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pobre, tendo distribuído [...] tudo que chegou a minhas mãos — e foi muito
pouco — durante os anos de sacerdócio e episcopado”. Há um tom ligeiramente
apologético nessas passagens, como se soubesse que a pobreza de sua família
não era absolutamente tão “satisfeita” como fizera parecer. Muito antes,
observara que as constantes “preocupações e sofrimentos” que os assediavam
“pareciam não servir a nenhum bom propósito, mas antes provocar-lhes dano”, e
este é um dos poucos exemplos onde se pode ao menos imaginar o tipo de
experiência que julgava dispensável. Da mesma forma, pode-se imaginar, mais
comodamente, o imenso orgulho do menino pobre que, durante toda sua vida,
enfatizaria que nunca pedira um favor a ninguém e que encontrara consolo no
pensamento de que tudo o que recebera (“Quem é mais pobre do que eu? Desde
que me tornei seminarista, nunca vesti um paramento que não tivesse sido dado
por caridade”) fora providenciado por Deus, de forma que sua pobreza para ele
se converteu em sinal evidente de sua vocação: “Sou da mesma família de Cristo
— o que mais posso querer?”.
As gerações de intelectuais modernos, na medida em que não eram ateístas —
isto é, tolos que pretendiam saber aquilo que nenhum homem pode saber —,
foram ensinadas por Kierkegaard, Dostoiévski, Nietzsche e seus inumeráveis
seguidores, dentro e fora do campo existencialista, a considerar “interessantes” a
religião e as questões teológicas. Sem dúvida, terão dificuldade em entender um
homem que, desde muito jovem, “votara fidelidade” não meramente à “pobreza
material”, mas também à “pobreza de espírito”. Fosse quem ou o que fosse o
papa João xxiii, não era interessante nem brilhante, e isso totalmente à parte do
fato de ter sido um estudante medíocre e, nos anos posteriores de sua vida, sem
nenhum interesse marcado intelectual ou erudito que fosse. (Afora os jornais,
que muito apreciava, parece não ter lido quase nada de escritos seculares.) Se um
rapazinho, como Aliocha, lhe diz: “Como está escrito: ‘Se você quer ser perfeito,
vá e venda o que tem, e dê aos pobres e siga-me’, como posso lhe dar apenas
dois rublos, ao invés dos meus bens, e ir à missa matinal ao invés do ‘sigame’?”.
E se o homem adulto se aferra à ambição do rapazinho de se tornar
“perfeito” e continua a se perguntar: “Estou fazendo algum progresso?”,
colocando-se a si mesmo programas de trabalho e anotando meticulosamente o
quanto tem progredido — incidentalmente se tratando com muita calma nesse
processo, prudente em não prometer demasiado, atacando suas falhas “uma por
vez”, e em desespero não só por uma vez —, não é provável que o resultado
tenha um “interesse” especial. Um programa de trabalho orientado para a
perfeição se mostra tão pouco capaz de substituir uma história — o que sobraria