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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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mundiais e essas origens, em sua própria diversidade, partilhavam de algo único.

Essa identidade singular pode ser abordada e definida de muitas maneiras: é a

época em que as mitologias vinham sendo descartadas ou utilizadas para a

fundamentação das grandes religiões mundiais, com seu conceito de um Único

Deus transcendente; em que a filosofia faz a sua aparição em todos os lugares: o

homem descobre o Ser como um todo e a si mesmo como radicalmente diferente

de todos os outros seres; em que, pela primeira vez, o homem se torna (nas

palavras de Agostinho) uma questão para si mesmo, torna-se consciente da

consciência, começa a pensar; em que por todas as partes aparecem grandes

personalidades que, aceitas ou não como simples membros de suas respectivas

comunidades, se pensam como indivíduos e projetam novos modos individuais

de vida — a vida do homem sábio, a vida do profeta, a vida do ermitão que se

retira de toda a sociedade e se recolhe numa interioridade e espiritualidade

inteiramente novas. Todas as categorias básicas do nosso pensamento e todos os

princípios básicos de nossas crenças foram criados naquele período. Foi a época

em que a humanidade descobriu pela primeira vez a condição humana na Terra,

de modo que, a partir daí, a mera seqüência cronológica dos eventos podia se

converter numa estória e as estórias podiam ser elaboradas numa história, num

objeto significativo de reflexão e compreensão. O eixo histórico da humanidade,

assim, é “um período em torno de meados do último milênio a.C, para o qual

tudo o que o precedera parecia ter sido uma preparação, e ao qual realmente

remonta tudo o que surgiu, muitas vezes com nítida consciência. A história

mundial da humanidade deriva sua estrutura desse período. Não é um eixo que

poderíamos dizer permanentemente absoluto e único. Mas é o eixo da curta

história mundial que teve lugar até agora, o qual poderia representar, para a

consciência de todos os homens, a base da unidade histórica que reconhecem na

solidariedade. Esse eixo real seria então a encarnação de um eixo ideal, em torno

do qual se une a humanidade em seu movimento”. 10

Nessa perspectiva, a nova unidade da humanidade poderia adquirir um

passado próprio através de um sistema de comunicações, por assim dizer, onde

as diferentes origens da humanidade se revelariam em sua própria identidade.

Mas essa identidade está longe de ser uma uniformidade; assim como o homem

e a mulher podem ser os mesmos, isto é, humanos, apenas se forem

absolutamente diferentes um do outro, da mesma forma o nacional de cada país

só pode entrar nessa história mundial da humanidade se permanecer e aderir

obstinadamente ao que ele é. Um cidadão do mundo, vivendo sob a tirania de um

império mundial, falando e pensando numa espécie de esperanto glorificado,

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