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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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Kautsky, o mais eminente teórico do Partido Alemão, embora este

provavelmente se sentisse mais à vontade com Bernstein do que na companhia

dos seus novos aliados estrangeiros. O que conseguiram foi uma vitória de Pirro;

ela “simplesmente fortaleceu a alienação, afastando a realidade”. Pois o

problema real não era teórico nem econômico. O que estava em questão era a

convicção de Bernstein, envergonhadamente escondida numa nota de rodapé, de

que “a classe média — sem se excetuar a alemã — em seu conjunto ainda [era]

muito vigorosa, não só econômica mas também moralmente [grifo meu]. Foi por

essa razão que Plekhanov chamou-o de “filisteu” e Parvus e Rosa Luxemburgo

julgaram a luta tão decisiva para o futuro do Partido. Pois a verdade é que

Bernstein e Kautsky partilhavam em comum a aversão pela revolução; a “lei

férrea da necessidade” era para Kautsky a melhor desculpa possível para não se

fazer nada. Os hóspedes da Europa oriental eram os únicos que não só

“acreditavam” simplesmente na revolução como uma necessidade teórica, mas

desejavam fazer algo a respeito, precisamente porque consideravam a sociedade,

tal como era, insustentável por razões morais, por razões de justiça. Bernstein e

Rosa Luxemburgo, por outro lado, tinham em comum a honestidade (o que pode

explicar a “ternura secreta” de Bernstein por ela), analisavam o que viam, eram

leais à realidade e críticos de Marx; Bernstein tinha consciência disso e observa

sagazmente em sua réplica aos ataques de Rosa Luxemburgo que ela também

questionara “todas as predições marxistas sobre a evolução social vindoura,

enquanto baseada na teoria das crises”.

Os primeiros triunfos de Rosa Luxemburgo no Partido Alemão se fundavam

num duplo mal-entendido. Na virada do século, a spd constituía “a inveja e a

admiração dos socialistas de todo o mundo”. August Bebel, seu “grande

patriarca” que, desde a fundação do Reich alemão com Bismarck até a eclosão

da Primeira Guerra Mundial, “dominara [sua] política e espírito”, sempre

proclamara: “Sou e sempre serei o inimigo mortal da sociedade existente”. Isso

não soava como o espírito do grupo polonês de iguais? Não se poderia supor, a

partir de um desafio tão orgulhoso, que o grande Partido Alemão fosse, de certa

forma, uma versão ampliada do sdkil? Foi preciso quase uma década para que

Rosa Luxemburgo — até que voltasse da primeira Revolução Russa —

descobrisse que o segredo desse desafio era um obstinado não envolvimento

com o mundo em geral e uma preocupação exclusiva com o crescimento da

organização do Partido. A partir dessa experiência, após 1910, ela desenvolveu

seu programa de “atrito” constante com a sociedade, sem o qual, conforme então

compreendeu, a própria fonte do espírito revolucionário estaria condenada a se

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