.<br />

É padroeira das empregadas domésticas<br />

e patrona de Lucca, Itália.<br />

28. São Luís Maria Grignion de<br />

Montfort, presbítero (†1716).<br />

Santa Maria Luísa de Jesus Trichet,<br />

religiosa (†1759). Primeira religiosa da<br />

Congregação das Filhas da Sabedoria,<br />

fundada por São Luís Grignion.<br />

29. Santa Catarina de Sena, virgem<br />

e Doutora da Igreja (†1380).<br />

30. São José Benitto Cottolengo,<br />

fundador (†1842). Fundador da Casa<br />

da Divina Providência, na Itália.<br />

São Pio V, Papa (†1572).<br />

Flávio Aliança<br />

21


Hagiografia<br />

Homem<br />

que lutou<br />

GFreihalter (CC3.0)<br />

arduamente<br />

contra a<br />

Revolução<br />

Orador brilhante, São Fidélis de Sigmaringa evangelizou cidades<br />

alemãs e foi enviado para a região dos grisões, na Suíça, a fim de pregar<br />

contra o protestantismo. Alcançou sucessos importantes, o que levou<br />

os hereges a martirizarem-no. Foi um verdadeiro contrarrevolucionário<br />

porque a heresia protestante era a Revolução no seu tempo.<br />

No dia 24 de abril, a Igreja comemora<br />

a festa de São Fidélis<br />

de Sigmaringa. Sua ficha<br />

biográfica apresenta alguns dados tirados<br />

da Vida dos Santos, de Reindenberg,<br />

e da História da Igreja Católica,<br />

de Rohrbacher.<br />

Chefe de uma missão para<br />

combater o protestantismo<br />

Marcos Roi, o rei que viveu de<br />

1577 a 1622, tomou o nome de Fidélis<br />

quando entrou para os capuchinhos,<br />

aos 35 anos de idade.<br />

Nascido em Sigmaringa, distinguiu-<br />

-se como estudante de Filosofia e Direito<br />

em Friburgo de Brisgóvia. A seguir<br />

foi nomeado tutor de três jovens príncipes,<br />

com quem viajou por toda a Europa<br />

durante três anos. Depois de ter<br />

exercido a profissão de advogado em<br />

Colmar, resolveu abandonar o mundo.<br />

No testamento que fez nesta altura,<br />

diz o seguinte: “Quero viver daqui para<br />

o futuro na maior pobreza, castidade e<br />

obediência, nos sofrimentos e nas perseguições,<br />

numa penitência austera e<br />

humildade profunda. Saí nu do seio de<br />

minha mãe e despojo-me de tudo para<br />

me entregar aos braços do Salvador.”<br />

O Padre Fidélis possuía grandes dotes<br />

oratórios. Nomeado guardião (superior)<br />

do Convento de Feldkirch, pregou<br />

em numerosas cidades alemãs e<br />

suíças, e numerosas igrejas do campo.<br />

A cidade de Feldkirch foi de todo<br />

transformada por ele. Como o protestantismo<br />

estava a se espalhar pela Su-<br />

22


íça, especialmente entre os grisões, a<br />

Congregação da Propaganda encarregou<br />

os capuchinhos de irem combatê-<br />

-lo. O Padre Fidélis foi nomeado chefe<br />

dessa missão.<br />

“Dentro em breve não me tornareis a<br />

ver, disse ele a seus amigos em Feldkirch,<br />

pois fui chamado a dar o sangue pela<br />

Fé”. E desde então passou a assinar<br />

suas cartas da seguinte maneira: “Padre<br />

Fidélis, prope diem esca vermium” –<br />

que em breve será pasto dos vermes.<br />

Em janeiro de 1622, entrou na região<br />

ocupada pela Áustria e lá começou<br />

a pregar a Fé com grande êxito.<br />

Furiosos, os protestantes prepararam<br />

uma revolta e o missionário avisou<br />

os austríacos. Os grisões levantaram-se<br />

então em massa.<br />

No dia 24 de abril, estando o Padre<br />

Fidélis a pregar em Seewis, ouviu-se o<br />

grito: “Às armas!”<br />

Os grisões saíram ao encontro das<br />

tropas imperiais que tinham forçado<br />

seus postos avançados, convencidos<br />

de que o Padre Fidélis é quem chamara<br />

os austríacos.<br />

Ainda o deixaram sair da cidade.<br />

Mas como daí a pouco regressasse a<br />

Grächen, 20 soldados caíram sobre<br />

ele, trataram-no de sedutor e queriam<br />

forçá-lo a abraçar a sua seita.<br />

“Que me propondes? – perguntou<br />

Fidélis – Vim até vós para refutar<br />

vossos erros e não para abraçá-los. A<br />

Doutrina Católica é a Fé de todos os<br />

séculos, não a renunciarei. Ademais,<br />

sabei que não temo a morte.”<br />

Eles então mataram-no a sabre.<br />

É interessante notarmos qual foi a<br />

atuação deste grande pregador para<br />

que o comentário hagiográfico possa<br />

se fazer adequadamente. Ele era um<br />

missionário famoso que pregava em<br />

vários lugares. E a Santa Sé, desejando<br />

impedir a expansão do protestantismo<br />

na região da Suíça denominada<br />

dos grisões, incumbiu a Ordem religiosa<br />

da qual ele fazia parte – os capuchinhos<br />

– de mandar para aquela zona<br />

pregadores, bons oradores, a fim de<br />

converterem os que se tinham pervertido<br />

para o protestantismo, e impedir<br />

que novos católicos fossem objeto com<br />

êxito do proselitismo protestante.<br />

Então ele, que já havia transformado<br />

por inteiro uma cidade importante<br />

da Alemanha – Feldkirch – pelos<br />

seus sermões, se dirigiu à Suíça<br />

sabendo que ia morrer, pois recebeu<br />

uma revelação de que lá seria martirizado.<br />

Mas, homem sobrenatural,<br />

indômito, enérgico, batalhador, não<br />

recuou diante dessa ameaça. Pelo<br />

contrário, enfrentou a morte.<br />

E tinha uma espécie de prazer em<br />

considerar a hipótese de sua morte<br />

próxima, e até assinava “Frei Fidélis<br />

que em breve será pasto dos<br />

vermes.” Quer dizer, sabia que seria<br />

mártir e iria para o Céu o que lhe dava<br />

uma grande alegria.<br />

A essa prova de tenacidade, ele<br />

juntou outra demonstração de força,<br />

de valor: o fato de ter irritado sobremaneira<br />

os protestantes. Ninguém<br />

se torna irritante para o adversário<br />

sem ter conquistado êxitos contra este.<br />

São Fidélis alcançou sucessos tão<br />

importantes contra a heresia, que os<br />

protestantes prepararam um encontro<br />

no qual ele foi morto.<br />

Foi um orador audacioso, valoroso,<br />

forte, um missionário vigoroso<br />

que não recuou diante do holocausto<br />

do martírio. Um homem que nos<br />

dá um admirável exemplo de fortaleza,<br />

que leva a abnegação de sua própria<br />

vida e o desejo de lutar a ponto<br />

de imolar efetivamente a sua existência.<br />

Berthold Werner (CC3.0)<br />

Homem sobrenatural<br />

e indômito que<br />

enfrentou a morte<br />

Casa onde São Fidélis nasceu - Sigmaringa, Alemanha<br />

23


Hagiografia<br />

Parma benia artistici (CC3.0)<br />

Sentimentalismo religioso<br />

do século XIX<br />

Consideremos a fórmula utilizada<br />

por São Fidélis:<br />

Quero viver para o futuro na maior<br />

pobreza, castidade e obediência, no sofrimento<br />

e nas perseguições, numa penitência<br />

austera e humildade profunda.<br />

Saí nu do seio de minha mãe e despojo-me<br />

de tudo para entregar-me nos<br />

braços do Salvador.<br />

Se uma pessoa hoje empregasse essa<br />

fórmula, seríamos levados a achar que<br />

ela é “heresia branca” 1 . Diria isto suspirando,<br />

com tanta moleza, que afirmaríamos:<br />

“Qual! Você é um pulha e não<br />

tomamos a sério a sua vida espiritual.”<br />

Ele assinava suas cartas com as<br />

palavras: “Frei Fidélis, que em breve<br />

será pasto dos vermes.”<br />

Compreende-se o equívoco tremendo<br />

que o sentimentalismo religioso<br />

do século XIX criou em torno<br />

dessas fórmulas, e precisamos não<br />

nos deixar vencer pelo equívoco.<br />

O estado de espírito que apontei<br />

é muito ruim, mas a fórmula é muito<br />

boa em si mesma considerada. Ela<br />

foi empregada por um Santo e, portanto,<br />

não pode deixar de ser boa,<br />

porque tudo quanto o Santo faz é<br />

bom. Se essa fórmula não fosse boa,<br />

ele não teria sido canonizado.<br />

Precisamos compreender que essa<br />

fórmula é susceptível de ser pronunciada,<br />

ser vista de outro modo, e<br />

não devemos permitir que o besuntado<br />

sentimentalismo religioso do<br />

século XIX nos tolde a visão da coerência<br />

que ela tem com as virtudes<br />

as quais somos mais chamados a praticar:<br />

a fortaleza de ânimo, a resolução,<br />

a combatividade. Entre virtudes<br />

não há incompatibilidade. Ora, isso<br />

tem de ser virtude porque foi pronunciado<br />

por um santo.<br />

O valor dessa fórmula é muito<br />

grande. Evidentemente, um homem<br />

que tem a verdadeira virtude da sabedoria,<br />

compreendendo, portanto, que<br />

todas a coisas desta Terra são um nada<br />

– desde que elas obstem à aquisição<br />

da virtude, ao pleno conhecimento<br />

da sabedoria e ao amor de Deus –,<br />

precisa afastar-se delas.<br />

Quem tem vocação<br />

religiosa deve abraçá-la<br />

São Fidélis de Sigmaringa e São José de Leonessa<br />

Galeria Nacional de Parma, Itália<br />

Quando Nossa Senhora quer que<br />

alguém tenha uma vocação, torna-<br />

-lhe difícil a vida fora da vocação a<br />

qual deve abraçar. E um santo nessas<br />

condições, em geral, é levado pelas<br />

circunstâncias a uma alternativa:<br />

ou se perde ou adota o estado de vida<br />

para o qual foi chamado.<br />

Depois, independente do perigo<br />

de perder-se, ele tem o atrativo da<br />

graça para estar meditando as coisas<br />

da sabedoria e, por amor de Deus,<br />

assume aquela fórmula.<br />

Então, ele fez-se capuchinho. Isso<br />

significa abraçar a pobreza completa,<br />

renunciar a toda forma de sinarquia<br />

2 . É despreocupar-se com os<br />

bens deste mundo, não só não querendo<br />

tê-los para si, mas não se entusiasmando<br />

com as pessoas pelo fa-<br />

24


interpretada e entendida, nada tem<br />

de “heresia branca”; é uma fórmula<br />

esplêndida.<br />

A “heresia branca” se encontra<br />

no estado temperamental do estúpido<br />

com que os sentimentais repetiam<br />

isso.<br />

Temos a prova concreta: um homem<br />

que empregava tais fórmulas<br />

é um mártir de uma admirável coragem,<br />

o qual viu chegar a morte com<br />

a serenidade que os maiores heróis<br />

não teriam. Que lutou arduamente<br />

contra a Revolução, foi um verdadeiro<br />

contrarrevolucionário – porque<br />

o protestantismo era a Revolução<br />

no seu tempo –, homem completo,<br />

portanto, e digno de toda a nossa<br />

veneração.<br />

A relíquia de São Fidélis se encontra<br />

em nossa capela. Faremos<br />

uma boa coisa pedindo a ele que nos<br />

obtenha a graça de compreender coto<br />

de os possuírem. Não admirando<br />

ninguém porque tem um bonito automóvel,<br />

um formoso apartamento<br />

ou, suprema ventura, possui uma<br />

fábrica importante, Mas dando valor<br />

aos homens e às coisas na medida<br />

em que se aproximam, praticam<br />

a sabedoria.<br />

Uma pessoa assim, com um estado<br />

de espírito varonil, combativo, fazendo<br />

um ato de imolação inteiramente<br />

inaciano, pode dizer: “Eu quero viver<br />

daqui para o futuro na maior pobreza,<br />

castidade e obediência, nos sofrimentos<br />

e nas perseguições. Desejo<br />

imitar a Nosso Senhor Jesus Cristo<br />

que sofreu, e por isso vou ser um<br />

lutador, agredir o adversário; sofrerei<br />

porque na guerra se sofre.”<br />

É o sentimentalismo religioso do<br />

século XIX que dá a isso um aspecto<br />

de “heresia branca”. Mas não tem<br />

nada de “heresia branca”. É a piedade<br />

de boa lei que o homem mais valoroso<br />

e combativo deve ufanar-se<br />

em possuir.<br />

Verdadeiro<br />

contrarrevolucionário<br />

Assim também, dizer que dali a<br />

pouco ele vai ser o pasto dos vermes<br />

é ter coragem, uma prova de que<br />

não tem medo de morrer. São Fidélis<br />

poderia acrescentar, apontando<br />

para seu corpo: “Esta carne vai ser<br />

comida pelos vermes. Através destas<br />

órbitas eles entrarão – como que engendrados<br />

pelo meu próprio corpo –<br />

que comerão os olhos, sairão pelos<br />

ouvidos e pela boca. Mas eu não me<br />

incomodo porque a minha alma vai<br />

para o Paraíso. Terei a glória do martírio<br />

que vale muito mais do que essa<br />

decomposição do meu corpo. E no<br />

último dia ele ressuscitará e se juntará<br />

à minha alma no Céu.”<br />

É uma atitude de força de alma<br />

que o faniquito do liberal, do sentimental,<br />

não dá.<br />

Compreendemos, assim, como<br />

uma fórmula como essa, sendo bem<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1967<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

mo fórmulas dessas se compaginam<br />

bem com a nossa piedade, desde que<br />

expurgadas dos péssimos eflúvios do<br />

sentimentalismo religioso do século<br />

XIX vivo até nossos dias, infelizmente.<br />

Tal sentimentalismo, sendo uma<br />

coisa má, como é evidente, não houve<br />

na obra de nenhum santo daquele<br />

tempo. São deformações que existiram<br />

à margem do santo e de modo<br />

contrário ao exemplo dado por ele.<br />

Naquele século, houve santos admiráveis<br />

que estavam isentos e até<br />

eram o contrário disso, como Santa<br />

Teresinha do Menino Jesus.<br />

A pequena via ensinada por ela,<br />

tão cheia de candura, de suavidade,<br />

é uma via de grande força e combatividade<br />

para quem sabe ler um livro<br />

de Santa Teresinha.<br />

Percebe-se isso nos seus desejos.<br />

Ela dizia que possuía anseios infinitos,<br />

queria ser missionária, brandir<br />

o ferro no combate contra os<br />

inimigos da Igreja, etc. É uma manifestação<br />

de uma combatividade<br />

que chega até o Cruzado, e inclusive<br />

o desejo de derramar o sangue.<br />

E isto da parte dessa santa tão<br />

suave na sua pequena via. Vê-se,<br />

portanto, como as duas coisas são<br />

compatíveis.<br />

v<br />

(Extraído de conferência de<br />

24/4/1967)<br />

1) Expressão metafórica criada por <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong> para designar a mentalidade<br />

sentimental que se manifesta na piedade,<br />

na cultura, na arte, etc. As pessoas<br />

por ela afetadas se tornam moles,<br />

medíocres, pouco propensas à<br />

fortaleza, assim como a tudo que signifique<br />

esplendor.<br />

2) Diferentemente do sentido político<br />

que lhe é dado habitualmente, <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong> usava a palavra “sinarquia” para<br />

caracterizar a mentalidade ateia,<br />

segundo a qual a finalidade suprema<br />

de uma sociedade é o trabalho e a<br />

produção material.<br />

25


Luis C.R. Abreu / Gabriel K.<br />

Eco fidelíssimo da Igreja<br />

Ressurreição<br />

e Fátima<br />

Ascensão - Igreja de<br />

Santa Maria, Waltham,<br />

Massachusetts<br />

Depois dos castigos preditos pela Virgem em Fátima, durante os<br />

quais possivelmente fiquemos como Nosso Senhor na Paixão –<br />

perseguidos, torturados, cobertos das chagas da dor do alto da<br />

cabeça até as plantas dos pés –, haverá o momento radioso em que a<br />

promessa de Nossa Senhora se cumprirá. Chegará o dia no qual os<br />

Anjos nos dirão: “Já não há mais tristeza nem sofrimento para vós.<br />

Regozijai-vos porque o Imaculado Coração de Maria triunfou!”<br />

26


Na Páscoa da Ressurreição, a<br />

Santa Igreja celebra o triunfo<br />

definitivo do Redentor<br />

sobre a morte e o pecado, e afirma<br />

solenemente que, ressuscitado, Cristo<br />

vive por todos os séculos, como<br />

Cabeça mística de todos os fiéis.<br />

Glória de Deus: preocupação<br />

que deve nos acompanhar<br />

do berço ao túmulo<br />

Dizem os autores espirituais que<br />

toda meditação bem feita deve trazer<br />

como consequência uma resolução<br />

concreta. As considerações de<br />

ordem meramente platônica não interessam<br />

à vida espiritual. Se contemplamos<br />

é para amar mais e agir<br />

melhor. “Ai da ciência que não se<br />

transforma em amor e em ação!” –<br />

disse o grande Bossuet 1 . E nós poderíamos<br />

afirmar: “Ai da meditação<br />

que não se transforma em amor, em<br />

virtude e em apostolado!”<br />

Assim, de nada nos adiantaria que<br />

enchêssemos de santo gáudio nossas<br />

almas e, na fartura e tranquilidade<br />

de nossos lares, ou abrindo um rápido<br />

e ensolarado parêntesis na amargura<br />

de nossas lutas e necessidades,<br />

celebrássemos as festas da Santa<br />

Páscoa, se um aumento de amor para<br />

com Deus não se notasse em nossos<br />

corações, e esse acréscimo não tivesse<br />

como consequência nosso incremento<br />

na virtude.<br />

Ora, ninguém ama a Deus sem<br />

amar a glória d’Ele. A realização<br />

dessa glória é o mais vivo anseio de<br />

todas as almas verdadeiramente piedosas.<br />

“Que em todas as coisas Deus<br />

seja glorificado!” é o lema debaixo<br />

do qual trabalham nas vias árduas<br />

da santificação interior e do apostolado<br />

os filhos de São Bento. “Para<br />

a maior glória de Deus” é a divisa<br />

que serve de meta para todas as preces<br />

e labutas dos filhos de Santo Inácio.<br />

Percorram-se os sistemas de espiritualidade<br />

próprios às várias Ordens,<br />

examinem-se os autores espirituais<br />

de todos os lugares e de todos<br />

os tempos, e ver-se-á que fazem da<br />

glória de Deus o alvo desinteressado<br />

e total de sua existência.<br />

Ninguém, por outro lado, dá glória<br />

a Deus sem obedecer ao beneplácito<br />

divino. A obediência à vontade<br />

do Criador, a plena conformidade de<br />

todas as nossas ideias com a Doutrina<br />

Católica, de todas as nossas volições<br />

com a Moral Católica, de todos<br />

os nossos sentimentos com o senti-<br />

Crucifixão - Museu do<br />

Patriarca, Valência<br />

Flávio Lourenço<br />

Flávio Lourenço<br />

Sepultamento de Jesus - Museu Thyssen-Bornemisza, Madri<br />

27


Eco fidelíssimo da Igreja<br />

Vicente Torres<br />

Sepulcro vazio - Abadia Beneditina de Subiaco, Itália<br />

re cum Ecclesia 2 , eis a preocupação<br />

que, do berço ao túmulo, deve acompanhar<br />

toda a alma crente.<br />

Em meio a tanta tristeza,<br />

Nossa Senhora tinha<br />

uma fímbria de alegria<br />

do corroído de vergonha e de dor<br />

para pedir-Lhe perdão. Mas era tão<br />

pouca gente dentro<br />

de todo aquele universo<br />

hostil... Entretanto,<br />

soledade, sobretudo,<br />

porque Maria<br />

Santíssima encontrava-Se<br />

naquela<br />

imensa solidão: não<br />

estava mais junto a<br />

seu Divino Filho, que<br />

era tudo para Ela. Ele<br />

estava morto.<br />

Todos os que tiveram<br />

a felicidade de<br />

ver misticamente o<br />

que se passava na alma<br />

de Nossa Senhora<br />

nessa hora contam<br />

como, concomitante<br />

a essa tristeza, havia<br />

um fundo de alegria<br />

porque Ela sabia<br />

que Ele ressuscitaria<br />

e, em breve, estariam<br />

de novo juntos;<br />

e que a Paixão ficara<br />

para trás, aquele oceano<br />

de dores já estava<br />

transposto e a imensa<br />

glória d’Ele ia se re-<br />

De dentro das alegrias da Ressurreição,<br />

tão cheias de ensinamentos<br />

para todos os católicos, convém<br />

tirarmos alguma lição especial para<br />

nós.<br />

Todas as visões e revelações fidedignas<br />

a respeito da Paixão narram<br />

que, de algum modo, a hora mais lúgubre<br />

não foi quando o Divino Redentor<br />

expirou, mas depois que Nossa<br />

Senhora colocou o sagrado Corpo<br />

d’Ele na sepultura. Nesse momento,<br />

Ela não teve mais a amarguíssima<br />

consolação de contemplar as feições<br />

mortas d’Ele, dirigiu-Se ao cenáculo,<br />

cujo prédio pertencia a uma pessoa<br />

dedicada a Nosso Senhor, e ali atravessou<br />

as horas amargas de sua soledade.<br />

Soledade, sem dúvida nenhuma,<br />

porque eram poucos os que estavam<br />

em torno d’Ela: as santas mulheres,<br />

São João Evangelista, São Pedro, um<br />

ou outro Apóstolo que vinha voltanvelar<br />

ao mundo para a grandeza e a<br />

salvação de toda a humanidade.<br />

Isso dava a Maria Santíssima, em<br />

meio a tanta tristeza, uma fímbria<br />

de alegria, diante da certeza do júbilo<br />

imenso que viria depois, maior<br />

do que os tormentos da Paixão. Porque,<br />

embora as dores tenham sido<br />

incomensuráveis, é verdade também<br />

que, sendo a Ressurreição e a Redenção<br />

a finalidade da Paixão, naturalmente<br />

o fim vale muito mais do<br />

que os meios. Logo, é maior ainda a<br />

alegria por ver alcançado e aparecer<br />

aos olhos dos homens o objetivo para<br />

o qual uma tão grande dor foi paga.<br />

Assim, na paz, a Santíssima Virgem<br />

tinha esta serenidade, esta confiança,<br />

mais ainda, esta certeza: Cristo<br />

ressuscitará. E, realmente, todas<br />

as expectativas d’Ela se confirmaram.<br />

Cristo ressuscitado aparece à Santíssima Virgem<br />

Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa<br />

Flávio Lourenço<br />

28


Após ressuscitar, Nosso<br />

Senhor foi visitar sua<br />

Mãe Santíssima<br />

Imaginemos o Santo Sepulcro,<br />

situado numa gruta<br />

perto do local onde Jesus foi<br />

crucificado, o Gólgota, como<br />

relata o Evangelho. Túmulo<br />

novo pertencente a José de<br />

Arimatéia e cedido por ele<br />

para Nosso Senhor ser sepultado.<br />

Segundo o costume<br />

judaico, o cadáver era todo<br />

atado, colocava-se à entrada<br />

da gruta uma pedra rigorosamente<br />

bem talhada para<br />

vedar inteiramente.<br />

Dentro domina a escuridão.<br />

De repente, irrompe<br />

uma luz mais intensa<br />

do que o brilho do Sol. Era<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />

cuja Alma santíssima,<br />

hipostaticamente unida à<br />

Segunda Pessoa da Santíssima<br />

Trindade, estivera no<br />

Limbo para levar às almas dos justos<br />

a boa nova da Redenção e prepará-<br />

-las para subirem ao Céu.<br />

Aquele Corpo glorioso, nascido das<br />

entranhas de Maria Virgem, estremece<br />

de vida e se levanta por si. As ataduras<br />

que O envolvem, bem como a pedra<br />

que lacra a sepultura, caem e as inúmeras<br />

feridas começam a resplandecer<br />

como sóis. Do lado de fora, os guardas<br />

ouvem um trovão e desmaiam, e Jesus<br />

aparece reluzente. É a Páscoa da Ressurreição.<br />

Ele passou pelos profundos<br />

vales da morte e ressurgiu glorioso, para<br />

depois subir ao Céu.<br />

Notem esse pormenor importante:<br />

quando Nosso Senhor ressuscitou,<br />

criatura humana nenhuma O viu sair<br />

da sepultura. Ele não quis que ninguém<br />

fosse o primeiro a vê-Lo ressuscitado.<br />

No momento em que as santas<br />

mulheres, São Pedro e São João<br />

Evangelista lá chegaram, o túmulo<br />

já estava vazio. No primeiro instante<br />

A Dolorosa - Santuário de Jesus<br />

Nazareno, Atotonilco, México<br />

depois de ter deixado o Santo Sepulcro,<br />

Jesus foi visitar sua Mãe Santíssima,<br />

de maneira a ser Ela a primeira a<br />

contemplá-Lo radioso, numa alegria<br />

verdadeiramente indescritível.<br />

A esperança de Maria, que na soledade<br />

continuou firme no auge das<br />

trevas, confirmou-se totalmente. Daí,<br />

então, a enorme alegria pascal transcendente,<br />

incomparavelmente maior<br />

do que o momento tremendo da dor.<br />

Podemos, assim, ter uma ideia de como<br />

foi a primeira Páscoa naquele Sapiencial<br />

e Imaculado Coração.<br />

Primavera da Fé maior do<br />

que a da Idade Média<br />

Isso que se passou no Imaculado<br />

Coração de Maria deve ocorrer também<br />

em nossas almas, a propósito das<br />

dores presentes da Santa Igreja. Nós<br />

estamos nos aproximando da hora extrema<br />

da Paixão. O sofrimento é intensíssimo<br />

e deve varar nossas<br />

almas de lado a lado<br />

com o gládio de dor. Mas no<br />

meio dessa dor, temos uma<br />

fímbria de alegria e a certeza<br />

do cumprimento da promessa<br />

de Fátima: “Por fim,<br />

o meu Imaculado Coração<br />

triunfará!”<br />

As coisas da Causa Católica<br />

têm suas “mortes” e suas<br />

“ressurreições”. Dir-se-ia<br />

que a Civilização Cristã está<br />

liquidada, do passado glorioso<br />

da Santa Igreja não sobra<br />

mais nada, e que da verdadeira<br />

Igreja Católica Apostólica<br />

Romana restam apenas<br />

algumas gotas que o calor<br />

abrasador da Revolução<br />

acabará por fazer evaporar.<br />

Entretanto, Nosso Senhor<br />

afirmou: “Tu és Pedro,<br />

e sobre esta pedra edificarei<br />

a minha Igreja; as portas<br />

do inferno não prevalecerão<br />

contra ela.” (Mt 16, 18).<br />

Depois das tristezas e ansiedades<br />

dos castigos preditos pela<br />

Virgem de Fátima – durante os quais<br />

possivelmente fiquemos como Nosso<br />

Senhor: perseguidos, torturados, cobertos<br />

das chagas da dor do alto da<br />

cabeça até as plantas dos pés –, haverá,<br />

sem dúvida, o momento radioso<br />

em que a promessa de Nossa Senhora<br />

se cumprirá. Chegará o dia no<br />

qual os Anjos nos dirão: “Já não há<br />

mais tristeza nem sofrimento para<br />

vós, vossa provação ficou para trás.<br />

Regozijai-vos porque o Imaculado<br />

Coração de Maria triunfou!”<br />

Será, então, nossa grande Páscoa,<br />

nossa imensa alegria. Teremos passado<br />

esse “Mar Vermelho” de sangue<br />

que será o mundo durante os<br />

castigos, a pés enxutos, isto é, sem<br />

termos pago tributo ao pecado.<br />

Contemplaremos, com o tocar<br />

dos poucos sinos que restarem,<br />

o resplandecer de uma alegria que<br />

transborda do Coração Imaculado<br />

Flávio Lourenço<br />

29


Eco fidelíssimo da Igreja<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

de Maria, difundida pelos Anjos por<br />

toda a Terra.<br />

Assistiremos dissipar-se todo o negrume<br />

e contemplaremos essa glória, a<br />

qual devemos desejar mais do que tudo<br />

no mundo: a glória da Santa Igreja<br />

Católica Apostólica Romana, a quem<br />

amamos mais do que a luz dos nossos<br />

olhos e do que tudo na Terra. Veremos<br />

a Esposa de Nosso Senhor Jesus Cristo<br />

reconduzida a uma primavera da Fé<br />

maior ainda do que na Idade Média, os<br />

santos florescendo, o culto reintegrado<br />

na inteira identidade de sua doutrina,<br />

as leis se desenvolvendo numa conformidade<br />

também plena com essa doutrina,<br />

os governos sendo exercidos segundo<br />

o espírito católico e, por causa dessa<br />

plenitude da Igreja, a terra produzindo<br />

seus frutos e suas flores sob o sorriso de<br />

Nossa Senhora.<br />

Resplendor superior ao de<br />

todos os sóis do universo<br />

É, portanto, esta a ocasião de<br />

pensarmos nessa alegria comparável<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1986<br />

apenas à do momento<br />

em que morrermos, formos<br />

julgados e houver<br />

para nós a grande aurora<br />

da vida eterna, quando<br />

afinal nós virmos, face<br />

a face, Nossa Senhora<br />

com seu Divino Filho<br />

no Céu a nos dizer: “Nós<br />

mesmos somos a vossa<br />

recompensa demasiadamente<br />

grande.”<br />

Porém, antes desse<br />

momento, também ao<br />

mundo Nosso Senhor<br />

dirá pelos lábios de sua<br />

Mãe Santíssima, e Maria<br />

nos falará pela voz sacratíssima<br />

da Santa Igreja:<br />

“Eu sou a vossa recompensa<br />

demasiadamente<br />

grande.” Vendo a Igreja<br />

próspera, triunfante,<br />

dominando o mundo,<br />

orientando as almas, esmagando<br />

o erro, glorificando<br />

a virtude, promovendo<br />

toda espécie de<br />

bens, fazendo circular<br />

sua seiva na vida temporal<br />

para encher uma civilização<br />

de prevalentes<br />

varões espirituais, marcada<br />

pela Fé e pela sacralidade,<br />

nós olharemos<br />

para ela e pensaremos:<br />

“A Santa Igreja Católica<br />

é a nossa recompensa<br />

demasiadamente<br />

grande”.<br />

Lancemo-nos na luta!<br />

Poderá nos vir a impressão<br />

de estarmos<br />

afundando no vale da<br />

derrota. Pouco importa.<br />

Chegará o momento<br />

em que os Anjos do<br />

Céu virão ao nosso socorro<br />

e nós brilharemos<br />

com um pouquinho do<br />

brilho da Ressurreição,<br />

ou seja, com um res-<br />

Virgem de Fátima (acervo particular)<br />

plendor maior do que todos os sóis<br />

do universo.<br />

Maria vencerá e cada um de nós<br />

poderá dizer, parafraseando Jó:<br />

“Bendito o dia que me viu nascer,<br />

benditas as estrelas que me viram<br />

pequenino, bendito o momento em<br />

que minha mãe disse: ‘Nasceu um<br />

homem!’” (cf. Jó 3, 3). Então assistiremos<br />

à vitória da Contra-Revolução<br />

e à implantação do Reino de<br />

Maria.<br />

v<br />

(Extraído de O Legionário n.<br />

499 de 5/4/1942, conferências de<br />

25/3/1967 e 30/3/1986)<br />

1) Jacques-Bénigne Bossuet (*1627 -<br />

†1704), Bispo de Meaux (França),<br />

célebre pregador e escritor.<br />

2) Do latim: sentir com a Igreja.<br />

Luis C.R. Abreu<br />

30


Luzes da Civilização Cristã<br />

Verdadeiro equilíbrio<br />

e harmonia entre<br />

Ilustrações: J. Pinchon<br />

as classes sociais<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> mostra como a sociedade temporal,<br />

regida pela Fé e Moral, é capaz de realizar<br />

uma verdadeira aliança entre as diversas<br />

classes sociais, onde cada pessoa tem seu<br />

papel, harmonizando o mútuo respeito<br />

com a dignidade hierárquica individual.<br />

Continuando a descrever a história da Bécassine, a<br />

vemos já como uma menininha, de uns quatro ou<br />

cinco anos. Nessa cena ela e se encontra no castelo<br />

dos marqueses. Em primeiro plano, aparece o marquês<br />

de Grand-Air e em breve vai se dar a refeição.<br />

Conceito francês de varonilidade<br />

Causa certa surpresa o contraste entre o marquês e a<br />

marquesa de Grand-Air.<br />

Levados talvez por algum conceito primitivo, nós temos<br />

o hábito de pensar que o homem deve ser corpulento,<br />

enquanto a senhora deve ser magra, esguia e delicada,<br />

pois o marido deve ser mais avantajado.<br />

Segundo o conceito francês de varonilidade, não cabe<br />

o elogio da corpulência. O homem francês clássico não<br />

é magro, mas musculoso, porém não daqueles músculos<br />

das figuras italianas da Renascença, usados para estudos<br />

de anatomia. Pelo contrário, é protuberante, porém<br />

ágil, destro, muito mais feito para saltar, galgar, avançar<br />

ou duelar, do que para empurrar obstáculos e atracar-se<br />

com as pessoas. É mais próprio da espada de esgrima do<br />

que do boxe.<br />

Podemos imaginar esse marquês moço, sendo um duelista<br />

de primeira; nunca o imaginaremos jogando uma partida<br />

de boxe. Nem ele é para o boxe, nem o boxe é para ele.<br />

Até seria uma extravagância relacioná-lo com esse esporte.<br />

Um homem desses, portanto, é da escola francesa da<br />

varonilidade, com a compleição física de um Dartagnan<br />

ou de um Cyrano, pois em moços eles certamente eram<br />

assim, prontos para lutar contra os turcos que estavam<br />

invadindo o Sacro Império ou qualquer outro inimigo.<br />

O marquês é, portanto, um homem muito batalhador,<br />

conforme o gênero francês, que se enfeita para a batalha<br />

como também para a vida quotidiana. Ele é ultra enfeitado<br />

e, como tal, um bibelozinho.<br />

Delicadeza, finura e elegância do marquês<br />

Analisemos o marquês.<br />

No desenho em questão, não se percebe por inteiro,<br />

mas ele é calvo. Ele tem os cabelos bem brancos, de as-<br />

31


Luzes da Civilização Cristã<br />

pecto macio, muito similar aos da marquesa, que formam<br />

uma moldura de cabelos salientes de um lado e do<br />

outro da face. Não são assim porque cresceram por acaso<br />

a la hippie. Não, tudo é muito graduado. Os cabelos<br />

devem ter uma certa altura, e assim por diante. Ficaria<br />

ridículo se fossem um pouco mais bufantes. Ou imaginem,<br />

por exemplo, que ele passasse um fixador e ficasse<br />

colante, a cabeça dele ficava pequena para o corpo.<br />

Então, qual é o cálculo? Na hora de pentear, precisa ser<br />

um artista para calcular exatamente o tamanho da cabeça<br />

para proporcioná-la com os ombros.<br />

Como o marquês está dentro de casa, não está de chapéu,<br />

no entanto, os homens dessa categoria na França,<br />

como na Inglaterra ou noutros países, saíam de chapéu<br />

à rua. Eles não faziam como nós no tempo do chapéu,<br />

na qual entrávamos numa chapelaria e comprávamos um<br />

chapéu. Não; as chapelarias de então desenhavam o chapéu<br />

específico para a cabeça de cada um. Por exemplo,<br />

em Paris há o famoso Gelot. Quando o freguês vai para<br />

o Gelot, o empregado desenha o chapéu que mais lhe<br />

convém, e se o sujeito gosta do desenho aí executam um<br />

boneco. Dias depois o freguês volta para experimentar o<br />

boneco, e só depois se faz o definitivo. Quando o homem<br />

já é conhecido na loja, esta fica com o modelo do chapéu<br />

dele, e cada vez que precisar, manda-o fazer e entrega-se<br />

por correio. Quer dizer, é calculado como uma escultura.<br />

Portanto, os cabelos do marquês esculturais. Aí se<br />

compreende o senso artístico que isso supõe.<br />

A barbicha dele é a la Francisco José, seu contemporâneo,<br />

ou quiçá, ele tenha uns dez<br />

anos a menos do que o Imperador.<br />

Notem o queixo dele<br />

raspado. A barba vem<br />

de trás e se perde no<br />

bigode que o comunica<br />

até o outro lado.<br />

A barbicha<br />

e o bigode também<br />

são calculados<br />

para fazer o<br />

mesmo efeito desse<br />

cabelo colateral<br />

e amoldurar bem o<br />

rosto.<br />

O marquês usa<br />

um monóculo.<br />

Essa lente,<br />

muito raras<br />

vezes, é feita<br />

para atender uma necessidade visual, é apenas um estilo.<br />

O indivíduo o usava porque tinha um aro muito discreto,<br />

e ao levantar as sobrancelhas para segurá-lo, ficava<br />

com um olhar mais espetado, colocando certa distância<br />

a quem o olhava.<br />

Vejam, por exemplo, como o marquês está tratando<br />

bem a Bécassine, e como esta conversa com ele à vontade.<br />

Ela não parece entender bem com quem está conversando,<br />

enfim, vê-se como ele a trata bem, pelo delicado<br />

gesto de mão. Ele todo é delicado, mas seu olhão e seu<br />

jeito espetam, criam uma distância em torno dele; é um<br />

homem que, coberto de agradabilidades, cria um vazio<br />

em torno de si. É o estilo.<br />

Indumentária de elegantíssima intimidade<br />

Analisemos a sua indumentária. O traje apresenta um<br />

colarinho engomado com uma camisa que quase não se<br />

vê por causa da enorme gravata tipo borboleta. Além<br />

disso, há outras três peças: um paletó, conhecido como<br />

sobrecasaca, cortada a meia altura entre o tronco e o joelho.<br />

É muito mais distinto do que um jaquetão.<br />

Ele também usa um colete com botões que não aparecem<br />

aí; em geral, eram botões de muita qualidade, de<br />

porcelana pintada, de cristal ou de madrepérola de joalheria<br />

ou também podiam ser de ouro ou de prata. Quando<br />

a camisa estava velha, tiravam-nos e os passavam para<br />

outra camisa. Eram objetos do uso do homem, e para<br />

cada duas ou três camisas haviam botões especiais que<br />

32


deviam ir de acordo com a roupa. Só de vez em quando<br />

os deixavam de usar para não dar a impressão de ser um<br />

pobretão que está sempre usando as mesmas coisas.<br />

No bolso inferior do colete figura uma corrente de relógio<br />

que cruza de um lado a outro da cintura; ali também<br />

havia uma bolsinha minúscula de ouro, prata ou<br />

platina, com uma malha muito leve e muito bem feita,<br />

onde se guardavam as moedas. Naquele tempo ainda se<br />

usavam moedas de ouro e de prata; não havia apenas esse<br />

infame e fraudulento papel-moeda que anda correndo<br />

por aí, o qual inundou o mundo monetário.<br />

Notem que os sapatos dele são de verniz e não de um<br />

couro vulgar, os quais são cobertos por um tecido, que<br />

está para o pé dele como a roupinha do cachorrinho está<br />

para o animal. Por assim dizer, envolve o tronco do pé de<br />

cor clara, como branca é a camisa, e o sapato é preto. Este<br />

tipo de sapato se prende embaixo, pois ali tem uma alça<br />

com uma fivela junto ao salto.<br />

A calça não é a tal britânica com uma lista firme e implacável<br />

na frente, porque o implacável é contrário à doçura<br />

francesa. Pelo contrário, é elegantemente negligé, como<br />

se estivesse caindo por acaso. Porque era deselegante<br />

para os donos da casa usar roupa que tivesse o ar de estar<br />

saindo do ferro de passar naquela hora. Eles deviam dar o<br />

ar de estarem numa elegantíssima intimidade; por isso, a<br />

calça, sem ser amarrotada, tem o comprimento exato para<br />

sobrar no fim da perna. Tudo isso é calculadíssimo, de maneira<br />

a dar essa elegância imponderável!<br />

Percebam como o marquês está com<br />

a mão no bolso, para segurar a sobrecasaca.<br />

Olhem as mãos dele! São finas,<br />

brancas e compridas, como<br />

a mão aristocrática deve ser,<br />

bem o oposto das mãos do<br />

monsieur Labornez.<br />

Distinção<br />

com notas<br />

impalpáveis<br />

com um xale azul e uma lista da mesma cor na barra e um<br />

detalhe no colarinho. Notem como o xale dela caiu até a<br />

cintura de forma muito elegante. O penteado da dama é<br />

muito simples, pois não está naquela atitude imponente<br />

como quando estava em público na carruagem. Entretanto,<br />

a distinção é evidente.<br />

No que essa distinção é impalpável? Vou tentar explicar.<br />

O Pinchon é tão bom desenhista que faz perceber a<br />

lentidão com que a marquesa anda, como todo mundo<br />

dentro da cena. Ademais, ela está tomando uma atitude<br />

despreocupada com os braços pendentes e o corpo um<br />

pouco inclinado, sem nenhuma cerimônia; porém, ainda<br />

se nota a distinção porque, apesar de estar descontraída,<br />

a relação busto-tronco e cabeça-corpo têm beleza.<br />

Nessas atitudes se percebe a pessoa distinta que, embora<br />

na intimidade, continua numa atitude bonita, passando<br />

a ser uma segunda natureza. E isso, o Pinchon soube<br />

representar, a meu ver, como um verdadeiro sociólogo,<br />

a tal ponto que ninguém conseguiria dizer em palavras<br />

palpáveis o que eu acabo de explicitar.<br />

Decadência implícita<br />

representada na menina<br />

Passemos a analisar a neta-sobrinha dos marqueses.<br />

Ela é uma menina pura que só pensa em se divertir<br />

Comparemos<br />

o marquês com a<br />

marquesa.<br />

Na figura ela<br />

não vem solenemente<br />

de braço<br />

com o marquês,<br />

pois está distendida<br />

pensando<br />

noutra coisa. Seu<br />

vestido branco é<br />

muito simples, apenas<br />

33


Luzes da Civilização Cristã<br />

de modo casto. De forma alguma alguém colocaria nas<br />

mãos dela uma revista imoral ou iria apresentar a ela a<br />

televisão impura dos dias de hoje. Ela é saltitante, sem<br />

distinção, procurando se divertir e dar risada a respeito<br />

de tudo o que encontra. Vê-se, entretanto, a educação e<br />

as boas roupas dela, num bom ambiente, com boa comida,<br />

muito bem lavada e bem penteada, contudo os trajes<br />

dela não aspiram à distinção.<br />

Quando crescer, ela vai ser uma moça comum que entra<br />

numa loja, num ônibus ou metrô, sem chamar a atenção<br />

a não ser de alguns que a conhecem e sabem ser uma<br />

pessoa distinta. É certo que não vai chegar à altura da<br />

marquesa porque esta, enquanto é marquesa, tem sempre<br />

a noção de sua grandeza, de sua superioridade e da<br />

obrigação de atrair o respeito dos que são inferiores. Por<br />

isso, nem o monsieur Labornez nem os netos dele dariam<br />

importância alguma a essa menina, mas se extasiariam<br />

com a marquesa. Portanto, na neta dos marqueses já está<br />

presente a decadência e a segunda classe.<br />

Eu não julgo necessário comentar o traje nem o penteado<br />

da menina, porque não tem charme nenhum e não<br />

carrega nada do passado. Eu afirmo o seguinte: impureza,<br />

não há! Por quê? O que há de casto aí? Há uma certa<br />

leveza viva sem ser agitada. Onde entra a impureza ou<br />

o abatimento há agitação e não existe leveza. Essa ainda<br />

é uma menina pura.<br />

Modéstia e educação da governanta<br />

Agora vem a classe média, a governanta. O marquês e<br />

a marquesa são da alta sociedade.<br />

A governanta é educada. O seu modo de pentear e a<br />

flexão do corpo, indicam ser uma pessoa de boas maneiras.<br />

A posição dela é de quem sabe não ser superior a<br />

ninguém, não fica espalhando em torno de si um “grand-<br />

-air”, nem aristocratismo de nenhum jeito.<br />

Bem o oposto do copeiro, pois este toma um ar de<br />

quem se encontra perante um rei, de tal forma está proporcionado<br />

à nobreza. Na cena em questão, ele ignora<br />

que a marquesa está na intimidade. Se a dama estivesse<br />

pronta para ir, por exemplo, a um baile oferecido<br />

pela alta nobreza a um monarca que está de passagem<br />

por Paris, ou então à nossa princesa Isabel ou ao conde<br />

D’Eu, todos contemporâneos, o copeiro não tomaria outra<br />

atitude da que está tomando.<br />

A governanta não, ela pode sair à rua ou fazer compras<br />

que fica dissolvida nesses ambientes. O marquês e<br />

a marquesa são de salão. Notem, entretanto, como o copeiro<br />

e a governanta são mais finos do que as pessoas finas<br />

de hoje em dia.<br />

Há outro lado que é preciso notar. Sem me deter muito<br />

tempo descrevendo a governanta, eu me pergunto:<br />

Quem se dirige a uma criança com essa delicadeza? É<br />

curioso como Pinchon, ao mesmo tempo, ao desenhar a<br />

governanta, demonstra certo respeito para com a criança,<br />

porque é neta dos patrões. Fica patente o sumo cuidado,<br />

delicadeza e até certo carinho com que conduz a<br />

neta dos marqueses para a sala de jantar, pois a criança<br />

está com a atenção voltada para cá<br />

e para lá. Exatamente como uma<br />

senhora trataria uma menina.<br />

34


Hoje em dia não é comum encontrar senhoras que tratem<br />

suas filhas assim. Aí se percebe a decadência do toda<br />

uma época, sem falar, eu insisto, em decadência moral, por<br />

onde o que era comum antes da guerra de 1914 – em que<br />

a Europa tinha milhares de pessoas como esses marqueses<br />

–, hoje em dia isso é objeto de museu que não se encontra<br />

mais, nem de longe! Alguns de nós, é possível, nem suspeitou<br />

existir gente assim, de tal maneira saiu dos costumes.<br />

Pessoas de classe média como essa governanta quase não<br />

existem mais, inclusive de dentro da alta sociedade.<br />

Essa governanta é uma pessoa modesta de vida pura,<br />

de família pura, muito correta, onde tudo se passa segundo<br />

a moral católica. Quer dizer, há uma tradição católica<br />

nessa família. Não é dessas moças, por exemplo, que<br />

saem em grupos de rapazes cantando e fazendo bagunça.<br />

Pelo contrário, é uma moça habituada a andar no meio<br />

de senhoritas, a ser tratada com muita cerimônia pelos<br />

rapazes da idade dela, a casar casta ainda. Em suma, é<br />

uma moça intacta que não foi poluída por nada. Quão<br />

raro hoje em dia também!<br />

Simplicidade inocente da camponesa bretã<br />

Bem, resta-nos a Bécassine. Há uma coisa a observar<br />

nela e é que está exageradamente gorducha, com o rosto<br />

redondo e vermelho como um queijo do Reno, usando<br />

uma touca vermelha e um pompom, sem fantasia nem<br />

gosto, mas convém ser assim, porque é um símbolo da<br />

classe dela. É o contrário do que gostaria apresentar a<br />

propaganda comunista a respeito da condição do camponês,<br />

vestido como burguês, sujo, maltrapilho, magro, doente<br />

e também revoltado, porque essa propaganda prega<br />

a revolução social. E há<br />

mais. Tudo decaiu tanto<br />

que até os filhos dos patrões<br />

se vestem à maneira<br />

de empregados dos tempos<br />

atuais. Andando pela<br />

rua, é difícil fazer distinção<br />

se o indivíduo é filho<br />

de patrão ou filho de empregado;<br />

quando se consegue<br />

fazer distinção.<br />

A Bécassine é apenas uma<br />

camponesa. O modo de ela engordar<br />

é o modo de camponesa,<br />

com a boa saúde da plebe. Ela,<br />

por exemplo, é uma menina mais<br />

saudável do que a neta da marquesa,<br />

que também é uma menina forte. Becassine<br />

foi educada no campo e não<br />

em Paris, fazendo exercício físico, ajudando<br />

o pai e a mãe, porque a criança<br />

nessa idade já faz trabalhinhos. E na hora de comer, come<br />

pães e bebe leite à vontade. O resultado é ficar bem<br />

nutrida.<br />

Pinchon é tão cuidadoso que até as pernas dela as desenhou<br />

gorduchas. Vejam como a neta da marquesa é<br />

mais magra, e se engordasse dessa forma a levariam no<br />

médico para indicar regime. Em parte, é assim porque<br />

há um imponderável qualquer por onde a boa educação<br />

transmitida por gerações faz a pessoa engordar de um<br />

modo diferente. Por exemplo, a madame de Grand-Air é<br />

gorda, porém é diferente da corpulência do criado.<br />

Tanto a camponesa como o copeiro são nitidamente<br />

inferiores à governanta, e esta é inferior à marquesa. É<br />

uma sociedade onde cada um tem seu papel. Tudo é bem<br />

organizado.<br />

Com isto termino de descrever essa cena.<br />

A Bécassine foi ao castelo para brincar e depois almoçar<br />

com a menina e com os marqueses. A camponesa<br />

– que perdeu toda a distância psíquica – está contando<br />

alguma coisa para o marquês e este está dizendo algo<br />

ou fazendo algum gesto amável explicando estar à esquerda<br />

sala de jantar onde todos vão entrar, pois ela ainda<br />

não percebeu onde será a refeição; de tal forma está<br />

extasiada. Com certeza, a camponesa será a atração do<br />

almoço porque vai fazer tolices e todos vão dar risada,<br />

com bondade.<br />

Assim, habituada ao castelo, a Becassine vai servir a<br />

marquesa até o fim da história, quando a nobre estiver<br />

idosa.<br />

v<br />

(Extraído de conferência de 14/5/1980)<br />

35


Uma cruz bem<br />

carregada<br />

Abênção se dá fazendo o Sinal-da-Cruz, e quem a recebe faz em si o mesmo sinal. Bênção e Cruz<br />

são indissociáveis. Quem não sofre, não é abençoado.<br />

No Reino de Maria haverá grandes dores alternadas com alegrias inimagináveis. Padecimentos<br />

pungentes como os do Calvário e júbilos esfuziantes como os da Páscoa da Ressurreição.<br />

Dona Lucilia teve em sua vida alguns fatos que lhe causaram sofrimentos muito pungentes, os quais<br />

não eram senão os ápices de dores muito maiores que, em certos momentos, chegavam a uma espécie de<br />

paroxismo.<br />

Entretanto, junto com essa dor permanente, mamãe tinha alegrias de fundo de alma que a ajudavam<br />

a carregar a cruz. Porque a impressão que ela dá é de uma cruz bem carregada, com muito equilíbrio<br />

e nunca com qualquer espécie de ansiedade.<br />

(Extraído de conferência de 12/11/1984)

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!