Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

hernandesjuan81
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colloqui, vol. v, Roma, 1964, p. 310.

KARL JASPERS: UMA LAUDATIO 1Reunimo-nos aqui para a entrega do Prêmio da Paz. Este prêmio, se me épermitido lembrar uma frase utilizada pelo presidente da República Federal, éconferido não só por “excelente obra literária”, mas também por “ter sedestacado na vida”. É conferido, portanto, a uma pessoa, e conferido pela obrana medida em que desta se mantém como palavra falada, ainda não libertada dequem a enuncia para iniciar seu curso incerto e sempre aventuroso pela história.Por essa razão, a entrega deste prêmio deve vir acompanhada pela laudatio, umlouvor cuja tarefa é elogiar antes o homem que sua obra. Talvez possamosaprender como fazê-lo com os romanos, que, mais experientes do que nós emassuntos de significado público, dizem-nos em que consistiria um talempreendimento: in laudationibus [...] ad personarum dignitatem omniareferrentur, disse Cícero 2 — “nos louvores [...] a única consideração é agrandeza e a dignidade dos indivíduos concernentes”. Em outras palavras, umlouvor se refere à dignidade que pertence a um homem, na medida em que ele émais do que tudo o que faz ou cria. O reconhecimento e a celebração dessadignidade não são assunto de especialistas e colegas de profissão; é o públicoque deve julgar uma vida que se expôs à vista pública e se demonstrou noâmbito público. A entrega apenas confirma o que esse público sabe há muito.A laudatio, por conseguinte, só pode tentar expressar o que todos vocês jásabem. Mas dizer em público o que muitos sabem no isolamento da privacidadenão é supérfluo. O próprio fato de que algo é ouvido por todos confere a ele umpoder iluminador que confirma sua existência real. Além disso, devo confessarque assumi essa “aventura no âmbito público” (Jaspers) e sua divulgação comhesitação e timidez. Sinto-me como imagino que a grande maioria de vocês sesente. Somos todos pessoas modernas que se movem em público sem confiançae embaraçadamente. Presos em nossos preconceitos modernos, pensamos queapenas a “obra objetiva”, separada da pessoa, pertence ao público; que a vida e apessoa por trás dela são assuntos privados, e os sentimentos relativos a essascoisas “subjetivas” deixam de ser genuínos e se tornam sentimentais, tão logoexpostos publicamente. Quando a Classe Livreira alemã decidiu que teria de

KARL JASPERS: UMA LAUDATIO 1

Reunimo-nos aqui para a entrega do Prêmio da Paz. Este prêmio, se me é

permitido lembrar uma frase utilizada pelo presidente da República Federal, é

conferido não só por “excelente obra literária”, mas também por “ter se

destacado na vida”. É conferido, portanto, a uma pessoa, e conferido pela obra

na medida em que desta se mantém como palavra falada, ainda não libertada de

quem a enuncia para iniciar seu curso incerto e sempre aventuroso pela história.

Por essa razão, a entrega deste prêmio deve vir acompanhada pela laudatio, um

louvor cuja tarefa é elogiar antes o homem que sua obra. Talvez possamos

aprender como fazê-lo com os romanos, que, mais experientes do que nós em

assuntos de significado público, dizem-nos em que consistiria um tal

empreendimento: in laudationibus [...] ad personarum dignitatem omnia

referrentur, disse Cícero 2 — “nos louvores [...] a única consideração é a

grandeza e a dignidade dos indivíduos concernentes”. Em outras palavras, um

louvor se refere à dignidade que pertence a um homem, na medida em que ele é

mais do que tudo o que faz ou cria. O reconhecimento e a celebração dessa

dignidade não são assunto de especialistas e colegas de profissão; é o público

que deve julgar uma vida que se expôs à vista pública e se demonstrou no

âmbito público. A entrega apenas confirma o que esse público sabe há muito.

A laudatio, por conseguinte, só pode tentar expressar o que todos vocês já

sabem. Mas dizer em público o que muitos sabem no isolamento da privacidade

não é supérfluo. O próprio fato de que algo é ouvido por todos confere a ele um

poder iluminador que confirma sua existência real. Além disso, devo confessar

que assumi essa “aventura no âmbito público” (Jaspers) e sua divulgação com

hesitação e timidez. Sinto-me como imagino que a grande maioria de vocês se

sente. Somos todos pessoas modernas que se movem em público sem confiança

e embaraçadamente. Presos em nossos preconceitos modernos, pensamos que

apenas a “obra objetiva”, separada da pessoa, pertence ao público; que a vida e a

pessoa por trás dela são assuntos privados, e os sentimentos relativos a essas

coisas “subjetivas” deixam de ser genuínos e se tornam sentimentais, tão logo

expostos publicamente. Quando a Classe Livreira alemã decidiu que teria de

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