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um dos seus irmãos fora caçar sem licença e fora apanhado. E quando o
conduziram “ao bloco de celas onde estavam confinados os incorrigíveis”, ele
ordenou “em sua voz mais imperiosa: ‘Abram os portões! Não os afastem de
mim. São todos filhos de Nosso Senhor’”. Certamente esta não é senão a
doutrina cristã em sua integridade, há muito estabelecida, mas que por longo
tempo permaneceu como doutrina, e nem mesmo a Rerum Novarum, encíclica
de Leão xiii, “o grande papa do povo trabalhador”, impediu o Vaticano de pagar
salários de fome aos seus empregados. O desconcertante hábito do novo papa de
falar com todas as pessoas lhe trouxe quase imediatamente esse escândalo ao seu
conhecimento. “Como vão as coisas?”, perguntou ele, segundo Alden Hatch, a
um dos trabalhadores. “Mal, mal, Vossa Eminência”, disse o homem, e contou
quanto ganhava e quantas bocas tinha para alimentar. “Temos que fazer algo a
respeito. Pois, cá entre nós, eu não sou Vossa Eminência, sou o papa”, com o que
queria dizer: esqueça os títulos, aqui o chefe sou eu, posso mudar as coisas.
Quando mais tarde foi informado de que as novas despesas só poderiam ser
enfrentadas cortando as doações de caridade, manteve-se imperturbável: “Então
teremos de cortá-las. Pois [...] a justiça vem antes da caridade”. O que torna
essas histórias tão encantadoras é a recusa coerente em ceder à crença comum
“de que mesmo a linguagem cotidiana do papa deveria ser cheia de mistério e
reverência”, o que, segundo papa João, estava em nítida contradição com “o
exemplo de Jesus”. E é realmente tocante ouvir que acordo total com o
“exemplo” de Jesus era concluir a audiência extremamente controversa com os
representantes da Rússia comunista com o anúncio: “E agora chegou a hora, com
sua permissão, de uma pequena bênção. Afinal, uma bençãozinha não pode fazer
mal. Aceitem-na como presente”. 2
A sinceridade dessa fé, nunca perturbada pela dúvida, nunca abalada pela
experiência, nunca distorcida pelo fanatismo — “o qual, mesmo inocente, é
sempre prejudicial” —, é magnífica nos gestos e na palavra viva, mas torna-se
monótona e pouco convincente, uma palavra morta na página impressa. Isso vale
até para as poucas cartas acrescentadas nessa edição, e a única exceção é o
“Testamento espiritual ‘para a família Roncalli’”, onde explica aos seus irmãos,
sobrinhos e sobrinhos-netos por que ele se recusara, contrariamente a todos os
costumes, a lhes outorgar títulos, por que agora, como antes, recusara a elevá-los
“de sua pobreza respeitada e satisfeita”, embora tivesse “às vezes de ir em seu
auxílio, como um homem pobre aos pobres”, por que nunca pedira “nada —
posição, dinheiro ou favores —, nunca, seja para mim ou para meus parentes e
amigos”. Pois, “nascido pobre, [...] sinto-me particularmente feliz por morrer