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inocentemente provocou, e a estatura desse homem só pode rebaixar se se omitir
o elemento de escândalo.
Assim, as histórias principais e mais ousadas que então corriam de boca em
boca não foram narradas e, desnecessário dizer, não podem ser verificadas.
Lembro-me de algumas, e espero que sejam autênticas; mas, mesmo que se
negasse sua autenticidade, sua própria invenção seria bastante característica do
homem e daquilo que as pessoas pensavam a seu respeito, para torná-las dignas
de relato. A primeira história, a menos ofensiva, sustenta as passagens não muito
numerosas do seu Diário sobre sua familiaridade fácil e não condescendente
com os trabalhadores e camponeses, dos quais ele próprio certamente proviera,
mas cujo ambiente abandonara aos onze anos, quando foi admitido ao seminário
de Bérgamo. (Seu primeiro contato direto com o mundo ocorreu ao encarar o
serviço militar. Achou-o “vil, imundo e repugnante” ao extremo: “Serei enviado
ao inferno com os demônios? Sei o que é a vida num quartel — tremo só de
pensar nela”.) A história conta que haviam chegado encanadores para consertos
no Vaticano. O papa ouviu um deles começando a praguejar em nome de toda a
Sagrada Família. Ele saiu e perguntou educadamente: “Você tem de fazer isso?
Não pode dizer merda como nós?”.
Minhas três outras histórias tratam de um assunto muito mais sério. Há poucas,
pouquíssimas passagens em seu livro que falam das relações antes tensas entre o
bispo Roncalli e Roma. O problema, parece, começou em 1925, quando foi
indicado como visitador apostólico na Bulgária, um cargo de “semiobscuridade”
onde foi mantido durante dez anos. Nunca esqueceu sua
infelicidade lá — 25 anos depois, ainda escreve sobre “a monotonia daquela
vida, que era uma longa seqüência de alfinetadas e arranhões diários”. Na época,
teve conhecimento quase imediato de “muitas provações [...] [que] não são
causadas pelos búlgaros [...] mas pelos órgãos centrais da administração
eclesiástica. É uma forma de mortificação e humilhação que não esperava e que
me fere profundamente”. E foi já em 1926 que começou a escrever sobre esse
conflito, como sua “cruz”. As coisas começaram a melhorar quando, em 1935,
foi transferido para a Delegação Apostólica em Istambul, onde permaneceria por
mais dez anos, até receber, em 1944, sua primeira indicação importante como
núncio apostólico em Paris. Mas aí novamente “a diferença entre meu modo de
ver as situações no local e certas formas de julgar as mesmas coisas em Roma
fere-me consideravelmente; é a minha única cruz efetiva”. Não se ouvem tais
queixas durante os anos na França, mas não porque seus pensamentos tivessem
mudado; parece ter se habituado às formas do mundo eclesiástico. Com essa