Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

hernandesjuan81
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23.03.2022 Views

pobre, tendo distribuído [...] tudo que chegou a minhas mãos — e foi muitopouco — durante os anos de sacerdócio e episcopado”. Há um tom ligeiramenteapologético nessas passagens, como se soubesse que a pobreza de sua famílianão era absolutamente tão “satisfeita” como fizera parecer. Muito antes,observara que as constantes “preocupações e sofrimentos” que os assediavam“pareciam não servir a nenhum bom propósito, mas antes provocar-lhes dano”, eeste é um dos poucos exemplos onde se pode ao menos imaginar o tipo deexperiência que julgava dispensável. Da mesma forma, pode-se imaginar, maiscomodamente, o imenso orgulho do menino pobre que, durante toda sua vida,enfatizaria que nunca pedira um favor a ninguém e que encontrara consolo nopensamento de que tudo o que recebera (“Quem é mais pobre do que eu? Desdeque me tornei seminarista, nunca vesti um paramento que não tivesse sido dadopor caridade”) fora providenciado por Deus, de forma que sua pobreza para elese converteu em sinal evidente de sua vocação: “Sou da mesma família de Cristo— o que mais posso querer?”.As gerações de intelectuais modernos, na medida em que não eram ateístas —isto é, tolos que pretendiam saber aquilo que nenhum homem pode saber —,foram ensinadas por Kierkegaard, Dostoiévski, Nietzsche e seus inumeráveisseguidores, dentro e fora do campo existencialista, a considerar “interessantes” areligião e as questões teológicas. Sem dúvida, terão dificuldade em entender umhomem que, desde muito jovem, “votara fidelidade” não meramente à “pobrezamaterial”, mas também à “pobreza de espírito”. Fosse quem ou o que fosse opapa João xxiii, não era interessante nem brilhante, e isso totalmente à parte dofato de ter sido um estudante medíocre e, nos anos posteriores de sua vida, semnenhum interesse marcado intelectual ou erudito que fosse. (Afora os jornais,que muito apreciava, parece não ter lido quase nada de escritos seculares.) Se umrapazinho, como Aliocha, lhe diz: “Como está escrito: ‘Se você quer ser perfeito,vá e venda o que tem, e dê aos pobres e siga-me’, como posso lhe dar apenasdois rublos, ao invés dos meus bens, e ir à missa matinal ao invés do ‘sigame’?”.E se o homem adulto se aferra à ambição do rapazinho de se tornar“perfeito” e continua a se perguntar: “Estou fazendo algum progresso?”,colocando-se a si mesmo programas de trabalho e anotando meticulosamente oquanto tem progredido — incidentalmente se tratando com muita calma nesseprocesso, prudente em não prometer demasiado, atacando suas falhas “uma porvez”, e em desespero não só por uma vez —, não é provável que o resultadotenha um “interesse” especial. Um programa de trabalho orientado para aperfeição se mostra tão pouco capaz de substituir uma história — o que sobraria

para contar se não existisse nenhuma “tentação ou fracasso, nunca, nunca”,nenhum “pecado mortal ou venial”? — que mesmo os poucos exemplos de umdesenvolvimento intelectual no Diário passaram curiosamente despercebidospelo autor, que nos meses finais de sua vida o releu e preparou para umapublicação póstuma. Nunca diz quando deixou de ver nos protestantes os“pobres infelizes fora da Igreja” e chegou à convicção de que “todos, batizadosou não, pertencem de direito a Jesus”, nem estava consciente de quão bizarro erao fato de ser ele, que sentia em seu “coração e alma um amor pelas regras,preceitos e regulamento” da Igreja, a fazer “a primeira alteração no cânone damissa em mil anos”, como diz Alden Hatch, e geralmente aplica de imediatotoda sua força nas “tentativas de endireitar, reformar e [...] fazer melhorias emtudo”, esperando que seu Concílio Ecumênico “seguramente será [...] uma novae real Epifania”.Sem dúvida, foi a “pobreza de espírito” que o preservou “das ansiedades ecansativas perplexidades” e lhe deu a “força da simplicidade audaciosa”. É elatambém que contém a resposta à pergunta sobre como foi que se escolheu ohomem mais audaz, quando o que se queria era um homem dócil e complacente.Ele realizou seu desejo, recomendado pela Imitação de Cristo Thomas àKempis, um dos seus livros favoritos, “de ser desconhecido e pouco estimado”,palavras que já em 1903 adotou como seu motto. Provavelmente era tido pormuitos — afinal, viveu num meio intelectual — como um tanto tolo, nãosimples, mas simplório. E é improvável que aqueles que observaram durantedécadas que ele realmente parecia “nunca [ter] sentido nenhuma tentação contraa obediência”, tenham entendido o tremendo orgulho e autoconfiança dessehomem que nunca, nem por um momento, renunciou aos seus juízos, aoobedecer àquilo que para ele não era a vontade de seus superiores, mas a vontadede Deus. Sua fé: “Seja feita a Vossa vontade”, e é verdade, embora tivesse ditoele mesmo, que ela era “totalmente evangélica em sua natureza”, e verdade aindaque ela “exigia e obtinha respeito universal e edificava a muitos”. Foi a mesmafé que inspirou suas palavras mais grandiosas, quando no leito de morte: “Tododia é um bom dia para nascer, todo dia é um bom dia para morrer”. 31 Jean Chelini, Jean XXIII, pasteur des hommes de bonne volonté. Paris, 1963; Augustin Pradel, Le “bonpape” Jean XXIII, Paris, 1963; Leone Algisi, John the twenty-third, trad. do italiano por P. Ryde, Londres,1963; Loris Capovilla, The heart and kind of John XXIII, his secretary’s intimate recollection, trad. doitaliano, Nova York, 1964; Alden Hatch, A man named John, Image Books, 1965.2 Para essas histórias, ver A. Hatch, op. cit.3 “Ogni giorno è buono per nascere; ogni giorno è buono per morire.” Ver seu Discorsi, messagi,

para contar se não existisse nenhuma “tentação ou fracasso, nunca, nunca”,

nenhum “pecado mortal ou venial”? — que mesmo os poucos exemplos de um

desenvolvimento intelectual no Diário passaram curiosamente despercebidos

pelo autor, que nos meses finais de sua vida o releu e preparou para uma

publicação póstuma. Nunca diz quando deixou de ver nos protestantes os

“pobres infelizes fora da Igreja” e chegou à convicção de que “todos, batizados

ou não, pertencem de direito a Jesus”, nem estava consciente de quão bizarro era

o fato de ser ele, que sentia em seu “coração e alma um amor pelas regras,

preceitos e regulamento” da Igreja, a fazer “a primeira alteração no cânone da

missa em mil anos”, como diz Alden Hatch, e geralmente aplica de imediato

toda sua força nas “tentativas de endireitar, reformar e [...] fazer melhorias em

tudo”, esperando que seu Concílio Ecumênico “seguramente será [...] uma nova

e real Epifania”.

Sem dúvida, foi a “pobreza de espírito” que o preservou “das ansiedades e

cansativas perplexidades” e lhe deu a “força da simplicidade audaciosa”. É ela

também que contém a resposta à pergunta sobre como foi que se escolheu o

homem mais audaz, quando o que se queria era um homem dócil e complacente.

Ele realizou seu desejo, recomendado pela Imitação de Cristo Thomas à

Kempis, um dos seus livros favoritos, “de ser desconhecido e pouco estimado”,

palavras que já em 1903 adotou como seu motto. Provavelmente era tido por

muitos — afinal, viveu num meio intelectual — como um tanto tolo, não

simples, mas simplório. E é improvável que aqueles que observaram durante

décadas que ele realmente parecia “nunca [ter] sentido nenhuma tentação contra

a obediência”, tenham entendido o tremendo orgulho e autoconfiança desse

homem que nunca, nem por um momento, renunciou aos seus juízos, ao

obedecer àquilo que para ele não era a vontade de seus superiores, mas a vontade

de Deus. Sua fé: “Seja feita a Vossa vontade”, e é verdade, embora tivesse dito

ele mesmo, que ela era “totalmente evangélica em sua natureza”, e verdade ainda

que ela “exigia e obtinha respeito universal e edificava a muitos”. Foi a mesma

fé que inspirou suas palavras mais grandiosas, quando no leito de morte: “Todo

dia é um bom dia para nascer, todo dia é um bom dia para morrer”. 3

1 Jean Chelini, Jean XXIII, pasteur des hommes de bonne volonté. Paris, 1963; Augustin Pradel, Le “bon

pape” Jean XXIII, Paris, 1963; Leone Algisi, John the twenty-third, trad. do italiano por P. Ryde, Londres,

1963; Loris Capovilla, The heart and kind of John XXIII, his secretary’s intimate recollection, trad. do

italiano, Nova York, 1964; Alden Hatch, A man named John, Image Books, 1965.

2 Para essas histórias, ver A. Hatch, op. cit.

3 “Ogni giorno è buono per nascere; ogni giorno è buono per morire.” Ver seu Discorsi, messagi,

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