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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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como seguiremos um dos “dois cursos de pensamento totalmente corretos para

uma pessoa com alguma inteligência [...] : O que Deus entendeu por criar o

mundo, o mar e o deserto, o cavalo, os ventos, a mulher, o âmbar, os peixes e o

vinho?”.

É verdade que o contar histórias revela o sentido sem cometer o erro de definilo,

realiza o acordo e a reconciliação com as coisas tais como realmente são, e

até podemos confiar que eventualmente contenha, por implicação, aquela última

palavra que esperamos do “dia do juízo”. E no entanto, se ouvimos a “filosofia”

do contar histórias de Isak Dinesen e pensamos em sua vida à luz dela, não

conseguimos evitar a consciência de que o mínimo mal-entendido, o mais leve

desvio de ênfase para a direção errada, inevitavelmente fará ruir tudo. Se é

verdade, como sugere sua “filosofia”, que ninguém tem uma vida digna de ser

pensada sem que se possa contar sua história de vida, não se segue então que a

vida poderia, e até deveria, ser vivida como uma história, e que o que se tem a

fazer na vida é tornar a história verdadeira? “O orgulho”, escreveu uma vez em

seu caderno de notas, “é a fé na idéia que teve Deus ao nos fazer. Um homem

orgulhoso é consciente da idéia e aspira a realizá-la.” A partir do que agora

sabemos de sua vida anterior, parece absolutamente claro que foi isso que ela

tentou fazer quando jovem: “realizar” uma “idéia” e antecipar o destino de sua

vida, tornando verdadeira uma velha história. A idéia lhe veio como legado do

seu pai, a quem amava imensamente — a morte dele, quando ela tinha dez anos,

foi a primeira grande dor, o fato de ter cometido suicídio, como veio mais tarde a

saber, foi o primeiro grande choque do qual ela se recusou a se afastar —, e a

história que planejara executar em sua vida pretendia realmente ser a seqüência

da história de seu pai. Esta envolvera “une princesse de conte de fées que todos

adoravam”, a qual ele conhecera e amara antes de seu casamento, e que morreu

subitamente aos vinte anos de idade. Seu pai havia mencionado o fato a ela, e

uma tia posteriormente sugeriu que ele nunca conseguira se recuperar da perda

da jovem, e que seu suicídio era o resultado de sua dor incurável. A jovem,

revelou-se, era uma prima de seu pai, e a maior ambição da filha passou a ser

pertencer a esse lado da família paterna, além do mais da alta nobreza

dinamarquesa, “uma raça totalmente diferente” de seu próprio meio, como conta

seu irmão. É inteiramente natural que um de seus membros, que seria uma

sobrinha da jovem falecida, tenha se tornado sua melhor amiga e, quando “ela se

apaixonou ‘pela primeira vez e realmente para sempre’, [como] costumava

dizer”, foi com um segundo primo, Hans Blixen, que seria sobrinho da jovem

falecida. E como este não lhe deu atenção, ela decidiu, aos 27 anos, idade

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