Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt
também se deve àquela auto-segurança nativa, ou pelo menos dela brotou. Bastaque sonhe, por assim dizer, estar de volta às suas origens pessoais e, a seguir,novamente de volta para a amplitude da humanidade, para se convencer de que,mesmo no isolamento, ele não representa uma opinião privada, mas um ponto devista público diferente e ainda oculto — uma “trilha”, como colocou Kant, “quealgum dia sem dúvida se alargará numa grande estrada”.Pode haver um perigo nessa tal certeza infalível de julgamento e soberania damente. O não se expor a tentações pode levar à inexperiência ou, pelo menos, àfalta de experiência com as realidades que um determinado período tem aoferecer. E realmente o que poderia estar mais distante das experiências do nossotempo do que a orgulhosa independência com que Jaspers sempre se sentiu àvontade, o alegre descaso pelo que dizem e pensam as pessoas? Esse espírito nãoestá sequer em rebelião contra as convenções, pois as convenções sempre sãoreconhecidas como tais, nunca tomadas seriamente como modelos de conduta. Oque poderia estar mais afastado de nossa ère du soupçon (Nathalie Sarraute) doque a confiança que subjaz profundamente a essa independência, a confiançasecreta no homem, na humanitas da raça humana?E como já estamos examinando assuntos subjetivos, psicológicos: Jasperstinha cinqüenta anos quando Hitler subiu ao poder. Nessa idade, a maioriaesmagadora das pessoas já há muito tempo deixou de ampliar suas experiências,e os intelectuais em particular geralmente se enrijeceram tanto em suas opiniõesque, em todos os acontecimentos reais, só conseguem perceber umacorroboração dessas mesmas opiniões. Jaspers reagiu aos acontecimentosdecisivos desses tempos (os quais não previra mais que qualquer outra pessoa, epara os quais estava possivelmente ainda menos preparado do que muitos outros)sem se recolher para sua própria filosofia, sem negar o mundo e tampouco cairem melancolia. Após 1933, isto é, depois da conclusão da Philosophy [Filosofia]em três partes, e novamente após 1945, depois da conclusão do seu livro OnTruth [Sobre a verdade], embarcou no que poderíamos chamar de novas épocasde produtividade. Infelizmente, essa frase sugere a renovação da vitalidade quepor vezes ocorre a homens de grande talento. Mas o que é tão magnífico emJaspers é que ele se renova porque se mantém inalterado — tão vinculado aomundo como sempre e seguindo os acontecimentos correntes com inalterávelagudeza e capacidade de interesse.The great philosophers [Os grandes filósofos], tal como The atom bomb,encontra-se inteiramente dentro da esfera de nossa experiência mais recente.Essa contemporaneidade, ou antes, esse viver no presente que persiste numa
idade tão avançada, é como que um golpe de sorte que elimina a questão dasdeserções justas. Foi graças a essa mesma boa sorte que Jaspers pôde se isolar nodecorrer de sua vida, mas sem ser impelido para a solidão. Essa boa sorte sebaseia num casamento onde uma mulher, que é sua igual, sempre permaneceu aseu lado desde sua juventude. Se duas pessoas não sucumbem à ilusão de que oslaços que as unem tornaram-nas uma só pessoa, elas podem criar um mundonovo entre si. Certamente, para Jaspers, esse casamento nunca constituiusimplesmente uma coisa privada. Ele demonstrou que duas pessoas de origensdiferentes — a esposa de Jaspers é judia — podiam criar entre si um mundopróprio. E com esse mundo em miniatura, ele aprendeu, como de um modelo, oque é essencial para todo o âmbito dos assuntos humanos. Dentro desse pequenomundo, desenvolveu e praticou sua incomparável faculdade de diálogo, amaravilhosa precisão de sua forma de ouvir, a constante presteza em apresentaruma cândida análise de si próprio, a paciência em se prolongar sobre um assuntoem discussão e, sobretudo, a capacidade de atrair coisas que, de outro modo,passariam em silêncio pela área do discurso, de torná-las dignas de seremcomentadas. Assim, no falar e no ouvir, ele consegue mudar, ampliar, agudizar— ou, como ele mesmo belamente diria, iluminar.Nesse espaço para sempre iluminado mais uma vez por um cuidado ao falar eao ouvir, Jaspers sente-se em casa; é a casa de sua mente porque é um espaço nosentido literal da palavra, assim como as vias de pensamento ensinadas pela suafilosofia são vias no sentido original da palavra, caminhos que desbravam umtrecho de um terreno de outra forma inexplorado. O pensamento de Jaspers éespacial porque se mantém sempre em referência ao mundo e às pessoas nelepresentes, e não porque seja limitado a algum espaço existente. De fato, no casodá-se o contrário, pois sua intenção mais profunda é “criar um espaço” onde ahumanitas do homem possa aparecer pura e luminosa. Um pensamento dessegênero, sempre “relacionado intimamente aos pensamentos de outros”, estáfadado a ser político, mesmo quando trata de coisas que não são minimamentepolíticas; pois ele sempre confirma aquela “mentalidade ampliada” kantiana, queé a mentalidade política par excellence.Para explorar o espaço da humanitas que se converteu em seu lar, Jaspersprecisou dos grandes filósofos. E retribuiu-lhes esplendidamente sua ajuda, porassim dizer, estabelecendo com eles um “âmbito do espírito” onde, uma vezmais, aparecem como pessoas falantes — falando do reino das sombras —, asquais, por terem escapado às limitações temporais, podem se tornar companhiasduradouras nas coisas da mente. Gostaria de poder lhes dar alguma idéia da
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idade tão avançada, é como que um golpe de sorte que elimina a questão das
deserções justas. Foi graças a essa mesma boa sorte que Jaspers pôde se isolar no
decorrer de sua vida, mas sem ser impelido para a solidão. Essa boa sorte se
baseia num casamento onde uma mulher, que é sua igual, sempre permaneceu a
seu lado desde sua juventude. Se duas pessoas não sucumbem à ilusão de que os
laços que as unem tornaram-nas uma só pessoa, elas podem criar um mundo
novo entre si. Certamente, para Jaspers, esse casamento nunca constituiu
simplesmente uma coisa privada. Ele demonstrou que duas pessoas de origens
diferentes — a esposa de Jaspers é judia — podiam criar entre si um mundo
próprio. E com esse mundo em miniatura, ele aprendeu, como de um modelo, o
que é essencial para todo o âmbito dos assuntos humanos. Dentro desse pequeno
mundo, desenvolveu e praticou sua incomparável faculdade de diálogo, a
maravilhosa precisão de sua forma de ouvir, a constante presteza em apresentar
uma cândida análise de si próprio, a paciência em se prolongar sobre um assunto
em discussão e, sobretudo, a capacidade de atrair coisas que, de outro modo,
passariam em silêncio pela área do discurso, de torná-las dignas de serem
comentadas. Assim, no falar e no ouvir, ele consegue mudar, ampliar, agudizar
— ou, como ele mesmo belamente diria, iluminar.
Nesse espaço para sempre iluminado mais uma vez por um cuidado ao falar e
ao ouvir, Jaspers sente-se em casa; é a casa de sua mente porque é um espaço no
sentido literal da palavra, assim como as vias de pensamento ensinadas pela sua
filosofia são vias no sentido original da palavra, caminhos que desbravam um
trecho de um terreno de outra forma inexplorado. O pensamento de Jaspers é
espacial porque se mantém sempre em referência ao mundo e às pessoas nele
presentes, e não porque seja limitado a algum espaço existente. De fato, no caso
dá-se o contrário, pois sua intenção mais profunda é “criar um espaço” onde a
humanitas do homem possa aparecer pura e luminosa. Um pensamento desse
gênero, sempre “relacionado intimamente aos pensamentos de outros”, está
fadado a ser político, mesmo quando trata de coisas que não são minimamente
políticas; pois ele sempre confirma aquela “mentalidade ampliada” kantiana, que
é a mentalidade política par excellence.
Para explorar o espaço da humanitas que se converteu em seu lar, Jaspers
precisou dos grandes filósofos. E retribuiu-lhes esplendidamente sua ajuda, por
assim dizer, estabelecendo com eles um “âmbito do espírito” onde, uma vez
mais, aparecem como pessoas falantes — falando do reino das sombras —, as
quais, por terem escapado às limitações temporais, podem se tornar companhias
duradouras nas coisas da mente. Gostaria de poder lhes dar alguma idéia da