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liberdade, da independência de pensamento que foram necessárias para
estabelecer esse âmbito do espírito. Pois era essencial, acima de tudo, abandonar
a ordem cronológica consagrada pela tradição, na qual parecia haver uma
sucessão, uma seqüência coerente onde um filósofo transmitia a verdade para o
seguinte. É certo que essa tradição perdeu há algum tempo a validade de seu
conteúdo para nós; mas o padrão temporal da transmissão, do seguir-se um ao
outro, parecia-nos tão obrigatório que, sem o seu fio de Ariadne, sentíamo-nos
como que extraviados no passado, totalmente incapazes de nos orientarmos.
Nesse transe, onde toda a relação do homem moderno com seu passado estava
em jogo, Jaspers converteu a sucessão no tempo numa justaposição temporal, de
modo que a proximidade e a distância não mais dependem dos séculos que nos
separam de um filósofo, mas exclusivamente do ponto livremente escolhido a
partir do qual entramos nesse âmbito do espírito, que durará e se expandirá
enquanto houver homens na Terra.
Esse âmbito, onde Jaspers se sente em casa e para o qual nos abriu as vias de
acesso, não reside no além e tampouco é utópico; não é do ontem nem do
amanhã; é do presente e deste mundo. A razão o criou e nele reina a liberdade.
Não é algo que se situe e se organize; ele estende-se a todos os países do mundo
e a todos os seus passados. E, embora seja mundano, é invisível. É o âmbito da
humanitas, ao qual todos podem vir a partir de suas origens pessoais. Os que
nele se introduzem reconhecem-se mutuamente, pois então são “como centelhas,
brilhando num fulgor mais luminoso, apagando-se até a invisibilidade,
alternando-se em movimento constante. As centelhas se vêem umas às outras, e
cada uma fulgura com mais brilho pois vê as outras” e pode esperar que elas a
vejam.
Falo aqui em nome daqueles que Jaspers outrora conduziu a esse âmbito.
Adalbert Stifter expressou de modo mais belo do que eu conseguiria o que
estava então em seus corações: “Agora brotou o assombro para o homem, e dele
se elevou um grande louvor”.
1 Discurso pronunciado por ocasião da entrega do Prêmio da Paz da Classe Livreira Alemã a Karl
Jaspers.
2 De Oratore, i, p. 141.
3 O original alemão, Die geistige Situation der Zeit, surgiu em 1931.
4 A publicação política mais importante de Jaspers desde 1958, quando foi escrito esse discurso, é The
future of Germany [O futuro da Alemanha], 1967.