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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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ANGELO GIUSEPPE RONCALLI:

UM CRISTÃO NO TRONO DE

SÃO PEDRO DE 1958 A 1963

Journal of a soul [Diário de uma alma] (Nova York, 1965), os diários

espirituais de Angelo Giuseppe Roncalli, que ao se tornar papa assumiu o nome

de João xxiii, é um livro estranhamente desapontador e estranhamente

fascinante. Em sua maior parte escrito em períodos de recolhimento, consiste em

devotas efusões e auto-exortações, “exames de consciência” e anotações de

“progresso espiritual” interminavelmente repetitivas, com referências as mais

escassas possíveis aos acontecimentos reais, de modo que, por páginas e páginas,

lê-se como um livro didático elementar sobre como fazer o bem e evitar o mal. E

no entanto, à sua própria maneira estranha e incomum, consegue dar uma

resposta clara a duas perguntas que estavam na mente de muitas pessoas quando

se deitou em seu leito de morte no Vaticano, em final de maio e início de junho

de 1963. Trouxe-as à minha atenção, de modo muito simples e inequívoco, uma

camareira romana: “Senhora”, disse ela, “esse papa era um verdadeiro cristão.

Como podia ser isso? E como aconteceu que um verdadeiro cristão se sentasse

no trono de São Pedro? Ele primeiro não teve de ser indicado bispo, e arcebispo,

e cardeal, até ser finalmente eleito como papa? Ninguém tinha consciência de

quem ele era?”. Bem, a resposta à última de suas três perguntas parece ser

“Não”. Quando entrou no conclave, não fazia parte dos papabile; os alfaiates do

Vaticano não tinham preparado nenhum paramento adequado a suas medidas.

Foi eleito porque os cardeais não conseguiam chegar a um acordo e estavam

convencidos, como ele próprio escreveu, de que “seria um papa provisório e

transitório”, sem maiores conseqüências. “Mas aqui estou eu”, continuava, “já

nas vésperas do quarto ano de meu pontificado, com um imenso programa de

trabalho pela minha frente a ser executado perante os olhos do mundo inteiro,

que observa e espera”. O que é estarrecedor não é que ele não estivesse entre os

papabile, mas que ninguém tivesse consciência de quem ele era, e tenha sido

eleito porque todos o considerassem uma figura sem maiores conseqüências.

Entretanto, isso só é estarrecedor retrospectivamente. A Igreja certamente vem

pregando a imitatio Christi há quase 2 mil anos, e ninguém pode dizer quantos

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