Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt
pobre, tendo distribuído [...] tudo que chegou a minhas mãos — e foi muitopouco — durante os anos de sacerdócio e episcopado”. Há um tom ligeiramenteapologético nessas passagens, como se soubesse que a pobreza de sua famílianão era absolutamente tão “satisfeita” como fizera parecer. Muito antes,observara que as constantes “preocupações e sofrimentos” que os assediavam“pareciam não servir a nenhum bom propósito, mas antes provocar-lhes dano”, eeste é um dos poucos exemplos onde se pode ao menos imaginar o tipo deexperiência que julgava dispensável. Da mesma forma, pode-se imaginar, maiscomodamente, o imenso orgulho do menino pobre que, durante toda sua vida,enfatizaria que nunca pedira um favor a ninguém e que encontrara consolo nopensamento de que tudo o que recebera (“Quem é mais pobre do que eu? Desdeque me tornei seminarista, nunca vesti um paramento que não tivesse sido dadopor caridade”) fora providenciado por Deus, de forma que sua pobreza para elese converteu em sinal evidente de sua vocação: “Sou da mesma família de Cristo— o que mais posso querer?”.As gerações de intelectuais modernos, na medida em que não eram ateístas —isto é, tolos que pretendiam saber aquilo que nenhum homem pode saber —,foram ensinadas por Kierkegaard, Dostoiévski, Nietzsche e seus inumeráveisseguidores, dentro e fora do campo existencialista, a considerar “interessantes” areligião e as questões teológicas. Sem dúvida, terão dificuldade em entender umhomem que, desde muito jovem, “votara fidelidade” não meramente à “pobrezamaterial”, mas também à “pobreza de espírito”. Fosse quem ou o que fosse opapa João xxiii, não era interessante nem brilhante, e isso totalmente à parte dofato de ter sido um estudante medíocre e, nos anos posteriores de sua vida, semnenhum interesse marcado intelectual ou erudito que fosse. (Afora os jornais,que muito apreciava, parece não ter lido quase nada de escritos seculares.) Se umrapazinho, como Aliocha, lhe diz: “Como está escrito: ‘Se você quer ser perfeito,vá e venda o que tem, e dê aos pobres e siga-me’, como posso lhe dar apenasdois rublos, ao invés dos meus bens, e ir à missa matinal ao invés do ‘sigame’?”.E se o homem adulto se aferra à ambição do rapazinho de se tornar“perfeito” e continua a se perguntar: “Estou fazendo algum progresso?”,colocando-se a si mesmo programas de trabalho e anotando meticulosamente oquanto tem progredido — incidentalmente se tratando com muita calma nesseprocesso, prudente em não prometer demasiado, atacando suas falhas “uma porvez”, e em desespero não só por uma vez —, não é provável que o resultadotenha um “interesse” especial. Um programa de trabalho orientado para aperfeição se mostra tão pouco capaz de substituir uma história — o que sobraria
para contar se não existisse nenhuma “tentação ou fracasso, nunca, nunca”,nenhum “pecado mortal ou venial”? — que mesmo os poucos exemplos de umdesenvolvimento intelectual no Diário passaram curiosamente despercebidospelo autor, que nos meses finais de sua vida o releu e preparou para umapublicação póstuma. Nunca diz quando deixou de ver nos protestantes os“pobres infelizes fora da Igreja” e chegou à convicção de que “todos, batizadosou não, pertencem de direito a Jesus”, nem estava consciente de quão bizarro erao fato de ser ele, que sentia em seu “coração e alma um amor pelas regras,preceitos e regulamento” da Igreja, a fazer “a primeira alteração no cânone damissa em mil anos”, como diz Alden Hatch, e geralmente aplica de imediatotoda sua força nas “tentativas de endireitar, reformar e [...] fazer melhorias emtudo”, esperando que seu Concílio Ecumênico “seguramente será [...] uma novae real Epifania”.Sem dúvida, foi a “pobreza de espírito” que o preservou “das ansiedades ecansativas perplexidades” e lhe deu a “força da simplicidade audaciosa”. É elatambém que contém a resposta à pergunta sobre como foi que se escolheu ohomem mais audaz, quando o que se queria era um homem dócil e complacente.Ele realizou seu desejo, recomendado pela Imitação de Cristo Thomas àKempis, um dos seus livros favoritos, “de ser desconhecido e pouco estimado”,palavras que já em 1903 adotou como seu motto. Provavelmente era tido pormuitos — afinal, viveu num meio intelectual — como um tanto tolo, nãosimples, mas simplório. E é improvável que aqueles que observaram durantedécadas que ele realmente parecia “nunca [ter] sentido nenhuma tentação contraa obediência”, tenham entendido o tremendo orgulho e autoconfiança dessehomem que nunca, nem por um momento, renunciou aos seus juízos, aoobedecer àquilo que para ele não era a vontade de seus superiores, mas a vontadede Deus. Sua fé: “Seja feita a Vossa vontade”, e é verdade, embora tivesse ditoele mesmo, que ela era “totalmente evangélica em sua natureza”, e verdade aindaque ela “exigia e obtinha respeito universal e edificava a muitos”. Foi a mesmafé que inspirou suas palavras mais grandiosas, quando no leito de morte: “Tododia é um bom dia para nascer, todo dia é um bom dia para morrer”. 31 Jean Chelini, Jean XXIII, pasteur des hommes de bonne volonté. Paris, 1963; Augustin Pradel, Le “bonpape” Jean XXIII, Paris, 1963; Leone Algisi, John the twenty-third, trad. do italiano por P. Ryde, Londres,1963; Loris Capovilla, The heart and kind of John XXIII, his secretary’s intimate recollection, trad. doitaliano, Nova York, 1964; Alden Hatch, A man named John, Image Books, 1965.2 Para essas histórias, ver A. Hatch, op. cit.3 “Ogni giorno è buono per nascere; ogni giorno è buono per morire.” Ver seu Discorsi, messagi,
- Page 15 and 16: ouvimos a palavra “liberdade”,
- Page 17 and 18: substituto para uma nova fundação
- Page 19 and 20: relevância política, devemos nos
- Page 21 and 22: ser tida como a melhor do que a mai
- Page 23 and 24: iiiÉ evidente que essas e outras q
- Page 25 and 26: Alemanha, assim como seria um erro
- Page 27 and 28: não alivia nenhum sofrimento; ela
- Page 29 and 30: ivO exemplo da amizade, que levante
- Page 31 and 32: Recusava-se a aceitar quaisquer ver
- Page 33 and 34: pela atitude dos cientistas, que, n
- Page 35 and 36: homens, é inumana no sentido liter
- Page 37 and 38: iA biografia definitiva, ao estilo
- Page 39 and 40: que os comunistas haviam descrito n
- Page 41 and 42: podiam utilizá-la como uma arma co
- Page 43 and 44: iiHistoricamente, a maior e mais or
- Page 45 and 46: oriental era poliglota — a própr
- Page 47 and 48: implicações parece não compreend
- Page 49 and 50: um judeu-russo, embora mais jovem,
- Page 51 and 52: materializado, que “o proletário
- Page 53 and 54: exaurir. Ela não pretendia passar
- Page 55 and 56: deformadas”? O “colapso moral
- Page 57 and 58: França, que Rosa Luxemburgo analis
- Page 59 and 60: padres e monges paroquiais podem te
- Page 61 and 62: inocentemente provocou, e a estatur
- Page 63 and 64: que você pode fazer contra a verda
- Page 65: um dos seus irmãos fora caçar sem
- Page 69 and 70: KARL JASPERS: UMA LAUDATIO 1Reunimo
- Page 71 and 72: comumente por vida política. Na me
- Page 73 and 74: somente pelo peso da pessoa, é pre
- Page 75 and 76: idade tão avançada, é como que u
- Page 77 and 78: KARL JASPERS: CIDADÃO DO MUNDO?Nin
- Page 79 and 80: que a solidariedade da humanidade s
- Page 81 and 82: ousou questionar “todos os pensam
- Page 83 and 84: mundiais e essas origens, em sua pr
- Page 85 and 86: Para apreender a relevância filos
- Page 87 and 88: um quadro de acordos mútuos univer
- Page 89 and 90: ISAK DINESEN: 1885-1963Les grandes
- Page 91 and 92: e constantemente fiel à história
- Page 93 and 94: oferecida pelo amor, mútuo amor
- Page 95 and 96: aceitável, quanto desdenhosa em re
- Page 97 and 98: entanto, o ponto da questão é que
- Page 99 and 100: suficiente para ter um pouco mais d
- Page 101 and 102: fazer com que o sonho de uma outra
- Page 103 and 104: i. o poeta relutanteHermann Broch f
- Page 105 and 106: algumas novas histórias, incluindo
- Page 107 and 108: compreensão última de Broch, o de
- Page 109 and 110: Posteriormente foi-lhe posta, com i
- Page 111 and 112: ii. a teoria do valorEm seu estági
- Page 113 and 114: essa transformação das idéias em
- Page 115 and 116: salvadora que dissolve a consciênc
para contar se não existisse nenhuma “tentação ou fracasso, nunca, nunca”,
nenhum “pecado mortal ou venial”? — que mesmo os poucos exemplos de um
desenvolvimento intelectual no Diário passaram curiosamente despercebidos
pelo autor, que nos meses finais de sua vida o releu e preparou para uma
publicação póstuma. Nunca diz quando deixou de ver nos protestantes os
“pobres infelizes fora da Igreja” e chegou à convicção de que “todos, batizados
ou não, pertencem de direito a Jesus”, nem estava consciente de quão bizarro era
o fato de ser ele, que sentia em seu “coração e alma um amor pelas regras,
preceitos e regulamento” da Igreja, a fazer “a primeira alteração no cânone da
missa em mil anos”, como diz Alden Hatch, e geralmente aplica de imediato
toda sua força nas “tentativas de endireitar, reformar e [...] fazer melhorias em
tudo”, esperando que seu Concílio Ecumênico “seguramente será [...] uma nova
e real Epifania”.
Sem dúvida, foi a “pobreza de espírito” que o preservou “das ansiedades e
cansativas perplexidades” e lhe deu a “força da simplicidade audaciosa”. É ela
também que contém a resposta à pergunta sobre como foi que se escolheu o
homem mais audaz, quando o que se queria era um homem dócil e complacente.
Ele realizou seu desejo, recomendado pela Imitação de Cristo Thomas à
Kempis, um dos seus livros favoritos, “de ser desconhecido e pouco estimado”,
palavras que já em 1903 adotou como seu motto. Provavelmente era tido por
muitos — afinal, viveu num meio intelectual — como um tanto tolo, não
simples, mas simplório. E é improvável que aqueles que observaram durante
décadas que ele realmente parecia “nunca [ter] sentido nenhuma tentação contra
a obediência”, tenham entendido o tremendo orgulho e autoconfiança desse
homem que nunca, nem por um momento, renunciou aos seus juízos, ao
obedecer àquilo que para ele não era a vontade de seus superiores, mas a vontade
de Deus. Sua fé: “Seja feita a Vossa vontade”, e é verdade, embora tivesse dito
ele mesmo, que ela era “totalmente evangélica em sua natureza”, e verdade ainda
que ela “exigia e obtinha respeito universal e edificava a muitos”. Foi a mesma
fé que inspirou suas palavras mais grandiosas, quando no leito de morte: “Todo
dia é um bom dia para nascer, todo dia é um bom dia para morrer”. 3
1 Jean Chelini, Jean XXIII, pasteur des hommes de bonne volonté. Paris, 1963; Augustin Pradel, Le “bon
pape” Jean XXIII, Paris, 1963; Leone Algisi, John the twenty-third, trad. do italiano por P. Ryde, Londres,
1963; Loris Capovilla, The heart and kind of John XXIII, his secretary’s intimate recollection, trad. do
italiano, Nova York, 1964; Alden Hatch, A man named John, Image Books, 1965.
2 Para essas histórias, ver A. Hatch, op. cit.
3 “Ogni giorno è buono per nascere; ogni giorno è buono per morire.” Ver seu Discorsi, messagi,