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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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entrevistas sobre o tema ou ainda de Isak Dinesen: a memorial, publicado em

1965 pela Random House. Os poucos fatos aqui revelados pela primeira vez são

tratados com uma incompetência piegas que poderia ser assinalada por qualquer

revisor. (Não se pode propriamente dizer que um homem prestes a cometer

suicídio [o pai dela] tenha “uma certa premonição [...] de sua morte próxima”; na

p. 36, somos avisados de que seu primeiro amor iria “permanecer anônimo”,

coisa que não ocorre, pois à p. 210 passamos a saber quem era ele; somos

informados de passagem de que seu pai “simpatizara com os communards e

tinha tendências esquerdistas” e nos é dito, pela voz de uma tia, que “ele ficara

profundamente entristecido com os horrores que presenciara durante a Comuna

de Paris”. Um homem desiludido, poderíamos concluir, caso não soubéssemos,

através do memorial acima citado, que posteriormente ele escreveu um livro de

memórias “onde [...] rendeu justiça ao patriotismo e idealismo dos

communards”. Seu filho confirma as simpatias com a Comuna e acrescenta que

“no parlamento seu partido era a Esquerda”.) Pior que a pieguice é a délicatesse

teimosa e cabeçuda aplicada ao fato novo, de longe o mais relevante, que contém

o livro: a infecção venérea — o marido de quem se divorciara, conservando

porém o título e o sobrenome (pela “satisfação de ser tratada como baronesa”,

como sugere sua biógrafa?), havia “deixado a ela o legado da doença” — cujas

conseqüências sofreu durante toda sua vida. Sua história médica realmente teria

um interesse considerável; sua secretária conta a que ponto o fim de sua vida se

consumira numa “luta heróica contra o esmagador avanço da doença [...] como

um ser humano tentando deter uma avalanche”. E o pior de tudo é a

impertinência ocasional e antes inocente, tão típica dos adoradores profissionais

que se encontram em torno da maioria das celebridades; Hemingway, que de

forma absolutamente generosa dissera em seu discurso, ao receber o Prêmio

Nobel, que ele deveria ter sido outorgado a “aquela bela escritora Isak Dinesen”,

“não podia deixar de invejar o equilíbrio e a sofisticação [de Tania]” e “precisava

matar para provar sua virilidade, extirpar a insegurança que nunca conseguiu

realmente dominar”. Tudo isso seria desnecessário dizer e seria melhor passar

em silêncio por todo esse empreendimento, não fosse o infeliz fato de ter sido a

própria Isak Dinesen (ou terá sido a baronesa Karen Blixen?) quem

encomendou, por assim dizer, essa biografia, gastou horas e dias com a sra.

Migel para instruí-la e, logo antes de sua morte, lembrou-lhe mais uma vez do

“meu livro”, extraindo a promessa de que ele estaria concluído “tão logo eu

morra”. Bem, nem a vaidade, nem a necessidade de adoração — o triste

substituto da suprema confirmação da existência do indivíduo que só pode ser

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