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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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geração dos rapazes que a Primeira Guerra Mundial tornara para sempre

incapazes de suportar as convenções e cumprir com as obrigações da vida

cotidiana, de seguir suas carreiras e desempenhar seus papéis numa sociedade

que os entediava a ponto de enlouquecê-los. Alguns se tornaram revolucionários

e viviam na terra dos sonhos do futuro; outros, pelo contrário, escolheram o país

dos sonhos do passado e viviam como se “o deles [...] fosse um mundo que não

mais existia”. Juntos partilhavam do credo fundamental de que “não pertenciam

ao seu século”. (Em linguagem política, pode-se dizer que eram antiliberais, na

medida em que o liberalismo significava a aceitação do mundo tal como era,

juntamente com a esperança em seu “progresso”; os historiadores sabem até que

ponto coincidem as críticas conservadora e revolucionária ao mundo da

burguesia.) Em ambos os casos, queriam ser “eLivross” e “desertores”,

totalmente dispostos “a pagar pelo seu voluntarismo”, mais do que a se

assentarem e fundarem uma família. De qualquer forma, Denys Finch-Hatton ia

e vinha quando queria, e nada obviamente estava mais longe de suas idéias do

que se prender pelo casamento. Nada além da chama da paixão o prenderia e o

atrairia de volta, e o modo mais seguro de impedir que a chama se extinguisse

com o tempo e a inevitável repetição, ambos se conhecendo bem demais e tendo

já ouvido todas as histórias, era o de se tornar inesgotável na elaboração de

novas histórias. Seguramente, ela sentia tanta ansiedade em entretê-lo quanto

Sherazade, com a mesma consciência de que o fracasso em agradá-lo seria sua

morte.

Daí la grande passion, com a África ainda selvagem, ainda não domesticada, o

cenário perfeito. Lá seria possível traçar a linha “entre respeitabilidade e

decência, e [dividir] nossos conhecidos, humanos e animais, segundo a doutrina.

Considerávamos os animais domésticos como respeitáveis e os animais

selvagens como decentes, e sustentávamos que, enquanto a existência e o

prestígio dos primeiros eram decididos pela sua relação com a comunidade, os

outros permaneciam em contato direto com Deus. Porcos e galinhas,

concordávamos, eram dignos do nosso respeito, na medida em que fielmente

retribuíam o que se investia neles, e [...] se conduziam conforme se esperava

deles. [...] Nós nos inscrevíamos entre os animais selvagens, tristemente

admitindo a inadequação de nosso retorno à comunidade — e às nossas

hipotecas —, mas compreendendo que possivelmente não conseguiríamos, nem

mesmo para obter a mais alta aprovação do que nos cercava, renunciar àquele

contato direto com Deus que partilhávamos com o hipopótamo e o flamingo”.

Entre as emoções, la grande passion é tão destrutiva daquilo que é socialmente

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