Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

hernandesjuan81
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inocência do período antes da Queda” — é o que ela queria ser, como queriaviver e como aparecia a si mesma. Não era necessariamente como ela apareciaaos outros, em particular ao seu amante. Tania, ele a chamara, e a seguiracrescentara Titania. (“Há aqui uma tal magia no povo e na terra”, dissera a ele;e Denys “sorriu para ela com uma superioridade afetuosa. ‘A magia não está nopovo ou na terra, mas nos olhos de quem vê. [...] Você traz sua própria magia aeles, Tania [...] Titania’.”) Parmenia Migel escolheu o nome como título da suabiografia, e não seria um mau título se ela tivesse lembrado que o nome implicaalgo além da Rainha das Fadas e sua “magia”. Os dois amantes, entre os quaisprimeiramente surgiu o nome, sempre citando Shakespeare entre si,evidentemente sabiam melhor disso; sabiam que a Rainha das Fadas era bemcapaz de se apaixonar por Bottom e tinha uma avaliação um tanto irrealista deseus próprios poderes mágicos:“E eu purgarei tua densidade mortal ePoderás seguir como um espírito aéreo”.Bem, Bottom não se transformou num espírito aéreo, e Puck nos conta averdade do assunto para todos os fins práticos:“Minha senhora está apaixonada por um monstro. [...]Titania despertou e logo amou um asno”.O problema era que a magia uma vez se mostrou totalmente ineficaz. Acatástrofe que finalmente recaiu sobre ela, já a trazia dentro de si, quandodecidiu ficar na fazenda, mesmo devendo saber que o café que crescia “a umaaltura tão elevada [...] era decididamente inaproveitável”, e, para piorar asituação, ela “não sabia nem aprendera muito sobre o café, mas persistia naconvicção inabalável de que seu poder intuitivo lhe diria o que fazer” — comoobservou seu irmão, em reminiscências ternas e sensíveis após a sua morte.Somente quando foi expulsa da terra que, por dezessete longos anos, sustentadapelo dinheiro da família, lhe permitira ser Rainha, Rainha das Fadas, é que averdade despontou sobre ela. Lembrando a distância o seu cozinheiro africano,Kamante, ela escreveu: “Onde o grande Chefe andava imerso em profundospensamentos, pleno de conhecimentos, ninguém via senão um pequeno Kikuyucambaio, um anão com o rosto chato e liso”. Sim, ninguém exceto ela, semprerepetindo tudo na magia da imaginação, de onde brotavam as histórias. No

entanto, o ponto da questão é que mesmo essa desproporção, uma vezdescoberta, pode se tornar matéria para uma história. Assim, encontramosnovamente Titania em “The dreamers”, agora chamada de “Dona Quixota de laMancha”, e lembra ao velho judeu sábio, que na história desempenha o papel dePuck, as “serpentes dançantes” que uma vez viu na Índia, serpentes que não têm“nenhum veneno” e matam, se matam, pela simples força do abraço. “De fato,vê-la, desdobrando suas grandes espirais para se enrolar, prender e finalmenteesmagar um rato da campina, é suficiente para estourar de rir.” De certa forma, éassim que a pessoa se sente ao ler, página após página, sobre seus “êxitos”posteriores e como ela os desfrutou, aumentando-os além de todas as proporções— o fato de que tanta intensidade, tanta passionalidade corajosa sedesperdiçassem em indicações de clubes do livro para membro honorário emsociedades de prestígio, o fato de que a precoce percepção lúcida de que a dor émelhor do que nada, de que, “entre o pesar e o nada, escolhe o pesar” (Faulkner),finalmente fosse recompensada pela pequena troca de prêmios, distinções ehomenagens, retrospectivamente pode ser patético; o próprio espetáculo deviaestar muito próximo da comédia.As histórias salvaram seu amor, e as histórias salvaram sua vida depois deocorrido o desastre. “Todas as dores podem ser suportadas se você as pusernuma história ou contar uma história sobre elas.” A história revela o sentidodaquilo que, do contrário, permaneceria como uma seqüência intolerável depuros acontecimentos. “O gênio silencioso e envolvente da concordância”, que étambém o gênio da verdadeira fé — quando seu empregado árabe ouve a notíciada morte de Denys Finch-Hatton, replica: “Deus é grande”, tal como o Kaddishhebreu, oração fúnebre rezada pelo parente mais próximo, não diz senão“Santificado seja seu nome” —, alça-se da história porque, na repetição daimaginação, os acontecimentos se converteram naquilo que ela chamaria de“destino”. Concordar tanto com o destino pessoal de alguém, a ponto de não sepoder distinguir entre a dança e o dançarino, a ponto de a resposta à pergunta“Quem é você?” ser a resposta do Cardeal, “Permita-me [...] responder-lhe àmaneira clássica, e contar-lhe uma história”, é a única aspiração digna do fato determos recebido a vida. Isso também se chama orgulho, e a verdadeira linhadivisória entre as pessoas está em serem capazes de “amar [seu] destino” ou“aceitar como um êxito aquilo que os outros garantem estar [...] na cotação dodia. Eles tremem, com razão, perante seu destino”. Todas as suas histórias sãorealmente “Anedotas do Destino”, contam e contam repetidamente como ao finalestaremos numa posição privilegiada para julgar; ou, para dizer de outra forma,

entanto, o ponto da questão é que mesmo essa desproporção, uma vez

descoberta, pode se tornar matéria para uma história. Assim, encontramos

novamente Titania em “The dreamers”, agora chamada de “Dona Quixota de la

Mancha”, e lembra ao velho judeu sábio, que na história desempenha o papel de

Puck, as “serpentes dançantes” que uma vez viu na Índia, serpentes que não têm

“nenhum veneno” e matam, se matam, pela simples força do abraço. “De fato,

vê-la, desdobrando suas grandes espirais para se enrolar, prender e finalmente

esmagar um rato da campina, é suficiente para estourar de rir.” De certa forma, é

assim que a pessoa se sente ao ler, página após página, sobre seus “êxitos”

posteriores e como ela os desfrutou, aumentando-os além de todas as proporções

— o fato de que tanta intensidade, tanta passionalidade corajosa se

desperdiçassem em indicações de clubes do livro para membro honorário em

sociedades de prestígio, o fato de que a precoce percepção lúcida de que a dor é

melhor do que nada, de que, “entre o pesar e o nada, escolhe o pesar” (Faulkner),

finalmente fosse recompensada pela pequena troca de prêmios, distinções e

homenagens, retrospectivamente pode ser patético; o próprio espetáculo devia

estar muito próximo da comédia.

As histórias salvaram seu amor, e as histórias salvaram sua vida depois de

ocorrido o desastre. “Todas as dores podem ser suportadas se você as puser

numa história ou contar uma história sobre elas.” A história revela o sentido

daquilo que, do contrário, permaneceria como uma seqüência intolerável de

puros acontecimentos. “O gênio silencioso e envolvente da concordância”, que é

também o gênio da verdadeira fé — quando seu empregado árabe ouve a notícia

da morte de Denys Finch-Hatton, replica: “Deus é grande”, tal como o Kaddish

hebreu, oração fúnebre rezada pelo parente mais próximo, não diz senão

“Santificado seja seu nome” —, alça-se da história porque, na repetição da

imaginação, os acontecimentos se converteram naquilo que ela chamaria de

“destino”. Concordar tanto com o destino pessoal de alguém, a ponto de não se

poder distinguir entre a dança e o dançarino, a ponto de a resposta à pergunta

“Quem é você?” ser a resposta do Cardeal, “Permita-me [...] responder-lhe à

maneira clássica, e contar-lhe uma história”, é a única aspiração digna do fato de

termos recebido a vida. Isso também se chama orgulho, e a verdadeira linha

divisória entre as pessoas está em serem capazes de “amar [seu] destino” ou

“aceitar como um êxito aquilo que os outros garantem estar [...] na cotação do

dia. Eles tremem, com razão, perante seu destino”. Todas as suas histórias são

realmente “Anedotas do Destino”, contam e contam repetidamente como ao final

estaremos numa posição privilegiada para julgar; ou, para dizer de outra forma,

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