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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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em primeiro lugar, por ter “aceitado com simplicidade a honra e o encargo”,

depois de ter sempre tido “o máximo cuidado [...] em evitar qualquer coisa que

pudesse atrair a atenção sobre mim”. Em segundo, por ter “sido capaz de [...]

efetivar imediatamente certas idéias que eram [...] perfeitamente simples, mas

com efeitos de longo alcance e plenas de responsabilidade para o futuro”. Mas,

de acordo com seu próprio testemunho, embora “a idéia de um Conselho

Ecumênico, um Sínodo Diocesano e a revisão do Código do Direito Canônico”

tivesse lhe ocorrido “sem nenhuma premeditação”, sendo até “totalmente

contrária a qualquer suposição prévia [sua] [...] sobre o assunto”, ela apareceu

aos que o observavam como a manifestação quase lógica ou, pelo menos, natural

desse homem e sua impressionante fé.

Cada página do livro dá provas dessa fé, e contudo nenhuma delas, e

certamente tampouco todas em conjunto, é tão convincente quanto as

inumeráveis fábulas e anedotas que circulavam em Roma durante os quatro

longos dias de sua agonia final. Era uma época em que a cidade oscilava, como

de hábito, sob a invasão de turistas, que, devido à sua morte que viera mais cedo

do que se esperava, era acrescida por legiões de seminaristas, monges, freiras e

padres de todas as cores e de todos os lugares. Todos, desde o taxista ao escritor

e editor, do garçom ao balconista, fiéis e infiéis de todos os credos, tinham uma

história para contar sobre o que Roncalli fizera ou dissera, como se conduzira em

tal ou qual ocasião. Várias delas foram agora reunidas por Kurt Klinger, sob o

título Um papa ri, e outras foram publicadas entre a literatura crescente sobre o

“bom papa João”, 1 todas trazendo o nihil obstat e o imprimatur. Mas essa

espécie de hagiografia pouco ajuda a compreender por que o mundo inteiro tinha

os olhos sobre o homem, pois, presumivelmente a fim de evitar “ofensas”,

cuidadosamente se poupa de dizer a que grau os padrões usuais do mundo,

inclusive o mundo da Igreja, contradizem as regras de julgamento e

comportamento contidas nas pregações de Jesus. Nos meados do século xx, esse

homem decidiu tomar, literal e não simbolicamente, cada artigo de fé que lhe

fora ensinado. Ele realmente desejou “ser esmagado, desdenhado, desprezado

por amor a Jesus”. Disciplinou-se a si e à sua ambição até realmente não se

importar “nada com os julgamentos do mundo, mesmo do mundo eclesiástico”.

Com 21 anos de idade, decidira: “Mesmo que eu fosse papa [...] ainda teria de

me apresentar ao juiz divino, e então o que eu valeria? Não muito”. E no final de

sua vida, no Testemunho espiritual à sua família, podia escrever com confiança

que “o Anjo da Morte [...] me levará, como creio, ao paraíso”. A enorme força

dessa fé nunca se tornou mais evidente do que nos “escândalos” que

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