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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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denominador comum; chegaria finalmente a um denominador que hoje em dia

dificilmente conseguiríamos imaginar.

Na medida em que se concebe a verdade como algo separado e diferente de

sua expressão, como algo que por si mesmo é não comunicativo, não se

comunica com a razão e tampouco aquela à experiência “existencial”, é quase

impossível não crer que esse processo destrutivo será total e inevitavelmente

acionado pelo puro automatismo da tecnologia que tornou o mundo uno e, num

certo sentido, unificou a humanidade. É como se os passados históricos das

nações, em sua total diversidade e disparidade, em sua estonteante variedade e

desconcertante estranheza entre si, fossem apenas obstáculos no caminho para a

unidade horrivelmente superficial. É claro que isso é apenas uma ilusão; se se

destruísse a dimensão de profundidade a partir da qual se desenvolveram a

ciência e a tecnologia modernas, o provável é que a nova unidade da

humanidade não conseguiria sobreviver sequer tecnicamente. Tudo parece,

então, depender da possibilidade de se pôr em comunicação mútua os passados

nacionais com sua singularidade original, como única forma de alcançar o

sistema global de comunicação que cubra a superfície da Terra.

É à luz de tais reflexões que Jaspers realizou a grande descoberta histórica que

se converteu na pedra regular de sua filosofia da história, na sua origem e meta.

A noção bíblica de que todos os homens descendem de Adão, partilham da

mesma origem e caminham todos para a mesma meta de salvação e Juízo Final,

é algo além do conhecimento e de provas. A filosofia cristã da história, desde

Agostinho a Hegel, via no surgimento de Cristo o ponto de inflexão e o centro da

história mundial. Como tal, é válida apenas para os fiéis cristãos; e se ela

reivindica autoridade sobre todos, avançam tanto para uma unidade da

humanidade quanto qualquer outro mito que pregue a pluralidade dos princípios

e dos fins.

Contra essa e outras filosofias da história semelhantes, que abrigam o conceito

de uma única história mundial a partir da experiência histórica de um só povo ou

região particular do mundo, Jaspers descobriu um eixo histórico empiricamente

dado que oferece a todas as nações “um arcabouço comum de autocompreensão

histórica. O eixo da história mundial parece passar pelo século v a.C., em meio

ao processo espiritual entre 800 e 200 a.C., — Confúcio e Lao-Tsé na China, os

Upanishades e Buda na Índia, Zaratustra na Pérsia, os profetas na Palestina,

Homero, os filósofos e os trágicos na Grécia. 9 Os acontecimentos ocorridos

nesse período apresentavam três características comuns: não tinham nenhuma

conexão entre si, constituíram a origem das grandes civilizações históricas

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