Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt
totalmente diferente daquele que Kant vislumbrara ao ver a unificação dahumanidade “num futuro muito distante”. 2 A humanidade deve sua existêncianão aos sonhos dos humanistas ou ao raciocínio dos filósofos, e tampouco, pelomenos basicamente, aos acontecimentos políticos, mas quase queexclusivamente ao desenvolvimento técnico do mundo ocidental. Quando aEuropa, com toda a seriedade, começou a prescrever suas “leis” a todos osoutros continentes, aconteceu também que ela própria já perdera sua crençanelas. Não menos evidente que o fato de que a tecnologia uniu o mundo é ooutro fato de que a Europa exportou para os quatro cantos da Terra seusprocessos de desintegração — que, no mundo ocidental, haviam se iniciado como declínio das crenças metafísicas e religiosas tradicionalmente aceitas eacompanharam o grandioso desenvolvimento das ciências naturais e a vitória doEstado-nação sobre todas as outras formas de governo. As mesmas forças quelevaram séculos para solapar as antigas crenças e formas de vida política, e quetêm seu lugar no desenvolvimento contínuo exclusivo do Ocidente, levaramapenas umas poucas décadas para destruir, operando de fora, crenças e modos devida de todas as outras partes do mundo.É verdade que, pela primeira vez na história, todos os povos da Terra têm umpresente comum: nenhum acontecimento de alguma importância na história deum país pode se manter como acidente marginal na história de qualquer outro.Cada país se tornou o vizinho quase imediato de todos os outros países, e cadahomem sente o impacto dos acontecimentos que ocorrem no outro lado doplaneta. Mas esse presente factual comum não se baseia num passado comum enão garante minimamente um futuro comum. A tecnologia, tendo proporcionadoa unidade do mundo, pode destruí-la com a mesma facilidade, e os meios decomunicação global foram projetados ao lado de meios de uma possíveldestruição global. É difícil negar que, no momento, o símbolo mais potente daunidade da humanidade é a possibilidade remota de que as armas atômicasempregadas por um país, segundo a sabedoria política de uma minoria,finalmente constituam o término de toda vida humana na Terra. A solidariedadeda humanidade a esse respeito é totalmente negativa; funda-se não só numinteresse comum num acordo que proíba o uso de armas atômicas, mas talveztambém — visto que tais acordos partilham com todos os outros acordos dodestino incerto de se basearem na boa-fé — num desejo comum de um mundoum pouco menos unificado.Essa solidariedade negativa, baseada no temor à destruição global, tem seucorrespondente numa percepção menos articulada, mas não menos poderosa, de
que a solidariedade da humanidade só pode ser significativa num sentidopositivo se vier acompanhada pela responsabilidade política. Nossos conceitospolíticos, segundo os quais temos de assumir responsabilidade por todos osassuntos públicos ao nosso alcance, independentemente de uma “culpa” pessoal,pois como cidadãos nos tornamos responsáveis por tudo o que nosso governo fazem nome do país, podem nos levar a uma situação intolerável deresponsabilidade global. A solidariedade entre a humanidade pode muito bem seconverter numa carga insuportável, e não surpreende que as reações habituais aisso sejam a apatia política, o nacionalismo isolacionista ou a rebeliãodesesperada contra todos os poderes, mais do que um entusiasmo ou desejo defazer ressurgir o humanismo. O idealismo da tradição humanista do Iluminismoe seu conceito de humanidade aparecem como um otimismo temerário à luz dasrealidades presentes. Estas, por outro lado, na medida em que nos trouxeram aum presente global sem um passado comum, ameaçam tornar irrelevantes todasas tradições e histórias particulares do passado.É contra esse pano de fundo de realidades políticas e espirituais, das quaisJaspers provavelmente tem mais consciência do que qualquer outro filósofo denossa época, que se deve entender seu novo conceito de humanidade e asproposições de sua filosofia. Kant outrora convocou os historiadores de suaépoca a escrever uma história “com um ponto de vista cosmopolita”. Poder-se-iafacilmente “provar” que toda a obra filosófica de Jaspers, desde seu início comPsychology of world views [Psicologia das visões do mundo] (1919) até ahistória mundial da filosofia, 3 foi concebida com “um intento voltado para acidadania mundial”. Se a solidariedade entre a humanidade deve se basear emalgo mais sólido que o medo justificado às capacidades demoníacas do homem,se a nova vizinhança universal de todos os países deve resultar em algo maispromissor do que um tremendo aumento do ódio mútuo e uma irritabilidade umtanto universal de todos contra todos, então é preciso que ocorra um processo emescala gigantesca de compreensão mútua e progressivo auto-esclarecimento. Eassim como o pré-requisito para um governo mundial, na opinião de Jaspers, é arenúncia à soberania em favor de uma estrutura política confederada a nívelmundial, assim também o pré-requisito para essa compreensão mútua seria arenúncia não à tradição e ao passado nacional de cada um, mas à autoridadeconstritora e à validade universal que sempre foram anunciadas pela tradição epelo passado. Foi por essa ruptura, não com a tradição, mas com a autoridade datradição, que Jaspers entrou na filosofia. Sua Psychology of world views nega ocaráter absoluto de qualquer doutrina e, em seu lugar, coloca uma relatividade
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totalmente diferente daquele que Kant vislumbrara ao ver a unificação da
humanidade “num futuro muito distante”. 2 A humanidade deve sua existência
não aos sonhos dos humanistas ou ao raciocínio dos filósofos, e tampouco, pelo
menos basicamente, aos acontecimentos políticos, mas quase que
exclusivamente ao desenvolvimento técnico do mundo ocidental. Quando a
Europa, com toda a seriedade, começou a prescrever suas “leis” a todos os
outros continentes, aconteceu também que ela própria já perdera sua crença
nelas. Não menos evidente que o fato de que a tecnologia uniu o mundo é o
outro fato de que a Europa exportou para os quatro cantos da Terra seus
processos de desintegração — que, no mundo ocidental, haviam se iniciado com
o declínio das crenças metafísicas e religiosas tradicionalmente aceitas e
acompanharam o grandioso desenvolvimento das ciências naturais e a vitória do
Estado-nação sobre todas as outras formas de governo. As mesmas forças que
levaram séculos para solapar as antigas crenças e formas de vida política, e que
têm seu lugar no desenvolvimento contínuo exclusivo do Ocidente, levaram
apenas umas poucas décadas para destruir, operando de fora, crenças e modos de
vida de todas as outras partes do mundo.
É verdade que, pela primeira vez na história, todos os povos da Terra têm um
presente comum: nenhum acontecimento de alguma importância na história de
um país pode se manter como acidente marginal na história de qualquer outro.
Cada país se tornou o vizinho quase imediato de todos os outros países, e cada
homem sente o impacto dos acontecimentos que ocorrem no outro lado do
planeta. Mas esse presente factual comum não se baseia num passado comum e
não garante minimamente um futuro comum. A tecnologia, tendo proporcionado
a unidade do mundo, pode destruí-la com a mesma facilidade, e os meios de
comunicação global foram projetados ao lado de meios de uma possível
destruição global. É difícil negar que, no momento, o símbolo mais potente da
unidade da humanidade é a possibilidade remota de que as armas atômicas
empregadas por um país, segundo a sabedoria política de uma minoria,
finalmente constituam o término de toda vida humana na Terra. A solidariedade
da humanidade a esse respeito é totalmente negativa; funda-se não só num
interesse comum num acordo que proíba o uso de armas atômicas, mas talvez
também — visto que tais acordos partilham com todos os outros acordos do
destino incerto de se basearem na boa-fé — num desejo comum de um mundo
um pouco menos unificado.
Essa solidariedade negativa, baseada no temor à destruição global, tem seu
correspondente numa percepção menos articulada, mas não menos poderosa, de