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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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inocência do período antes da Queda” — é o que ela queria ser, como queria

viver e como aparecia a si mesma. Não era necessariamente como ela aparecia

aos outros, em particular ao seu amante. Tania, ele a chamara, e a seguir

acrescentara Titania. (“Há aqui uma tal magia no povo e na terra”, dissera a ele;

e Denys “sorriu para ela com uma superioridade afetuosa. ‘A magia não está no

povo ou na terra, mas nos olhos de quem vê. [...] Você traz sua própria magia a

eles, Tania [...] Titania’.”) Parmenia Migel escolheu o nome como título da sua

biografia, e não seria um mau título se ela tivesse lembrado que o nome implica

algo além da Rainha das Fadas e sua “magia”. Os dois amantes, entre os quais

primeiramente surgiu o nome, sempre citando Shakespeare entre si,

evidentemente sabiam melhor disso; sabiam que a Rainha das Fadas era bem

capaz de se apaixonar por Bottom e tinha uma avaliação um tanto irrealista de

seus próprios poderes mágicos:

“E eu purgarei tua densidade mortal e

Poderás seguir como um espírito aéreo”.

Bem, Bottom não se transformou num espírito aéreo, e Puck nos conta a

verdade do assunto para todos os fins práticos:

“Minha senhora está apaixonada por um monstro. [...]

Titania despertou e logo amou um asno”.

O problema era que a magia uma vez se mostrou totalmente ineficaz. A

catástrofe que finalmente recaiu sobre ela, já a trazia dentro de si, quando

decidiu ficar na fazenda, mesmo devendo saber que o café que crescia “a uma

altura tão elevada [...] era decididamente inaproveitável”, e, para piorar a

situação, ela “não sabia nem aprendera muito sobre o café, mas persistia na

convicção inabalável de que seu poder intuitivo lhe diria o que fazer” — como

observou seu irmão, em reminiscências ternas e sensíveis após a sua morte.

Somente quando foi expulsa da terra que, por dezessete longos anos, sustentada

pelo dinheiro da família, lhe permitira ser Rainha, Rainha das Fadas, é que a

verdade despontou sobre ela. Lembrando a distância o seu cozinheiro africano,

Kamante, ela escreveu: “Onde o grande Chefe andava imerso em profundos

pensamentos, pleno de conhecimentos, ninguém via senão um pequeno Kikuyu

cambaio, um anão com o rosto chato e liso”. Sim, ninguém exceto ela, sempre

repetindo tudo na magia da imaginação, de onde brotavam as histórias. No

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