Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
vista pelo prisma de sua vida e obra?
Seja como for, não conheço nenhum livro que lance mais luz sobre o período
crucial do socialismo europeu desde as últimas décadas do século xix até o dia
fatídico de janeiro de 1919, quando Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, os
dois líderes da Spartakusbund, o precursor do Partido Comunista Alemão, foram
assassinados em Berlim — sob as vistas e provavelmente com a conivência do
regime socialista então no poder. Os assassinos eram membros do
ultranacionalista e oficialmente ilegal Freikorps, uma organização paramilitar de
onde as tropas de assalto de Hitler logo recrutariam seus matadores mais
promissores. O fato de o governo na época estar praticamente nas mãos do
Freikorps, pois gozava “do pleno apoio de Noske”, o especialista dos socialistas
em defesa nacional, então encarregado dos assuntos militares, só foi confirmado
recentemente pelo capitão Pabst, o último sobrevivente dos participantes no
assassinato. O governo de Bonn — neste, como em outros assuntos, apenas
ávido demais em reviver os traços mais sinistros da República de Weimar — fez
saber que foi graças ao Freikorps que Moscou não conseguiu incorporar toda a
Alemanha num império vermelho após a Primeira Guerra Mundial e que o
assassinato de Liebknecht e Luxemburgo foi inteiramente legal, “uma execução
de acordo com a lei marcial”. 3 Isso ultrapassa consideravelmente o que a própria
República de Weimar jamais pretendeu, pois nunca admitira publicamente que o
Freikorps era de fato um braço armado do governo e “punira” os assassinos
atribuindo ao soldado Runge uma sentença de dois anos e duas semanas, por
“tentativa de homicídio” (ele ferira Rosa Luxemburgo na cabeça, nos corredores
do Hotel Eden), e quatro meses para o tenente Vogel (era o oficial de plantão
quando ela recebeu um tiro na cabeça, dentro de um carro, e foi atirada ao canal
Landwehr), por “não anunciar um cadáver e dispor ilegalmente dele”. Durante o
julgamento, foi apresentada como evidência uma fotografia que mostrava Runge
e seus colegas comemorando o assassinato no dia seguinte no mesmo hotel, o
que provocou grande divertimento no réu. “Acusado Runge, comporte-se
convenientemente. Este não é um assunto para risos”, disse o presidente do
tribunal. Quarenta e cinco anos depois, durante o julgamento de Auschwitz em
Frankfurt, ocorreu uma cena semelhante, e foram pronunciadas as mesmas
palavras.
Com o assassinato de Rosa Luxemburgo e Liebknecht, tornou-se irrevogável a
divisão da esquerda européia entre os partidos comunista e socialista; “o abismo