Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

hernandesjuan81
from hernandesjuan81 More from this publisher
23.03.2022 Views

(mais tarde, a “grande decana” do comunismo alemão) saíram para um passeio,perderam a hora e chegaram atrasadas a um encontro marcado com AugustBebel, que temia que se tivessem perdido. Rosa então propôs seu epitáfio: “Aquijazem os dois últimos homens da Socialdemocracia Alemã”. Sete anos depois,em fevereiro de 1914, ela teve a oportunidade de provar a verdade dessabrincadeira mordaz num magnífico discurso aos juízes do Tribunal Criminal, quea indiciara por “incitar” as massas à desobediência civil em caso de guerra.(Aliás, nada mau que a mulher que “sempre estava errada” enfrentasse umjulgamento sob essa acusação, cinco meses antes da eclosão da Primeira GuerraMundial, coisa que pouca gente “séria” julgaria possível). Com bom senso, o sr.Nettl reproduziu o discurso em sua íntegra; sua “virilidade” não tem paralelo nahistória do socialismo alemão.Passaram-se mais alguns anos e mais algumas catástrofes até que a lenda seconvertesse num símbolo nostálgico dos bons velhos tempos do movimento,quando as esperanças eram verdes, a revolução rondava a esquina e, maisimportante, a fé nas capacidades das massas e na integridade moral da liderançasocialista ou comunista ainda estava intacta. É representativo não só da pessoade Rosa Luxemburgo, mas também das qualidades dessa geração mais antiga daesquerda, o fato de que a lenda — vaga, confusa, imprecisa em quase todos osdetalhes — se difundisse por todo o mundo e ressuscitasse com o surgimento decada “nova esquerda”. Mas, ao lado dessa imagem glamorizada, sobreviveramtambém os velhos clichês da “mulher briguenta”, uma “romântica” que não eranem “realista” nem científica (é verdade que sempre estava fora de passo), ecujas obras, principalmente seu grande livro sobre o imperialismo, (Aacumulação do capital, 1913), só receberam indiferença. Cada movimento danova esquerda, ao chegar seu momento de se transformar na velha esquerda —geralmente quando seus membros alcançavam os quarenta anos de idade —,prontamente enterrava seu antigo entusiasmo por Rosa Luxemburgo junto comos sonhos de juventude; e como geralmente não tinham se dado ao trabalho deler, quanto mais de entender, o que ela dissera, achavam mais fácil dispensá-lacom todo o filisteísmo condescendente de seu status recém-adquirido. O“luxemburguismo”, inventado postumamente pelos mercenários do Partido porrazões polêmicas, nunca sequer alcançou a honra de ser denunciado como“traição”; era tratado como uma doença infantil inofensiva. Do que RosaLuxemburgo falou ou escreveu nada sobreviveu, exceto sua críticasurpreendentemente acurada à política bolchevique durante os estágios iniciaisda Revolução Russa, e isso apenas porque aqueles para quem um “deus falhara”

podiam utilizá-la como uma arma conveniente, ainda que totalmente inadequada,contra Stálin. (“Há algo de indecente no uso do nome e dos escritos de Rosacomo um míssil de guerra fria”, observou o resenhista do livro de Nettl emTimes Literary Supplement.) Seus novos admiradores tinham tanta coisa emcomum com ela quanto seus detratores. Seu senso altamente desenvolvidoquanto às diferenças teóricas e seu julgamento infalível sobre as pessoas, seusgostos e desgostos pessoais, impediriam-na de reunir Lênin e Stálinindiscriminadamente sob quaisquer circunstâncias, à parte o fato de nunca tersido uma “crente”, nunca ter usado a política como substituta da religião e tertido o cuidado, como nota o sr. Nettl, de não atacar a religião quando se opunhaà Igreja. Em suma, embora “a revolução fosse para ela tão próxima e real comopara Lênin”, não a colocava como um artigo de fé, como tampouco o marxismo.Lênin foi basicamente um homem de ação e entraria na política de qualquerforma, mas ela, que segundo sua auto-avaliação meio a sério, meio a brincadeiranascera “para cuidar dos gansos”, poderia igualmente ter se enterrado nabotânica e zoologia, ou em história e economia, ou em matemática, se ascircunstâncias do mundo não tivessem ferido seu senso de justiça e liberdade.Isso, evidentemente, significa admitir que ela não era uma marxista ortodoxa,e de fato tão pouco ortodoxa que até se pode perguntar se, afinal, era marxista.Nettl afirma corretamente que, para ela, Marx não era senão “o melhor intérpreteda realidade entre todos eles” e revela sua falta de compromisso pessoal o fatode poder escrever: “Tenho agora horror ao tão elogiado primeiro volume doCapital de Marx, devido aos seus elaborados ornamentos rococós à la Hegel”. 4Segundo seu ponto de vista, o mais importante era a realidade, em todos os seusaspectos medonhos e maravilhosos, mais ainda do que a própria revolução. Suanão-ortodoxia era inocente e não polêmica: “recomendava aos seus amigos quelessem Marx pela ‘ousadia de seus pensamentos, a recusa em assumir qualquercoisa como assentada’, mais do que pelo valor de suas conclusões. Os erros dele[...] eram auto-evidentes [...]; foi por isso que ela nunca se deu ao trabalho de seempenhar numa longa crítica”. Tudo isso fica mais evidente em A acumulaçãodo capital, que Franz Mehring foi o único suficientemente despreconceituosopara considerar como uma “realização verdadeiramente magnífica e fascinante,sem igual desde a morte de Marx”. 5 A tese central dessa “curiosa obra de gênio”é bastante simples. Como o capitalismo ainda não manifestava quaisquer sinaisde colapso “sob o peso de suas contradições econômicas”, ela começou a buscaruma causa externa para explicar a continuidade de sua existência e crescimento.Encontrou-a na chamada teoria do terceiro homem, isto é, no fato de que o

podiam utilizá-la como uma arma conveniente, ainda que totalmente inadequada,

contra Stálin. (“Há algo de indecente no uso do nome e dos escritos de Rosa

como um míssil de guerra fria”, observou o resenhista do livro de Nettl em

Times Literary Supplement.) Seus novos admiradores tinham tanta coisa em

comum com ela quanto seus detratores. Seu senso altamente desenvolvido

quanto às diferenças teóricas e seu julgamento infalível sobre as pessoas, seus

gostos e desgostos pessoais, impediriam-na de reunir Lênin e Stálin

indiscriminadamente sob quaisquer circunstâncias, à parte o fato de nunca ter

sido uma “crente”, nunca ter usado a política como substituta da religião e ter

tido o cuidado, como nota o sr. Nettl, de não atacar a religião quando se opunha

à Igreja. Em suma, embora “a revolução fosse para ela tão próxima e real como

para Lênin”, não a colocava como um artigo de fé, como tampouco o marxismo.

Lênin foi basicamente um homem de ação e entraria na política de qualquer

forma, mas ela, que segundo sua auto-avaliação meio a sério, meio a brincadeira

nascera “para cuidar dos gansos”, poderia igualmente ter se enterrado na

botânica e zoologia, ou em história e economia, ou em matemática, se as

circunstâncias do mundo não tivessem ferido seu senso de justiça e liberdade.

Isso, evidentemente, significa admitir que ela não era uma marxista ortodoxa,

e de fato tão pouco ortodoxa que até se pode perguntar se, afinal, era marxista.

Nettl afirma corretamente que, para ela, Marx não era senão “o melhor intérprete

da realidade entre todos eles” e revela sua falta de compromisso pessoal o fato

de poder escrever: “Tenho agora horror ao tão elogiado primeiro volume do

Capital de Marx, devido aos seus elaborados ornamentos rococós à la Hegel”. 4

Segundo seu ponto de vista, o mais importante era a realidade, em todos os seus

aspectos medonhos e maravilhosos, mais ainda do que a própria revolução. Sua

não-ortodoxia era inocente e não polêmica: “recomendava aos seus amigos que

lessem Marx pela ‘ousadia de seus pensamentos, a recusa em assumir qualquer

coisa como assentada’, mais do que pelo valor de suas conclusões. Os erros dele

[...] eram auto-evidentes [...]; foi por isso que ela nunca se deu ao trabalho de se

empenhar numa longa crítica”. Tudo isso fica mais evidente em A acumulação

do capital, que Franz Mehring foi o único suficientemente despreconceituoso

para considerar como uma “realização verdadeiramente magnífica e fascinante,

sem igual desde a morte de Marx”. 5 A tese central dessa “curiosa obra de gênio”

é bastante simples. Como o capitalismo ainda não manifestava quaisquer sinais

de colapso “sob o peso de suas contradições econômicas”, ela começou a buscar

uma causa externa para explicar a continuidade de sua existência e crescimento.

Encontrou-a na chamada teoria do terceiro homem, isto é, no fato de que o

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!