Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt
ivRetrospectivamente mais incômodas do que seus alegados “erros”, ecertamente mais dolorosas para ela, são as poucas ocasiões cruciais em que RosaLuxemburgo não esteve em descompasso, mas, pelo contrário, pareceu estar deacordo com os poderes oficiais no Partido Socialdemocrata Alemão. Esses foramseus verdadeiros equívocos, e não houve nenhum que, ao final, ela nãoreconhecesse e lamentasse amargamente.O menos prejudicial deles se referia à questão nacional. Ela chegara àAlemanha em 1898, vinda de Zurique, onde fora aprovada em seu doutoramento“com uma dissertação de primeira qualidade sobre o desenvolvimento industrialda Polônia (segundo o professor Julius Wolf que, em sua autobiografia, ainda arecordava afetuosamente como “a mais capaz dos meus alunos”), que recebeu aincomum “distinção de publicação imediata” e ainda hoje é utilizada porestudantes de história da Polônia. Sua tese era a de que o crescimento econômicoda Polônia dependia totalmente do mercado russo e que qualquer tentativa “deformar um Estado nacional ou lingüístico foi uma negação de qualquerdesenvolvimento e progresso nos últimos cinqüenta anos”. (O mal-estar crônicoda Polônia entre as guerras mais que demonstrou que ela estava certa, do pontode vista econômico.) Tornou-se então a especialista sobre a Polônia no PartidoAlemão, sua propagandista entre a população polonesa nas províncias daAlemanha Oriental, e entrou numa incômoda aliança com gente que desejava“germanizar” os poloneses, e que “com satisfação lhe dariam de presente todosos poloneses, incluindo o socialismo polonês”, como lhe disse um secretário daspd. Seguramente, “o brilho da aprovação oficial era para Rosa um falso brilho”.Muito mais sério foi seu enganoso acordo com as autoridades do Partido nacontrovérsia revisionista, onde desempenhou um papel de liderança. Essefamoso debate fora iniciado por Eduard Bernstein 6 e entrou na história como aalternativa entre reforma ou revolução. Mas esse grito de batalha é enganadorpor duas razões: faz parecer que a spd na virada do século ainda estavacomprometida com a revolução, o que não era o caso; e oculta a justeza objetivade muitas coisas que Bernstein tinha a dizer. Na verdade, sua crítica às teoriaseconômicas de Marx estava, como dizia, em pleno “acordo com a realidade”. Eleobservou que o “enorme crescimento da riqueza social não [era] acompanhadopor um número decrescente de grandes capitalistas, mas por um númerocrescente de capitalistas de todos os graus”, que um “estreitamento crescente docírculo dos abastados e uma miséria crescente dos pobres” não se haviam
materializado, que “o proletário moderno [era] realmente pobre, mas nãomiserável”, e que o tema de Marx, “o proletário não tem pátria”, não eraverdadeiro. O voto universal lhe dera direitos políticos, os sindicatos um lugar nasociedade, e o novo desenvolvimento imperialista uma clara posição na políticaexterior da nação. Não há dúvidas de que a reação do Partido Alemão a essasverdades indesejáveis foi principalmente inspirada por uma relutância arraigadaem reexaminar criticamente sua fundamentação teórica, mas essa relutância eramuito aguçada pelos interesses que o Partido investira no status quo, agoraameaçados pela análise de Bernstein. O que estava em questão era o status daspd como um “Estado dentro do Estado”: o Partido de fato se convertera numaimensa burocracia bem organizada que se mantinha fora da sociedade e tinhatodo o interesse nas coisas tal como estavam. O revisionismo à la Bernstein teriareconduzido o Partido para a sociedade alemã, e tal “integração” era sentidacomo tão perigosa para os interesses do Partido quanto uma revolução.O sr. Nettl levanta uma interessante teoria acerca da “posição pária” da spd nasociedade alemã e seu fracasso em participar do governo. 7 Parecia a seusmembros que o Partido podia “fornecer em seu próprio interior uma alternativasuperior ao capitalismo corrupto”. De fato, ao preservar “intactas em todas asfrentes as defesas contra a sociedade”, gerou esse sentimento espúrio de“conjunto” (como coloca Nettl), tratado com grande desprezo pelos socialistasfranceses. 8 De qualquer forma, era óbvio que, quanto mais o Partido crescia emnúmero de membros, tanto mais certamente seu élan radical era “organizado porrazões de existência”. Podia-se viver muito confortavelmente nesse “Estadodentro do Estado”, evitando-se atritos com a sociedade em geral, desfrutando desentimentos de superioridade moral sem quaisquer conseqüências. Não erasequer necessário pagar o preço de uma séria alienação, pois essa sociedadepária era de fato apenas uma imagem especular, um “reflexo em miniatura” dasociedade alemã em geral. Esse beco sem saída do movimento socialista alemãopoderia ser corretamente analisado a partir de pontos de vista opostos — seja doponto de vista do revisionismo de Bernstein, que reconhecia como fatoconsumado a emancipação das classes trabalhadoras no interior da sociedadecapitalista e solicitava uma pausa para conversar sobre uma revolução em queninguém pensava de forma alguma; seja do ponto de vista daqueles que nãoestavam simplesmente “alienados” da sociedade burguesa, mas efetivamentedesejavam transformar o mundo.Essa era a posição dos revolucionários do Leste que conduziram a ofensivacontra Bernstein — Plekhanov, Parvus e Rosa Luxemburgo —, com o apoio de
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materializado, que “o proletário moderno [era] realmente pobre, mas não
miserável”, e que o tema de Marx, “o proletário não tem pátria”, não era
verdadeiro. O voto universal lhe dera direitos políticos, os sindicatos um lugar na
sociedade, e o novo desenvolvimento imperialista uma clara posição na política
exterior da nação. Não há dúvidas de que a reação do Partido Alemão a essas
verdades indesejáveis foi principalmente inspirada por uma relutância arraigada
em reexaminar criticamente sua fundamentação teórica, mas essa relutância era
muito aguçada pelos interesses que o Partido investira no status quo, agora
ameaçados pela análise de Bernstein. O que estava em questão era o status da
spd como um “Estado dentro do Estado”: o Partido de fato se convertera numa
imensa burocracia bem organizada que se mantinha fora da sociedade e tinha
todo o interesse nas coisas tal como estavam. O revisionismo à la Bernstein teria
reconduzido o Partido para a sociedade alemã, e tal “integração” era sentida
como tão perigosa para os interesses do Partido quanto uma revolução.
O sr. Nettl levanta uma interessante teoria acerca da “posição pária” da spd na
sociedade alemã e seu fracasso em participar do governo. 7 Parecia a seus
membros que o Partido podia “fornecer em seu próprio interior uma alternativa
superior ao capitalismo corrupto”. De fato, ao preservar “intactas em todas as
frentes as defesas contra a sociedade”, gerou esse sentimento espúrio de
“conjunto” (como coloca Nettl), tratado com grande desprezo pelos socialistas
franceses. 8 De qualquer forma, era óbvio que, quanto mais o Partido crescia em
número de membros, tanto mais certamente seu élan radical era “organizado por
razões de existência”. Podia-se viver muito confortavelmente nesse “Estado
dentro do Estado”, evitando-se atritos com a sociedade em geral, desfrutando de
sentimentos de superioridade moral sem quaisquer conseqüências. Não era
sequer necessário pagar o preço de uma séria alienação, pois essa sociedade
pária era de fato apenas uma imagem especular, um “reflexo em miniatura” da
sociedade alemã em geral. Esse beco sem saída do movimento socialista alemão
poderia ser corretamente analisado a partir de pontos de vista opostos — seja do
ponto de vista do revisionismo de Bernstein, que reconhecia como fato
consumado a emancipação das classes trabalhadoras no interior da sociedade
capitalista e solicitava uma pausa para conversar sobre uma revolução em que
ninguém pensava de forma alguma; seja do ponto de vista daqueles que não
estavam simplesmente “alienados” da sociedade burguesa, mas efetivamente
desejavam transformar o mundo.
Essa era a posição dos revolucionários do Leste que conduziram a ofensiva
contra Bernstein — Plekhanov, Parvus e Rosa Luxemburgo —, com o apoio de