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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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seu nome como eleito. Pois era precisamente por saber que tudo isso era uma

espécie de mal-entendido, humanamente falando, que podia escrever, sem

recorrer a algumas generalidades dogmáticas, mas referindo-se claramente a si

mesmo: “O Vigário, de Cristo sabe o que Cristo quer dele”. O editor do Diário,

ex-secretário do papa João, monsenhor Loris Capovilla, menciona em sua

“introdução” o que tanto devia irritar muitos e confundir a maioria: “sua habitual

humildade perante Deus e sua clara consciência de seu próprio valor perante os

homens — tão clara a ponto de ser desconcertante”. Mas embora absolutamente

seguro de si e sem buscar os conselhos de ninguém, não cometia o erro de

pretender saber o futuro ou as conseqüências últimas do que tentava fazer.

Sempre se contentou de “viver dia a dia”, mesmo “hora a hora”, como os lírios

no campo, e agora estabelecia a “regra básica de conduta” para seu novo estado

— “não ter nenhuma preocupação com o futuro”, nem tomar nenhuma

“providência humana em relação a ele” e tomar cuidado “em não falar confiada e

casualmente dele a ninguém”. Foi a fé, e não a teoria, teológica ou política, que

o protegeu contra “qualquer conivência com o mal, na esperança de, com isso,

poder ser útil a alguém”.

Essa completa liberdade em relação a preocupações e aborrecimentos era sua

forma de humildade; o que o tornava livre era o poder dizer sem nenhuma

reserva mental ou emocional: “Seja feita a vossa vontade”. Não é fácil descobrir

no Diário, sob camadas e camadas da linguagem piedosa que para nós, mas

jamais para ele, se tornou banal, essa simples corda básica pela qual se afinou

sua vida. Menos ainda esperaríamos dela o espírito risonho que ele daí extraiu.

Mas o que, se não a humildade, pregava ele quando disse a seus amigos que as

terríveis novas responsabilidades do pontificado inicialmente o preocuparam

imensamente e até lhe provocaram noites de insônia — até que, numa manhã,

disse a si mesmo: “Giovanni, não se leve tão a sério!”, e desde então sempre

dormiu bem.

Entretanto, ninguém deveria crer que foi a humildade que lhe facilitou tanto se

manter em companhia de todos, deleitando-se igualmente com os reclusos das

prisões, os “pescadores”, os trabalhadores em seu jardim, as freiras em sua

cozinha, a sra. Kennedy e a filha e o genro de Kruschev. Era antes sua enorme

autoconfiança que lhe permitia tratar a todos, acima ou abaixo, como seus iguais.

E foi consideravelmente longe lá onde sentia a necessidade de se estabelecer tal

igualdade. Assim se dirigia aos ladrões e assassinos na cadeia como “Filhos e

Irmãos” e, para assegurar que isso não redundasse somente em palavras vazias,

contava-lhes como roubara uma maçã quando criança sem ser apanhado, e como

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