Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt
processo de crescimento não era simplesmente a conseqüência de leis inatas queregulavam a produção capitalista, mas da existência persistente de setores précapitalistasno campo, capturadas e trazidas pelo “capitalismo” para dentro desua esfera de influência. Uma vez que esse processo se estendera por todo oterritório nacional, os capitalistas eram obrigados a buscar outras partes domundo, as regiões pré-capitalistas, para atraí-las para o processo de acumulaçãodo capital, que, por assim dizer, se alimentava de tudo que encontrava fora de si.Em outras palavras, a “acumulação original do capital” de Marx não era, como opecado original, um acontecimento isolado, uma proeza única de expropriaçãorealizada pela burguesia nascente, desencadeando um processo de acumulaçãoque então seguiria “com férrea necessidade” sua própria lei intrínseca, até ocolapso final. Pelo contrário, a expropriação tinha de se repetir reiteradamentepara manter o sistema em movimento. Portanto, o capitalismo não era umsistema fechado que gerava suas próprias contradições e trazia “em seu bojo arevolução”; alimentava-se de fatores externos e seu colapso automático sópoderia ocorrer, se é que chegaria a isso, quando toda a superfície da Terra fosseconquistada e devorada.Lênin rapidamente notou que essa análise, quaisquer que fossem seus méritosou defeitos, era essencialmente não marxista. Contradizia os própriosfundamentos da dialética marxiana e hegeliana, que sustentava que toda a tesedeve criar sua própria antítese — a sociedade burguesa cria o proletariado —, demodo que o movimento de todo o processo se mantém ligado ao fator inicial queo desencadeou. Lênin observou que, do ponto de vista da dialética materialista,“sua tese de que a reprodução ampliada do capital era impossível dentro de umaeconomia fechada e precisava devorar as economias para inclusive funcionar [...]era um erro fundamental”. O único problema é que aquilo que constituía um errona teoria marxiana abstrata correspondia a uma análise eminentemente fiel dascoisas tal como realmente eram. Sua cuidadosa “análise da tortura dos negros naÁfrica do Sul” também era nitidamente “não marxista”, mas quem hoje negariasua pertinência num livro sobre o imperialismo?
iiHistoricamente, a maior e mais original realização de Nettl é a descoberta do“grupo de iguais” judaico-polonês e a ligação íntima, permanente ecuidadosamente oculta de Rosa Luxemburgo com o partido polonês que delesurgiu. Com efeito, essa é uma fonte altamente significativa e totalmentenegligenciada não das revoluções, mas do espírito revolucionário no século xx.Esse meio, que mesmo nos anos 1920 perdera qualquer relevância pública, agoradesapareceu por completo. Seu núcleo consistia em judeus assimilados oriundosde famílias de classe média com formação cultural alemã (Rosa Luxemburgoconhecia Goethe e Morike de cor, e seu gosto literário era impecável, muitosuperior ao dos seus amigos alemães), formação política russa e padrões moraisna vida pública e privada exclusivamente seus. Esses judeus, minoriaextremamente reduzida no Oriente, e percentagem ainda menor de judeusassimilados no Ocidente, permaneciam fora de todos os escalões sociais,judaicos ou não judaicos, não possuindo portanto nenhum tipo de preconceitoconvencional, e desenvolveram, nesse isolamento realmente esplêndido, seupróprio código de honra — que a seguir atraiu uma série de não judeus, entre osquais Julian Marchlewski e Feliks Dzerjinski, que posteriormente se uniram aosbolcheviques. Foi precisamente devido a esses antecedentes únicos que Lêninindicou Dzerjinski como primeiro responsável pela Tcheka, pessoa que, segundoesperava, nenhum poder poderia corromper; não pedira para ficar encarregadodo departamento de Educação e Assistência à Infância?Nettl acentua com razão as excelentes relações de Rosa Luxemburgo com suafamília, pais, irmãos, irmã e sobrinha, dos quais nenhum jamais mostrou amínima inclinação pelas idéias socialistas ou atividades revolucionárias, mas quefizeram tudo o que puderam por ela, quando teve de se esconder da polícia ouesteve na prisão. O ponto é digno de nota, pois nos dá um relance desseantecedente familiar judaico único, sem o qual o surgimento do código ético dogrupo de iguais se tornaria praticamente incompreensível. O secretodenominador comum entre aqueles que sempre se trataram como iguais — edificilmente a outros — era a experiência essencialmente simples de um mundode infância cujos pressupostos eram o respeito mútuo e a confiançaincondicional, uma humanidade universal e um desprezo autêntico e quaseingênuo por todas as distinções sociais e éticas. O que os membros do grupo deiguais tinham em comum só se pode chamar de gosto moral, tão diferente dos“princípios morais”; deviam a autenticidade de sua moralidade ao fato de terem
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processo de crescimento não era simplesmente a conseqüência de leis inatas que
regulavam a produção capitalista, mas da existência persistente de setores précapitalistas
no campo, capturadas e trazidas pelo “capitalismo” para dentro de
sua esfera de influência. Uma vez que esse processo se estendera por todo o
território nacional, os capitalistas eram obrigados a buscar outras partes do
mundo, as regiões pré-capitalistas, para atraí-las para o processo de acumulação
do capital, que, por assim dizer, se alimentava de tudo que encontrava fora de si.
Em outras palavras, a “acumulação original do capital” de Marx não era, como o
pecado original, um acontecimento isolado, uma proeza única de expropriação
realizada pela burguesia nascente, desencadeando um processo de acumulação
que então seguiria “com férrea necessidade” sua própria lei intrínseca, até o
colapso final. Pelo contrário, a expropriação tinha de se repetir reiteradamente
para manter o sistema em movimento. Portanto, o capitalismo não era um
sistema fechado que gerava suas próprias contradições e trazia “em seu bojo a
revolução”; alimentava-se de fatores externos e seu colapso automático só
poderia ocorrer, se é que chegaria a isso, quando toda a superfície da Terra fosse
conquistada e devorada.
Lênin rapidamente notou que essa análise, quaisquer que fossem seus méritos
ou defeitos, era essencialmente não marxista. Contradizia os próprios
fundamentos da dialética marxiana e hegeliana, que sustentava que toda a tese
deve criar sua própria antítese — a sociedade burguesa cria o proletariado —, de
modo que o movimento de todo o processo se mantém ligado ao fator inicial que
o desencadeou. Lênin observou que, do ponto de vista da dialética materialista,
“sua tese de que a reprodução ampliada do capital era impossível dentro de uma
economia fechada e precisava devorar as economias para inclusive funcionar [...]
era um erro fundamental”. O único problema é que aquilo que constituía um erro
na teoria marxiana abstrata correspondia a uma análise eminentemente fiel das
coisas tal como realmente eram. Sua cuidadosa “análise da tortura dos negros na
África do Sul” também era nitidamente “não marxista”, mas quem hoje negaria
sua pertinência num livro sobre o imperialismo?