Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt
público. Podia-se compreender melhor que o pesar por ter perdido sua vida e seuamante na África faria dela uma escritora e lhe daria uma espécie de segundavida, se se entendesse isso como uma brincadeira, e “Deus aprecia umabrincadeira” tornou-se sua máxima no período final da vida. (Ela apreciava esseslemas de vida e começara com navigare necesse est, vivere non necesse est, paradepois adotar o Je responderay, responderei e prestarei contas, de Denys Finch-Hatton.)Mas foi mais que o medo de cair numa armadilha que a fez, entrevista apósentrevista, defender-se categoricamente da noção comum de ser uma escritoranata e uma “artista criativa”. A verdade é que nunca sentira qualquer ambição ouespecial premência para escrever, quanto menos para ser uma escritora; podia-sedeixar de lado o pequeno texto que redigira na África, pois apenas servira, “emépocas de seca”, em todos os sentidos, para dispersar suas preocupações sobre afazenda e aliviar seu tédio quando não havia nenhum outro trabalho a fazer.Somente uma vez “criara alguma ficção para conseguir dinheiro” e, embora Theangelic avengers [Os vingadores angelicais] realmente rendesse um pouco, foi“terrível”. Não, ela começara a escrever simplesmente “porque tinha de ganhar avida” e “só podia fazer duas coisas, cozinhar e [...] talvez escrever”. Elaaprendera a cozinhar em Paris e mais tarde na África, para agradar aos amigos, epara entreter os amigos e também os nativos aprendera sozinha a contarhistórias. “Se pudesse ter ficado na África, nunca se tornaria escritora.” Pois“Moi, je suis une conteuse, et rien qu’une conteuse. C’est l’histoire elle-mêmequi m’intéresse, et la façon de la raconter” [Eu, eu sou uma contadora dehistórias e nada mais. É a própria história que me interessa, e a maneira decontá-la]. Tudo que precisava para começar era a vida e o mundo, praticamentequalquer tipo de mundo ou ambiente; pois o mundo está cheio de histórias, deacontecimentos e ocorrências e eventos estranhos, que só esperam ser contados,e a razão pela qual geralmente permanecem não contados é, segundo IsakDinesen, a falta de imaginação — pois somente se você consegue imaginar o queaconteceu de alguma maneira, repeti-lo na imaginação, é que você verá ashistórias, e somente se você tem a paciência de contá-las e recontá-las (“Je meles raconte et reraconte”) é que poderá contá-las bem. Isso, evidentemente, elafizera durante toda sua vida, mas não para se tornar uma artista, nem sequer parase tornar uma daquelas velhas e sábias contadoras profissionais de histórias queencontramos em seus livros. Nunca se estará plenamente vivo se não se repetir avida na imaginação, a “falta de imaginação” impede as pessoas de “existirem”.“Seja fiel à história”, como um de seus contadores adverte ao jovem, “seja eterna
e constantemente fiel à história” significa nada menos que: Seja fiel à vida, nãocrie ficções mas aceite o que a vida está lhe dando, mostre-se digno do que querque seja, coletando-o e ponderando-o e assim repetindo-o na imaginação; esta éa forma de se manter vivo. E viver no sentido de estar plenamente vivo desdecedo fora e até o final continuou a ser seu único propósito e desejo. “Minha vida,nunca deixarei que você parta, a menos que me fira, mas então eu a deixareipartir.” A recompensa por contar história é ser capaz de deixar partir: “Quando ocontador de histórias é fiel [...] à história, aí, ao final, o silêncio falará. Ali ondea história foi traída, o silêncio é apenas vácuo. Mas nós, os fiéis, quandopronunciarmos nossa última palavra, ouviremos a voz do silêncio”.Certamente isso exige habilidade, e nesse sentido o contar histórias não éapenas uma parte do viver, mas pode se converter numa arte por direito próprio.Tornar-se artista também demanda tempo e um certo desapego em relação àtarefa pesada e intoxicante do puro viver, a qual talvez só possa ser tratada emmeio ao viver pelo artista nato. De qualquer forma, em seu caso há uma agudalinha que separa sua vida da sua futura vida como autora. Somente ao perder oque constituíra sua vida, seu lar na África e seu amante, ao retornar à casa emRungstedlund como um completo “fracasso”, sem nada nas mãos além de dor etristeza e memórias, é que se converteu na artista e no “êxito” em que, de outraforma, jamais se converteria — “Deus aprecia uma brincadeira”, e asbrincadeiras divinas, como muito bem sabiam os gregos, freqüentemente sãocruéis. O que ela então fez era único na literatura contemporânea, embora possaser equiparado a certos escritores do século xix — vêm à mente as anedotas ehistórias curtas de Heinrich Kleist e alguns contos de Johann Peter Hebel,principalmente Unverhofftes Wiedersehen. Eudora Welty o definiu cabalmentenuma pequena frase de extrema precisão: “De uma história ela fez uma essência;da essência fez um elixir; e do elixir começou novamente a compor a história”.A relação da vida de uma artista com sua obra sempre levantou problemasembaraçosos, e nossa avidez em ver noticiado, exibido e discutido em públicoaquilo que antes não era da conta de ninguém e constituía assunto estritamenteprivado, é provavelmente menos legítima do que nossa curiosidade se dispõe aadmitir. Infelizmente, as questões que inevitavelmente se levantam sobre abiografia de Parmenia Migel (Titania. The Biography of Isak Dinesen, RandomHouse, 1967) não são dessa ordem. Seria generoso dizer que o texto éinqualificável e, embora cinco anos dedicados à pesquisa supostamenteoferecessem “material suficiente [...] para uma obra monumental”, quase nuncatemos algo além de citações do material, já publicado, extraído de livros e
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e constantemente fiel à história” significa nada menos que: Seja fiel à vida, não
crie ficções mas aceite o que a vida está lhe dando, mostre-se digno do que quer
que seja, coletando-o e ponderando-o e assim repetindo-o na imaginação; esta é
a forma de se manter vivo. E viver no sentido de estar plenamente vivo desde
cedo fora e até o final continuou a ser seu único propósito e desejo. “Minha vida,
nunca deixarei que você parta, a menos que me fira, mas então eu a deixarei
partir.” A recompensa por contar história é ser capaz de deixar partir: “Quando o
contador de histórias é fiel [...] à história, aí, ao final, o silêncio falará. Ali onde
a história foi traída, o silêncio é apenas vácuo. Mas nós, os fiéis, quando
pronunciarmos nossa última palavra, ouviremos a voz do silêncio”.
Certamente isso exige habilidade, e nesse sentido o contar histórias não é
apenas uma parte do viver, mas pode se converter numa arte por direito próprio.
Tornar-se artista também demanda tempo e um certo desapego em relação à
tarefa pesada e intoxicante do puro viver, a qual talvez só possa ser tratada em
meio ao viver pelo artista nato. De qualquer forma, em seu caso há uma aguda
linha que separa sua vida da sua futura vida como autora. Somente ao perder o
que constituíra sua vida, seu lar na África e seu amante, ao retornar à casa em
Rungstedlund como um completo “fracasso”, sem nada nas mãos além de dor e
tristeza e memórias, é que se converteu na artista e no “êxito” em que, de outra
forma, jamais se converteria — “Deus aprecia uma brincadeira”, e as
brincadeiras divinas, como muito bem sabiam os gregos, freqüentemente são
cruéis. O que ela então fez era único na literatura contemporânea, embora possa
ser equiparado a certos escritores do século xix — vêm à mente as anedotas e
histórias curtas de Heinrich Kleist e alguns contos de Johann Peter Hebel,
principalmente Unverhofftes Wiedersehen. Eudora Welty o definiu cabalmente
numa pequena frase de extrema precisão: “De uma história ela fez uma essência;
da essência fez um elixir; e do elixir começou novamente a compor a história”.
A relação da vida de uma artista com sua obra sempre levantou problemas
embaraçosos, e nossa avidez em ver noticiado, exibido e discutido em público
aquilo que antes não era da conta de ninguém e constituía assunto estritamente
privado, é provavelmente menos legítima do que nossa curiosidade se dispõe a
admitir. Infelizmente, as questões que inevitavelmente se levantam sobre a
biografia de Parmenia Migel (Titania. The Biography of Isak Dinesen, Random
House, 1967) não são dessa ordem. Seria generoso dizer que o texto é
inqualificável e, embora cinco anos dedicados à pesquisa supostamente
oferecessem “material suficiente [...] para uma obra monumental”, quase nunca
temos algo além de citações do material, já publicado, extraído de livros e