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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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somente pelo peso da pessoa, é precisamente o fato de, sem representar coisa

alguma além de sua própria existência, assegurar que, mesmo na obscuridade da

dominação total, onde qualquer bondade que ainda possa subsistir se torna

absolutamente invisível e portanto ineficaz, mesmo então a razão só pode ser

aniquilada se todos os homens pensantes estiverem realmente, literalmente

exterminados.

Era auto-evidente que ele permaneceria firme em meio à catástrofe. Mas que

tudo aquilo nunca sequer se mostrasse tentador a ele — isso, que é menos autoevidente,

foi sua inviolabilidade, e para os que o conheciam significava muito

mais que resistência ou heroísmo. Significava uma confiança que dispensava

provas, uma segurança de que, em tempos onde tudo poderia acontecer, não

poderia acontecer uma coisa. O que Jaspers então representava, quando estava

totalmente isolado, não era a Alemanha, mas o que restara da humanitas na

Alemanha. Era como se ele sozinho em sua inviolabilidade pudesse iluminar

aquele espaço que a razão cria e preserva entre os homens, como se a luz e a

amplitude desse espaço pudessem sobreviver mesmo se ali restasse apenas um

único homem. Não que tenha sido realmente assim, ou sequer pudesse assim ter

sido. Jaspers muitas vezes disse: “O indivíduo por si mesmo não pode ser

pensante”. Nesse sentido, ele nunca esteve só, nem pensou muito sobre tal

solidão. A humanitas, cuja existência era por ele assegurada, provinha da região

natal do seu pensamento, e essa região nunca foi despovoada. O que distingue

Jaspers é que ele se sente mais à vontade nessa região da razão e da liberdade,

conhece seu caminho por ela com mais segurança do que outros que podem

conhecê-la, mas não conseguem suportar aí viver constantemente. Porque sua

existência era governada pela paixão à própria luz, foi capaz de ser como uma

luz na escuridão, irradiando de alguma fonte oculta de luminosidade.

Há algo fascinante no fato de um homem ser inviolável, incontrolável,

impassível de tentações. Se quiséssemos explicá-lo em termos psicológicos e

biográficos, poderíamos pensar talvez no lar de onde proveio Jaspers. Seus pais

ainda estavam intimamente ligados ao campesinato frísio orgulhoso e resoluto

que possuía um senso de independência absolutamente incomum na Alemanha.

Bem, a liberdade é mais que a independência, e restava a Jaspers desenvolver, a

partir da independência, a consciência racional da liberdade, onde o homem se

experimenta como um dado a si. Mas a naturalidade soberana — uma certa

temeridade alegre (Übermut), como ele às vezes coloca —, com que gosta de se

expor às correntes da vida pública, mantendo-se ao mesmo tempo independente

de todas as tendências e opiniões que ocorrem estar em voga, provavelmente

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