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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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do judaísmo ou do cristianismo tê-lo-ia impedido de travar uma amizade e um

discurso de amizade com um muçulmano convicto, um judeu piedoso ou um

cristão crente. Qualquer doutrina que, de princípio, barrasse a possibilidade de

amizade entre dois seres humanos seria rejeitada por sua consciência livre e

certeira. Teria imediatamente tomado o lado humano e não ligaria para a

discussão culta ou inculta em cada uma das partes. Esta era a humanidade de

Lessing.

Essa humanidade surgiu num mundo politicamente escravizado cujos

fundamentos, além do mais, já estavam abalados. Lessing também já vivia em

“tempos sombrios” e, à sua maneira, foi destruído por essa obscuridade. Vimos a

forte necessidade que sentem os homens, em tais épocas, de se aproximarem

entre si, de buscarem no calor da intimidade o substituto para aquela luz e

iluminação que só podem ser oferecidas pelo âmbito público. Mas isso significa

que evitam disputas e tentam ao máximo tratar apenas com pessoas com quem

não entrarão em conflito. Para um homem com a disposição de Lessing, pouco

espaço havia numa tal época e num tal mundo confinado; onde as pessoas se

aproximavam para se aquecerem mutuamente, afastavam-se dele. E no entanto

ele, polêmico a ponto de brigar, não podia suportar a solidão mais do que a

excessiva proximidade de uma fraternidade que anulava todas as diferenças.

Nunca realmente ansiou por brigar com alguém com que estivesse discutindo;

estava apenas interessado em humanizar o mundo com o discurso incessante e

contínuo sobre seus assuntos e as coisas que nele se encontravam. Queria ser o

amigo de muitos homens, mas não o irmão de nenhum homem.

Ele não conseguiu atingir essa amizade no mundo com as pessoas em

discussões e discursos, e na verdade, sob as condições que então predominavam

nas terras de língua alemã, dificilmente teria conseguido. A simpatia por um

homem que “valia mais que todos os seus talentos” e cuja grandeza “residia em

sua individualidade” (Friedrich Schlegel) realmente nunca poderia se

desenvolver na Alemanha, pois essa simpatia teria de brotar da política no

sentido mais profundo da palavra. Como Lessing era uma pessoa totalmente

política, insistia que a verdade só pode existir onde é humanizada pelo discurso,

onde cada homem diz, não o que acaba de lhe ocorrer naquele momento, mas o

que “acha que é verdade”. No entanto, essa frase é praticamente impossível na

solidão; ela pertence a uma área onde existem muitas vozes e onde a enunciação

daquilo que cada um “acha que é verdade” tanto une como separa os homens, de

fato estabelecendo aquelas distâncias entre os homens que, juntas, compreendem

o mundo. Toda verdade fora dessa área, não importa se para o bem ou o mal dos

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