Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

hernandesjuan81
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23.03.2022 Views

liberdade, da independência de pensamento que foram necessárias paraestabelecer esse âmbito do espírito. Pois era essencial, acima de tudo, abandonara ordem cronológica consagrada pela tradição, na qual parecia haver umasucessão, uma seqüência coerente onde um filósofo transmitia a verdade para oseguinte. É certo que essa tradição perdeu há algum tempo a validade de seuconteúdo para nós; mas o padrão temporal da transmissão, do seguir-se um aooutro, parecia-nos tão obrigatório que, sem o seu fio de Ariadne, sentíamo-noscomo que extraviados no passado, totalmente incapazes de nos orientarmos.Nesse transe, onde toda a relação do homem moderno com seu passado estavaem jogo, Jaspers converteu a sucessão no tempo numa justaposição temporal, demodo que a proximidade e a distância não mais dependem dos séculos que nosseparam de um filósofo, mas exclusivamente do ponto livremente escolhido apartir do qual entramos nesse âmbito do espírito, que durará e se expandiráenquanto houver homens na Terra.Esse âmbito, onde Jaspers se sente em casa e para o qual nos abriu as vias deacesso, não reside no além e tampouco é utópico; não é do ontem nem doamanhã; é do presente e deste mundo. A razão o criou e nele reina a liberdade.Não é algo que se situe e se organize; ele estende-se a todos os países do mundoe a todos os seus passados. E, embora seja mundano, é invisível. É o âmbito dahumanitas, ao qual todos podem vir a partir de suas origens pessoais. Os quenele se introduzem reconhecem-se mutuamente, pois então são “como centelhas,brilhando num fulgor mais luminoso, apagando-se até a invisibilidade,alternando-se em movimento constante. As centelhas se vêem umas às outras, ecada uma fulgura com mais brilho pois vê as outras” e pode esperar que elas avejam.Falo aqui em nome daqueles que Jaspers outrora conduziu a esse âmbito.Adalbert Stifter expressou de modo mais belo do que eu conseguiria o queestava então em seus corações: “Agora brotou o assombro para o homem, e delese elevou um grande louvor”.1 Discurso pronunciado por ocasião da entrega do Prêmio da Paz da Classe Livreira Alemã a KarlJaspers.2 De Oratore, i, p. 141.3 O original alemão, Die geistige Situation der Zeit, surgiu em 1931.4 A publicação política mais importante de Jaspers desde 1958, quando foi escrito esse discurso, é Thefuture of Germany [O futuro da Alemanha], 1967.

KARL JASPERS: CIDADÃO DO MUNDO?Ninguém pode ser cidadão do mundo quando é cidadão do seu país. Jaspers,em seu Origin and goal of history [Origem e met a da história] (1953), discuteextensamente as implicações de um Estado e um império mundiais. 1 Qualquerque fosse a forma que pudesse assumir um governo mundial com podercentralizado sobre todo o planeta, a própria noção de uma força soberana agovernar toda a Terra, com o monopólio de todos os meios de violência, semcontrole e verificação por parte de outros poderes soberanos, não é apenas umpesadelo ameaçador de tirania, mas seria o fim de toda vida política, tal como aconhecemos. Os conceitos políticos se baseiam na pluralidade, diversidade elimitações mútuas. Um cidadão é, por definição, um cidadão entre cidadãos deum país entre países. Seus direitos e deveres devem ser definidos e limitados,não só pelos de seus companheiros cidadãos, mas também pelas fronteiras de umterritório. A filosofia pode conceber o globo como a terra natal da humanidade euma lei não escrita eterna e válida para todos. A política trata dos homens,nativos de muitos países e herdeiros de muitos passados; suas leis são as cercaspositivamente estabelecidas que cingem, protegem e limitam o espaço onde aliberdade não é um conceito, mas uma realidade política viva. O estabelecimentode um Estado soberano mundial, longe de ser o pré-requisito da cidadaniamundial, seria o fim de qualquer cidadania. Seria não o clímax da políticamundial, mas seu fim absolutamente literal.Contudo, dizer que um Estado mundial concebido à imagem do Estadosoberano nacional ou um império mundial à imagem do Império Romano éperigoso (e o domínio do Império Romano sobre as partes bárbaras e civilizadasdo mundo só foi suportável porque erguia-se contra o pano de fundo sombrio eatemorizador das partes desconhecidas da Terra), não resolve nosso problemapolítico atual. A humanidade, que para todas as gerações precedentes nãopassava de um conceito ou um ideal, tornou-se algo dotado de uma realidadepremente. A Europa, como previra Kant, prescreveu suas leis para todos osoutros continentes; mas o resultado, a emergência da humanidade a partir, e ladoa lado, da existência continuada de muitas nações, assumiu um aspecto

KARL JASPERS: CIDADÃO DO MUNDO?

Ninguém pode ser cidadão do mundo quando é cidadão do seu país. Jaspers,

em seu Origin and goal of history [Origem e met a da história] (1953), discute

extensamente as implicações de um Estado e um império mundiais. 1 Qualquer

que fosse a forma que pudesse assumir um governo mundial com poder

centralizado sobre todo o planeta, a própria noção de uma força soberana a

governar toda a Terra, com o monopólio de todos os meios de violência, sem

controle e verificação por parte de outros poderes soberanos, não é apenas um

pesadelo ameaçador de tirania, mas seria o fim de toda vida política, tal como a

conhecemos. Os conceitos políticos se baseiam na pluralidade, diversidade e

limitações mútuas. Um cidadão é, por definição, um cidadão entre cidadãos de

um país entre países. Seus direitos e deveres devem ser definidos e limitados,

não só pelos de seus companheiros cidadãos, mas também pelas fronteiras de um

território. A filosofia pode conceber o globo como a terra natal da humanidade e

uma lei não escrita eterna e válida para todos. A política trata dos homens,

nativos de muitos países e herdeiros de muitos passados; suas leis são as cercas

positivamente estabelecidas que cingem, protegem e limitam o espaço onde a

liberdade não é um conceito, mas uma realidade política viva. O estabelecimento

de um Estado soberano mundial, longe de ser o pré-requisito da cidadania

mundial, seria o fim de qualquer cidadania. Seria não o clímax da política

mundial, mas seu fim absolutamente literal.

Contudo, dizer que um Estado mundial concebido à imagem do Estado

soberano nacional ou um império mundial à imagem do Império Romano é

perigoso (e o domínio do Império Romano sobre as partes bárbaras e civilizadas

do mundo só foi suportável porque erguia-se contra o pano de fundo sombrio e

atemorizador das partes desconhecidas da Terra), não resolve nosso problema

político atual. A humanidade, que para todas as gerações precedentes não

passava de um conceito ou um ideal, tornou-se algo dotado de uma realidade

premente. A Europa, como previra Kant, prescreveu suas leis para todos os

outros continentes; mas o resultado, a emergência da humanidade a partir, e lado

a lado, da existência continuada de muitas nações, assumiu um aspecto

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